Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2238/20.5T8PNF.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
REJEIÇÃO DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
INTERESSE EM AGIR
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
INCUMPRIMENTO
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Só a parte que tenha ficado vencida na causa (cuja pretensão foi repelida ou rejeitada) pode recorrer.

II. Além desta legitimidade, a lei exige que o recorrente tenha interesse em agir, ou seja, “interesse em recorrer aos tribunais para tutela do interesse material”.

III. Não sendo visível que o recurso – rectius: a eventual procedência do recurso – proporcione alguma utilidade prática ao recorrente, deve concluir-se que falta interesse em agir, devendo o recurso ser rejeitado.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. RELATÓRIO

1. AA e BB intentaram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Parcela Pictórica, Lda., pedindo que:

a) seja declarado o incumprimento definitivo pela ré do contrato promessa de compra e venda celebrado em 3 de Agosto de 2017 e, por via disso, declarado o mesmo resolvido;

b) seja a ré condenada a pagar aos autores, a título de indemnização compensatória pelo não cumprimento culposo, o dobro do sinal prestado, na quantia de € 92 000,00, a que deve acrescer juros de mora à taxa legal, a contar da citação da presente e até efetivo e integral pagamento.

A título subsidiário, caso venham a improceder os pedidos anteriores,

c) Seja a ré condenada a devolver aos autores a quantia de € 46.000,00, correspondente ao valor global que estes lhe entregaram, a título de sinal e princípio de pagamento, a que devem acrescer juros de mora à taxa legal, a contar da citação da presente e até efetivo e integral pagamento.

Para tanto e em síntese, alegam que:

- celebraram com a ré um contrato promessa de compra e venda, mediante o qual os autores declararam comprar a esta, que declarou vender, uma fracção a edificar num prédio a construir em regime de propriedade horizontal;

- o prazo previsto naquele contrato era meramente indicativo ou programático, mas, face às necessidades dos autores comunicadas à ré, esta assegurou-lhes que a partir de Março/Abril de 2019 existiriam as necessárias condições para outorgarem o contrato definitivo;

- prazo que já decorreu e o empreendimento está a ser contruído a um ritmo muito lento, não prevendo a ré quando estrará em condições de celebrar o contrato definitivo;

- a acrescer a isto, a ré não está a cumprir com o estipulado no caderno de encargos, no que concerne ao tipo de materiais aplicados tanto nas partes comuns do edifício como na fracção objecto da promessa;

- concederam à ré um prazo de 60 dias para que a mesma agendasse a escritura pública ou acto equivalente, concedendo-lhe um prazo suplementar de mais 15 dias para o efeito, sendo que, findos esses prazos, perdiam objectivamente o interesse na manutenção do contrato, o que acarretava que o contrato promessa fosse resolvido por incumprimento definitivo da ré;

- prazos que a ré não cumpriu.

2. Citada, a ré apresentou contestação, aceitando a existência do invocado contrato-promessa e impugnando, no essencial, a versão dos factos alegados pelos autores, alegando que:

- de acordo com o contrato promessa celebrado, a ré teria de marcar a escritura pública no prazo de 10 dias após a obtenção da licença de utilização;

- a ré deu aos autores uma previsão para a obtenção da licença de utilização para meados de 2020, sendo que ao responderem a essa missiva, nos termos em que o fizeram, os autores aceitaram essa previsão/condição e a subsequente celebração da escritura pública, passando, então, a invocar pretensos incumprimentos do mapa de acabamentos, ou seja, bem sabendo os autores que à ré não podia ser imputado qualquer incumprimento de prazos, passaram a questionar o mapa de acabamentos e a invocar pretensos acordos verbais em obra;

- as partes acordaram por escrito, no próprio contrato promessa, que a listagem que foi apresentada tinha natureza indicativa, podendo sofrer alterações decorrentes da alteração do projecto, determinadas pelo promotor, pela indisponibilidade de fornecimento ou termo de produção, sendo que as eventuais substituições seriam feitas respeitando os padrões de qualidade idênticos aos previstos;

- os autores não tinham direito de impor à ré outro prazo para a celebração da escritura que não aquele que foi contratualizado, pelo que, não tendo nunca a ré estado em mora, também nunca incumpriu definitivamente o contrato em causa.

Deduziu ainda a ré pedido reconvencional, pedindo a condenação dos autores a ver reconhecido o seu direito a fazer sua a quantia de € 46.000 entregue pelos autores a título de sinal e princípio de pagamento, alegando que:

- após a obtenção da licença de utilização e respeitando o prazo contratual, marcou a escritura para a celebração do contrato definitivo e notificou os autos para comparecerem na morada contratualmente estipulada, o que aqueles não fizeram e, seguidamente, fez nova marcação de escritura, convocando novamente os autores para comparecerem para a referida morada, o que aqueles não fizeram, assim, concluindo que os autores incumpriram o contrato promessa, incumprimento que lhe concede o direito fazer suas as quantias entregues pelos autores.

3. Os autores apresentaram réplica, onde além do mais, pediram a condenação da ré como litigante de má fé em multa e indemnização, numa quantia nunca inferior a € 5.000,00

4. A ré na resposta nega a sua invocada litigância de má fé e, por sua vez, pede, ela própria, a condenação dos autores como tal em multa e indemnização, numa quantia nunca inferior a € 5.000,00.

5. Seguida a normal e pertinente tramitação veio a realizar-se a audiência de discussão e julgamento com observância do formalismo legal pertinente, que culminou com a prolação de sentença em que se julgou:

- “totalmente improcedentes os pedidos principais deduzidos pelos autores,

- totalmente improcedente o pedido reconvencional e

- procedente o pedido subsidiário deduzido pelos autores, decide-se condenar a ré a devolver aos autores a quantia de € 46.000,00 (quarenta e seis mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa 4%, vencidos e vincendos desde o sexto dia após a citação da ré e até efectivo pagamento”.

E acrescentou-se:

Mais se absolvem autores e ré dos pedidos de condenação como litigantes de má fé”.

6. Inconformada, apelou a ré, pugnando pela revogação da sentença, pela total improcedência do pedido subsidiário formulado pelos autores e pela total procedência do pedido reconvencional.

7. Também inconformados, apelaram os autores, invocando vícios da sentença e erros de julgamento.

8. Os Exmos. Senhores Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto proferiram Acórdão, em que decidiram julgar:

1. totalmente improcedente o recurso dos autores e

2. parcialmente procedente o recurso da ré, termos em que se revoga o segmento que a condenara a devolver aos autores a quantia de € 46.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa 4%, vencidos e vincendos desde o sexto dia após a citação da ré e até efectivo pagamento”.

7. Ainda não conformada, vem agora a ré Parcela Pictórica, “nos termos dos artigos 638.º, n.º 1, e 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”.

Justifica a admissibilidade do recurso logo no requerimento de interposição, dizendo que “o presente recurso é admissível porquanto, na situação em apreço, não se verifica a chamada dupla conforme. Isto porque, como melhor se justifica no corpo das alegações, a fundamentação do acórdão recorrido quanto a esse segmento decisório é essencialmente diferente da da sentença da Primeira Instância”.

E imediatamente a seguir acrescenta que, “[p]revenindo, no entanto, a eventualidade de não se considerar admissível o recurso de revista por força do disposto na segunda parte do n.º 3 do art. 671.º, a Recorrente interpõe também recurso de revista excepcional ao abrigo do disposto no art. 672.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código de Processo Civil”.

Pede, em suma, a reapreciação do pedido reconvencional de condenação dos autores ao reconhecimento do direito da ré a fazer sua a quantia de € 46.000 entregue a título de sinal e o seu julgamento como procedente por este Supremo Tribunal.

Termina formulando as seguintes conclusões:

1.ª- O presente recurso vem interposto do douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto que manteve a decisão da Primeira Instância de julgar improcedente o pedido reconvencional deduzido pela Recorrente.

2.ª- Não obstante o acórdão ser de confirmação do decidido em Primeira Instância, a Relação chega a esse resultado através de um caminho essencialmente distinto, que a levou a ponderar casuisticamente as circunstâncias relevantes da culpa prevista no artigo 224.º, n.º 2, do Código Civil, cuja aplicabilidade a sentença da Primeira Instância afastou, por considerar que essa norma tem apenas em vista as “situações em que as pessoas se esquivam às notificações/comunicações com o propósito de impedir que as mesmas produzam os seus efeitos, situação esta que não está demonstrada nos autos e sempre o ónus de tal demonstração incumbiria à ré”.

3.ª- Acresce que o acórdão recorrido, na avaliação do “grau de diligência concretamente exigível ao remetente”, teceu conclusões com base em factos que não resultam dos autos (pelo contrário), como o de que a Recorrente, quando enviou a segunda carta (que a Relação inclusivamente considerou que “nem era obrigada a enviar”), já teria conhecimento da devolução da primeira (o que é contrariado pela factualidade dos autos) — e sobre os quais — umas e outros — a Recorrente não teve oportunidade de se pronunciar—nem teria, se eventualmente não viesse a ser admitido o Recurso de Revista.

4.ª-Seja como for, estão em causa nos autos questões, cuja apreciação, pela suarelevância jurídica, é necessária para uma melhor aplicação do direito, como a da a da eficácia de uma declaração negocial não recebida, nomeadamente quanto à culpa pela sua não receção, a qual é debatida na doutrina e nos Tribunais, com resultados muitas vezes não coincidentes, e que requer o preenchimento de conceitos indeterminados “conexos com elementos subjectivos da responsabilidade contratual”, como o da culpa, ou culpa exclusiva, e o da boa fé — neste caso, quer do declarante quer do declaratário.

5.ª-   Concretamente, importa apreciar se o Tribunal deve ter em devida consideração o facto de no contrato promessa em causa nos autos constar como morada dos promitentes compradores, aqui Recorridos, aquela para onde foram enviadas as notificações em causa nos autos e de nele ter sido estipulado uma “Convenção de Domicílio”, e se, tendo a correspondência sido devolvida com a indicação “não reclamada”, competia ou não aos Recorridos o ónus de alegação e prova de que não houve culpa sua no facto de as interpelações para a escritura não terem sido por eles rececionadas ou conhecidas.

6.ª-   E se tal “convenção de domicílio” deveria ser cumprida, como foi, pela Recorrente, aquando das convocatórias para a escritura, em cumprimento do pacta sunt servanda (art. 406º, 1 do CC) ou se deve optar-se pela completa descaraterização dessa cláusula, que, ao abrigo do princípio da liberdade contratual, foi inserida no contrato promessa, o que tudo constitui questões paradigmáticas cuja utilidade para o melhor aplicação do direito transcende os limites dos presentes autos, podendo a decisão a proferir pelo S.T.J. servir de orientação para futuras situações semelhantes.

7.ª-    Uma outra questão (esta inédita) prende-se com a ideia ínsita no acórdão recorrido de que uma omissão do remetente nomeadamente no envio de outras cartas para morada diferente da contratual é de molde a afastar a culpa exclusiva do destinatário no não recebimento das cartas que foram efetivamente enviadas para o domicílio convencionado.

8.ª- Por outro lado, o Acórdão recorrido entra em contradição com o anterior Acórdão prolatado no processo que correu termos sob o número 3792/08.5TBMAI-A.P1.S1 na 2ª SECÇÃO do Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

9.ª-  A questão jurídica relativamente à qual há contradição de julgados respeita à interpretação e aplicação da mesma norma jurídica (artigo 224.º, n.º 2, do Código Civil), sendo que os quadros fácticos presentes em ambas as situações são semelhantes, permitindo a respetiva comparação e verificação de oposição de decisões, que é manifesta e direta, como nestas alegações se explanou.

10.ª-  Pelo que, caso se entenda não ser admissível o recurso de revista por força do disposto na segunda parte do n.º 3 do art. 671.º, a Recorrente interpõe também recurso de revista excepcional ao abrigo do disposto no art. 672.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código de Processo Civil.

11.ª- O acórdão recorrido considerou não se poder “imputar apenas aos autores a culpa pelo não recebimento das cartas, prevista no artigo 224.º/2 CCivil”, e que, por conseguinte, “a sua falta às duas convocatórias para a escritura” não importou incumprimento definitivo do contrato. Ademais, o Acórdão, recorrido, com a solução que deu ao litígio, que é no mínimo ambígua ou obscura — pois que decidiu, por um lado, que a Recorrente não tem qualquer obrigação de devolver aos Autores o montante recebido a título de sinal mas, simultaneamente, não reconhece à Recorrente o direito de o haver para si —, manteve, para usar uma imagem médica, artificialmente “ligado às máquinas” um contrato promessa morto (“com morte cerebral”) que ambas as partes reconheceram como extinto (e manifestaram a sua vontade em ver resolvido).

12.ª-    Entende, no entanto, a Recorrente que, dos factos que o próprio acórdão trouxe à colação para a questão em apreço — onde se incluiu o “clausulado no contrato”, do qual consta como morada dos Autores a da “Rua ..., ... ..., B...” e uma cláusula denominada “Convenção de Domicílio”, nos termos da qual “todas as comunicações a efetuar no âmbito deste contrato sê-lo-ão para os locais e domicílios nele identificado, salvo se vier a ser transmitida, por qualquer dos contraentes, com antecedência de oito dias por carta registada com aviso de receção, qualquer alteração”, tendo sido também tido em consideração o facto de os autores jamais terem transmitido à ré, “por carta registada com aviso de recepção” ou mesmo por qualquer outro meio escrito, a alteração do aludido domicílio contratual e que ambas as cartas a convocar os autores para a escritura foram enviadas pela ré para o “domicílio convencionado” dos autores; (factos provados n.º 27 e 28), tendo a primeira delas sido devolvida com a menção “objeto não reclamado/non reclamé” — resulta à saciedade que o não recebimento das concretas cartas que a Ré lhes enviou resultou da culpa exclusiva dos Autores.

13.ª-   Segundo o douto acórdão recorrido “A questão que se coloca é a de saber se a ré tinha motivo ou não para enviar esta duas cartas para a morada constante do contrato. Ou para outra e qual esta outra. E saber se e a quem é imputável o não recebimento das cartas”.

14.ª-   No modesto entender da Recorrente, é, desde logo, claro o motivo que a mesma tinha para enviar as duas cartas de convocação para a escritura para a morada constante do contrato promessa: o teor da cláusula Oitava deste e a circunstância de nunca os Autores lhe terem comunicado, fosse por que meio fosse, a alteração da sua morada contratual.

15.ª-   É pacífico o entendimento de que, remetida a declaração negocial para o endereço constante do contrato, existe a legítima expectativa por parte do declarante de que a mesma será recebida, ou de que, ainda que o não seja, a declaração se tornará eficaz, independentemente desse recebimento, caso o destinatário não prove que o não recebimento se deveu a culpa do próprio remetente, de terceiro, a caso fortuito ou de força maior.

16.ª-   Pelo que, caso a Recorrente tivesse enviado as cartas em causa nos autos para outra morada que não a contratualmente acordada não poderia sustentar que tinha a legítima expectativa de que as mesmas seriam recebidas pelo que lhe caberia a ela o ónus da prova da culpa exclusiva dos Recorridos pelo não recebimento.

17.ª-    Não se compreende, aliás, que o Tribunal da Relação sustente que a Recorrente devesse ter enviado as cartas para morada diferente da que consta do contrato, quando no próprio acórdão recorrido se afirma que “É verdade, contudo, que se a ré enviasse estas cartas para o novo domicílio e da mesma forma os autores faltassem à convocatória, podiam vir invocar o domicílio contratual, para defender a ineficácia das declarações”. (pág. 55 do acórdão)

18.ª-   Mesmo na tese do acórdão, não havia nenhum motivo para que a Ré enviasse as cartas para outra morada que não a contratual, por um lado, porque se esse envio tivesse resultados negativos, ninguém viria defender a Recorrente e considerar legítima e eficaz a sua atuação, e, por outro lado, o acórdão não responde à própria questão que colocou, de qual seria então a outra morada, diferente da que constava do contrato, para onde deveriam ter sido enviadas as cartas, com garantia de eficácia.

19.ª-   No acórdão vêm referidos, a propósito da imputabilidade no não recebimento das cartas, que devem ser “casuisticamente ponderadas todas circunstâncias relevantes, designadamente o grau de diligência concretamente exigível ao remetente e ao destinatário e, atender, ainda, à natureza e finalidade das missivas e ao clausulado no contrato em que se inserem”.

20.ª- No que respeita, no entanto, ao “clausulado no contrato”, o Tribunal da Relação dele não retirou as consequências que a jurisprudência vem atribuindo a esse fator.

21.ª-     No que respeita ao “grau de diligência concretamente exigível ao destinatário”, o acórdão recorrido considerou que não se provou que tivesse havido da parte dos Autores “comunicação expressa à ré de qualquer alteração do domicílio”, que essa comunicação era imposta pelo contrato e pelas “mais elementares regras da boa fé”, acrescentando ainda que competia aos autores “a obrigação de assegurar que qualquer correspondência enviada para a morada do contrato fosse endereçada fosse reexpedida para outro local ou que alguém procedesse à sua recolha e tratamento”, mas o certo é que acaba por desvalorizar estas falhas dos Recorridos desculpando a incúria daqueles com o facto de ter sido trocada correspondência noutra morada, apesar de o mesmo acórdão considerar que tal não constituiu comunicação de alteração nem assunção por parte da Recorrente de que essa seria a morada a ter em conta nas comunicações relevantes nem que esta soubesse que tal morada ainda se encontrava em “vigor” em agosto de 2020...

22.ª-  Foi também desconsiderada na decisão recorrida a circunstância, corrente na Jurisprudência, de competir ao destinatário o ónus da prova de que o não recebimento não procedeu total ou parcialmente de culpa sua, demonstrando ter procedido a todas as diligências possíveis para que as cartas lhe chegassem ao poder, e que tal lhe foi impedido por circunstâncias alheias à sua pessoa, e o facto de os Recorridos não terem alegado nenhum facto que indiciasse que o não recebimento se deveu a um qualquer ato da Recorrente ou de terceiro, ou que tenha resultado de caso fortuito ou de força maior, em suma que o recebimento tivesse sido impedido por um qualquer ato que eles não pudessem controlar, e não em virtude do manifesto alheamento dos mesmos relativamente ao local que constituía o domicílio convencionado.

23.ª-    Em suma, aos Recorridos não foi exigido pela Relação que tivessem alegado e demonstrado matéria que justificasse o facto de, não residindo na morada constante do contrato, não terem comunicado à Recorrente a alteração do domicílio contratual, nem quaisquer circunstâncias que os tivessem impedido de receber as cartas enviadas para esse domicílio.

24.ª-   O douto acórdão recorrido atribui à Recorrente uma pretensa culpa que nada teve a ver com o não recebimento pelos Recorrido das convocatórias para a escritura enviadas para o domicílio convencionado.

25.ª-    Numa das conclusões do acórdão recorrido vem dito que “Se anteriormente, na correspondência mantida entre as partes, o autor indicava como domicílio do remetente uma outra morada, diferente da constante do contrato promessa - que o autor estava obrigado a manter actualizada, o que não fez - e a ré para ela lhe respondia, não se pode concluir pela culpa exclusiva do autor pelo não recebimento da última para o domicílio do contrato, devolvida por não reclamada”.

26.ª-    No entanto não se vê em que é a pretensa omissão da Ré no envio de outras cartas para morada diferente da contratual podia interferir com a circunstância de o concreto recebimento das que foram enviadas para o domicílio do contrato apenas depender dos Autores, de modo a que pudesse não se verificar a culpa exclusiva destes pelo não recebimento dessas cartas.

27.ª-     Seja como for, o certo é que a aludida conclusão do acórdão é diretamente contrariada por outras considerações feitas na decisão, ficando no final sem se saber para onde deveria a Recorrente ter enviado as convocatórias, e qual a razão de não as enviar para o domicílio convencionado, com graves consequências para a sua segurança quanto ao cumprimento das obrigações contratuais.

28.ª-    Com efeito, o acórdão, ora refere que não se provou “que houve comunicação expressa à ré de qualquer alteração do domicílio”, como sustenta que “a ré aceitou enviar a correspondência para o local onde os autores indicavam como domicílio do remetente nas cartas que lhes enviavam”, como logo a seguir afirma que “daqui se não pode, sem mais, extrair a conclusão de que com tal comportamento a ré aceitou que as comunicações a efectuar no âmbito do contrato seriam para uma nova e diferente morada daquela indicada no contrato”.

29.ª-       A Relação afirma que a Ré evidenciou ter conhecimento da “dualidade” das moradas, mas ela própria reconhece mais adiante que “também é verdade que os autores até comunicaram à ré terem arrendado uma casa enquanto a prometida comprar não estivesse disponível. Mais um grão de areia na engrenagem, que poderia confundir a ré, sendo certo que não lhe foi comunicada a localização, nem se poderia presumir que era daí que enviavam as cartas”.

30.ª-    Qual era de facto então a “dualidade” das moradas de que a Ré tinha conhecimento em agosto de 2020?

31.ª-     E se não lhe foi comunicada a localização do tal arrendado, nem que era daí que os Autores enviavam as cartas, nem que esse eventual arrendamento seteria mantido após 21.06.2020, como se pode afirmar que a Ré, que estaria naturalmente confusa, fez “crer aos Autores, objectivamente, que todas as comunicações relacionadas com o contrato promessa seriam remetidas para esta morada”.

32.ª-       Quando justamente anteriormente se afirmou que “daqui se não pode, sem mais, extrair a conclusão de que com tal comportamento a ré aceitou que as comunicações a efectuar no âmbito do contrato seriam para uma nova e diferente morada daquela indicada no contrato”. Então a convicção dos Autores (que não está demonstrada nos autos) teria sido “objectiva” porquê? (De notar que, mais adiante, o acórdão já refere que a conduta da Ré “objectivamente, lhes pode [aos Autores] ter criado a convicção de que a ré, sempre para esse novo local, lhes enviaria a correspondência”).

33.ª-    E como é que aquela afirmação se conjuga com as feitas a seguir, ou seja, que essa crença (?) dos Autores “está longe de poder ser tido como uma comunicação por escrito da substituição da morada, como era imposto pelo contrato, de resto”?

34.ª-    Seja como for, sempre o que interessaria apurar era se a Ré quis de facto criar nos Autores a convicção de que a morada constate do contrato deixava de ter relevo e que a cláusula Oitava do mesmo não tinha qualquer valor, ou seja, que o contrato não tinha que ser cumprido ponto por ponto.

35.ª-    O acórdão sustenta ainda que à Recorrente era “imposto, segundo as referidas regras da boa fé, maior cautela e cuidado, desde logo dada a natureza e importância da declaração contida nestas duas cartas, bem como os gravosos efeitos inerentes ao seu não acatamento”, não atentando no facto de que, se havia missivas que tinham que cumprir o disposto no contrato, eram aquelas que continham declarações negociais.

36.ª-   A afirmação feita no acórdão recorrido, de que a Ré enviou a segunda carta “depois de a primeira não ter sido reclamada” — e que terá sido a razão determinante para a improcedência do recurso —resulta de um erro da Relação que, por um lado, não se apercebeu que a segunda carta foi enviada após a não comparência dos Autores à escritura de 12.08.2020 (e não após a devolução da primeira carta), conforme facto provado 28 (“Em face dessa não comparência dos autores à escritura…”) e, por outro lado, confundiu o ato de devolução (pelos CTT ... a 13.08.2020) com o efeito da devolução (nos serviços da Ré, em ..., necessariamente depois desse dia); ou seja, como resulta dos autos, a segunda carta foi enviada após a não comparência dos Autores à celebração da escritura e não após a primeira carta ter sido devolvida à Ré.

37.ª-     Pelo que a Ré não teve qualquer intenção de “reincidir na mesma conduta”, antecipando que o resultado seria o mesmo.

38.ª-    O acórdão termina referindo que “não obstante o pecado original seja a omissão dos autores, cremos que se não pode imputar apenas a eles a culpa na devolução das cartas. A conduta da ré também não está isenta de censura, ao manter correspondência com os autores para um local que não era o contratualmente previsto, na convenção de domicílio e, que, objectivamente, lhes pode ter criado a convicção de que a ré, sempre para esse novo local, lhes enviaria a correspondência.

Não se podendo, pois, imputar apenas aos autores a culpa pelo não recebimento das cartas, prevista no artigo 224.º/2 CCivil, subsequentemente enviadas para a mesma morada, a segunda depois de a primeira ter sido devolvida, por não reclamada, não se poderá afirmar que a sua falta às duas convocatórias para a escritura, importe incumprimento definitivo do contrato”.

39.ª-    Estas afirmações do acórdão resumem, no entender da Ré, o erro de julgamento em que o mesmo incorreu.

40.ª-     A conduta da Ré, em ter mantido anteriormente correspondência de cariz comercial com os Autores para um local que não era o contratualmente previsto, nada tem de censurável, uma vez que as cartas que foram enviadas por aqueles e às quais a Ré respondia ponto por ponto traziam no cabeçalho uma morada que fez com que os seus serviços comerciais tivessem enviado para aí a resposta (embora sem que a isso estivesse obrigada), o que a Ré fez de boa-fé.

41.ª-    Por outro lado, não é possível ao Tribunal afirmar que tal circunstância “objectivamente, lhes pode ter criado a convicção de que a ré, sempre para esse novo local, lhes enviaria a correspondência”, sem que tal tenha sido alegado e demonstrado pelos Autores, o que não sucedeu.

42.º-    Sendo que os factos que os mesmos alegaram a respeito da questão das “moradas”, foram todos considerados não provados.

43.ª-     Por outro lado, como já se mencionou, a manutenção de correspondência para outra morada jamais poderia constituir argumento para afastar a culpa exclusiva dos Autores no não recebimento das cartas que lhes foram enviadas para o domicílio convencionado, nos termos previstos no artigo 224.º, n.º 2, do Código Civil, uma vez que tal não interferiu com a possibilidade que os Recorridos tinham de receber estas cartas, nem poderia constituir um fator que tivesse impedido que os Autores diligenciassem para que quaisquer comunicações remetidas para aquele domicílio contratual fossem por eles conhecidas.

44.ª-    Ninguém disse aos Autores que se podiam alhear totalmente do local acordado para o envio das comunicações contratuais, sendo que, se os mesmos pretendiam esse alheamento, bastava-lhes ter transmitido a alteração da morada ou recorrer aos serviços de reexpedição do correio.

45.ª-    A falta dos Recorridos, por duas vezes, à escritura que formalizaria o contrato prometido configura incumprimento definitivo do contrato promessa que lhes é imputável e permite à Recorrente fazer sua a quantia entregue a título de sinal e princípio de pagamento, não já porque os Autores não tenham o direito de a receber por aplicação do instituto do abuso de direito, mas pela procedência do pedido reconvencional deduzido nos autos, o que se requer, e com o que se fará inteira justiça.

46.ª-    Importa ainda referir que, na parte final da apreciação do recurso da Ré quanto ao pedido reconvencional, o douto acórdão recorrido coloca a hipótese de “Se a culpa fosse em exclusivo atribuída aos autores, como exige a lei e, à ré assistisse o direito deresolver o contrato e de pedir para ficar com o valor do sinal, poder-se-ia, ainda assim, encarar, de forma, justificada, em face das circunstâncias aludidas, porventura uma possibilidade de actuação para além dos limites impostos pela boa fé e, em última instância, de modo a fazer paralisar o seu direito”.

47.ª-    Esta posição da Relação é, salvo o devido respeito, destituída de fundamento fáctico e jurídico, uma vez que não foram provados quaisquer factos de que resultasse uma qualquer má fé da Recorrente, nomeadamente, que os Autores tivessem, “verbalmente e/ou por escrito, comunicado expressamente à ré”, aquando da celebração do contrato ou posteriormente, que não residiam no domicílio convencionado (facto não provado 12) e que “as notificações a realizar deveriam ser endereçadas para a Avenida ..., ... P... ou para qualquer outra que não a Rua ..., ... ..., B...” (facto não provado 12) que “A ré tivesse aceitado, verbalmente ou por escrito, que a morada dos autores para qualquer comunicação a realizar no âmbito do contrato promessa de compra e venda”, era a de P... (facto não provado 16), e, pior ainda, que a Ré soubesse que as missivas que remetia aos autores para morada diferente da de P... “não iria chegar aos seus destinatários” (facto não provado 19) e que tenha querido criar nestes a convicção de que “todas as comunicações relacionadas com o contrato promessa seriam remetidas para esta morada”.

48.ª-   E as afirmações feitas pelo Tribunal da Relação a este respeito são contrariadas pelo próprio acórdão recorrido que afirma, na pág. 64, “Esta conduta dos autores, sucessivamente adotada após a data de 3 de agosto de 2019 e até à propositura da ação, era adequada a criar, e criou efetivamente, na ré a convicção de que tal cláusula não seria invocada e a expetativa de que o negócio viesse a ser por eles cumprido. De tal forma assim foi que a ré, estando de total boa-fé, e estando reunidas as condições para a celebração do contrato prometido, convocou os autores para a realização da respetiva escritura pública (factos provados 26, 27 e 28)”. (realce nosso)

49.ª-    Foi, aliás, a má-fé dos Autores recorridos, que resultou absolutamente demonstrada pela factualidade dada como provada e não provada pelas instâncias, que foi salientada no douto Acórdão recorrido.

50.ª-     A improcedência do pedido reconvencional representa uma decisão injusta, injustificada, contrária à factualidade dada como provada e não provada e violadora, por errada interpretação e aplicação, das normas dos artigos 84.º,224.º, n.ºs 1 e2, 334.º, 342.º, 405º, 406º, 410º, 442.º, n.º 2, 762.º, e 808.º, do Código Civil”.

8. Os autores, AA e BB vêm apresentar contra-alegações, nas quais pugnam pela inadmissibilidade do recurso e, subsidiariamente, pela sua improcedência.

9. Foi proferido despacho pelo Exmo. Senhor Desembargador do Tribunal da Relação do Porto com o seguinte teor:

Admito o recurso interposto pela ré para o STJ, o que é de revista, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo”.

10. Procedendo à apreciação do recurso, como lhe compete, nos termos do artigo 652.º, n.º 1, al. b), do CPC, proferiu a presente relatora um despacho do qual consta, na parte relevante da fundamentação:

Tendo a questão suscitada no presente recurso sido decidida por ambas as instâncias em sentido aparentemente convergente, poderia, numa primeira análise, equacionar-se a hipótese de existir aqui o obstáculo conhecido como “dupla conforme” e, caso se concluísse pela verificação da dupla conforme, a hipótese da sua eventual superação pela via da revista excepcional, expressamente requerida pela ré / recorrente, a título subsidiário.

Prefigura-se, todavia, uma circunstância que é susceptível de tornar inútil todo o labor descrito. Prende-se ela com o interesse em agir ou interesse processual.

Dispõe-se no artigo 631.º, n.º 1, do CPC:

“Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido”.

Afirma-se aqui a regra de que só a parte que tenha ficado vencida na causa (cuja pretensão foi repelida ou rejeitada) pode recorrer.

Mas, além de legitimidade para recorrer, a lei exige ainda que o recorrente tenha interesse em agir[1].

Como explica a doutrina especializada, o interesse em agir ou interesse processual consiste, mais precisamente, no “interesse em recorrer aos tribunais para tutela do interesse material”[2]. Faltará o interesse em agir sempre que falte “interesse sério para o recurso a juízo”[3].

Significa isto, em sede de recursos, que deve ser visível que o recurso – rectius: a eventual procedência do recurso – proporciona alguma utilidade prática ao recorrente[4].

Sucede que, compulsados os autos e lidas atentamente as alegações da ré / recorrente, não se consegue vislumbrar a utilidade prática que ela poderia ter com o recurso.

O pedido da ré / recorrente – a sua pretensão – é, em síntese, a condenação dos autores ao reconhecimento do direito a fazer sua a quantia de € 46.000 entregue a título de sinal. Ora, apesar de, formalmente, não ter atendido este pedido, o Tribunal a quo julgou paralisado o exercício do direito dos autores a exigir da ré a devolução do sinal (por abuso do direito).

Quer dizer: para efeitos práticos, com a decisão recorrida os autores / recorridos ficam impossibilitados de exigir a devolução do sinal à ré, o que parece reconduzir-se, de facto, à situação pretendida pela ré / recorrente, permitindo-lhe a retenção legítima do sinal.

Perante isto, não se alcança qual seja a utilidade prática perseguida pela ré / recorrente através do presente recurso.

Pelo exposto, são fundadas as dúvidas sobre a admissibilidade do presente recurso.


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Cumpra-se o disposto no artigo 655.º, nº 1, do CPC”.

11. No exercício do seu direito, veio a recorrente apresentar requerimento, alegando, de essencial, o seguinte:

(…) 25. Ora, embora resultando de tais decisões que os Autores – que declararam ilicitamente a resolução do contrato promessa em causa nos autos – não podem mais reclamar da Ré a devolução do sinal em dobro, a verdade é que tal decisão, baseando-se apenas no abuso de direito dos Autores ao invocarem uma cláusula do contrato, para além de não se afigurar como a mais correta de acordo com o Direito, tem efeitos práticos significativamente diversos daqueles que resultariam da procedência do pedido reconvencional formulado pela Ré.

26. Na verdade, também do ponto de vista prático e de valorização da própria Ré enquanto sociedade comercial – dos seus ativos e passivos – é muito diferente ser-lhe reconhecida a procedência do pedido reconvencional e o direito a fazer seu o montante do sinal, nos termos constantes do pedido reconvencional (“Deve ser julgado provado e procedente o pedido reconvencional formulado pela Ré contra os Autores, sendo os mesmos condenados, nos termos do disposto no artigo 442º,2 do CCivil, a ver reconhecido à Ré o direito a fazer sua a quantia de € 46.000 entregue pelos AA. a título de sinal e princípio de pagamento do imóvel em causa nos presentes autos”) da situação de, não lhe sendo reconhecido tal direito, ser apenas definitivamente decidido que – tal como se refere no douto Despacho em apreço “… os autores / recorridos ficam impossibilitados de exigir a devolução do sinal à ré, o que parece reconduzir-se, de facto, à situação pretendida pela ré / recorrente, permitindo-lhe a retenção legítima do sinal”.

27. Desde logo, a manutenção da improcedência do pedido reconvencional acarretaria a consolidação no ordenamento jurídico de uma “crítica” à atuação da Ré que, a ser conhecida no mercado em que a Ré desenvolve a sua atividade, seria suscetível de afetar o crédito da Ré, a quem seria imputado um comportamento não conforme com a ordem jurídica e, muito especialmente, com os contratos que celebra.

28. Sendo que a Ré tem como “core” (coração) da sua atividade, precisamente, a celebração de contratos promessa de compra e venda de frações autónomas, que sempre pretende cumprir escrupulosamente, quer porque a isso está juridicamente vinculada quer porque é esse cumprimento escrupuloso que lhe permite manter (e melhorar) a sua imagem junto de novos promitentes compradores.

29. Ora, o “crédito” de uma sociedade comercial - correspondente à imagem e bom nome de uma pessoa singular - é um dos principais ativos de uma sociedade comercial.

30. Tendo consagração inclusivamente constitucional.

31. O exemplo de uma pessoa singular é, porventura, talvez mais percetível de imediato, embora não mais importante: é bem diferente dizer-se que um indivíduo cumpriu um contrato do que dizer que, embora não lhe sendo reconhecido esse cumprimento, a contraparte não lhe pode exigir, mesmo que definitivamente, um determinado montante financeiro.

32. Por outro lado, também do ponto de vista financeiro e contabilístico – e, portanto, necessariamente afetando o “valor” da sociedade comercial em questão, por exemplo para efeito de operações de fusão ou aquisição – é significativamente diferente ficar decidido que a Ré poderá exercer (ainda que definitivamente e eternamente) um direito de retenção de uma determinada quantia (o que implica, no seu balanço, constar do lado do passivo do seu balanço uma anterior “dívida” decorrente do recebimento do sinal e do lado do “ativo” o correspondente direito de retenção), do que considerar que a mesma quantia lhe é atribuída enquanto receita por incumprimento da contraparte, caso em que o mesmo valor entra no ativo como receita definitiva, nada constando do passivo.

33. O que terá também impactos em termos de resultados contabilísticos e possibilidade de passagem dos mesmos para resultados transitados, constituição de reservas e até eventuais distribuições aos respetivos sócios/acionistas e pagamento de impostos.

34. Daí que, para além de o considerar como a única solução justa ao abrigo do Direito, a Ré tenha também um interesse prático em ver reconhecida a procedência do pedido reconvencional formulado.

35. Considerando-se, assim, com a procedência do pedido reconvencional, que a correspondente quantia se encontrará, definitivamente, inscrita no balanço social como ativo da sociedade em resultado de uma resolução contratual de um contrato promessa, o que é bem diferente para efeitos da sociedade (do valor do seu balanço) de decidir-se que a sociedade tem direito a ficar eternamente com uma quantia tratada no seu balanço apenas como “retida (…)”.

                                                           *

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Os factos relevantes para a presente decisão são os apresentados no Relatório que antecede e que se dão aqui por reproduzidos.


O DIREITO

Da presente reclamação e, em especial, das alegações atrás transcritas, resulta que a recorrente justifica o seu interesse em agir com base em dois grandes argumentos.

O primeiro prende-se com o alegado risco de perda do crédito – do crédito em sentido objectivo, enquanto valor de mercado, confiança ou estabilidade nos compromissos jurídico-comerciais – que a decisão recorrida envolve. Tal risco derivaria, nas palavras da recorrente, “[d]a consolidação no ordenamento jurídico de uma “crítica” à atuação da Ré que, a ser conhecida no mercado em que a Ré desenvolve a sua atividade, seria suscetível de afetar o crédito da Ré, a quem seria imputado um comportamento não conforme com a ordem jurídica e, muito especialmente, com os contratos que celebra” (cfr. sobretudo, alegação 27).

O segundo prende-se com as alegadas consequências que a decisão recorrida acarreta no plano financeiro e contabilístico. No entender da recorrente, “é significativamente diferente ficar decidido que a Ré poderá exercer (ainda que definitivamente e eternamente) um direito de retenção de uma determinada quantia (o que implica, no seu balanço, constar do lado do passivo do seu balanço uma anterior “dívida” decorrente do recebimento do sinal e do lado do “ativo” o correspondente direito de retenção), do que considerar que a mesma quantia lhe é atribuída enquanto receita por incumprimento da contraparte, caso em que o mesmo valor entra no ativo como receita definitiva, nada constando do passivo”, o que teria “impactos em termos de resultados contabilísticos e possibilidade de passagem dos mesmos para resultados transitados, constituição de reservas e até eventuais distribuições aos respetivos sócios/acionistas e pagamento de impostos” (cfr. alegações 32 e 33).

Com todo o respeito pela opinião distinta da recorrente, os argumentos aduzidos não podem proceder.

Como se disse no despacho ora reclamado, não pode considerar-se que a recorrente tenha utilidade prática em recorrer. Na verdade, adoptando um critério material, e não meramente formal, nem pode considerar-se que a recorrente disponha de legitimidade para recorrer (i.e., seja parte vencida enquanto afectada por um “prejuízo directo e efectivo” em virtude da decisão[5]).

Em primeiro lugar, veja-se que o incumprimento do contrato-promessa não foi considerado, no Acórdão recorrido, imputável a nenhuma das partes. Mais precisamente, no que à conduta da recorrente respeita, deve salientar-se que o Tribunal recorrido confirmou a improcedência do pedido principal dos autores, o que significa que negou que o incumprimento do contrato-promessa fosse imputável à ré / recorrente. A decisão não encerra, pois, a “crítica” ou a carga de censura à conduta da recorrente da qual possa decorrer o risco de perda do crédito de que ela fala.

Em segundo lugar, ao decidir-se, no Acórdão recorrido, “revoga[r] o segmento que condenara [a recorrente] devolver aos autores a quantia de € 46.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa 4%, vencidos e vincendos desde o sexto dia após a citação da ré e até efectivo pagamento”, não existe razão para que ela dê o direito de crédito dos autores ainda como existente e como uma dívida, do seu lado.

Na realidade, o direito de crédito é, do lado activo, um poder de exigir que os autores não podem, em concreto – não poderão nunca –, exercer. Isto é suficiente para afastar o receio da ocorrência dos concretos prejuízos financeiros-contabilísticos a que a recorrente alude na sua alegação.

É verdade que não foi atendida a pretensão da recorrente de que o incumprimento do contrato-promessa fosse julgado imputável aos autores. Mas isso em nada prejudica, afecta ou contende com o crédito ou com a situação financeiro-contabilística da recorrente, para quem a impossibilidade definitiva de os autores exigirem a devolução do sinal equivale, de facto ou na prática, ao direito de ela conservar para sempre o sinal.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, decide-se julgar inadmissível o presente recurso de revista.


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Custas pela recorrente.

Catarina Serra (Relatora)

Rijo Ferreira

Cura Mariano

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[1] Dá conta das dificuldades da distinção entre legitimidade processual (enquanto pressuposto subjectivo positivo) e interesse em agir Rui Pinto (Código de Processo Civil Anotado, volume II, Coimbra, Almedina, 2018, p. 246).
[2] Cfr. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º - Artigos 362.º a 626.º, Coimbra, Almedina, 2018 (3.ª edição), p. 583. Cfr. ainda Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2020 (6.ª edição), p. 102.
[3] Cfr. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, ob. cit., loc. cit.
[4] Nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, Lisboa, AAFDL,2022, p. 168), “para que a parte possa recorrer, é ainda necessário que retire alguma utilidade da procedência do recurso, ou seja, é ainda indispensável que tenha interesse em recorrer”. Explica ainda o autor: “enquanto a legitimidade para recorrer é aferida pelo prejuízo causado à parte pela decisão impugnada, o interesse em recorrer é determinado em função da utilidade que para ela pode resultar da procedência do recurso”.
[5] Cfr. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, volume II, Coimbra, Almedina, 2018, p. 236.