Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B3409
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: TRIBUNAL DE CONFLITOS
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CONFLITO DE JURISDIÇÃO
COMPETÊNCIA MATERIAL
Nº do Documento: SJ200411180034097
Data do Acordão: 11/18/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T FAMÍLIA E MENORES PORTIMÃO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFLITO COMPETÊNCIA.
Decisão: DECLARAÇÃO DE COMPETÊNCIA.
Sumário : 1. A competência do Tribunal dos Conflitos para conhecer de conflitos de jurisdição pressupõe que o seu objecto tenha conexão com o da competência material dos tribunais da ordem administrativa ou das autoridades administrativas no quadro da sua competência administrativa propriamente dita.
2. Compete ao Supremo Tribunal de Justiça a resolução do conflito negativo entre um tribunal de família e menores e uma conservatória do registo civil relativamente à acção de alimentos a que ser reportam os artigos 1879º e 1880º do Código Civil.
3. No caso de o réu residir no estrangeiro, é competente para conhecer da aludida acção o tribunal de família e menores, o tribunal de competência genérica ou o juízo de competência cível específica, conforme os casos.
Decisão Texto Integral: Acórdão no Supremo Tribunal de Justiça

I
"A" requereu, no dia 12 de Dezembro de 2002, no Tribunal de Família e Menores de Portimão, contra B, seu pai, residente em Cassédonk ....., ......, Maastricht, Holanda, a fixação de alimentos no montante de € 300, 00 mensais, invocando os artigos 1412º do Código de Processo Civil e 186º da Organização Tutelar de Menores e a necessidade daquela prestação para poder prosseguir nos seus estudos académicos de formação.
Agiu com o apoio judiciário na modalidade dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo e de pagamento de honorários ao causídico que lhe foi nomeado, o advogado C, por despacho administrativo proferido no dia 13 de Fevereiro de 2002.
O tribunal, na sequência da informação na conclusão do processo de que nos termos do artigo 5º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de Outubro, a competência era, na espécie, da Conservatória do Registo Civil, proferiu o despacho seguinte: Após baixa dos autos, remeta à competente Conservatória do Registo Civil.
O processo foi remetido à Conservadora do Registo Civil de Lagos, cuja Conservadora, por despacho proferido no dia 13 de Fevereiro de 2003, com fundamento na circunstância de o requerido não residir na área daquela Conservatória e no disposto no artigo 6º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de Outubro, declarou rejeitar o aludido requerimento.
E A requereu neste Tribunal, no dia 15 de Setembro de 2004, a resolução do conflito de jurisdição.
As entidades em conflito não alegaram e o Ministério Público alegou no sentido da remessa do processo ao Tribunal de Conflitos sob o fundamento de ser o competente para conhecer do conflito.
II
É de considerar, para o efeito em causa, a seguinte dinâmica processual:
1. A, nascido no dia 18 de Junho de 1983, é filho de B e de D.
2. Por sentença proferida no dia 26 de Fevereiro de 1986 pelo Tribunal de Lagos foi homologado o acordo de regulação do poder paternal em que A foi confiado a D.
3. O requerente reside com a mãe na Quinta da Porta da Vila, Rua dos ... Lagos, e B, seu pai, reside em Cassédonk ....., ....., Maastricht, Holanda.
4. Ele expressou, na petição inicial, frequentar o 12º ano de escolaridade, ser aluno distinto, pretender frequentar um curso superior de educação física, isso implicar-lhe despesas, sempre ter sido a mãe a sustentá-lo, ser o pai pensionista do Estado Holandês, auferir o último rendimentos que lhe permitem contribuir para tais despesas, ser a mãe ceramista e viver, em média anual, com 1000 ou 1500 euros do produto da venda das peças e € 300,00 mensais resultantes de aulas e pagar € 230, 00 mensais de renda de casa.
III
A questão essencial decidenda, apreciada que seja previamente a problemática da competência para conhecer do conflito e decidido que ela se inscreve neste Tribunal, é a de saber sobre qual das entidades em conflito deve conhecer da acção declarativa de condenação no pagamento de prestação alimentar em causa.
A resposta às referidas questões pressupõe, pois, a análise da seguinte problemática:
- é ou não este Tribunal competente em razão da matéria para conhecer do conflito?
- base substantiva da acção intentada por A contra B;
- competência em razão da matéria dos tribunais de família e menores para conhecimento das referidas acções;
- competência em razão da matéria das conservatórias do registo civil para o conhecimento das aludidas acções;
- delimitação da competência em razão da matéria dos tribunais de família e menores e das conservatórias do registo civil no confronto do caso vertente;
- solução para o caso espécie decorrente dos factos e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões, começando pela previa da competência.
1.
Comecemos pela questão prévia da competência em razão da matéria para conhecer do conflito suscitada pelo Ministério Público.
Há conflito negativo de jurisdição quando duas ou mais autoridades pertencentes a diversas actividades do Estado ou dois ou mais tribunais integrados em ordens jurisdicionais diferentes declinam, em decisões transitadas em julgado, o poder de conhecer do mesmo objecto do processo (artigo 115º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Os conflitos de jurisdição são resolvidos pelo Supremo Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal de Conflitos, conforme os casos, sendo o processo a seguir, no caso da resolução ao último caber, o regulado pela respectiva legislação (artigo 116º do Código de Processo Civil).
Compete às secções do Supremo Tribunal de Justiça, segundo a sua especialização, conhecer dos conflitos de jurisdição cuja apreciação não pertença ao tribunal de Conflitos (artigos 36º, alínea d), da Lei de Organização de Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 12 de Janeiro "LOFTJ).
Decorrentemente, a competência do Supremo Tribunal de Justiça para conhecer de conflitos de jurisdição é residual, isto é, só funciona se para o efeito não foi competente o Tribunal de Conflitos.
Expressa a Constituição que as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e que prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades (artigo 205º, n.º 2).
Isso significa que, em caso de conflito entre as decisões de qualquer tribunal, independentemente da ordem em que se integre, e as de outras autoridades, são as primeiras que prevalecem.
Mas o referido normativo constitucional refere-se às decisões dos tribunais que imponham algum comando positivo no confronto com alguma autoridade administrativa, não abrangendo, como é natural, os casos de conflito negativo de jurisdição.
O Tribunal de Conflitos foi criado pelo Decreto n.º 19 243, de 16 de Janeiro de 1931, com a competência para dirimir conflitos positivos ou negativos de jurisdição e de competência entre as autoridades administrativas e judiciais (artigo 59º).
Criado o Supremo Tribunal Administrativo pelo Decreto-Lei n.º 23 185, de 30 de Outubro de 1933, que substituiu o Supremo Conselho da Administração Pública, passou o Tribunal de Conflitos a ser integrado por seis juízes conselheiros, três do Supremo Tribunal Administrativo e três do Supremo Tribunal de Justiça, presidido pelo presidente do primeiro (artigo 17º).
A referida composição do Tribunal dos Conflitos revela implicitamente que esteja em causa, no quadro do conflito jurisdicional envolvente, matérias ou objectos de litígio passíveis de resolução por tribunais da ordem judicial ou da ordem administrativa.
No quadro de interpretação actualista, a que se reporta a parte final do n.º 1 do artigo 9º do Código Civil, tendo em conta o regime legal decorrente do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a expressão autoridades administrativas a que se reporta o artigo 59º do Decreto n.º 19 243, de 16 de Janeiro de 1931, significa as autoridades jurisdicionais da ordem administrativa e fiscal.
A interpretação do referido normativo no sentido de a competência do Tribunal de Conflitos também abranger os conflitos negativos de jurisdição entre outras autoridades administrativas e jurisdicionais, naturalmente que importava que se operasse a sua delimitação em função de matérias em relação ás quais as últimas não tivessem competência, em algum grau, para o respectivo conhecimento.
Ora, no caso vertente, as conservatórias do registo civil exercem competências em matérias respeitantes a processos de jurisdição voluntária concernentes a relações familiares, mas, conforme abaixo melhor se expressará, em termos de elas deverem remetê-los aos tribunais da ordem judicial sempre que haja oposição de qualquer interessado (artigos 5º e 8º do Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de Outubro).
Ademais, das decisões do conservador cabe recurso para o tribunal judicial de 1ª instância competente em razão da matéria no âmbito da circunscrição a que a conservatória pertença (artigo 10º do Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de Outubro).
Decorrentemente, não tem o conflito em causa qualquer conexão com o objecto da competência material dos tribunais da ordem administrativa ou de autoridade administrativa no quadro da sua competência administrativa propriamente dita.
Por isso, o conflito em análise não se enquadra na competência do Tribunal dos Conflitos e, consequentemente, inscreve-se na competência material do Supremo Tribunal de Justiça.
2.
Atentemos agora na base substantiva da acção intentada por A contra B.
Os pais ficam desobrigados de prover ao sustento dos filhos e de assumir as despesas relativas à sua segurança, saúde e educação na medida em que os filhos estejam em condições de suportar, pelo produto do seu trabalho ou outros rendimentos, aqueles encargos (artigo 1879º do Código Civil).
Todavia, se no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação a que se refere o referido artigo 1879º do Código Civil em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete (artigo 1880º do Código Civil).
Assim, se no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação alimentar lato sensu dos respectivos progenitores.
3.
Vejamos. ora, a competência em razão da matéria dos tribunais de família e menores para conhecimento das referidas acções.
Os tribunais de família e menores, ou os tribunais de comarca, conforme os casos, continuam a ter competência para fixar os alimentos aos filhos maiores ou emancipados a que se reporta o artigo 1880º do Código Civil, a que acima se fez referência (artigo 82º, n.º 1, alínea e), da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro - LOFTJ).
Todavia, depois da atribuição de competência para conhecimento das referidas acções às conservatórias do registo civil, a que abaixo se fará referência, impõe-se a respectiva delimitação.
4.
Atentemos agora na competência em razão da matéria das conservatórias do registo civil para o conhecimento das aludidas acções.
Por via do Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de Outubro, procedeu-se em Portugal à transferência de competências dos tribunais para as conservatórias do registo civil no que concerne a matérias adjectivadas em processos de jurisdição voluntária concernentes a relações jurídicas familiares, designadamente a atribuição de alimentos a filhos maiores (artigo 1º).
Entre os procedimentos tendentes à formação do acordo das partes que correm perante as conservatórias do registo civil contam-se os concernentes a alimentos a filhos maiores ou emancipados (artigo 5º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de Outubro).
Assim, os conservadores do registo civil têm, em regra, jurisdição abrangente das acções de condenação dos pais a pagar aos filhos maiores prestações de alimentos.
Excepciona a lei da mencionada regra, em tanto quanto releva na economia da decisão a proferir nesta sede, as acções com pedidos de alimentos formulados por filhos maiores ou emancipados em cumulação com outros pedidos no âmbito da mesma acção judicial ou quando constituam incidentes ou dependência de acção pendente (artigo 5º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de Outubro).
É o artigo seguinte do referido diploma que se reporta à competência em razão do território das conservatórias do registo civil para conhecer, além do mais, pelo menos numa primeira fase, das acções de alimentos do tipo da que está em causa.
A referida competência é definida com base do elemento de conexão residência do requerido no confronto da área da abrangência funcional das conservatórias do registo civil.
Com efeito, expressa a lei ser competente para conhecer das aludidas acções de condenação dos pais no pagamento de prestações de alimentos a filhos maiores a conservatória da área de residência do requerido ou accionado (artigo 6º, n.º 1, alínea a), Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de Outubro).
Sendo para o efeito competente a conservatória do registo civil, mas se tiver havido oposição do requerido e constatando-se a impossibilidade de acordo, as partes são notificadas param no prazo de oito dias, alegarem e requererem a produção de novos meios de prova e, de seguida, todo o processo, devidamente instruído, é remetido ao tribunal competente em razão da matéria no âmbito da circunscrição a que pertencer a conservatória (artigo 8º do Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de Outubro).
Apresentada a petição inicial da acção em conservatória do registo civil incompetente, a consequência jurídica é a da sua rejeição e a sua devolução ao autor juntamente com o despacho de recusa proferido pelo conservador (artigo 6º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de Outubro).
5.
Atentemos, ora, na delimitação da competência em razão da matéria dos tribunais de família e menores e das conservatórias do registo civil no confronto do caso vertente.
Por virtude das referidas normas de competência em razão da matéria em causa, os tribunais de família e menores são competentes para conhecer das referidas acções, por um lado no caso de pedidos de alimentos formulados por filhos maiores ou emancipados em cumulação com outros pedidos no âmbito da mesma acção judicial ou quando constituam incidentes ou dependência de acção pendente.
E, por outro, para a fase final da acção quando tiver havido oposição do requerido e se constatar a impossibilidade de acordo.
E, finalmente, quando, por qualquer outro motivo legal, a lei excluir das conservatórias do registo civil a mencionada competência.
6.
Vejamos, finalmente, solução para o caso espécie decorrente dos factos e da lei.
Ora, no caso vertente, o requerido B não reside em Portugal, mas no estrangeiro, em lugar certo da Holanda.
Decorrentemente, a conservatória do registo civil de Lagos não pode conhecer da acção de alimentos em causa (artigo 6º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de Outubro).
Por isso, teve fundamento legal para rejeitar o recebimento da petição inicial da acção cuja remessa lhe foi ordenada pelo Tribunal de Família e Menores de Portimão (artigo 6º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de Outubro).
Tendo em linha de conta a especificidade do critério legal de determinação da competência das conservatórias do registo civil, definida com base nos ramos coincidentes do binómio residência do réu e área de competência, não é aplicável na espécie a regra geral do n.º 3 do artigo 85º do Código de Processo Civil.
Em razão do exposto, impõe-se-nos a resolução do conflito de jurisdição no sentido de o Tribunal de Família e Menores de Portimão dever conhecer da acção declarativa de condenação em causa.
A não deu causa ao presente conflito, certo que intentou a acção no tribunal com competência em razão da matéria para o efeito, pelo que não é responsável pelo pagamento de custas (artigo 446º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil)
Tendo em conta a estrutura e a simplicidade do requerimento com vista à resolução do conflito de jurisdição, o advogado C tem direito a honorários no montante correspondente a uma unidade de conta (ponto 2.4.2 da tabela prevista na Portaria n.º 150-C/2002, de 19 de Fevereiro, por analogia, e n.º 10 da Portaria n.º 1386/2004, de 10 de Novembro, e artigo 51º, n.º 2, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho).
IV
Pelo exposto, declara-se ser o Tribunal de Família e Menores de Portimão o legalmente destinado a conhecer da acção declarativa de condenação em causa, e fixam-se os honorários devidos pelo Cofre Geral dos Tribunais ao advogado C no montante de oitenta e nove euros.

Lisboa, 18 de Novembro de 2004
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís