Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7006.05.1TBBRG.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 11/04/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL À REVISTA
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, ARTIGOS 690º-A, 722º, 729º
DL Nº 39/95, DE 15 DE FEVEREIRO
DL Nº 183/2000, DE 10 DE AGOSTO
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DA JUSTIÇA, WWW.DGSI.PT, DE:
– 9 DE OUTUBRO DE 2008, PROC. Nº 07B3011
– 18 DE JUNHO DE 2009, PROC. Nº 08B2998
Sumário : O cumprimento do ónus de especificação dos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, imposto para que a Relação aprecie a impugnação da decisão de facto, não implica a sua identificação por referência aos correspondentes artigos da base instrutória.
Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:




1. AA, Sociedade Imobiliária de Construções Civis e Representações …., SA instaurou contra BB, SA, uma acção na qual pediu a sua condenação a:
“reconhecer a existência dos vícios e defeitos de fabrico nos revestimentos e pavimentos fornecidos à A., entretanto, denunciados;
– pagar à A. a quantia de 23.672,00€, a título de indemnização (correspondente à diferença entre os encargos que a A. suportou com a redução de preço junto dos seus clientes em virtude do fornecimento e aplicação dos materiais defeituosos que havia adquirido à R. – no valor de 51.672,00€ – e o valor das facturas a cujo pagamento a A. não procedeu justificadamente – no valor de 29.000€) com juros, à taxa de 9%, desde a citação e até integral pagamento;
– indemnizar a A. pela deterioração da sua imagem e da sua credibilidade junto dos seus clientes e no mercado em geral e de todo o transtorno sofrido com deslocações a várias obras na companhia de representantes da R. e vários contactos pessoais, telefónicos, via telefax e e-mail, em virtude dos defeitos surgidos com os materiais fornecidos pela R., com base na equidade, em quantia nunca inferior a 12.500,00, com juros à taxa de 9%, desde a citação e até integral pagamento;
– reconhecer a existência dos vícios e defeitos de fabrico nos revestimentos e pavimentos fornecidos à A., denunciados nos artºs 29 e 30 da P.I., e a indemnizá-la a A em quantia que vier a liquidar-se em execução de sentença;
– reconhecer a existência dos vícios e defeitos de fabrico nos revestimentos e pavimentos fornecidos à A., que vierem a ser reclamados pelos clientes da A. e que esta venha a denunciar e a indemnizá-la a A. em quantia que vier a liquidar-se em execução de sentença”.
A ré contestou, por excepção (incompetência territorial e caducidade do direito de denunciar os defeitos) e por impugnação, sustentando a improcedência da acção.
A autora replicou, nomeadamente alegando abuso do direito de invocar a caducidade.
A fls. 94, AA, SA requereu a apensação de outra acção que a ré instaurou contra ela “com base na mesma relação jurídica subjacente à presente acção”, pendente na Vara Mista do mesmo tribunal, com o nº 981/06.0TBBRG ; a ré opôs-se.
No saneador, foi afastada a incompetência e relegado para final o conhecimento da caducidade, elaborada a lista de factos assentes e a base instrutória e decidido que era no processo nº 981/06.0TBBRG que devia ser apreciada a conexão entre ambas as acções.
Pela sentença de fls. 441, a acção foi julgada parcialmente procedente, sendo a ré condenada a pagar à autora: a quantia de € 31.462,00, com juros; a que vier a ser liquidada, correspondente à substituição dos materiais BB fornecidos a CC, SA que apresentem defeitos; e ainda uma indemnização, também a liquidar, pelos prejuízos sofridos pela autora na sua imagem e credibilidade.
Em síntese, a sentença afastou a caducidade invocada e entendeu que a autora tinha direito a ser ressarcida pelos prejuízos resultantes de cumprimento defeituoso dos contratos celebrados com a ré; quanto à ofensa do prestígio e credibilidade da autora, a sentença considerou indemnizáveis os prejuízos correspondentes, “quer se considere que esses danos revestem natureza não patrimonial, sendo subsumíveis à previsão do artigo 496º do Código Civil, quer a natureza de danos patrimoniais indirectos, na medida em que a ofensa do bom nome e reputação da sociedade determine perda de clientela e a consequente diminuição do respectivo volume de vendas e inerente lucro”.
Por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de fls.519, foi decidido não conhecer da impugnação da matéria de facto, porque “a recorrente não indica, não obstante o convite que lhe foi endereçado, os artigos que considera incorrectamente apreciados, não cumprindo o ónus que lhe era imposto pelo art. 690º-A do CPC” e, quanto ao mais, negar provimento ao recurso.

2. BB, SA recorreu para o Supremo Tribunal da Justiça; o recurso, ao qual não são aplicáveis as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, foi recebido como revista, em efeito devolutivo.
Nas alegações que apresentou, a recorrente formulou as seguintes conclusões:

“1- A Recorrente não se conforma com o douto acórdão proferido pelo douto Tribunal a quo, por considerar que, ao contrário do douto acórdão, a Recorrente deu cabal cumprimento ao ónus de indicar os factos concretos e os meios de prova que pretendia ver reapreciados;
2- A Recorrente deu cumprimento ao artigo 690º A, nº 1 do CPC, ao concretizar que pretendia ver reapreciados os factos relativos aos prejuízos invocados pela Recorrida relativamente às vendas que efectuou aos seus clientes e que constam do ponto 11, da sentença proferida pela 1a instância;
3- Para apoiar a sua posição identificou o depoimento de duas testemunhas e transcreveu a parte dos respectivos depoimentos para atestar a conformidade com o entendimento de que outra deveria ter sido a resposta a dar aos factos alegados pela Recorrida;
Por outro lado
4- O douto acórdão omitiu ainda a pronúncia quanto à apreciação do valor das provas que determinaram a convicção do tribunal de 1a instância, e que a Recorrente submeteu à sua apreciação, por entender que a prova testemunhal não era adequada, suficiente e válida para dar como provados factos mensuráveis, ou seja, quantidades e valores de mercadoria;
5- A Recorrente formulou a sua pretensão quer no corpo das alegações para o tribunal a quo, quer nas conclusões formulados nas alíneas B), C), D) e F).
6- Deveria, pois, o douto tribunal a quo pronunciar-se sobre a validade da prova produzida para demonstrar os factos alegados pela Recorrida, e não o fez.
7 - Entende a Recorrente que apenas a prova documental poderia ter a virtualidade de demonstrar a veracidade dos valores, quer das mercadorias alegadamente vendidas pela Recorrida aos seus clientes, quer dos preços das mesmas, quer ainda os prejuízos com a alegada redução dos preços ou a substituição e reparação das mesmas.
8- Pretende ainda a Recorrente ver reapreciada a sua condenação no pagamento de indemnização pelos danos de imagem, tendo em conta que também aqui a prova testemunhal não podia ter a virtualidade de demonstrar que a Recorrida teve danos patrimoniais com a actuação da Recorrente.
9- Assim, o douto acórdão interpretou mal as disposições constantes do artigo 690ºA, nº 1 do CPC., violou o disposto no artigo 722° - 1, do mesmo diploma legal.”

A recorrida contra-alegou, defendendo a manutenção do decidido, concluindo desta forma:

“A) O recurso apresentado pela recorrente no Tribunal da Relação não preencheu os requisitos legais, designadamente os consignados no art. 690º-A do Cód. Proc. Civil
B) A recorrente foi notificada pelo Tribunal da Relação para alterar/completar as suas alegações de recurso, com vista a concretizar os factos que considerava incorrectamente julgados, por forma a dar cumprimento ao preceituado no artigo 690-A, nº 1, alínea a) do C.P.C.
C) Apesar de notificada para o efeito, a recorrente não fez qualquer referência concreta aos artigos da base instrutória que julgou incorrectamente apreciados pelo tribunal de 1ª instância, tendo-se apenas limitado a reiterar as alegações e conclusões de recurso apresentadas, não cumprindo o ónus imposto pelo artº 690-A do C.P.C.
D) O não cumprimento do disposto no referido art°. 690°-A, não deveria ter dado lugar a qualquer despacho de aperfeiçoamento, mas antes à rejeição do mesmo (cf. AC do S1J de 07/07/209), o que não se verificou.
E) Andou bem o Tribunal da Relação ao não apreciar as questões suscitadas pela recorrente quanto à apreciação da matéria de facto e reapreciação da prova gravada, uma vez que o recurso interposto não respeitou minimamente os requisitos do art. 6900-A do Cód. Proc. Civil.
F) A recorrente não indicou concretamente e com exactidão as partes da gravação em que fundamenta o seu recurso e a sua divergência na apreciação da matéria de facto, referindo tão só a gravação do depoimento com a sua total duração.
G) Também não identificou a testemunha que produziu a pequena passagem transcrita na alínea E das conclusões do seu recurso, limitando-se a referir, genericamente, que o depoimento desta testemunha, que não identifica, se encontra gravado, na sua totalidade, entre as 10:21:28 e as 11:34:59 (uma hora e treze minutos de depoimento).
H) Transcreveu uma pequena parte do depoimento da testemunha DD, testemunha esta de cujo depoimento a recorrida prescindiu no início das suas declarações.
I) A recorrente pretende que seja considerada provada matéria de facto diferente da considerada, não aludindo, porém, aos meios probatórios que implicam decisão diversa, nem sequer faz qualquer referência à reapreciação da prova gravada.
J) A indemnização pelos danos não patrimoniais é devida, tanto porque a prova produzida foi nesse sentido, como porque tal indemnização se mostra viável (cf. Ac. do S1J de 08/03/2007 e 12/02/2008, ambos in www.dgsi.pt).
K) Também nesta parte as alegações da recorrente se mostraram vagas e genéricas, não concretizando os meios probatórios que impunham necessariamente decisão diversa da recorrida.
L) Não podia, o Tribunal da Relação reapreciar a matéria de facto dada como provada e não provada, atentas as alegações e conclusões apresentadas pela recorrente, nem tão pouco podia alterar a decisão da lª. instância relativamente à indemnização por danos não patrimoniais, atentos os mesmos fundamentos.

3. A matéria de facto que vem provada das instâncias é a seguinte:

“1. A A. dedica-se, com intuito lucrativo, à comercialização e aplicação de materiais de construção civil - alinea A) da mat. facto assente;
2 A Ré dedica-se, igualmente com escopo lucrativo, ao fabrico e venda de revestimentos e pavimentos de madeira - alínea B) da mato facto assente;
3 - No exercício das respectivas actividades, a R. forneceu à A., a solicitação desta, diversos revestimentos e pavimentos de madeira - alínea C) da mato facto assente;
4 - A A. adquiria os pavimentos revestimentos à Ré com o objectivo de os revender ou aplicar em obras que lhe eram adjudicadas por terceiros - resp. à base 1ª;
5 - Entre os fins de 2003 e meados de 2004, a A. forneceu a clientes seus e aplicou em obras que lhe foram adjudicadas diversos pavimentos e revestimentos adquiridos à Ré - resp. à base 2ª;
6 - Desde os inícios de 2004 a A. tem recebido reclamações relativas a esses materiais, designadamente por causa de alterações notórias e anormais da cor, aparecimento de manchas aleatórias e descasque de algumas placas de revestimento a partir das respectivas extremidades, vícios esses que conferem às placas um aspecto inestético e de envelhecimento prematuro, bem como referentes a manchas notórias e empenamento de alguns pavimentos, o que lhes retira o aspecto uniforme - resp. às bases 2ª e 7ª:
7 - À medida que as queixas surgiram, a A. comunicou-as, na própria semana em que as recebeu, ao representante da Ré em Portugal - resp. à base 8ª;
8 - Na sequência dessas reclamações o representante da Ré em Portugal visitou três clientes da A. e reconheceu que os materiais BB que esta fornecera e aplicara nas obras que os mesmos lhe haviam adjudicado apresentavam defeitos de fabrico, comprometendo-se a substituir esses materiais, o que, todavia, nunca fez bases 9ª a 11ª;
9 - As queixas continuaram a surgir ao longo do ano de 2004 e primeiro semestre de 2005 - resp. à base 12ª;
10 - Em Março de 2005 os responsáveis da A. reuniram-se com o novo representante da Ré em Portugal e, porque este tivesse assumido o compromisso de resolver rapidamente a situação, a A. procedeu ao pagamento de algumas facturas lançadas na conta corrente referente ao seu relacionamento com a BB e que se encontravam em dívida, deixando pendente apenas o valor de aproximadamente €29. 000,00, que, segundo os cálculos então efectuados, corresponderia ao prejuízo por si até então sofrido em consequência dos defeitos dos materiais que a Ré lhe fornecera - resp. às bases 13ª e 14ª;
11 - Em virtude dos defeitos dos materiais adquiridos á Ré e fornecidos ou aplicados pela A. a ou em obras de clientes seus, esta sofreu até á data os seguintes prejuízos:
a) 8.740 euros, correspondentes a 92 m2 de revestimento “Coffe Bag"aplicado numa obra pertencente á firma "EE & ..., Lda" que apresentou defeito, ao preço de 95 euros o m2;
b) 4.992 euros, correspondentes a 51,2 m2 de revestimento "Marron Tostado Baq +" aplicado numa obra pertencente a FF e que apresentou defeito, ao preço de 97,50 euros o m2; c) 750 euros, correspondentes a 6 m2 de revestimento "Marron Tostado Baq +" aplicado numa obra pertencente a GG e que aprestou defeito, ao preço de 97,50 euros o m2;
d) 9.015 euros, correspondentes a 144,37 m2 de pavimento "PRF Marron Escuro 11 mm" aplicado numa obra pertencente á firma "HH, Lda" e que apresentou defeito, ao preço de 62,45 euros o m2;
e) 5.394 euros, correspondentes a 80,37 m2 de revestimento "Marron Claro Baq +" fornecido à firma "II, Lda" e que apresentou defeito, ao preço de 67,12 euros o m2;
e) 5.394 euros, correspondentes a 80,37 m2 de revestimento "Marron Claro Baq +" fornecido ao Sr. JJ e que apresentou defeito, ao preço de 100 euros o m2 (corrigindo-se aqui o manifesto lapso de que enferma a resposta a este item, decorrente de não se ter repercutido no valor do prejuízo alegadamente sofrido pela A. a redução de 15 para 10 do número de metros quadrados de revestimento afectados pelo defeito);
g) 1.571 euros, correspondentes a 23,81 m2 de revestimento "Claro Baq +" fornecido á firma "KK - Construções, Lda" e que apresentou defeito, ao preço de 66 euros o m2 - resp. à base 16ª;
11 - [12] Entretanto, em 28 de Junho de 2005 a A. recebeu novas reclamações, designadamente por parte da firma "CC, S.A.", relativamente a defeitos semelhantes aos acima discriminados que os materiais por si adquiridos à Ré apresentaram - resp. à base 18ª;
12 - [13] Os defeitos dos materiais BB que a A. adquiriu á Ré e forneceu e aplicou em diversos clientes prejudicaram a imagem de qualidade e competência de que aquela usufrui a junto desses clientes e do mercado em geral - resp. à base 17ª. “

4. Está em causa neste recurso (nº 3 do artigo 684º do Código de Processo Civil) saber se, no recurso de apelação que interpôs, a recorrente cumpriu ou não as exigências feitas pelo artigo 690º-A do Código de Processo Civil para que a Relação possa reapreciar a decisão sobre a matéria de facto.
Cumpre recordar que, a fls. 484,, foi proferido despacho verificando que, apesar de o recurso versar sobre a decisão de facto, a recorrente não tinha especificado “os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados”, determinando-se a sua notificação.
E que, na sequência desse despacho, a recorrente respondeu a fls. 506, nestes termos:

“1. Face à ausência de prova documental, não deveria o tribunal ter condenado a apelante no pagamento dos prejuízos alegadamente causados à R;
2. Além de que a prova testemunhal produzida foi no sentido de afirmar que perante as facturas em concreto poderia dizer quais os valores dos prejuízos sofridos.
- Estes dois pontos por referência às al a) a E) das conclusões;
3. Dos depoimentos das testemunhas transcritos no corpo das alegações e ainda nas conclusões I) e L), pretende a Apelante ver apreciada a falta de prova da afectação da imagem da Apelada;
4. Quanto às demais conclusões prendem-se com questões de direito, e não de facto”.”

5. Entendeu-se no acórdão recorrido que “O artigo 690o-A impõe (…) um ónus especial de alegação quando se pretenda impugnar a matéria de facto, que envolve, como explicita o seu nº 2, a indicação dos concretos pontos de facto que se considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios em que se baseia a impugnação, e que se destina a assegurar que a parte fundamente minimamente a sua discordância em relação ao decidido, identificando os erros de julgamento que ocorreram na apreciação da matéria de facto. Deste modo, pretende-se evitar que o impugnante se limite a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em primeira instância, expediente que ademais poderia ser utilizado pelas partes apenas com intuitos dilatórios;
A recorrente impugna a matéria de facto mas de forma genérica limitando-­se a dizer que o tribunal recorrido se bastou com os depoimentos das testemunhas quando não foram juntos quaisquer documentos relativos aos alegados prejuízos.
A base instrutória comporta 21 artigos sendo certo que a recorrendo não diz quais os que julga incorrectamente apreciados ...
O despacho de resposta à matéria de facto contém respostas afirmativas , negativas e restritivas ( vide fl. 437 a 439) .
A recorrente não indica, não obstante o convite que lhe foi endereçado, os artigos que considera incorrectamente apreciados não cumprindo o ónus que lhe era imposto pelo art. 690o-A do CPC. E tem sido ultimamente entendido pelo STJ que este convite ao aperfeiçoamento nem sequer deve ocorrer... – AC de STJ de 07/07/2009 (rel. João Camilo ).
(…)
Aplicando estes ensinamentos e de acordo com o disposto no art. 690º-A, nº 1, tinha a recorrente de, além de especificar os concretos pontos de facto que considerava incorrectamente decididos, indicar os concretos meios de prova constantes dos autos ou do registo de prova neles realizado, que impunham decisão diversa sobre a matéria de facto impugnada.
Nada disto foi feito como resulta do que atrás se expõe.
A recorrente nem sequer indica quais os artigos cuja reapreciação pretende e muito menos os meios de prova que imporiam, na sua óptica, decisão diversa da tomada pelo tribunal recorrido”.

6. Como se recordou no acórdão deste Supremo Tribunal de 9 de Outubro de 2008 (www.dgsi.pt, proc. nº 07B3011), «O artigo 690º-A do Código de Processo Civil foi aditado pelo Decreto-Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro, com a justificação de que “a consagração desta nova garantia das partes no processo civil” – referia-se o legislador à “garantia do duplo grau de jurisdição” – “implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”. O legislador tirava esta decorrência da forma como é concebido o recurso relativo à decisão de facto.
Como também se escreveu no preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95 (…), “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.
Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.”
Assim, o “especial ónus de alegação, a cargo do recorrente”, relativo “à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”, como se disse já, “decorre, aliás, dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redacção do artigo 712º) – e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1ª instância – possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito e julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta.
Daí que se estabeleça”, continua o mesmo preâmbulo, “no artigo 690º-A, que o recorrente deve, sob pena de rejeição do recurso, além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, impunham diversa decisão sobre a matéria de facto. Tal ónus acrescido do recorrente justifica, por outro lado, o possível alargamento do prazo para elaboração e apresentação das alegações, consentido pelo nº 6 do artigo 705”.
O ónus especialmente imposto foi, assim, justificado pela necessidade de impor ao recorrente uma “delimitação do objecto do recurso” e uma “fundamentação”, repete-se, tendo em conta o âmbito possível do recurso da decisão de facto, tal como foi concebido (acórdão de 18 de Junho de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 08B2998).
O artigo 690º-A foi entretanto alterado pelo Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de Agosto, sendo nesta versão que é aplicável ao caso presente. Continuou a incumbir ao recorrente que pretenda impugnar a decisão de facto proferida em primeira instância, para o que agora releva, “especificar (…) os concretos pontos de facto que [o recorrente] considera incorrectamente julgados” e “os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”. Mas, se “os meios probatórios invocados como fundamento de erro na apreciação das provas [tiverem] sido gravados”, passou a caber-lhe, “sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 522ºC”.

7. O acórdão recorrido entendeu que a recorrente não indicou, nem os “concretos pontos de facto” que considera incorrectamente julgados, nem os meios de prova que impunham solução diversa, localizando-os devidamente.
Depreende-se do respectivo texto que a observância das exigências legais exigiria a indicação dos artigos da base instrutória que foram “incorrectamente apreciados”.
Mas a lei não exige que a “delimitação do objecto do recurso”, no que à decisão de facto respeita, seja feita por referência aos artigos da base instrutória, apenas impondo que sejam especificados “os concretos pontos de facto”.
Ora das alegações apresentadas na apelação (a fls. 459) resulta o seguinte (apenas será considerado o que é contestado nas alegações da revista):
– a recorrente discorda de que tenham sido julgados provados os prejuízos “constantes do ponto 11, da douta sentença”, considerando que a prova testemunhal produzida não é suficiente para o efeito. Para o demonstrar, apontou o depoimento da testemunha JJ, “gravado entre as 10:21,28 e as 11:34,29)”, transcrevendo uma pequena parte do mesmo; na resposta ao despacho de fls. 484, a fls. 506, apontou as conclusões “A) a E)”, das quais consta, por remissão para o corpo das alegações, a referência à mesma testemunha. Note-se que, relativamente aos danos sofridos por “CC, SA”, a discordância manifestada nas alegações de revista se refere à condenação “a liquidar”, e não à falta de prova, sendo a este respeito que é indicado o depoimento de LL;
– e discorda ainda de que tenha ficado provada a ocorrência de “danos de imagem” da autora, apontando neste sentido o depoimento da testemunha DD; mas não cumpre o ónus de indicar o local da gravação. A resposta de fls. 506 não supre esta deficiência; e não se pode considerar que a pequena transcrição constante das alegações permita ultrapassar esta falha.
Entende-se, assim, que o recorrente tem razão quanto ao primeiro ponto, sem que seja sequer necessário considerar a resposta de fls. 506: está delimitado o objecto do recurso (prejuízos elencados no ponto 11. da matéria de facto havida como provada na sentença) e feita a respectiva fundamentação (depoimento gravado entre as 10:21,28 e as 11:34,29); mas não quanto ao segundo.
Quanto a este, e uma vez que a recorrente apenas contesta, na revista, que a prova testemunhal produzida tenha permitido dá-los como provados, nada há a acrescentar, a não ser que a lei, nem exige, nem exclui qualquer meio de prova específico para o efeito (cfr. nº 2 do artigo 722º e nº 2 do artigo 729º do Código de Processo Civil).

8 A recorrente afirma ainda que “o douto acórdão omitiu (…) a pronúncia quanto à apreciação do valor das provas que determinaram a convicção do tribunal de 1ª instância”; mas esta questão não tem autonomia em relação à impugnação da decisão de facto.

9. Nestes termos, concede-se provimento parcial à revista e decide-se:
a) Anular o acórdão recorrido na parte em que não conheceu da impugnação da decisão da matéria de facto contida no ponto 11 da lista de factos provados constante da sentença;
b) Determinar que o processo volte à Relação para seja julgado de novo o recurso, na parte correspondente, pelos mesmos juízes se possível;
c) Confirmar, quanto ao mais, o acórdão recorrido.

Custas pela parte vencida a final.

Lisboa, 4 de Novembro de 2010

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)
Lopes do Rego
Barreto Nunes