Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1246/10.9TJLSB.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: EMPREENDIMENTO TURÍSTICO
DIREITO REAL DE HABITAÇÃO PERIÓDICA
ACÇÃO INIBITÓRIA
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
DEVER DE COMUNICAÇÃO
DEVER DE INFORMAÇÃO
DEVER DE ESCLARECIMENTO PRÉVIO
EQUILÍBRIO DAS PRESTAÇÕES
BOA -FÉ
Data do Acordão: 04/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS / DIREITOS REAIS DE GOZO / DIREITO REAL DE HABITAÇÃO PERIÓDICA.
DIREITO DO CONSUMO - CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS.
Doutrina:
- António Pinto Monteiro, "O novo regime jurídico dos contratos de adesão/cláusulas contratuais gerais", Revista da Ordem dos Advogados, Ano 62, Volume I, janeiro de 2002, Artigos Doutrinais, p.5.
Legislação Nacional:
DL N.º 446/85, DE 25-10 (RCCG), COM AS ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS INTRODUZIDAS PELO DL N.º 249/99, DE 7-7, E PELO DL N.º 322/2001, DE 17-12: - ARTIGOS 1.º, N.º1, 2.º, 12.º, 15.º, 16.º, 18.º, 19.º, 21.º, 22.º, 25.º.
LEI DO CONSUMIDOR - LEI N.º 24/96, DE 31-7: - ARTIGOS 3,º, ALÍNEA C), 8.º.
REGIME JURÍDICO DA HABITAÇÃO PERIÓDICA - DL N.º 275/93, DE 5-8, COM AS ALTERAÇÕES ENTRETANTO INTRODUZIDAS PELO DL N.º 180/99, DE 22-5, E PELO DL N.º 37/2011, DE 10-3: - ARTIGOS 5.º, N.º2, ALS. C), D), G) E P) A T), 45.º, N.ºS 3 E 5, 48.º, N.º5, AL. A), 60.º, N.ºS 6 E 7.
Legislação Comunitária:
DIRECTIVA COMUNITÁRIA 93/13/CEE, DO CONSELHO DE 5/04/1993: - ARTIGO 5.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 19-10-2010, IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - O regime jurídico da habitação periódica, resultante do regime jurídico constante dos DL n.ºs 275/93 de 5-08; 180/99, de 22-05 e 37/2011, de 10-03, inclui não só os direitos reais de habitação periódica como também os direitos obrigacionais de habitação turística.

II - Enquadra-se no seu âmbito de aplicação a actividade da ré, cujo objecto social é “a emissão e gestão de descontos em estabelecimentos comerciais, hoteleiros e similares, bem como a gestão e exploração de estabelecimentos dessa natureza e organização de férias organizadas”.

III - A finalidade da acção inibitória é a de garantir, preventivamente, uma tutela complementar do aderente, proibindo, para o futuro e independentemente da sua inclusão em contratos singulares, o uso de cláusulas contratuais gerais violadoras do princípio da boa-fé ou que ponham em causa o equilíbrio das prestações.

IV - Nos contractos INTERPASS CLUB para venda de alojamento em unidades hoteleiras – em que as cláusulas, na sua quase totalidade, estão consignadas por escrito – são nulas, por afrontamento do princípio da boa-fé e violação do dever de informação, causador de desequilíbrio desproporcionado, aquelas em que “a informação sobre as unidades hoteleiras, seu custo e datas para efectivação de reservas é comunicado anualmente, por email ou outro meio que aquela considere adequado”, sem conter um mínimo de concretização das unidades hoteleiras que serão objecto da oferta do proponente, ou da sua localização.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1.

O Ministério Público intentou acção declarativa constitutiva, sob a forma de processo sumário, contra AA, S.A., pedindo:

1 – Sejam declaradas nulas a cláusula 3ª nos n.os 3.1, 3.2, 3.3 e 3.4 dos formulários dos contratos: "CONTRATO BB", "CONTRATO CC", "CONTRATO DD" e "CONTRATO EE", condenando-se a Ré a abster-se de se prevalecer delas em contratos já celebrados e de as utilizar em contratos que de futuro venha a celebrar, especificando-se na sentença o âmbito de tal proibição (artigos 12º e 30º, n.º 1 do DL 446/85 de 25 de Outubro).

2 - Condenar-se a Ré a dar publicidade a tal proibição e a comprovar nos autos essa publicidade, em prazo a determinar na sentença, sugerindo-se que a mesma seja efectuada em anúncio a publicar em dois dos jornais diários de maior tiragem editados em Lisboa e no Porto, durante três dias consecutivos (artigo 30º, n.º 2 do DL 446/85 de 25 de Outubro), de tamanho não inferior a 1/4 de página.

3 - Dar-se cumprimento ao disposto no artigo 34º do aludido diploma, remetendo-se ao Gabinete de Direito Europeu certidão da sentença, para os efeitos previstos na Portaria n.º 1093/95 de 6 de Setembro.

Fundamentando a sua pretensão, alegou o autor que a ré inclui nos referidos contratos que celebra com os seus clientes as identificadas cláusulas gerais e que as mesmas são nulas por violarem disposições da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais.

A ré contestou, defendendo que o regime consagrado no DL n.º 275/93 não é directamente aplicável ao tipo de actividade por si exercida, além de que nenhuma das cláusulas questionadas é ofensiva do princípio da boa - fé.

Prosseguiram os autos, vindo a ser proferido saneador - sentença que, julgando a acção procedente por provada, decidiu:

1 - Declarar nula a cláusula 3a nos seus n.os 3.1, 3.2, 3.3 e 3.4 dos formulários dos contratos: "CONTRATO BB", "CONTRATO CC", "CONTRATO DD" e "CONTRATO EE";

2 - Condenar a Ré a abster-se do uso, em qualquer contrato, das cláusulas acima mencionadas;

3 - Condenar a Ré a, no prazo de 30 (trinta) dias, dar publicidade à parte decisória da presente sentença, através de anúncio a publicar em dois jornais diários de maior tiragem, que sejam editados em Lisboa e Porto, em três dias consecutivos, de tamanho não inferior a 1/4 de página, comprovando o acto nos presentes autos, até 10 (dez) dias após o termo do prazo supra referido».

Inconformada, recorreu a ré, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 29/10/2013, sem qualquer voto de vencido, confirmado a sentença proferida.

De novo inconformada, a ré veio lançar mão do recurso de revista excepcional, invocando os pressupostos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672º do CPC, formulando as seguintes conclusões:

1ª - Entendeu o do Ministério Público, na acção inibitória por si apresentada, ser a actividade da Recorrente regulada pela disciplina constante do Decreto-Lei 275/93, de 5 de Agosto, com as alterações que lhe foram introduzidas pelos Decretos-Lei 180/99, de 22 de Maio, 22/2002, de 31 de Janeiro, 76-A/2006, de 29 de Março e 116/2008, de 4 de Julho, contendo o Regime Jurídico da Habitação Periódica, e assim designado de ora em diante.

2ª - Sustentou ainda o Ministério Público o seu pedido no facto de, no exercício da sua actividade, a Recorrente proceder à celebração de contratos que designa de "CONTRATO BB", "CONTRATO CC", "CONTRATO DD" e "CONTRATO EE", dos quais constam cláusulas contratuais gerais, nomeadamente aquelas cuja nulidade vem requerer seja reconhecida e determinada.

3ª - E considerou serem as citadas cláusulas apostas nos contratos identificados nulas em virtude de ofenderem o princípio da boa-fé, verificando-se um desequilíbrio em desfavor do aderente, pondo em causa a confiança suscitada nas partes pelo sentido global das cláusulas contratuais gerais.

4ª - Entendeu o Ministério Público que a redacção das citadas cláusulas não proporciona ao cliente informação pormenorizada e atempada, não defendendo adequadamente o consumidor.

5ª - Desconsiderando os argumentos apresentados pela Recorrente que defendeu, em sede de Contestação, por um lado, não lhe ser aplicável a disciplina constante do Regime Jurídico da Habitação Periódica, e, por outro lado, não estar a cláusula invocada ferida de nulidade que a invalide, o tribunal de 1 ª instância entendeu dever o pedido formulado proceder, declarando nula a cláusula 3ª dos contratos mencionados, nos seus números 3.1., 3.2., 3.3. e 3.4., assim como condenando a Recorrente a abster-se de usar, em qualquer contrato, a dita cláusula, e ainda determinando que a Recorrente proceda à publicação em dois jornais de maior tiragem, em 3 dias consecutivos, da decisão então proferida.

6ª - Por não se poder a Recorrente conformar com a decisão então proferida, apresentou recurso de apelação junto do Tribunal da Relação de Lisboa.

7ª – Através deste recurso, a Recorrente novamente defendeu a inaplicabilidade à sua actividade da disciplina constante do Regime Jurídico da Habitação Periódica, bem como a inexistência de qualquer desproporção ou fragilidade na posição das partes intervenientes nos contrato em causa, por si elaborados, que pudesse levar a decidir pela nulidade das respectivas cláusulas contratuais gerais. Mais pugnou a Recorrente pela revogação da sentença proferida na parte respeitante à publicação em dois jornais de maior tiragem do respectivo conteúdo decisório, por entender ser tal decisão desprovida de utilidade prática e desproporcionada nas respectivas consequências, em face dos benefícios dela decorrentes.

8ª - Mais veio a Recorrente invocar a nulidade da sentença proferida, com base na falta ou insuficiência da fundamentação respectiva, assim como com base na falta de pronúncia sobre questões que deveria conhecer e apreciar.

9ª - Depois de apresentadas contra-alegações pelo recorrido Ministério Público, veio o Tribunal da Relação de Lisboa proferir Acórdão, de que foi a Recorrente notificada.

10ª - Neste Acórdão, o Tribunal da Relação mantém integralmente a decisão proferida em 1ª instância, aderindo aos seus argumentos e fundamentos, e decidindo assim pela improcedência da apelação apresentada.

11ª - Considerando a factualidade assente, e que não foi posta em crise, o Tribunal da Relação de Lisboa entendeu que a actividade da Recorrente deve ser enquadrada no âmbito de aplicação do Regime Jurídico da Habitação Periódica, assim como entendeu que as cláusulas insertas nos contratos utilizados pela Recorrente, com a redacção assinalada, para firmar acordos com os seus clientes violam o princípio geral da boa-fé e o dever de informação, e, como cláusulas contratuais gerais que são, devem, por consequência, ser declaradas nulas, por força do disposto no Decreto-Lei 446/85, de 25 de Outubro.

12ª - Não tendo a decisão da 1ª instância sido revogada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, nem tendo sido mantida, desta vez, com base em fundamentação essencial e substancialmente diferente, dir-se-ia estar afastada a possibilidade de ser apresentado novo recurso, atento o princípio vigente da "dupla conforme", contido e descrito no artigo 671º, nº 3 do CPC, já que não existiria outra causa que afastasse a respectiva recorribilidade.

13ª - No entanto, e como já acima referido, a Recorrente entende estar-se, no caso dos presentes autos, perante uma situação enquadrável no âmbito do artigo 672º do CPC da revista excepcional.

14ª - Do que resulta largamente explanado nos autos, existe uma posição divergente da Recorrente, em face das posições assumidas pelas Instâncias e pelo Ministério Público, quanto à aplicabilidade do Regime Jurídico da Habitação Periódica e ao enquadramento do objecto social prosseguido pela Recorrente no citado Regime.

15ª - Importa ver esclarecido qual o âmbito de aplicação do mencionado Regime Jurídico da Habitação Periódica, nomeadamente no Capítulo que o mesmo dedica aos direitos de habitação turística, em face do espírito que subjaz a tal regime.

16ª - Não deve ser esquecida toda a problemática e discussão existente em torno deste tema, e que derivou da introdução relativamente recente na ordem jurídica portuguesa de regime jurídico destinado a regular os direitos reais de habitação periódica.

17ª - A necessidade de introduzir na ordem jurídica portuguesa a regulamentação deste direito real menor derivou em grande parte da dinamização do sector do turismo no país, em larga medida influenciado pela realidade europeia, e pela respectiva legislação.

18ª - A nova existência deste direito real no panorama jurídico português trouxe aos tribunais muitíssimas pendências, decorrentes do desconhecimento, da juventude e da incerteza resultantes deste regime jurídico, por parte maioritariamente dos particulares consumidores.

19ª - Ainda recentemente, os tribunais superiores se vêem chamados a pronunciar-se acerca de questões emergentes do Regime Jurídico da Habitação Periódica, acrescendo, inclusivamente, que a última alteração introduzida no regime legal mencionado data do recente ano de 2011.

20ª - Daqui decorre necessariamente a conclusão de que esta não é, de todo, uma matéria cuja aplicação está já estabilizada na ordem jurídica nacional, continuando a suscitar questões de diversa natureza, mais, quando se está perante uma questão não enquadrável no escopo e no espírito do Regime Jurídico da Habitação Periódica.

21ª - Entende a Recorrente que a sua actividade não pode caber no âmbito de aplicação deste regime legal desde logo, e sem necessidade de maiores considerações, porque delimitada pelo respectivo objecto social, do qual não se retira, nem pode retirar, que a Recorrente se dedique a qualquer actividade decorrente de ou conexa com direitos de habitação turística.

22ª - A Recorrente é uma sociedade anónima, tendo por objecto social a emissão, comercialização e gestão de cartões de desconto em estabelecimentos comerciais, hoteleiros e similares, bem como a gestão e exploração de estabelecimentos desta natureza e organização de férias organizadas.

23ª - Ora, a Recorrente entende que apenas poderá haver uma subsunção da respectiva actividade ao regime previsto no artigo 45º do Regime Jurídico da Habitação Periódica por mero lapso, talvez justificadamente decorrente da terminologia utilizada.

24ª - Entende a Recorrente, no que respeita à aplicabilidade do Regime Jurídico da Habitação Periódica à actividade por si desenvolvida, que apenas este Venerando Tribunal poderá definitivamente esclarecer o escopo de aplicação do mencionado regime legal, devendo em consequência ser o presente recurso de revista excepcional de revista admitido, por se encontrarem preenchidos ambos os requisitos constantes das alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 672º do CPC acima transcrito.

25ª - Não só entende a Recorrente que está aqui em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, se mostra claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, como também tal questão se revela como tendo interesses de particular relevância social.

26ª - Também no que respeita à consideração de que as cláusulas contratuais gerais insertas nos contratos cujos modelos são utilizados pela Recorrente são nulas por violarem o princípio geral da boa-fé, mostrou-se ao longo dos autos haver divergências constantes e profundas entre as partes e as Instâncias.

27ª - Entende a Recorrente que a verificação da conformidade das cláusulas contratuais gerais com a legislação que as regula, nomeadamente com os princípios que devem reger a respectiva formação e conformação, é, sem dúvida alguma, uma questão de particular e especial relevância social.

28ª - À semelhança do que já se disse acerca da apreciação da aplicabilidade do Regime Jurídico da Habitação Periódica ao caso em apreço, também todas as questões relativas à formação e aplicação de cláusulas contratuais gerais se mostram de especial relevância social.

29ª - Tanto mais que, estando-se no âmbito de uma acção inibitória, que visa proteger interesses colectivos e difusos, deve entender-se que a respectiva decisão é de interesse quase universal para a sociedade portuguesa.

30ª - A especial protecção que o regime das cláusulas contratuais gerais confere ao cidadão particular, que se vê confrontado com a inevitabilidade de ter forçosamente de contratar com entidades que assumem posição prevalente face a si e que fazem inserir nos formulários que utilizam cláusulas previamente redigidas, quanto às quais não pode propor ou fazer alterações, sob pena de ver a possibilidade de contratar efectivamente arredada.

31ª - A cláusula cuja nulidade se suscitou em sede de 1ª instância não é, no entender da Recorrente, nula, não violando o princípio da boa-fé nem o dever de informação, conforme decidido nas duas instâncias anteriores à presente.

32ª - Porque a determinação dos motivos que levariam à nulidade da cláusula mencionada não é pacífica, e porque a matéria em si em discussão assume particular relevância social, a Recorrente vem requerer ao Venerando Supremo Tribunal de Justiça que, também quanto a esta questão, admita o presente recurso de revista excepcional, enquadrando-a no regime previsto na alínea b) do nº1 do artigo 672º do CPC.

33ª - Como já acima se referiu, entende a Recorrente que o regime legal previsto no Decreto-Lei 275/93, de 5 de Agosto, com as alterações que lhe foram subsequentemente introduzidas pelos Decretos-Lei 180/99, de 22 de Maio, 22/2002, de 31 de Janeiro, 76-A/2006, de 29 de Março, 116/2008, de 4 de Julho e 37/2011, de 10 de Março, normalmente denominado de Regime Jurídico da Habitação Periódica, não lhe é aplicável, por não ser a respectiva actividade, como delimitada no seu objecto social, enquadrável no âmbito do mencionado diploma legal.

34ª - O Regime Jurídico da Habitação Periódica destina-se a regular a constituição de direitos de habitação periódica, sejam eles reais ou obrigacionais, assim como de habitação turística, e ainda a sua duração, transmissão, modo de funcionamento, direitos e deveres atribuídos às partes que venham a celebrar contratos no respectivo âmbito.

35ª - Estará sempre em causa, no âmbito do mencionado, regime a constituição ou aquisição de produtos ou direitos de longa duração.

36ª - Seja qual for a redacção da disposição legal transcrita a que se atenda, considerando as alterações que lhe foram introduzidas, a última das quais já após instauração da acção inibitória na qual se originaram os presentes autos, sempre será de considerar não ser a mesma aplicável à actividade prosseguida pela Recorrente, nem tão pouco à situação descrita nos autos.

37ª - A Recorrente, como acima já mencionado, apenas pode entender que se faça estender a aplicação do regime legal descrito à respectiva actividade por lapso decorrente da similitude dos termos usados entre a redacção legal e a redacção dada à descrição do seu objecto social.

38ª - A actividade da Recorrente nada tem a ver com a constituição, manutenção ou transmissão de direitos de habitação.

39ª - Do que o Regime Jurídico da Habitação Periódica trata é de toda a regulamentação relativa a Direitos Reais de Habitação Periódica ou Direitos de Habitação Turística.

40ª - Na integração de ambos os conceitos em causa, cujos institutos são regulados pela legislação identificada, não pode afastar-se a necessidade de se estar em face de direitos de habitacão, sejam eles direitos reais de habitação periódica, sejam direitos de habitação turística.

41ª – Exige-se na construção dos dois conceitos em causa a estabilidade e duração da relação jurídica a instituir e manter.

42ª - E se a redacção do artigo 45º do Regime Jurídico da Habitação Periódica, na versão que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 275/93, de 5 de Agosto, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 180/99, de 22 de Maio, vigente à data da instauração dos presentes autos, se revelava menos elaborada e desenvolvida, o mesmo não se pode dizer da versão deste artigo introduzida pelo Decreto-Lei 37/2011, de 10 de Março.

43ª - O que se revela em ambas as redacções do artigo é que terá sempre de se estar perante direitos de habitação, tal como identificados pelo artigo em causa.

44ª - É no mesmo sentido, aliás, que se pronuncia o Tribunal da Relação de Lisboa no Acórdão proferido, ao fundamentar a respectiva decisão, apesar de, incompreensivelmente, concluir em sentido inverso, concluindo pela aplicabilidade deste regime à actividade desenvolvida pela Recorrente.

45ª - Não vê a Recorrente como possa ser essa a conclusão do que anteriormente se afirmara. É a própria Relação que faz apelo ao conceito de direito real de habitação periódica, do qual deriva o conceito de habitação turística.

46ª - Considerando todo o espírito que preside à legislação em análise, entende a Recorrente que não pode, de todo, ser afastado o princípio que está na génese da sua formação - a existência de vínculos duradouros relativos a um determinado empreendimento ou imóvel, relativamente a um determinado período no ano.

47ª - Do que o artigo 45º do Regime Jurídico da Habitação Periódica trata é, no âmbito dos direitos de habitação turística, do estabelecimento de relações com o mesmo tipo de natureza e características. Ainda que a forma de o cliente/particular/cliente aceder a eles seja através de cartões ou clubes. Mas tem sempre de se verificar a existência de vínculos relativos a um determinado imóvel ou empreendimento no qual se faça o alojamento.

48ª - Nem pode ser outra a conclusão que se retira da leitura da alínea b) do nº 2 do artigo 45.º, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 37/2011, de 10 de Março, que tem sempre a sua aplicação limitada pela figura do direito de habitação turística, conforme nele expressamente mencionado por referência ao nº 1 do mesmo artigo.

49ª - Reforce-se que a redacção do nº 1 do artigo 45º, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 37/2011, de 10 de Março, enquadra e delimita a figura do direito de habitação turística como sendo: (i) - Os direitos de habitação em empreendimentos turísticos por períodos de tempo limitados em cada ano e que não constituam direitos reais de habitação periódica; (ii) - Os contratos pelos quais, directa ou indirectamente, mediante um pagamento antecipado completado ou não por prestações periódicas, se prometa ou se transmitam direitos de habitação turística.

50ª - Na integração dos conceitos constantes do nº 2 daquele artigo não pode deixar-se de atender ao disposto no nº 1, no sentido de ser nele que se encontra a determinação do que se deva entender por direito de habitação turística.

51ª - Veja-se como a alínea a) do citado nº 1 faz a delimitação do conceito pela negativa (que não constituam direitos reais de habitação periódica) daqui decorrendo necessariamente a similitude de conceitos entre a habitação turística e a habitação periódica, diferenciadas pela existência de direito real associado ou não.

52ª - Confrontando-se o objecto social da Recorrente com o regime legal em análise, entende a Recorrente que sempre será de afastar a aplicação da legislação em causa à sua actividade.

53ª - Não se vê como no objecto social que configura a actividade que a Recorrente desenvolve e explora (emissão, comercialização e gestão de cartões de desconto em estabelecimentos comerciais, hoteleiros e similares, bem como a gestão e exploração de estabelecimentos desta natureza; e organização de férias organizadas) possa caber o conceito de direito de habitação turística, pois que não existe qualquer vinculação a nenhum empreendimento ou imóvel em concreto, determinável.

54ª - Considerando que não é aplicável à actividade desenvolvida pela Recorrente a disciplina constante do Regime Jurídico da Habitação Periódica, forçoso será concluir também que a Recorrente não violou o disposto no artigo 48º do mesmo regime.

55ª - Semelhante conclusão deve decorrer da própria fundamentação do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, quando afirma: "Os elementos em causa reportam-se no que aqui releva, à identificação do empreendimento e indicação da sua localização, classificação provisória ou definitiva do empreendimento".

56ª - E ainda, "Os clientes não têm qualquer conhecimento sobre quais são as unidades hoteleiras que possam oferecer as regalias dos preços especiais".

7ª - É o proprio Acórdão recorrido que, indirectamente, afasta a aplicabilidade do Regime Jurídico da Habitação Periódica à actividade desenvolvida pela Recorrente, já que, não havendo qualquer vinculação estável dos "clientes" a um determinado empreendimento hoteleiro, através da celebração do contrato com a Recorrente, não incidirá sobre esta qualquer dever de informação quanto às respectivas características, como enunciadas pela lei.

58ª - Mas ainda que assim não se entendesse, o que não se admite, sempre haveria que levar em linha de conta o momento em que a acção inibitória que deu origem aos presentes autos foi proposta, e a formulação legal vigente à data.

59ª - Aquando do pedido apresentado pelo Ministério Público, vigorava a versão do artigo 45º do Regime Jurídico da Habitação Periódica na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 275/93, de 5 de Agosto, não tendo as alterações subsequentes, introduzidas a este diploma, trazido qualquer novidade ao respectivo conteúdo, que não a já mencionada redacção introduzida em 2011.

60ª - Para uma mais correcta apreciação da posição do Ministério Público haverá que apreciar o conteúdo das cláusulas cuja nulidade invocou em face da redacção dada ao artigo 45º daquele diploma legal, na redacção vigente no ano de 2010.

61ª - Como decorre da redacção do citado artigo, não poderá deixar-se de considerar que, mesmo à luz desta disposição legal vigente no ano de 2010, não será aplicável à Recorrente e à actividade por si desenvolvida a respectiva disciplina.

62ª - No entanto, caso venha a entender este Venerando Tribunal que deverá ser aplicável à actividade da Recorrente a disciplina da Habitação Periódica, o que, repete-se, não se concede, sempre deverá esta douta instância, considera a Recorrente, determinar a aplicabilidade no tempo das alterações legislativas em causa.

63ª - Entende a Recorrente que não lhe deverá ser aplicado o regime constante do Regime Jurídico da Habitação Periódica, pelo que, com esse fundamento, não poderá deixar de se considerar não ter sido por si violado qualquer direito de informação dos clientes que livre e esclarecidamente consigo contratam.

64ª - O Ministério Público, ao intentar a acção inibitória que esteve na origem dos presentes autos, veio requerer que fossem declaradas nulas as cláusulas acima já identificadas insertas nos contratos celebrados pela Recorrente com os seus clientes, nomeadamente as constantes do nº 3.1., 3.2., 3.3. e 3.4. dos contratos "BB", "CC", "DD" e "EE" pelo facto de serem contrárias ao princípio da boa-fé, e por isso, proibidas.

65ª - É entendimento da Recorrente que não foi por si violado o princípio da boa-fé na celebração dos mencionados contratos com os seus clientes, não tendo sido omitido ou preterido o seu dever de prestar informação verdadeira e completa à sua contraparte, nem se tendo verificado qualquer desequilíbrio desproporcionado entre ambas.

66. Não existe qualquer dúvida de que a Recorrente se apresente como predisponente e os respectivos clientes como aderentes nos contratos com eles celebrados, dos mesmos constando cláusulas que se tipificam como contratuais gerais, já que subtraídas à negociação concreta dos seus termos, por se mostrarem as mesmas previamente redigidas e estruturadas pela primeira.

67ª - O espírito subjacente ao mencionado Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais prende-se fortemente com a defesa da parte que tipicamente se apresenta como a mais fraca, o consumidor, perante a parte que "tudo pode", e que estabelece cláusulas contratuais inalteráveis que eventualmente apenas a beneficiam, assim se verificando um desequilíbrio entre ambas.

68ª - O princípio basilar que o regime estabelece para a conformação das cláusulas contratuais gerais é o da boa-fé, cominando o artigo 15º do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais com nulidade as cláusulas contratuais gerais que se mostrem contrárias àquele princípio.

69ª - Deste princípio derivam variados direitos e deveres, funcionando o artigo 16º do mencionado regime como conformador do respectivo conteúdo.

70ª - Aquilo que o Tribunal da Relação de Lisboa vem fazer, à semelhança do que já tinha sido decidido pela 1ª instância, é considerar que as indicadas cláusulas constantes dos formulários previamente elaborados que a Recorrente utiliza na contratação com os seus clientes são abusivas, por, a despeito da exigência da boa-fé, darem origem a um desequilíbrio inaceitável e inadmissível entre as partes, assim se prejudicando o consumidor, por não ter sido respeitado o dever de informação que recai sobre o predisponente em face do aderente. Donde resultaria, necessariamente, a nulidade das mencionadas cláusulas.

71ª - Entende o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão proferido, que" existe um deficit de informação e de comunicação, o que desemboca num desequilíbrio entre as partes contratantes, ou seja, o destinatário não pode interferir na medida em que é confrontado com situações pré-definidas, sem poder manifestar a sua discordância em negociação prévia".

72ª - Acrescentando ainda:

"Com efeito, tal como as presentes cláusulas se encontram inseridas nos contratos, os consumidores não terão um total esclarecimento sobre o que estão a assinar, ou seja, sobre o que lhes está a ser vendido".

73ª - Não obstante se entender que no Acórdão proferido se analisa o respeito pelo direito à informação dos clientes da Recorrente à luz da disciplina legal constante do Regime Jurídico da Habitação Periódica, o facto de se defender que tal regime não é aplicável à actividade desenvolvida pela Recorrente não invalida que não impenda sobre a mesma um tal dever.

74ª - Deve, contudo, ser este dever analisado à luz de diverso regime jurídico, o que só por si impõe a reformulação da decisão proferida e a substituição por outra que seja proferida em conformidade com a legislação aplicável.

75ª - Analisando a questão à luz do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais, determina o respectivo artigo 6º que sobre a parte que recorra à utilização de cláusulas contratuais gerais impende o dever de informar conveniente e suficientemente a outra parte, prestando-lhe todos os esclarecimentos que a mesma lhe razoavelmente venha a solicitar.

76. A Recorrente não deixa de informar adequadamente os seus clientes dos direitos que lhes assistem ao abrigo do contrato celebrado, nomeadamente quanto aos termos das cláusulas em apreço.

77ª - A informação transmitida pelas cláusulas cuja nulidade se invocou é completa, clara e esclarecedora das condições em que os aderentes podem aceder às regalias que os contratos lhes conferem.

78ª - O que não consta, como refere o Acórdão proferido, nem pode constar, pelas razões aduzidas a propósito da aplicabilidade do Regime Jurídico da Habitação Periódica, é a identificação dos empreendimentos turísticos a que os aderentes poderão ter acesso por via das regalias mencionadas. Nem sequer é esse, acrescente-se, o aspecto central das cláusulas em apreço.

79ª - Os aderentes, ao celebrarem com a Recorrente os contratos nos quais se contam as cláusulas em causa, estão suficientemente informados das condições aplicáveis ao alojamento descrito nas mesmas, apresentando-se este aspecto como o escopo principal das ditas cláusulas, e sendo a determinação das unidades hoteleiras às quais tais condições serão aplicáveis um aspecto acessório ou secundário.

80ª - Não se verifica qualquer desequilíbrio entre as partes contratantes, ao invés do que se defende no Acórdão recorrido. Nem tão pouco esse desequilíbrio se verificaria em detrimento do cliente consumidor.

81ª - O facto de não ser feito um elenco exaustivo das unidades hoteleiras com as quais a Recorrente tenha negociado quaisquer condições vantajosas que ponha ao serviço dos seus clientes apenas funciona em benefício dos próprios clientes.

82ª - Não existindo um numerus clausus nem sendo determinada qualquer espécie de classificação quanto às unidades hoteleiras que poderiam compor o lote de entidades com as quais a Recorrente celebrasse protocolos, dos quais decorressem vantagens para os consumidores, a Recorrente sempre poderá apresentar a melhor oferta.

83ª - Não cabe, para além do mais, no espírito do contrato celebrado a exaustiva enumeração das unidades hoteleiras que integrem o elenco de entidades com as quais a Recorrente estabeleça parcerias. Nem caberia no âmbito de todos os outros contratos da mesma espécie e natureza que a Recorrente ou qualquer outra entidade que desenvolva actividade similar à sua celebrasse com clientes consumidores aderentes.

84ª - Tem razão o Acórdão proferido e ora recorrido quando afirma que, na aplicação do princípio da boa-fé, devem presidir, entre outros, os objectivos que as partes visam atingir negocialmente, procurando-se a sua efectivação à luz do tipo de contrato utilizado. Nesse mesmo sentido vai a previsão do artigo 16º, alínea b) do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais.

85ª - O que as partes, proponente e aderente, nos contratos em causa nos autos pretendem é estipular entre ambas o acesso, pelo aderente, ao alojamento em unidades hoteleiras em condições preferenciais, que a proponente se compromete a disponibilizar-lhe.

86ª - O escopo da previsão das cláusulas em apreço não é determinar que tais condições sejam aplicáveis no alojamento em unidade hoteleira A ou B. É, antes, estabelecer segura e estavelmente as condições de alojamento disponibilizadas. É este o espírito que subjaz à estipulação constante das cláusulas em apreço e é à sua luz que deve ser analisado o conteúdo respectivo.

87ª - As partes apenas podem ter pretendido que, através da Recorrente, os respectivos clientes tivessem acesso a condições preferenciais e vantajosas no alojamento em unidades hoteleiras a determinar. Pois que, decorrente até do objecto social daquela e da actividade por si desenvolvida, não poderia ser expectável que a mesma pudesse garantir a manutenção de unidades hoteleiras específicas no rol daquelas com as quais celebre protocolos ou acordos.

88ª - Não poderá deixar-se de reputar como suficiente a informação, clara e esclarecedoramente, transmitida aos clientes aderentes, considerando o fim que as partes visaram atingir com a celebração do contrato, e que decorre da leitura e interpretação conjugada de todo o clausulado.

89ª - Vem também o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão proferido, entender que a forma de comunicação estabelecida na Cláusula 3.4. dos contratos em apreço é abusiva e violadora do princípio da boa-fé, por considerar que a mesma fica ao livre arbítrio da Recorrente.

90ª - Da leitura da dita cláusula, na redacção que lhe é dada em todos os contratos "Gold" supra identificados, não vê a Recorrente como possa ser considerado que a comunicação das unidades hoteleiras que concretamente venham a integrar o conjunto com as quais a Recorrente possa estabelecer protocolos ou acordos, seja deixada ao livre arbítrio da mesma.

91ª - Nem que da respectiva redacção decorra uma menor protecção da posição jurídica dos seus clientes consumidores.

92ª - Aquilo que se estabelece é que a Recorrente comunicará com os seus clientes através de e - mail, de publicação em jornal nacional de grande tiragem, ou por outra forma que considere adequada, não vendo a Recorrente como possa ser violado o princípio da boa-fé, ou deixada fragilizada a posição dos aderentes.

93ª - A comunicação através de e - mail terá de ser feita, necessariamente, através de endereço de correio electrónico que o cliente forneça à Recorrente - não se vê de que outra forma poderia ter a mesma conhecimento deste endereço se não lhe fosse directamente transmitido pelo seu cliente. Assim, sempre será de entender que a via em causa será totalmente apta a fazer chegar a mensagem ao conhecimento do seu destinatário.

94ª - A opção de publicação de anúncio em jornal de grande tiragem a nível nacional não pode igualmente ser considerada como inapta a fazer transmitir a mensagem aos clientes da Recorrente. Por maioria de razão, por confronto com a decisão proferida no Acórdão de que se recorre, na parte em que determina a publicação da parte decisória da sentença proferida em jornais diários com maior tiragem a nível nacional.

95ª - Sendo este um meio judicialmente considerado apto a dar publicidade à decisão ora recorrida, sempre terá de se entender como bastante para que a Recorrente faça transmitir aos seus clientes a informação em causa.

96ª - A publicitação em meio que a Recorrente entenda como adequado sempre terá de ser compreendida, no espírito do contrato em análise, como aquela que, dos dados de informação transmitidos pelos clientes consumidores à Recorrente se mostrem como elementos aptos a consigo comunicar.

97ª - Resulta claro que as cláusulas contratuais em análise não padecem do vício de nulidade que lhe é apontado, não violando quaisquer princípios legais, nomeadamente o da boa-fé, nem colocando os consumidores em posição de especial fragilidade em face da Recorrente.

98ª - Por último, sempre se dirá que em nenhum momento foi devidamente comprovado qualquer incumprimento por parte da Recorrente do dever de informação à luz do regime das cláusulas contratuais gerais. Nem poderia ser já que é indiscutível que a Recorrente sempre prestou todas as informações que está legalmente obrigada estando por isso certa os contratantes estão perfeitamente cientes das cláusulas que aceitam com a assinatura do presente contrato.

99ª - Assim sendo e sem conceder, ainda que se pudesse concluir que o Regime Jurídico da Habitação Periódica, à luz da nova redaccão, se aplica aos contratos celebrados pela aqui Recorrente, sempre se dirá, salvo melhor opinião, que tal alteração legislativa não pode ferir de nulidade as cláusulas em causa.

100ª - Face ao exposto, sempre se deverá considerar que, aquando da celebração dos contratos, estávamos perante cláusulas totalmente conformes à Lei em vigor, o que não foi devidamente apreciado pelo Tribunal a quo.

101ª - Neste sentido, a declaração de nulidade, na presente data, de cláusulas contidas nos contratos em causa, implicaria, por razões óbvias, a retroactividade dos seus efeitos à data da celebração do contrato, o que só por si violaria o princípio segurança jurídica e protecção da confiança.

102ª - Sempre haverá que acrescentar que entende a Recorrente que a apreciação, em concreto, da proibição em que a Recorrente foi condenada de utilização das cláusulas em apreço se mostra já desprovida de efeito útil.

103ª - A Recorrente não faz actualmente incluir nos contratos que apresenta aos seus clientes as cláusulas em causa, com a redacção que lhes foi assinalada.

104ª - O certo é que os pontos 3.1., 3.2., 3.3. e 3.4. estão integralmente substituídos por cláusula com a seguinte redacção:

Cláusula 3ª - Alojamento em unidades hoteleiras, em Portugal ou em qualquer outro país do mundo, com preços especiais que se encontram permanentemente disponíveis no sítio electrónico (www.interpass.pt) onde também se encontram, detalhadamente, todas as características das referidas unidades hoteleiras.

105ª - A redacção dada às cláusulas cuja nulidade se invocou foi concebida e concretizada considerando o teor da redacção legal vigente à data de apresentação da acção inibitória que está na origem dos presentes autos, pelo que não deverá ser afastada a eventual relevância da aplicabilidade da lei no tempo.

106ª - A disponibilização da informação relativa às condições de acesso aos empreendimentos hoteleiros que em cada momento a Recorrente logrou negociar com os mesmos através do seu sítio na internet, torna aquela informação consultável em tempo real pelos seus clientes.

107ª - Fica afastado qualquer obstáculo que os clientes da Recorrente pudessem sentir em obter informação quanto aos empreendimentos em causa, na medida em que a dita informação está constantemente disponível e actualizada, podendo ser consultada em qualquer circunstância ou local, não obstante a Recorrente entender, como acima descrito, que não impende sobre si qualquer obrigação desta natureza que decorra do Regime Jurídico da Habitação Periódica, como decide o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão proferido.

108ª - Sempre haverá que ponderar a necessidade de virem as instâncias pronunciar-se sobre a questão suscitada pelo Ministério Público.

109ª - Fazer constar da decisão proferida a proibição de utilização das cláusulas cuja nulidade se invocou, na redacção que lhes está largamente assinalada nos autos, torna-se, de certa forma, anacrónico.

110ª - A Recorrente não faz já actualmente uso das cláusulas em causa com outra redacção que não a transcrita, pelo que vir agora proferir uma decisão de proibição no sentido em que o foi no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa representa uma tomada de decisão que se mostra inútil e desprovida de sentido útil, porque já desajustada da realidade.

111ª - Nunca se poderá considerar nula a cláusula em apreço com a redacção que lhe está actualmente dada. Aliás, e como também acima referido, entende a Recorrente que nunca se poderia ter considerado tal cláusula nula, em nenhuma circunstância, do que não se prescinde.

112ª - Em face das exigências decorrentes do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais acima identificado, sempre deverá considerar-se que aos aderentes é transmitida clara e suficientemente a informação relativa ao acesso ao conhecimento quanto aos estabelecimentos hoteleiros de que podem usufruir por via do contrato celebrado com a Recorrente. Pelo que, também por esta via, nunca a cláusula em causa poderia ser declarada nula.

113ª - Entende a Recorrente que sempre será de considerar que a decisão proferida carece de sentido e utilidade prática, sendo a mesma extemporânea em face da redacção ora introduzida na cláusula cuja nulidade se suscitou.

O Ministério Público contra – alegou, sustentando a inadmissibilidade do recurso de revista excepcional ou, caso assim se não entenda, defendendo a confirmação do acórdão recorrido.

A “Formação”, depois de considerar que o que aqui está em causa é, no essencial, na óptica da recorrente, a caracterização da sua actividade que não deve ser inserida na disciplina do Regime Jurídico da Habitação Periódica, sendo, outrossim, certo que dos contratos em causa não constam cláusulas geradoras de desproporção ou de fragilidade na posição das partes, considerou verificada a relevância jurídica e social destas questões, admitindo a revista excepcional [vide alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672º].

Foram colhidos os vistos legais.

2.

Atendendo à delimitação do objecto do recurso em razão das alegações de recurso da recorrente, conforme resulta do teor das disposições conjugadas dos artigos 608º, n.º 2, 635º e 639º do CPC (anteriores artigos 660º, nº 2, 664º, 684º e 685º-A, todos do CPC), e à decisão da “Formação”, as questões a dirimir consistem em saber:

a) – Se a actividade da Recorrente deve ou não ser enquadrada no âmbito de aplicação do Regime Jurídico da Habitação Periódica, sendo, em consequência, aplicável ou não o Decreto – Lei n.º 275/93, de 5 de Agosto, com as alterações entretanto introduzidas ao artigo 45º desse diploma pelo Decreto – Lei n.º 180/99, de 22 de maio e Decreto – Lei n.º 37/2011, de 10 de Março.

b) – Se as referidas cláusulas põem ou não em causa o princípio da boa – fé e o dever de informação.

3.

As instâncias consideraram provados os seguintes factos:

1º - A Ré encontra-se matriculada sob o nº … e com a sua constituição inscrita na 4ª Secção da Conservatória do Registo Comercial de Lisboa.

2º - A Ré tem por objecto social a "emissão, comercialização e gestão de cartões de desconto em estabelecimentos comerciais, hoteleiros e similares, bem como a gestão e exploração de estabelecimentos dessa natureza. Organização de férias organizadas".

3º - No exercício de tal actividade, a Ré procede à celebração dos contratos que designa de "CONTRATO BB", "CONTRATO CC" "CONTRATO DD" e "CONTRATO EE", constantes de fls. 19 a 26.

4º - No exercício da sua actividade, a Ré propõe aos interessados que com ela pretendam contratar os referidos clausulados previamente elaborados, constantes de fls. 19 a 26.

5º - Acompanhados de uma folha para ser preenchida com espaços reservados à identificação do(s) titular(es), valor e condições de pagamento (constantes de fls. 19 a 26).

6º - Na parte final desses clausulados existe um espaço reservado às assinaturas do representante da Ré e do cliente, precedido dos dizeres: "O titular do contrato declara que tomou conhecimento prévio e pleno de todas as cláusulas e aceita o seu conteúdo, tendo-lhe sido entregue uma cópia deste instrumento contratual" (constantes de fls. 19 a 26).

7º - E a assinatura do cliente é precedida dos dizeres: "O titular tomou conhecimento e declara aceitar o presente contrato" (constantes de fls. 19 a 26).

8º - As cláusulas n.os 3.1, 3.2 e 3.3 dos referidos formulários, que estabelecem a contrapartida pelo pagamento, por parte do aderente, do preço do cartão de férias, têm a seguinte redacção:

"3 - REGALIAS DO CONTRATO EE

3.1 - Alojamento em unidades hoteleiras anualmente indicadas pelo FF, em Portugal ou qualquer outro país do mundo, com preços especiais.

3.2 - Alojamento em estúdio e apartamentos T 1, com capacidade, respectivamente, para 2 ou 4 pessoas, em unidades hoteleiras anualmente indicadas pelo FF, cuja diária não poderá ser superior a 20% do ordenado mínimo nacional.

3.3 - Alojamento grátis, em estúdio ou apartamentos T.1, com capacidade, respectivamente, para 2 ou 4 pessoas, durante 2 anos, uma vez por ano, numa das unidades hoteleiras a indicar pelo FF, pelo período de 7 dias, não fraccionáveis e sujeitas a disponibilidade do alojamento. O período de utilização da estadia grátis é compreendido entre 1 de Janeiro e 31 de Março e 1 de Novembro e 31 de Dezembro, dele se exceptuando, porém, as épocas festivas do Fim de Ano, Carnaval e Páscoa”.

9º - Estabelece, ainda, a cláusula 3.4 dos formulários dos contratos BB, CC e DD:

3.4 - A informação sobre as unidades hoteleiras FF, seu custo de utilização e datas para efectivação de reservas, será comunicado anualmente a todos os titulares por e - mail ou anúncios publicados num jornal de grande tiragem, até 31 de Dezembro do ano anterior”.

10º - Do mesmo modo, dita a cláusula 3.4 do formulário do contrato EE:

“3.4 - A informação sobre as unidades hoteleiras FF, seu custo de utilização e datas para efectivação de reservas, será comunicado anualmente pelo FF a todos os titulares, por e - mail ou qualquer outro meio, que considere adequado”.

4.

4.1.

Se a actividade da Recorrente deve ou não ser enquadrada no âmbito de aplicação do Regime Jurídico da Habitação Periódica, sendo, em consequência, aplicável o Decreto – Lei n.º 275/93, de 5 de Agosto, com as alterações entretanto introduzidas pelo Decreto – Lei n.º 180/99, de 22 de Maio e pelo Decreto – Lei n.º 37/2011, de 10 de Março.

Entende a Recorrente que a sua actividade se não encontra abrangida pelo Decreto-Lei nº 275/93, de 5 de Agosto, com as alterações posteriormente nele introduzidas pelos diplomas atrás referidos, pois que, apesar de compreender um objecto social mais amplo, a sua actividade limita-se a uma intervenção muito específica, que consiste na comercialização de um cartão que permite aos aderentes beneficiar de ofertas e descontos em prestações de serviços em áreas diversas, não disponibilizando aos aderentes do cartão, quaisquer direitos de habitação turística, nem produtos ou serviços.

Entendimento diferente foi o sufragado pelas instâncias e, a nosso ver, com razão.

O Decreto – Lei 355/81, de 31 de Dezembro, criou um novo direito real – o direito de habitação periódica – que, na prática, equivale a um regime de propriedade fraccionada, já não por segmentos horizontais, mas por quotas – partes temporais, garantindo melhor os investidores, que, à data, através da modalidade vulgarizada pelos títulos de férias, tinham apenas acesso à protecção legal precária de tipo obrigacionista.

Entretanto, o Decreto – Lei 275/93, de 5 de Agosto, veio proceder à revisão deste diploma. “De um lado, por opções de política do turismo que aconselham a adopção de medidas destinadas a melhorar a qualidade e o funcionamento dos empreendimentos turísticos no regime do direito real de habitação periódica. Depois, porque se entendeu ser conveniente reforçar o grau de protecção dos adquirentes de direitos reais de habitação periódica, atendendo a que os respectivos contratos exigem, na maior parte das vezes, uma tutela particular da parte mais fraca”.

Mas o legislador não se ficou por aqui. O novo diploma apresenta-se no final como largamente inovador.

Assim, “estabeleceu-se, finalmente um regime básico para todos os direitos que, embora não tendo a natureza de direito real, preenchem um fim análogo ao do direito real de habitação periódica, consagrando-se, assim, um conjunto de regras destinado a assegurar um mínimo de protecção aos que adquiram tais direitos[1]”.

Deste modo, enquanto o capítulo I do Decreto-Lei 275/93 trata do direito real de habitação periódica, o capítulo II trata dos direitos de habitação turística, ou seja, enquanto o Decreto-Lei 355/81 consagrava exclusivamente o direito real de habitação, este diploma passa a consagrar o direito real de habitação periódica a par do direito de habitação turística.

E, se dúvidas houvesse, o artigo 60º, embora regulando quanto à aplicação da lei no tempo, distingue entre os direitos reais de habitação periódica, e os direitos obrigacionais de habitação turística. Sendo os primeiros direitos reais menores, são os segundos direitos pessoais de gozo, mas fazendo ambos parte do mesmo diploma.

Com as alterações entretanto introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 180/99, de 22 de Maio, o Decreto-lei nº 275/93, de 5 de Agosto, por força de algumas evoluções registadas no mercado, com a consolidação da utilização de determinados contratos referentes a cartões e clubes de férias, veio de forma inequívoca garantir a submissão dessas realidades ao regime aplicável aos direitos de habitação turística, adaptando os requisitos actualmente existentes a essa nova realidade.

Assim, o seu artigo 45º, relativo ao regime dos direitos de habitação turística, passou a estabelecer:

1 – “Os direitos de habitação em empreendimentos turísticos e casas e empreendimentos de turismo no espaço rural por períodos de tempo limitados em cada ano e que não constituam direitos reais de habitação periódica, bem como os contratos pelos quais, directa ou indirectamente, mediante pagamento antecipado completado ou não por prestações periódicas, se transmite ou prometa transmitir direitos de habitação turística, ficam imperativamente sujeitos à disposição deste capítulo”.

2 – Os direitos de habitação turística a que se refere o número anterior incluem, nomeadamente, os direitos obrigacionais constituídos no âmbito de contratos referentes a cartões e clubes de férias, cartões turísticos ou outros de natureza semelhante”.

O artigo 60º, depois de regular quanto à aplicação no tempo e no espaço, determina que “todos os contratos relativos a direitos reais de habitação periódica e a direitos de habitação turística em empreendimentos turísticos sitos em Portugal, por períodos de tempo limitados em cada ano, ficam sujeitos às disposições do presente diploma, qualquer que seja o lugar e a forma da sua celebração” (n.º 7).

Seguidamente, a disciplina do Decreto-Lei nº 37/2011, de 10 de Março, nada alterou, antes pelo contrário, pois lê-se, desde logo no seu preâmbulo, que «mantém-se como soluções importantes para o reforço da protecção dos consumidores, bem como para a dinamização da actividade de oferta destes produtos de férias, a aplicação do regime previsto no decreto-lei aos denominados produtos de férias de longa duração, qualificados como direitos de habitação turística no direito português, nos quais se incluem os cartões de desconto, de férias ou de outras vantagens».

E assim, o artigo 45º, com a mesma epígrafe (regime jurídico dos direitos de habitação turística), e inserido no mesmo capítulo II (que trata dos direitos de habitação turística), explicitando a norma na redacção anterior, passou a estabelecer:

1 – “Ficam sujeitos às disposições do presente capítulo:

a) - Os direitos de habitação em empreendimentos turísticos por períodos de tempo limitados em cada ano e que não constituam direitos reais de habitação periódica;

b) – Os contratos pelos quais, directa ou indirectamente, mediante um pagamento antecipado completado ou não por prestações periódicas, se prometa ou se transmitam direitos de habitação turística.

2 – Os direitos de habitação turística a que se refere o número anterior incluem, nomeadamente, os direitos obrigacionais constituídos ao abrigo de:

a) – Contratos de utilização periódica de bens, entendendo-se estes como os contratos de duração superior a um ano, mediante os quais o consumidor adquire, a título oneroso, o direito de utilizar um ou mais alojamentos, por mais do que um período de ocupação, que não configure um direito real de habitação periódica;

b) – Contratos de aquisição de produtos de férias de longa duração, entendendo-se estes como os contratos de duração superior a um ano, mediante os quais o consumidor adquire, a título oneroso, o direito a beneficiar de descontos ou de outras vantagens a nível de alojamento, por si só ou em combinação com serviços de viagens ou outros, nomeadamente contratos referentes a cartões e clubes de férias, cartões turísticos ou outros de natureza semelhante.

3 – (…)”

A propósito da aplicação no tempo e no espaço, veio também o artigo 60º determinar:

1 – O presente diploma aplica-se aos direitos reais de habitação periódica, ficando ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que este se destina a regular.

(…).

6 – O presente diploma aplica-se aos direitos obrigacionais de habitação turística, constituídos ao abrigo do Decreto – Lei n.º 130/89, de 18 de Abril, salvo o disposto no n.º 1 do artigo 47º.

Analisando os citados diplomas, torna-se patente que cada um deles distingue entre direitos reais de habitação periódica e direitos obrigacionais de habitação turística, sendo certo que cada um desses diplomas se aplica não só aos direitos reais de habitação como também aos direitos obrigacionais de habitação turística.

In casu, ficou provado que a Ré tem por objecto social a "emissão, comercialização e gestão de cartões de desconto em estabelecimentos comerciais, hoteleiros e similares, bem como a gestão e exploração de estabelecimentos dessa natureza. Organização de férias organizadas".

Significa isto que, atento o preceituado no artigo 45º, se aplica à actividade desempenhada pela recorrente o regime instituído pelo Decreto-Lei 275/93, com as alterações entretanto introduzidas pelo Decreto – Lei 180/99 e Decreto – Lei 37/2011, independentemente de na prática a ré exercer uma actividade mais lata ou mais restrita, concluindo-se, deste modo, que os contratos em apreço estão submetidos à disciplina do citado diploma.

4.2.

Se as referidas cláusulas põem ou não em causa o princípio da boa – fé e o dever de informação.

Discorda a recorrente do entendimento perfilhado no acórdão recorrido, no sentido de declarar nulas as cláusulas em apreço, porquanto, em seu entender, as mesmas não contendem com o princípio da boa – fé.

Aliás, acrescenta, sempre teria adoptado comportamentos honestos e leais em relação aos seus clientes, diligenciado sempre no sentido de os manter informados e satisfeitos, nunca tendo pretendido obter, nem obteve de facto, qualquer vantagem através da utilização das mesmas.

Vejamos:

Com a presente acção, pretendeu o Ministério Público que se declarasse nula a cláusula 3ª nos seus n.os 3.1, 3.2, 3.3 e 3.4 dos formulários dos contratos: "CONTRATO BB", "CONTRATO CC", "CONTRATO DD" e "CONTRATO EE", ao abrigo do disposto no Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, ou seja, do diploma respeitante às cláusulas contratuais gerais.

Dispõe o artigo 25º deste diploma, com o título de acção inibitória, que as cláusulas contratuais, elaboradas para utilização futura, quando contrariem o disposto nos artigos 15º, 16º, 18º, 19º, 21º e 22º, podem ser proibidas por decisão judicial, independentemente da sua inclusão efectiva em contratos singulares

Ou seja, o legislador consagrou, como forma complementar de tutela do aderente, uma acção inibitória com finalidades preventivas.

Assim, “independentemente da sua inclusão numa concreta relação jurídico – negocial já encetada, as cláusulas contratuais gerais elaboradas para utilização futura, desde que interditas pela lei, podem, desde logo, ser proibidas por decisão judicial”[2].

Na verdade, o regime da LCCG é um regime de fiscalização em abstracto que pretende expurgar cláusulas abusivas de formulários a montante de qualquer contrato em concreto, sem ter em atenção se, na prática, a Ré faz, ou tem feito, uma aplicação equilibrada e justa destas cláusulas.

Determina o nº 1 do artigo 1º daquele diploma, tendo em conta as alterações legislativas introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 249/99, de 7 de Julho e pelo Decreto-Lei n.º 322/2001, de 17 de Dezembro, que o regime ali contemplado se aplica às cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar.

Aplicando-se, ainda, nos termos do artigo 2º, às cláusulas inseridas «em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar.

Como salientou o acórdão recorrido, a disciplina das cláusulas contratuais gerais (LCCG) impõe a observância de requisitos formais e materiais, conformes com os princípios da boa-fé, da proibição do abuso do direito e da protecção da parte mais fraca, funcionando como guardião da protecção de quem as utiliza como destinatário.

E o afloramento destes princípios estão espelhados nos seus artigos 15° e 16°, onde como princípio geral se consideram proibidas as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa-fé, sendo que, na sua aplicação se devem ponderar os valores fundamentais do direito, especialmente, a confiança suscitada, nas partes, pelo sentido global das cláusulas em causa, pelo processo de formação do contrato singular celebrado, pelo teor e ainda por quaisquer outros elementos atendíveis, bem como ainda, o objectivo que as partes visam atingir negocialmente, procurando-se a sua efectivação à luz do tipo de contrato utilizado.

No âmbito da acção inibitória, perante os termos do artigo 25º do diploma, podem ser declaradas proibidas por decisão judicial, as cláusulas que tenham a ver com relações entre empresários ou entidades equiparadas ou relações com consumidores finais, nos termos dos artigos 17º a 22º, protegendo-se ainda, como se diz no Ac. do STJ de 19-10-2010, in http://www. o tráfico jurídico em si próprio, o qual se pretende ver expurgado de cláusulas tidas por iníquas.

Na situação sub judicio, o que está em causa, é aquilatar se as cláusulas em apreço, são ou não nulas, por afrontamento ao princípio da boa-fé, por violação do dever de informação, causador de desequilíbrio desproporcionado.

Ficou já demonstrado que a actividade da ré se encontra abrangida pelo Decreto-Lei nº 275/93, de 5 de Agosto, com as alterações posteriormente introduzidas pelos supra - citados diplomas legais.

No âmbito do Decreto-Lei nº 275/93, de 5 de Agosto, alterado pelo Decreto – Lei 180/99, de 22 de Maio, dispunha, à data da propositura da acção, a alínea a) do nº 5 do seu artigo 48º que os contratos de transmissão de direitos de habitação turística, aplicável à actividade dos autos, por força do nº 3 do artigo 45º, devem mencionar os elementos a que se referem as alíneas c), d), g) e p) a t) do nº 2 do artigo 5º.

Já depois da propositura da acção, entrou em vigor o Decreto – Lei 37/2011, de 10 de Março, aplicável aos autos por força do disposto no artigo 60º, n.º 6, dispondo o n.º 5 do artigo 45º que os contratos de transmissão de direitos de habitação turística devem mencionar os elementos a que se referem as alíneas c), d), g) e p) a t) do n.º 2 do artigo 5º.

Os elementos em causa reportam-se no que aqui releva, à identificação do empreendimento e indicação da sua localização, classificação provisória ou definitiva do empreendimento.

Ora, as cláusulas dos autos, cuja nulidade se discute, são, em termos informativos, muito parcas para os contraentes clientes e muito latas para a ré.

A redacção da cláusula 3ª - REGALIAS DO CONTRATO EE - dispõe nos seus pontos 3.1, 3.2, 3.3 e 3.4, na parte que nos interessa, o seguinte:

3.1 - Alojamento em unidades hoteleiras anualmente indicadas pelo FF.

3.2 - Alojamento em estúdio e apartamentos T 1, com capacidade, respectivamente, para 2 ou 4 pessoas, em unidades hoteleiras anualmente indicadas pelo FF...

3.3 - Alojamento grátis, em estúdio ou apartamentos T 1, numa das unidades hoteleiras a indicar pelo FF.

Dos formulários dos contratos BB, CC e DD:

3.4 - A informação sobre as unidades hoteleiras FF, seu custo de utilização e datas para efectivação de reservas, será comunicado anualmente a todos os titulares por e - mail ou anúncios, publicados num jornal de grande tiragem, até 31 de Dezembro do ano anterior".

3.4 - Do formulário do contrato EE:

A informação sobre as unidades hoteleiras FF, seu custo de utilização e datas para efectivação de reservas, será comunicado anualmente pelo FF a todos os titulares, por e - mail ou qualquer outro meio, que considere adequado".

Como se verifica, não há, como ajustadamente salientaram as instâncias, um verdadeiro conhecimento sobre a identificação dos empreendimentos abrangidos no contrato, sua localização ou classificação.

“Os clientes não têm qualquer conhecimento sobre quais são as unidades hoteleiras que possam oferecer as regalias dos preços especiais.

Falando-se em unidades hoteleiras em Portugal ou em qualquer outro país do mundo, sem mais, isto tanto pode significar um número reduzido, como uma imensidão de oferta a este nível, ou seja, não há um mínimo de concretização, nem de definição do objecto ou local da oferta, o que nada tem a ver quer com a celebração de novos protocolos, quer com o encerramento de estabelecimentos. O que implica é que com uma tal amplitude da cláusula, nenhum conhecimento se fornece ao cliente”.

De igual modo, deixa-se ao livre arbítrio da ré, a forma de comunicação da informação respeitante às unidades hoteleiras, seu custo de utilização e datas para efectivação de reservas, levando a que o cliente compre, sem saber o que está a negociar, no momento da formalização do contrato.

Ou seja, tal como as presentes cláusulas se encontram inseridas nos contratos, os consumidores não terão um total esclarecimento sobre o que estão a assinar, ou seja, sobre o que lhes está a ser vendido.

Ora, “no caso dos contratos em que as cláusulas propostas ao consumidor estejam, na totalidade ou em parte, consignadas por escrito, essas cláusulas deverão ser sempre redigidas de forma clara e compreensível”, como se determina no artigo 5º da Directiva Comunitária 93/13/CEE, do Conselho de 5/04/1993.

Há aqui, portanto, uma violação do dever de informação, sendo tal dever igualmente previsto nos artigos 3º, alínea c) e 8º, da Lei do Consumidor, porquanto a ré não informa o consumidor de forma clara, objectiva e adequada. Tal faz com que a ré assuma uma posição de superioridade face ao consumidor.

Como atrás se salientou, não importa aqui aquilatar sobre o contentamento dos clientes até à data, relativamente aos serviços prestados pela ré, na medida em que não se está aqui a averiguar sobre casos concretos, mas a analisar princípios disciplinadores da actividade, ou seja, se as cláusulas em termos objectivos e abstractos violam ou não princípios como o da boa-fé. Dito de outro modo, se acaso se encontrarão ou não salvaguardados os direitos dos consumidores, atenta a sua posição de inferioridade perante a massificação dos contratos de adesão, na sociedade actual.

Na situação sub judice, constata-se que, nas cláusulas em causa, há, como realçou o acórdão recorrido, um deficit de informação e de comunicação, o que desemboca num desequilíbrio entre as partes contratantes, ou seja, o destinatário não pode interferir na medida em que é confrontado com situações pré-definidas, sem poder manifestar a sua discordância em negociação prévia.

A ré age, assim, contrariamente às regras da boa – fé, uma vez que as cláusulas criam um manifesto desequilíbrio entre as partes contratuais e em desfavor do consumidor.

Tais cláusulas são proibidas e, consequentemente, nulas (artigos 15º e 12º da LCCG). As instâncias, ao decretarem a sua proibição para o futuro, nenhum reparo merecem por isso.

5.

Concluindo:

I - O regime jurídico da habitação periódica, resultante do regime jurídico constante dos DL n.ºs 275/93 de 5-08; 180/99, de 22-05 e 37/2011, de 10-03, inclui não só os direitos reais de habitação periódica como também os direitos obrigacionais de habitação turística.

II - Enquadra-se no seu âmbito de aplicação a actividade da ré, cujo objecto social é “a emissão e gestão de descontos em estabelecimentos comerciais, hoteleiros e similares, bem como a gestão e exploração de estabelecimentos dessa natureza e organização de férias organizadas”.

III - A finalidade da acção inibitória é a de garantir, preventivamente, uma tutela complementar do aderente, proibindo, para o futuro e independentemente da sua inclusão em contratos singulares, o uso de cláusulas contratuais gerais violadoras do princípio da boa-fé ou que ponham em causa o equilíbrio das prestações.

IV - Nos contractos FF para venda de alojamento em unidades hoteleiras – em que as cláusulas, na sua quase totalidade, estão consignadas por escrito – são nulas, por afrontamento do princípio da boa-fé e violação do dever de informação, causador de desequilíbrio desproporcionado, aquelas em que “a informação sobre as unidades hoteleiras, seu custo e datas para efectivação de reservas é comunicado anualmente, por email ou outro meio que aquela considere adequado”, sem conter um mínimo de concretização das unidades hoteleiras que serão objecto da oferta do proponente, ou da sua localização.

6.

Nos termos expostos, negando a revista, confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 10 de Abril de 2014

Granja da Fonseca (Relator)

Silva Gonçalves

Pires da Rosa

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[1] Vide Preâmbulo do DL 275/93, de 5 de Agosto.
[2] António Pinto Monteiro, O novo regime jurídico dos contratos de adesão/cláusulas contratuais gerais, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 62, Volume I, janeiro de 2002, Artigos Doutrinais, página 5.