Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | URBANO DIAS | ||
| Descritores: | CORRECÇÃO DE ERROS MATERIAIS CONTRATO-PROMESSA INCUMPRIMENTO | ||
| Nº do Documento: | SJ200703130003901 | ||
| Data do Acordão: | 03/13/2007 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA. | ||
| Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
| Sumário : | - A rectificação de erros materiais à luz da aplicação do art. 249º do C. Civil só pode ter lugar pela pessoa que errou. Se o erro ocorreu na sentença e a mesma foi posta em crise, a rectificação só pode ter lugar antes da subida do recurso. Tendo a promitente-compradora deixado de pagar as prestações relativas ao preço do imóvel prometido comprar, sem qualquer justificação, interpelando os promitentes-vendedores, através de notificação judicial avulsa, para estes lhe entregarem o sinal já prestado, isso significa que ela resolveu ad nutum o contrato, ou seja, demonstrou que o não queria cumprir. * * Sumário elaborado pelo Relator. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I – Relatório "AA" e esposa BB intentaram, no Tribunal Judicial de Gondomar, acção ordinária contra CC, pedindo que se declare a resolução do contrato-promessa firmado entre eles, AA., e a R., fazendo sua a importância que aquela lhes entregou a título de sinal e a R. a entregar-lhes o estabelecimento comercial, livre de pessoas e coisas, e, ainda, a pagar-lhes 498,80 € mensais, a título compulsório, até efectiva entrega do estabelecimento comercial. Em suma, alegaram ter a R. incumprido o contrato firmado (junto aos autos a fls. 24 e ss.), facto que lhes provocou prejuízos. Contestou a R., pugnando pela improcedência da acção, e, em reconvenção, pediu a condenação dos AA. a verem declarado resolvido por si o contrato ajuizado e, por via disso, a serem condenados a restituírem-lhe todas as quantias pagas a título de sinal e princípio de pagamento, no total de 4.489,18 € e a indemnizá-la pelos prejuízos sofridos com os equipamentos que adquiriu para o estabelecimento, no montante de € 2.234,33, dos gastos com o projectista, no montante de € 498,80, das obras realizadas que beneficiaram a fracção no valor de € 9.576,92 e, finalmente, com juros de mora, calculados à taxa legal, sobre os montantes indicados, desde a notificação do pedido reconvencional até efectivo pagamento. O processo acabou por seguir para julgamento, após o que foi proferida sentença a julgar procedente a acção e improcedente a reconvenção. Inconformada com tal desfecho, a R. apelou para o Tribunal da Relação do Porto que, dando parcial provimento ao recurso, revogou a sentença do Mº juiz de Círculo de Gondomar, na parte em que condenou aquela a pagar aos AA. a quantia de 498,80 € mensais até efectiva entrega do estabelecimento comercial, mantendo-se tudo o mais decidido. Com a prolação do aresto pelo Tribunal da Relação do Porto não ficaram satisfeitos AA. e R. e daí terem ambas pedido revista do mesmo. Para o efeito, aqueles fecharam a sua minuta de recurso com 37 longas “conclusões”, em nítida infracção ao preceituado no art. 690º, nº 1 do CPC, que, no entanto, encerram apenas duas questões. Uma diz respeito à oportunidade e licitude de rectificação do art. 12º da base instrutória e outra à qualificação jurídica do negócio celebrado e suas consequências ao nível do incumprimento. Por sua vez, a R. pôs à nossa consideração nas 19 conclusões com que fechou a sua minuta a questão da nulidade do contrato ajuizado por ser física e legalmente impossível e haver mesmo responsabilidade pré-contratual a imputar aos AA. Ambas as partes apresentaram contra-alegações, defendendo cada uma delas a improcedência do recurso da parte contrária. II – As instâncias fixaram o seguinte quadro factual: - Em 11 de Setembro de 2001 os AA. celebraram com a R. o contrato junto de fls. 24 a 27 dos autos. - A R., na mesma data, recebeu dos AA. a respectiva chave do estabelecimento. - Em 4 de Outubro de 1990, o A. marido requereu junto da Câmara Municipal de Gondomar a aprovação da propriedade horizontal para o referido prédio, o qual foi aprovado em 25/10/90. - O referido prédio possui alvará de utilização sob o nº 120, desde 19 de Dezembro de 1991. - A R. deixou de pagar as prestações, vindo a interpelar os AA. através de uma notificação judicial avulsa, requerendo que sejam os mesmos condenados a restituírem a quantia de € 4.489,18 entregue a título de sinal do contrato- promessa e a quantia de € 12.310,05 a título de prejuízos; - Ao projecto das obras respeitantes à instalação e funcionamento da frutaria com o n° 17075/011 foi dado parecer negativo pela Autoridade de Saúde, com fundamento no facto de a fracção não respeitar o pé direito mínimo de 3 metros; - A parte da frente da fracção em causa tem a altura de 3,2 metros e a parte traseira a altura de 2,8 metros; - Os AA. deixaram de poder rentabilizar a fracção ocupada pela R., deixando de auferir € 498,80 mensais; - A R. despendeu € 9.576,92 em obras na fracção; - E € 13.207,89 em equipamentos diversos; - A R. encerrou o estabelecimento e vendeu os equipamentos por € 10.973,56; - Se a R. conhecesse tal exigência e a altura da fracção não teria celebrado o negócio. III – Quid iuris? Delimitado o âmbito da nossa apreciação pelas questões contidas nas diversas conclusões, temos a dizer que a primeira e grande tarefa que importa levar a cabo é a que diz respeito à qualificação jurídica do contrato que as partes aqui em disputa firmaram. Para isso importa vazar nos autos o texto do mesmo, já que as instâncias se limitaram – mal, como é evidente (é a elas que compete a fixação dos factos e os documentos não são mais que meios de prova desses mesmos factos) – a dar o mesmo como reproduzido. Ora bem. No documento junto a fls. 24 e ss. consta, inter alia, o seguinte: “1º Os primeiros outorgantes na qualidade supra indicada são donos e legítimos possuidores do estabelecimento… 2º Os primeiros outorgantes dão de arrendamento o imóvel acima descrito, pelo prazo de um ano a contar da presente data… 3º A renda mensal é de 100.000$00 (cem mil escudos) será paga em casa do senhorio ou em local a combinar. O pagamento dessa renda mensal que ao fim de um ano totalizará a importância de 1.200.000$00 servirá de sinal para a aquisição do imóvel. 5º Os terceiros outorgantes ficarão fiadores da segunda outorgante durante a vigência desse arrendamento (um ano a contar da presente data). Em suma: 6º Os primeiros outorgantes prometem vender e a segunda promete comprar o estabelecimento anteriormente descrito pelo preço de 17.000.000$00 que será liquidado da seguinte forma: Uma prestação de 200.000$00 (duzentos mil escudos), neste acto… Dez prestações mensais de 100.000$00 (cem mil escudos) até 10/07/2002, perfazendo desta forma a quantia de 1.200.000$00 (um milhão e duzentos mil escudos), e os restantes 15.800.000$00 (quinze milhões e oitocentos mil escudos) serão liquidados no acto da escritura pública que se realizará até ao dia 11/08/2002. ….”. Pelo que se acabou de transcrever, fácil é concluir que a imprecisão de conceitos usados, tradutora de uma má gestão da linguagem jurídica, terá de certo modo complicado a resolução do “problema” a nível extrajudicial. Com efeito, a confusão de ideias vertidas nas diversas peças deu azo a que as partes acabassem por esgrimir argumentos que, podendo eventualmente estar nas suas cogitações, acabaram por não ter tradução ao nível do “texto”. Daí a dificuldade e o melindre em encontrar a solutio justa para a composição dos interesses aqui em jogo. Avisados disso mesmo, entremos, pois, na apreciação do mérito de cada um dos recursos. Mas, como já ficou dito, a mesma não pode passar sem uma análise e respectiva qualificação do que está vazado no documento supra transcrito na parte relevante para a decisão. Por outras palavras, indo directamente ao assunto, é altura de nos interrogarmos: o que é que as partes quiseram ao celebrar o contrato em causa? O que é que quiseram contratar? O Mº Juiz de Gondomar decidiu-se pela qualificação do contrato como sendo concomitantemente de arrendamento e de promessa de compra e venda. E as consequências foram já foram referidas: procedência total da acção e improcedência da reconvenção. Mas outra foi a orientação da Relação do Porto: qualificando o contrato ajuizado como sendo apenas e só um contrato-promessa de compra e venda, acabou por, em parte, dar guarida à pretensão da R.-apelante e revogar parcialmente o sentenciado pela 1ª instância, absolvendo aquela da parte condenatória relativa à indemnização mensal de 498,80 € até entrega. Sob o ponto de vista da qualificação do negócio jurídico celebrado pelas partes, cumpre, desde já, dizer da nossa perfeita concordância com a tese perfilhada pela Relação do Porto. Com efeito, o que as partes quiseram foi celebrar um contrato-promessa de compra e venda que teve, na sua antecâmara, um contrato de arrendamento. O fim último do negócio foi a celebrado de um contrato-promessa que levaria a mudar de proprietário a “coisa” caso o mesmo viesse a ser honrado por ambas, mediante a celebração do contrato definitivo. Dito de outro modo, teremos de concluir, malgrado a grande imprecisão de terminologia jurídica usada na redacção do mesmo, que as partes, tendo como fim último a celebração do contrato-promessa, começaram, por motivos que nos escapam e irrelevantes para a sorte da lide, por fixar um renda pela ocupação da “coisa”, transformando o total das doze primeiras rendas (1.200 contos) num sinal. Este é, a nosso ver, o único sentido que se colhe na interpretação do que está vertido no texto que as partes trouxeram a juízo, à luz das regras consagradas nos arts. 236º e ss. do Código Civil. E tanto assim que a R., ao tomar a iniciativa de resolver o contrato, pediu, além do mais, que lhe fosse entregue o dobro do sinal, o que consolida a ideia de que, na base de toda a contratação, esteve, como fim último, a celebração de um contrato-promessa. Ideia esta que sai reforçada se tivermos em devida conta a pretensão dos AA. em fazerem suas as importâncias recebidas das mãos da R. e por força da resolução do contrato-promessa. E se determinados factores são determinantes na busca da verdadeira intenção das partes (v.g. a finalidades prosseguidas pelos contratantes, negociações prévias, etc.), sendo que o material fáctico apurado é nulo a este respeito, não menos relevante é a conduta por elas adoptada posteriormente à sua conclusão (assim, Rui Alarcão, in B.M.J. 84, citando Betti). Ora, tomando este último factor como verdadeiramente provado, não podemos deixar de assinalar que é perfeitamente legítima a conclusão de que as partes quiseram, na verdade, foi celebrar um contrato-promessa de compra e venda. Isto é, posteriormente à celebração do contrato, as partes comportaram-se como interessadas na resolução das questões derivadas de um contrato-promessa de compra e venda de imóvel, concretamente na abordagem que dele fizeram em juízo. Definitivamente, em causa está, assim, a apreciação do incumprimento de um contrato-promessa e por parte de quem. Referimo-nos à “coisa” atenta a imprecisão já referida: enorme confusão está espelhada no dito papel que selou o contrato, ao fazer referência ora a imóvel, ora a estabelecimento, esquecendo que um e outro são realidades diferentes, podendo quanto muito coexistirem em certos e determinados tipos de negócios. Da apreciação global dos articulados, acaba-se por perceber que a “coisa” é a fracção onde o estabelecimento estava instalado. Foi ela (a fracção) que esteve na origem da negociação e na sua concretização. Assim, o que as partes outorgaram foi um contrato-promessa de compra e venda cujo objecto era uma fracção da propriedade dos AA., prometendo estes venderem-na e a R. comprá-la. Uma outra nota – e importante – interessa trazer à colação com vista a encontrar o rumo certo neste emaranhado de complicações que as partes trouxeram a juízo. Diz ela respeito à forma como as partes resolveram marcar os direitos e obrigações negociais, concretamente à forma escrita. Com isto queremos chamar a atenção para o facto de, na interpretação daquelas vontades, estarmos, todos nós, limitados pelo que ficou escrito e só podemos convocar as regras interpretativas consagradas nos arts. 236º e ss. supra referidos para determinar a verdadeira vontade das partes. Posto isto, que reputamos de essencial, é altura de nos debruçarmos, em concreto e definitivamente, sobre o mérito dos recursos à luz das questões que estão inseridas nas conclusões respectivas. Comecemos pelo recurso dos AA.. Aqui, em face do que ficou referido a respeito da verdadeira qualificação jurídica do contrato ajuizado, fácil é, agora, concluir que não assiste a mínima razão aos AA. quando reivindicam uma indemnização na base da ocupação da fracção por parte da R.. Não que o não pusessem fazer em tese, mas sim pela singela razão de que nenhuma cláusula penal foi convencionada para o caso de incumprimento do contrato-promessa (“na ausência de estipulação em contrário” – estipula o nº 4 do art. 442º do CC, o que inculca a ideia de tal possibilidade). Assim, na falta de uma qualquer cláusula penal, verificando-se incumprimento do mesmo, só há que solucionar a questão na base do instituto do sinal, tal como está consagrado nos arts. 441º e 442º do C.Civil. Não é, pois, justa a censura que os AA.-recorrentes dirigiram ao aresto da Relação do Porto que, na aplicação directa das regras do contrato-promessa estabelecidas nos preceitos supra assinalados, acabou por não lhes reconhecer o direito à peticionada indemnização, face à ausência de qualquer outra sanção pré-estabelecida para o caso de incumprimento. A única indemnização que lhes assistirá, portanto, é a resultante do sinal, fazendo seu o respectivo montante, ex vi nº 2 do art. 442º citado. A outra questão que os AA. suscitaram diz respeito à rectificação do art. 12º da base instrutória. Independentemente de se saber qual o verdadeiro peso desta pretensão, o certo é que ela, aqui e agora, não pode colher. Bem ou mal – abstemo-nos de tecer qualquer juízo crítico a esse respeito – a rectificação de erros materiais à luz da aplicação do art. 249º do C. Civil só pode ter lugar, como se compreende pela sua própria natureza das cousas, pela pessoa que errou. Isso mesmo resulta claro na disciplina do art. 667º do CPC: a rectificação, só pode ter lugar antes da subida do recurso. Como assim, nunca poderia este Supremo Tribunal rectificar eventuais erros que não cometeu. Mas, mais: bem ou mal, a matéria de facto está definitivamente fixada pelas instâncias, não havendo razão alguma para o STJ intervir nos apertados limites que a lei lhe permite (cfr. art. 722º, nº 2 e 729º, nº 3, do CPC). Em conclusão, diremos que também neste ponto concreto a razão não está do lado dos AA.-recorrentes. Aqui chegados, é altura de dedicarmos a nossa atenção ao recurso da R.. E, desde logo, trazer à memória o que ficou dito em relação ao modo como as partes quiseram perpetuar os direitos e obrigações resultantes do contrato. Com isto pretendemos dizer que, nada tendo sido clausulado a respeito do ramo de negócio que a R. pretendia explorar na “coisa” (imóvel, como já o afirmamos) é totalmente descabido todo o manancial argumentativo derramado por esta nas suas conclusões a tal respeito. O texto há-de ser sempre o ponto de partida, pois, desde logo, elimina os sentidos que nele não têm apoio. O que já tem toda a pertinência é dizer, sem mais rodeios, que o contrato acabou por não ser honrado pela própria R.: foi ela, com a sua atitude injustificável e injustificada, que se colocou de fora da economia do mesmo, fazendo uma mera declaração (gratuita porque despida de causa adequada para tanto) de resolução do mesmo. Ao proceder da maneira como procedeu, sem qualquer razão para isso, resolvendo ad nutum o contrato, a R. quis simplesmente dizer que não queria cumpri-lo (cfr. Antunes Varela, in Das obrigações em geral, Vol. II – 6ª edição –, pág. 91). O mesmo é dizer que ela própria o incumpriu e, como assim, permitiu que os AA., com toda a razão, viessem a juízo reclamar a resolução do mesmo. Em suma, só a R. é que incumpriu o dito contrato e já não os AA.. Está, agora, claro e certo que os AA. têm direito ao sinal, tal como as instâncias reconheceram. De igual modo se nos antolha que a R., ao trazer para esta sede a questão (“nova” porque não colocada à apreciação do tribunal recorrido) da eventual responsabilidade pré-contratual, acaba por, de uma forma implícita, reconhecer que, no âmbito da responsabilidade contratual, a sua pretensão, face aos factos alegados e aos factos provados, nunca poderia ter acolhimento, como, efectivamente, não tem. Não será por isso despiciendo repetir aqui que toda a motivação não suportada pelo documento junto aos autos é de todo em todo irrelevante. Em remate final e como consequência do que ficou dito, teremos de concluir pela bondade do aresto impugnado: ele nada mais fez do que uma análise correcta dos factos provados à luz dos preceitos legais atinentes e, por isso mesmo, aplicáveis. IV – Decisão Negam-se, pois, ambas as revistas e condenam-se os recorrentes nas respectivas custas. Lisboa, 13 de Março de 2007 Urbano Dias Paulo Sá Borges Soeiro |