Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1419/18.6T8MMN-D.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
AÇÃO EXECUTIVA
PENHORA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
BENS NO ESTRANGEIRO
REGISTO AUTOMÓVEL
ÓNUS
EXEQUENTE
Data do Acordão: 10/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I – Os tribunais portugueses têm competência internacional sempre que as medidas necessárias à realização coactiva da prestação, em processo executivo, possam ocorrer em território português.

II – Ressalvados os critérios fixando a competência internacional dos tribunais portugueses, do art.º 62.º do CPCiv, e face à possibilidade de apreensão e penhora de um bem móvel existente em Portugal, seguir-se-á, em tese, a promoção das demais diligências executivas incidentes sobre o bem.

III – No caso de veículo automóvel, não se encontrado o mesmo registado em Portugal, o registo da penhora não deixa de ser obrigatório e constitutivo – passará, porém, a ser, directamente, um ónus dos exequentes, nos termos gerais.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




                  


Súmula do Processo


No processo executivo, com forma comum, que os Exequentes AA e BB, ambos CC, movem contra o Executado DD (advogado), foi penhorado determinado veículo automóvel, em 15/2/2019.


O Executado veio então arguir a nulidade do acto de penhora.


Entre o mais, invocou que não ficaram respeitadas as formalidades legais inerentes à penhora de coisas móveis sujeitas a registo, coisas que se encontram fisicamente em Portugal, mas formalmente no estrangeiro, sendo os tribunais portugueses incompetentes internacionalmente para tanto.


Os Exequentes opuseram-se ao requerido.


Foi proferida decisão judicial julgando improcedente a reclamação.


Tendo o Executado recorrido de apelação, o recurso foi julgado improcedente, e a decisão confirmada, na parte interessante.


Inconformado ainda, volta a recorrer o Executado, agora de revista, por apelo à norma do art.º 629.º n.º2 al.a) do CPCiv.





Formula o Recorrente as seguintes conclusões de recurso:


1ª- Estando claramente em causa, matéria acerca da incompetência internacional dos Tribunais Portugueses, é sempre admissível Recurso de Revista para o Supremo Tribunal de Justiça, o que por óbvio se requer;


2º- Constituindo tal matéria questão de conhecimento oficioso pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça, faz-se mister que tal questão seja decidida, avaliando-se se no caso presente existe, como reclamado, incompetência internacional, em razão do território, dos Tribunais Portugueses;


3º- Estando em causa penhora de um veículo automóvel, presente fisicamente em Portugal, mas não legalizado e registado na República Federativa do Brasil, a competência internacional dos Tribunais Portugueses, para imporem ao Estado Brasileiro a coerção de medidas registais relacionadas com o bem móvel sujeito a registo obrigatório nesse Estado Soberano, parece-nos claro, serem os Tribunais Portugueses manifestamente incompetentes, eis que a própria lei interna impõe que a penhora destes bens seja precedida ou contemporânea com o registo da mesma, par se tornar efetiva legalmente.


4º- Resulta manifesto que, não estando o veiculo ainda registado em Portugal, sequer foi desencadeado o processo de legalização e atribuição de matricula em Portugal, impossível o registo da penhora em Portugal, como condição in afastável à legalidade da mesma, e concomitantemente a impossibilidade dos Tribunais Portugueses imporem tal medida de coerção aos Tribunais Brasileiros, razão pela qual resultam territorialmente incompetentes os Tribunais Portugueses.


Os tribunais portugueses só podem conhecer de litígio emergente de uma relação transnacional quando forem internacionalmente competentes. A violação das regras de competência internacional legal constitui uma exceção dilatória de conhecimento oficioso (incompetência absoluta) (arts. 96º, 97º e 577º/ a) do Código de Processo Civil) e a decisão proferida por um tribunal em violação de regras de competência internacional é recorrível art.629º Código de Processo Civil).





Os factos julgados provados no processo são os seguintes:


Em 12/11/2018, o Executado foi citado nos presentes autos.


Em 18/2/2019, foi elaborado auto relativo à penhora do veículo com a matrícula BEJ-...., marca Mercedes Benz, modelo C 180 Turbo, quadro: ...80, cor: preto, a gasolina, ano: 2013.


Do auto de diligência consta o seguinte: “No dia 15 de Fevereiro de 2019, deslocámo-nos à Rua ..., em ..., para proceder à apreensão do veículo Mercedes Benz, de matrícula BEJ ..... Deslocados ao local, foi-nos informado pelo enteado do Executado, Sr. EE, que o veículo estaria em nome do Executado. O GNR presente, FF, entrou em contacto telefónico com o Executado, que confirmou que o veículo, no Brasil, estava em seu nome, mas que já teria feito doação dele ao enteado”.


“Posteriormente, o Executado chegou ao local e apresentou documento que comprova que é o titular.”


“Após, procedemos à apreensão e remoção e constituímos fiel depositário o Exequente (…).”


A reclamação do acto, com arguição de diversas nulidades, deu entrada em juízo em 5/4/2019.





Conhecendo:



I




A presente revista coloca em causa as anteriores decisões judiciais que optaram pelo bem fundado da decisão de penhora de um veículo automóvel existente em Portugal, mas constante do registo automóvel no Brasil – ainda não tendo sido completado o processo de registo do veículo em Portugal.


Note-se que não é colocada em causa a competência internacional dos tribunais portugueses para a execução do crédito, mas é colocada em causa a competência internacional para o decretamento da penhora de um veículo registado no Brasil.


Assim, este enquadramento não questiona as conhecidas teses doutrinárias no sentido de que os tribunais portugueses têm competência internacional sempre que as medidas necessárias à realização coactiva da prestação possam ocorrer em território português – assim, M. Teixeira de Sousa, A Acção Executiva Singular, 1998, pgs. 124 e 125, e A. Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 1977, pg. 68, e Direito Processual Civil Declaratório, II, 1982, pgs. 20 e 21.


Nos termos do art.º 63.º al.d) do CPCiv, os tribunais portugueses são exclusivamente competentes quando se pretenda penhorar coisa imóvel existente, à data da propositura da execução, em território português.


A norma é expressão do princípio de que há que atender, na acção executiva, “a elementos de conexão distintos dos utilizados na acção declarativa, dada a especificidade funcional da primeira, quando se dirige à realização coactiva do direito a uma prestação” (Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 6.ª ed., pg. 133).


Por maioria de razão, a execução incidente sobre bem móvel, ainda que sujeito a registo, como no caso dos autos, pode ser promovida em Portugal, desde que tal se possibilite pela aplicação quer do critério da coincidência, do art.º 62.º al.a) do CPCiv (a acção pode ser proposta em tribunal português, por aplicação das regras de competência territorial portuguesas), quer do critério da causalidade, do art.º 62.º al.b) do CPCiv (praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção), quer do critério da necessidade, do art.º 62.º al.c) do CPCiv (entre o mais, se o direito não puder tornar-se efectivo a não ser por via de acção proposta em Portugal, verificado elemento ponderoso de conexão entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa).


Isto em nada bole com o princípio de que “cada Estado possui, no seu território, o monopólio das medidas coactivas e é a soberania inerente ao poder de praticar os actos de execução que impõe a atribuição da respectiva competência exclusiva aos tribunais do Estado em cujo território tais actos têm lugar, sem prejuízo de esse Estado poder delegar em particulares o poder de os decretar ou, pelo menos, efectivar, como sucede entre nós com os agentes de execução” (cf. S.T.J. 7/3/2017 Col.I/103, rel. Alexandre Reis).


Aplicados ou ressalvados os critérios fixando a competência internacional dos tribunais portugueses, do art.º 62.º do CPCiv, conjugando-os com a possibilidade de apreensão e penhora de um bem móvel existente em Portugal, seguir-se-á, em tese, a promoção das demais diligências executivas incidentes sobre o bem.






II




Portanto, em suma, não é a possibilidade de registo da penhora que determina a competência dos tribunais estaduais portugueses para o referido acto.


Resta porém que, de acordo com o disposto no art.º 768.º n.º1 do CPCiv, a penhora da concreta coisa móvel sujeita a registo se concretiza mediante a comunicação electrónica efectuada pelo agente de execução à conservatória do registo automóvel.


Não se encontrado o bem, como se não encontra, registado em Portugal, o registo da penhora não deixa de ser obrigatório e constitutivo – passará, porém, a ser, directamente, um ónus dos exequentes, nos termos gerais (em caso paralelo, cf. Lebre de Freitas, A Acção Executiva cit., pg.295).


Para além de constitutivo da penhora, o registo será também condição do prosseguimento do processo executivo, que só terá lugar após a junção do certificado do registo da penhora, bem como da certidão de ónus e encargos (art.ºs 755.º n.º2 e 786.º n.º1 proémio do CPCiv).


Concluindo, pois, nada obsta à conclusão das instâncias no sentido da improcedência da excepção de incompetência internacional dos tribunais portugueses para a realização do acto da penhora de veículo automóvel ainda não registado em Portugal.





Em suma:


I – Os tribunais portugueses têm competência internacional sempre que as medidas necessárias à realização coactiva da prestação, em processo executivo, possam ocorrer em território português.


II – Ressalvados os critérios fixando a competência internacional dos tribunais portugueses, do art.º 62.º do CPCiv, e face à possibilidade de apreensão e penhora de um bem móvel existente em Portugal, seguir-se-á, em tese, a promoção das demais diligências executivas incidentes sobre o bem.


III – No caso de veículo automóvel, não se encontrado o mesmo registado em Portugal, o registo da penhora não deixa de ser obrigatório e constitutivo – passará, porém, a ser, directamente, um ónus dos exequentes, nos termos gerais.





Decisão:


Nega-se a revista.


Custas pelo Recorrente.


S.T.J., 27/10/2022





Vieira e Cunha (Relator)


Ana Paula Lobo


Afonso Henrique Cabral Ferreira