Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B1472
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NORONHA DO NASCIMENTO
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
INEXISTÊNCIA JURÍDICA
CONHECIMENTO OFICIOSO
Nº do Documento: SJ200406170014722
Data do Acordão: 06/17/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 2212/03
Data: 12/04/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Sumário : I- A duração da instância opera de direito, não sendo preciso qualquer desempenho jurisdicional a declará-la.
II- Extinta a instância por deserção, os actos eventualmente praticados depois são inexistentes porque não têm nenhum processo (juridicamente falando) a sustentá-los.
III- O juiz pode conhecer oficiosamente da inexistência desses actos.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
A Autora "A" propôs acção com processo ordinário contra a Ré Fábrica da Igreja Paroquial de ........ pedindo que seja declarada proprietária do terreno que identifica, tal como do edifício anexo, e ainda que lhe seja reconhecida a titularidade de uma servidão de passagem e de vistas sobre o adro da Ermida da Orada, propriedade da Ré, condenando-se esta a reconstruir os degraus de acesso existentes junto ao adro e a reabrir a porta e janelas que antes existiam num armazém da A. que confinava com esse adro.
Contestou e reconveio a Ré pedindo que se lhe reconheça o direito de propriedade sobre o mesmo terreno a que se arroga a A., e que se condene esta a indemnizá-la dos prejuízos sofridos.
Entretanto e após despacho proferido pelo sr. Juiz, o processo ficou parado já que nem A. nem Ré procederam ao registo da acção conforme lhes tinha sido determinado.
Nessa conformidade, foi judicialmente declarada interrompida a instância em, 30/11/93 enquanto o processo se mantinha parado.
Em 24/5/99 foi entretanto deduzido o incidente de habilitação de herdeiros por óbito da A. mas, em 17/1/2003, foi declarada deserta a instância porque o processo esteve totalmente parado entre 1993 e 1999.
Deste despacho recorreram os A.A. habilitados e, subordinadamente, a Ré tendo o Tribunal da Relação dado razão ao agravo dos A.A. e ordenado o prosseguimento dos autos, revogando, por consequência, o despacho recorrido.
Para tanto considerou, basicamente, que muito embora tenha ocorrido a deserção da instância, o certo é que, após 1999, se praticaram inúmeros actos no processo como se este não tivesse findado.
Tais actos são nulos por força daquela deserção, mas essa nulidade não é de conhecimento oficioso devendo, ao invés, ser arguida pela parte interessada. Esta arguição não ocorreu, motivo pela qual não podia o julgador declarar oficiosamente a nulidade dos actos subsequentes (conforme resulta dos arts. 201 e 202 do C.Proc.Civil).
Daí que os autos devessem prosseguir mesmo tendo ocorrido a deserção da instância que, por isto mesmo, se deve ter por renovada.
Inconformada, agrava para este Supremo Tribunal a Ré que conclui as suas alegações da forma que, sucintamente, se refere;
a) ninguém duvida que ocorreu uma deserção de instância nos autos sub judice, deserção que opera automaticamente;
b) assim, os actos praticados após a deserção são "irrelevantes – juridicamente inexistentes” pelo que não existe o processado subsequente;
c) não existe, por isso, qualquer renascimento da instância deserta;
d) assim, não estamos perante uma nulidade que deva ser arguida por uma parte, mas perante uma inexistência que pode ser conhecida sem arguição;
e) foram violados os arts. 291, 201, 202, 205, todos do C.Proc.Civil.
Pede, em consonância, a revogação do acórdão recorrido, confirmando-se o despacho proferido na 1ª instância.
Não contra – alegaram os agravados.
1º) A questão jurídica que se discute neste recurso é facilmente diagnosticável: depois de decorrido o prazo para a deserção da instância por inércia total das partes sem que aquela tenha sido judicialmente declarada, os actos reiniciaram a sua marcha (lentamente, muito lentamente porém) até que o sr.Juiz, em 2003, proferiu despacho a certificar aquela deserção.
O Tribunal da 2ª instância, reconhecendo embora que a instância estava deserta, considerou que os actos processuais praticados posteriormente são nulos, mas essa nulidade não é de conhecimento oficioso, antes exige que a parte interessada a argue.
2º) A instância (ou lide) mais não é senão a relação processual através da qual se exerce e se tutela o direito que o autor pretende ver salvaguardado.
Daí que a instância tenha vicissitudes diversas das do direito substantivo que ela materializa. Vale isto por dizer que bem pode suceder – e sucede com frequência – que o destino da instância não coincide com o da relação substantiva que lhe subjaz: a instância pode findar sem findar igualmente o direito material.
A instância, ou seja, a relação processual pode extinguir-se por causas várias, uma das quais é a deserção (arts. 287 e 291 do C.P.C. como todos os que se citarem sem indicação expressa de diploma).
A deserção ocorre porque o processo está parado por inércia total da (ou das) parte(s). Já Alberto dos Reis justificava a deserção da instância mediante a necessidade de se não manter indefinidamente parados nos tribunais, como um congelador, inúmeros processos em relação aos quais as próprias partes se tinham desinteressado (cfr. “Comentário ao Código de Processo Civil”, vol.III, págs. 434 e segs).
Isto mesmo explica que, hoje, quando o ritmo de vida é muito mais intenso e a procura judicial mais forte, o legislador tenha descido o prazo para a ocorrência da deserção de cinco (Cod. P.Civil de 1961) para dois anos (Código actual).
A deserção opera de direito, ope legis, e não ope judicis.
Não é preciso, por conseguinte, qualquer despacho jurisdicional a declará-la, bastando, tão-só, o simples decurso do tempo para que ela se consuma.
Vale isto, por dizer que verificada e declarada a interrupção da instância por despacho judicial (como sucedeu no caso em apreço) o decurso subsequente do prazo de 5 anos (antigamente) ou de 2 anos (agora) conduz inelutavelmente à extinção da instância por deserção.
Foi o que aconteceu no caso dos autos conforme todos os intervenientes reconhecem.
3º) Extinta a instância por deserção, findou a relação processual.
Significa isto portanto que a deserção provoca a extinção da lide, da relação processual que se materializa na acção onde o direito substantivo é exercitado. Após a extinção da instância não há mais actos processuais que se possam praticar porque não há relação processual juridicamente existente.
A deserção porque opera de imediato – com o simples decurso do tempo – coincide com o termo, o fim da relação processual; qualquer acto praticado depois disso é um não-acto, ou seja, um acto juridicamente inexistente.
Daí que, no caso em apreço, ocorrida a extinção da instância por deserção em 1998, os autos (aparentemente processuais) praticados em 2001 e 2002 sejam inexistentes porque não tinham nenhuma relação processual subjacente a eles e que os legitimasse.
As normas dos arts. 198 e segs. do C.P.C. regulam casos de nulidades ou irregularidades de actos processuais; mas não regulam nem dispõem sobre actos inexistentes processualmente.
Os não-actos não existem pura e simplesmente. Não produzem qualquer efeito porque não há nenhum processo (juridicamente falando) e pode a sua inexistência ser declarada em qualquer momento pelo juiz.
Vala isto por dizer, que os arts. 198 e segs. não têm aplicação a este pleito já que, aqui, se configura a hipótese de actos praticados sem qualquer relação processual que lhes sirva de suporte.
4º) Há,obviamente, casos em que a lei admite a renovação de instância extinta.
Mas tais casos restringem-se a obrigações duradouras que se renovam periodicamente e que legitimam, por isso, que a renovação da instância acompanhe a periodicidade da obrigação substantiva (art. 292); não é esse o caso dos autos.
De tudo o que se deixa exposto, resulta pois, a procedência das conclusões das alegações da agravante.
Termos em que se dá provimento ao agravo, declarando-se extinta a instância dos autos e findo o processo.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 17 de Junho de 2004
Noronha do Nascimento
Moitinho de Almeida
Bettencourt de Faria