Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
19339/17.0T8LSB-A.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: AUTORIDADE DO CASO JULGADO
CARTÃO DE CRÉDITO
DATA
ALTERAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
BOA FÉ
Data do Acordão: 09/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Transitada em julgado sentença que julgou improcedente a acção em que se pedia a condenação do Réu no pagamento de quantia resultante da utilização de cartão de crédito em função de um contrato de utilização de cartão de crédito celebrado em determinada data, porquanto não foi demonstrada a celebração desse contrato na data alegada, sendo estranho ao objecto do processo, porque integradora de diferente causa de pedir, a possibilidade de esse contrato ter sido celebrado numa outra data, está vedado ao tribunal, em acção posterior – em que entre as mesmas partes se formula idêntico pedido, agora invocando o mesmo contrato celebrado numa outra data – decidir-se que estamos perante uma repetição da causa por ocorrer identidade de causa de pedir.

II. Litiga de má-fé, por infracção do dever de boa-fé processual, a parte que numa acção defende que a alteração da alegada data de um contrato consubstancia uma alteração da causa de pedir, e em acção posterior, em que entre as mesmas partes se formula idêntico pedido, agora invocando o mesmo contrato celebrado numa outra data – vem invocar ocorrer uma repetição da causa por ocorrer identidade de causa de pedir.

Decisão Texto Integral:


ACORDAM

NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


NO RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NOS AUTOS DE ACÇÃO DECLARATIVA DE CONDENAÇÃO

ENTRE


AA
(Advogado em causa própria)

Autor / Apelado /Recorrente



CONTRA


UNICRE – INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, SA
(aqui patrocinado por BB, adv.)

Ré 1 / Apelante / Recorrida



E


BANCO DE PORTUGAL
(patrocinado por CC, adv.)

Réu 2



I – Relatório

O Autor intentou acção declarativa contra os Réus pedindo que:

a) Os Réus fossem solidariamente condenados a retirar do "site" da Central de Responsabilidades de Crédito, a informação, que é falsa, de que a Ré 1 tem um crédito de € 17.943,00 sobre o Autor.

b) A Ré 1 fosse condenada a pagar-lhe, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de € 17.943,00, acrescida de juros desde a citação;

c) Os Réus fossem solidariamente condenados a pagar-lhe 50 €, a título de indemnização por danos não patrimoniais, por cada dia decorrido após a citação até ao dia da efectiva retirada da informação do referido “site”.

Alegou, designadamente:

Em 13/09/2015 a aqui Ré 1 moveu contra o aqui si o processo nº 120743/15…., requerendo/solicitando que o aqui A. lhe pagasse a quantia de €12.091,75, sendo 610.033,65, a título de capital e €1.905,10, a título de juros de mora (à taxa de 28,34% ao ano).

O aqui A. contestou tal pedido, alegando, em síntese, que nada devia à requerente.

Essa ação veio a ser julgada improcedente, por não provada, por sentença proferida nesses autos no dia 15/Maio/2016, transitada em julgado.

A partir da data do trânsito em julgado dessa sentença, a Ré 1 estava obrigada a comunicar ao Banco de Portugal /Central de responsabilidades de crédito - C.R.C, que o aqui A. não tinha quaisquer dívidas ou responsabilidades para com a Ré 1.

Mas não só não o fez, como nos meses subsequentes foi comunicando ao Banco de Portugal /Central de Responsabilidades de Crédito, que o A. tinha dívidas/responsabilidades para consigo.

A Ré 1 contestou invocando, em síntese:

Baseou a anterior acção num contrato de utilização de cartão de crédito que disse ter sido celebrado em 08MAR1996.

   Já na pendência da acção apercebeu-se ter cometido um lapso na indicação da data do contrato.

Tendo requerido a rectificação de tal lapso, de forma que se considerasse 31OUT1988 como a data do contrato.

Tal pretensão foi indeferida por se considerar que tal alteração configurava uma alteração da causa de pedir, a qual não havia merecido o acordo do réu.

A acção foi julgada improcedente com fundamento em não ter sido demostrada a celebração do contrato de utilização de cartão de crédito em 08MAR1996, não implicando a inexistência de dívida resultante de diverso contrato.

Mais deduziu reconvenção pedindo a condenação do Autor a pagar-lhe a quantia de 10.033,65 €, acrescida de juros vencidos e vincendos, em função da utilização da utilização do cartão de crédito que lhe havia sido atribuído em função de contrato de utilização de crédito celebrado em 31OUT1988.

O Réu 2 contestou excepcionando a incompetência em razão da matéria e por impugnação.

O Autor replicou invocando o caso julgado formada na anterior acção 120743/15….

O Autor veio a desistir da instância relativamente ao Réu 2, desistência que foi homologada por sentença.

No despacho saneador considerou-se ocorrer a excepção de caso julgado uma vez que ocorre identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir entre a actual acção e a precedente acção 120743/15…, absolvendo-se o Autor da instância reconvencional; e determinando-se o prosseguimento dos autos para conhecimento do mérito da causa relativamente à acção.

Inconformada, apelou a Ré 1, concluindo por erro de julgamento na absolvição da instância relativamente à reconvenção. Recurso esse que foi julgado procedente, tendo a Relação revogado a decisão recorrida.

Agora irresignado, veio o Autor interpor recurso de revista invocando violação do caso julgado.

Não houve contra-alegação.           


II – Da admissibilidade e objecto do recurso

A situação tributária mostra-se regularizada.

 O requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC).

 Tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).

 O acórdão impugnado é, pela sua natureza, pelo seu conteúdo, pelo valor da causa e da respectiva sucumbência, recorrível (artigo 671º, nº 1, do CPC).

  Mostra-se, em função do disposto nos artigos 675º e 676º do CPC, correctamente fixado o seu modo de subida (nos próprios autos) e o seu efeito (meramente devolutivo).

 Destarte, o recurso merece conhecimento.

 Vejamos se merece provimento.

           


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Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões por que entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece.

 Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

 Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, a única questão a resolver é se o acórdão recorrido violou ou não o caso julgado formado na anterior acção.


III – Os factos

 Para além da factualidade referida no relatório deste acórdão (e para o qual se remete), haverá a considerar o teor da sentença (já transitada) proferida no processo 120743/15…, que se transcreve:


I – Relatório
[A Autora, na revista Ré 1/ Recorrida], intentou procedimento de injunção contra [O Réu, na revista Autor / Recorrente], pedindo o pagamento da quantia de €10.033,65, acrescida de juros de mora, que computa em € 1 905,10 e da taxa de justiça paga, no montante de € 153.
Fundamenta a sua pretensão, alegando, em síntese, que em 08/03/1996, celebrou com o réu um contrato de utilização de cartão de crédito, através do qual foi atribuído ao réu um cartão de crédito, que o utilizou, tendo o réu deixado de efetuar qualquer pagamento do saldo em dívida em 30/20/2014, ascendendo o saldo em dívida ao montante de € 10 033,65.
Regularmente citado, o réu deduziu oposição, pelo que os autos seguiram os termos do regime da ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato.
Em sede de oposição, o réu impugnou a celebração e a validade do contrato alegado pela autora, bem como que esta lhe tenha emprestado, quer direta (através de levantamento de numerário), quer indirectamente (através da aquisição de bens e/ou serviços a terceiros), a quantia peticionada nos autos.
Através do requerimento junto a fls. 61, veio a autora requerer a retificação do requerimento de injunção no que respeita à data do contrato, por forma a que do mesmo passasse a contar a data de 31/10/1988.
Notificado o réu, o mesmo sustentou que tal consubstanciava uma alteração da causa de pedir, à qual se opôs (cf. fls. 68/69).
Por despacho proferido a fls. 74/75, entendeu o tribunal que a retificação requerida consubstanciava uma verdadeira alteração da causa de pedir, a qual, por não ter merecido o acordo do réu, não era admissível, em consequência do que indeferiu a pretensão da autora.
Realizou-se o julgamento, com a observância dos formalismos legais, conforme consta das respetivas atas.

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II - SANEAMENTO
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades principais.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão
devidamente patrocinadas.
Não existem outras exceções, nulidades ou questões prévias de que cumpra conhecer e
que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
1. OS FACTOS
1.1. FACTOS PROVADOS
Discutida a causa, e com relevo para a sua decisão, o Tribunal julga provados os seguintes
factos:
1. A autora dedica-se ao financiamento de crédito e à gestão e emissão de cartões de crédito.
2. A autora emitiu em nome do réu os extratos de conta juntos aos autos de fls. 32 verso a 53, cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido.
1.2. FACTOS NÃO PROVADOS
Com relevância para a decisão da causa, nada mais se provou, nomeadamente, que:
a) No exercício da sua atividade, no dia 08/03/1996, a autora celebrou com o réu um contrato de atribuição de cartão de crédito, através do qual, o réu passou a ser titular de um cartão de crédito, cujo último emitido tem o n.º …981.
b) Ao subscrever o contrato referido na alínea a), o réu aderiu às condições gerais de utilização do mencionado cartão.
c) Através do cartão de crédito atribuído mediante o contrato referido na alínea a), foi concedido ao réu a possibilidade de adquirir bens e/ou serviços pelo montante acordado entre este e o vendedor, bem como efetuar operações de levantamento em numerário na rede de ATMs e aos balcões de bancos aderentes ao sistema Visa.
d) No âmbito do contrato referido na alínea a), o réu obrigou-se a proceder ao pagamento dos bens e/ou serviços por si adquiridos a terceiros, os quais são posteriormente debitados no extrato de conta do réu para pagamento.
e) Em consequência do contrato referido na alínea a), o réu adquiriu os bens e serviços e efetuou as operações de levantamento em numerário, constantes dos extratos referidos em 2) dos factos provados.
f) A autora enviou ao réu as cartas que se encontram a fls. 54 verso e 37 verso, cujo teor
aqui se dá integralmente por reproduzido.
1.3. MOTIVAÇÃO
O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica da prova testemunhal produzida em sede de audiência final, cotejada com a prova documental carreada para os autos.
Concretizando, no que tange à factualidade inserta em 1) dos factos provados, a mesma foi admitida por acordo, dado que o réu não a impugnou (cf. artigo 574.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Por sua vez, o facto vertido em 2) resultou provado em face dos extratos juntos aos autos de fls.32 verso a 53, dos quais se extrai que a autora efetivamente os emitiu e em nome do réu.
Já no que se refere aos factos não provados, o tribunal assim decidiu em virtude de não ter sido produzido qualquer dado probatório que permitisse concluir pela sua verificação.
Assim, temos que não foi junto aos autos qualquer acordo subscrito pela autora e réu datado de 08/03/1996, tendo sido pela autora junto aos autos um escrito particular datado de 31/10/1988 (cf. fls. 28), o qual, conforme já decidido, não constitui a causa de pedir da presente ação, não sendo, por isso, objeto dos presentes autos.
A autora juntou ainda aos autos um outro escrito, este intitulado “ACTUALIZAÇÃO DE
DADOS”, datado de 14/07/1994 (cf. fls. 29), o qual, é manifestamente anterior à data do alegado contrato que constitui a causa de pedir dos presentes autos.
Por outro lado, também não foi junto aos autos qualquer documento comprovativo da emissão de qualquer cartão de crédito em nome do réu e menos ainda na sequência do contrato alegadamente celebrado em 08/03/1996.
Em face do exposto, e não tendo também a testemunha (…), bancário, funcionário da autora, confirmado tal factualidade, é manifesto não ter sido produzida prova da factualidade vertidas nas alíneas a) a e) dos factos não provados, cujo ónus incumbia à autora (cf. artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil).
Nesta sede, e no que tange ao vertido na alínea e) dos factos não provados, sempre se dirá, “a talho de foice”, que a mera emissão dos extratos de conta juntos aos autos de fls. 32 verso a 53 (emissão essa efetuada pela própria autora), sem qualquer outro dado probatório que permita confirmar que as transações deles constantes foram efetivamente efetuadas, são insuficientes para concluir pela concretização de tais transações.
Por fim, quando ao inserto na alínea f), pese embora se mostrem juntas aos autos cartas dirigidas pela autora ao réu, a verdade é que não foi feita qualquer prova do seu envio.
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2 - O Direito
O presente litígio circunscreve-se a um alegado contrato de utilização de cartão de crédito, celebrado entre autora e réu no dia 08/03/1996, através do qual foi atribuído um cartão de crédito ao réu, que o usou para proceder à aquisição de bens e/ou serviços e ao levantamento de numerário, no valor total de € 10 033,65.
Porém, a autora não logrou provar, como lhe competia, os factos constitutivos do direito que se arroga nos presentes autos (cf. artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil), o que determina a improcedência da sua pretensão, com a consequente absolvição do réu do pedido.
3 – Da Responsabilidade Tributária
Nos termos do artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a decisão que julgue a ação condenará em custas a parte que a elas houver dado causa, ou seja, a parte vencida e na proporção em que o for (cf. n.º 2 do citado artigo 527.º).
Nessa medida, porque vencida, as custas da presente ação serão suportadas pela autora.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, julgo a presente ação improcedente, por não provada e, em consequência:
a) Absolvo o réu (…) do pedido.
b) Condeno a autora (…), no pagamento das custas do processo.
Fixo à ação o valor de € 11 938,75, ao abrigo do disposto nos artigos 18.º do anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, e 306.º do Código de Processo Civil.
Registe e notifique.


IV – O direito

O Direito (melhor, a ciência jurídica) não se insere no campo das ciências exactas, mas antes nas ciências sociais e, por consequência, está implicada na diversidade intrínseca à Humanidade, não havendo respostas unívocas às problemáticas envolvidas na criação e aplicação do Direito. Daí a corrente invocação do adágio “se chamares dois juristas para analisar um caso obterás, seguramente, três opiniões”.

Dessa forma é da ‘Natureza das Coisas’ a diversidade de opiniões e pontos de vista em matéria jurídica.

Mas, por outro lado, sendo função do Direito a regulação da convivência social ele necessita, para a sua legitimação, de se caracterizar por um mínimo de certeza e segurança jurídica.

 Assente nesta inexorável e contraditória ambivalência o Direito procurou desenvolver algumas regras ou procedimentos que lhe permitam manter a estabilidade do seu ‘edifício’, mantendo a referida tensão dialéctica dentro de limites socialmente suportáveis.

Nessa perspectiva, e segundo um critério de ‘bom senso’, uma dessas regras será a de que se não se pode impedir a diversidade de opiniões/soluções relativamente a todos os casos semelhantes, ao menos pode-se exigir coerência interna relativamente ao mesmo caso singular.

 Da aplicação dessa regra de ‘bom-senso’ surgiu, em termos jurídicos, o instituto do caso julgado segundo o qual se proíbe aos tribunais voltarem a apreciar a causa, quer contrariando quer confirmando a decisão anterior (efeito negativo – excepção de caso julgado) e se lhes impõe o respeito pelo conteúdo da decisão transitada nas decisões posteriores (efeito positivo – autoridade de caso julgado).

 De entre os temas complexos, que vem sendo de há muito debatido, com variadas concepções e teorias e com particulares dificuldades na sua aplicação prática encontra-se o conceito de ‘causa de pedir’; não será, por isso de estranhar que perante cada situação concreta possam surgir diversos entendimentos.

 O que a simples regra de ‘bom senso’ rejeita é que o entendimento que venha a ser adoptado possa ser arbitrariamente descartado em favor de outro entendimento; ou seja, e dito de outra forma, exige-se que uma vez adoptada uma determinada posição ela se mantenha como definitivamente adoptada, independentemente da mudança de decisores e das opiniões individuais destes (ainda que, porventura, mais bem fundadas ou doutrinariamente mais correctas).

 No particular caso dos autos temos que em anterior processo (120743/15….) entre as mesmas partes, com idêntico pedido, que tinha por base a mesma situação jurídica (utilização no mesmo período temporal de determinado cartão de crédito atribuído com base num contrato de utilização de cartão de crédito) não foi autorizada a peticionada alteração da data da celebração do referido contrato por se entender que o pretendido “consubstanciava uma verdadeira alteração da causa de pedir”.

 Porque tal decisão veio a transitar ficou definitivamente decidido nesse processo que a data do contrato era elemento essencial integrador da causa de pedir relativamente à situação jurídica em apreço.

 E na sequência desse entendimento veio a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente na medida em que não foi demonstrada a celebração do contrato de utilização de cartão na data invocada, sendo estranho ao objecto do processo, porque integradora de diferente causa de pedir, a possibilidade de esse contrato ter sido celebrado numa outra data.

 Tal razão de decidir resulta claramente das seguintes passagens da referida sentença: “não foi junto aos autos qualquer acordo subscrito pela autora e réu datado de 08/03/1996, tendo sido pela autora junto aos autos um escrito particular datado de 31/10/1988 (cf. fls. 28), o qual, conforme já decidido, não constitui a causa de pedir da presente ação, não sendo, por isso, objeto dos presentes autos”, “o presente litígio circunscreve-se a um alegado contrato de utilização de cartão de crédito, celebrado entre autora e réu no dia 08/03/1996, através do qual foi atribuído um cartão de crédito ao réu, que o usou para proceder à aquisição de bens e/ou serviços e ao levantamento de numerário, no valor total de € 10 033,65”, “porém, a autora não logrou provar, como lhe competia, os factos constitutivos do direito que se arroga nos presentes autos (cf. artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil), o que determina a improcedência da sua pretensão”.

  Se é certo que a decisão de não admissão da alteração da data do contrato com base em que tal consistia numa alteração da causa de pedir, porque sobre questão incidental de natureza processual, tem a sua força obrigatória limitada ao processo onde foi proferida (artigos 91º, nº 2, e 620º do CPC), não é menos certo que a consideração da data do contrato como elemento essencial integrador da causa de pedir foi assumida como elemento essencial da delimitação do objecto da acção, constituindo um fundamento essencial da decisão proferida e, consequentemente, integra o caso julgado formado na sentença que julgou a acção improcedente. Nessa sentença julgou-se a pretensão do autor improcedente porque não provou a celebração do contrato na data que indicou, sendo essa data que determina o objecto do processo.

  Ora a autoridade desse caso julgado impõe aos tribunais que respeitem o nele decidido – a acção improcede porque não demonstrou a celebração do contrato na data que indicou - nas acções posteriores em que esteja em causa a mesma situação jurídica. Daí que esteja vedado na presente acção – em que entre as mesmas partes se formula idêntico pedido, agora invocando um contrato celebrado numa outra data – decidir-se que estamos perante uma repetição da causa por ocorrer identidade de causa de pedir.

 Conclui-se, assim, não ser a decisão recorrida passível de censura.


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 Censurável afigura-se-nos o comportamento processual do Autor.

 As partes estão vinculadas ao dever de boa-fé processual; a adoptar uma conduta proba e leal, onde não têm lugar a contradição, a incoerência e a incongruência.

 Ora é manifesto que o Autor se afastou desse padrão comportamental ao arbitrariamente e oportunisticamente, com o fito de tornar mais difícil a posição da contraparte e entorpecer a marcha do processo, vir defender uma coisa e o seu contrário.

Com efeito, na anterior acção o Autor opôs-se à pretendida alteração da alegada data do contrato porquanto tal alteração consubstanciava uma alteração do objecto do processo (cf. o seu requerimento de 12ABR2016, Ref.ª …065, que constitui folhas 68-69 do processo, em particular os seus pontos 1º e 9º).

 Já no presente processo – em que a Ré intenta fazer valer a mesma pretensão, agora invocando a celebração do contrato de utilização de cartão de crédito numa outra data – vem invocar a excepção de caso julgado dado haver identidade de causa de pedir, do objecto do processo.

  Temos, pelo exposto, que o Autor incorreu em litigância de má-fé, devendo ser sancionado nos termos do art.º 542º do CPC.

  No entanto, porque se trata de uma sanção, importa assegurar o exercício do direito de defesa.


V – Decisão

Termos em que:

 - se nega a revista, confirmando a decisão recorrida;

  - se concede ao Autor / Recorrente o prazo de 10 dias para se pronunciar sobre a condenação como litigante de má-fé.

Custas, da apelação e da revista, pelo Recorrente.                                                                                  

Lisboa, 23SET2021

Rijo Ferreira (relator)

[Com voto de conformidade dos Exmos. Juízes Conselheiros Adjuntos,

conforme o disposto no art.º 15º-A do DL 10-A/2020, 13MAR, com

a redacção introduzida pelo DL 20/2020, 01MAI]

Cura Mariano

Fernando Baptista