Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A1318
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ALVES VELHO
Descritores: ESCRITA COMERCIAL
FORÇA PROBATÓRIA
Nº do Documento: SJ200306030013181
Data do Acordão: 06/03/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 8187/02
Data: 11/28/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - "A" e "B" intentaram acção declarativa, com processo ordinário, contra "C", pedindo a condenação desta a pagar à 1.ª Autora a quantia de esc. 37 721 103$00 e à 2.ª a de esc. 3 720 438$00, ambas acrescidas de juros vencidos e vincendos desde 31/10/92.
Para tanto alegaram, em síntese, que entre a A. "A" e a Ré foi celebrado e vigorou um contrato de concessão, nos termos do qual aquela fornecia a esta peças e viaturas, que facturava e debitava, creditando os pagamentos que a Ré ia fazendo. A A. "A" cedeu à "B" créditos emergentes das ditas facturas, detendo ambas sobre a "D" os créditos - saldos credores - peticionados.

A Ré impugnou a existência dos saldos reclamados pelas Autoras e alegou o pagamento das dívidas que teve para com elas, quer provenientes de facturas, quer de avisos de pagamento.

A final, a acção foi julgada improcedente, decisão que a Relação manteve.

Continuando inconformadas, as Autoras pedem revista visando a alteração da matéria de facto.
Para o efeito, verteram nas conclusões:
- Cada um dos negócios celebrados entre AA. e R. está representado pelas 13 facturas e 4 notas de débito;
- Cada uma das facturas identifica a mercadoria, bem como o respectivo preço e contém a declaração de que deve ser pago à B;
- Quer as AA., quer a R. são comerciantes;
- Os documentos justificativos gozam de força probatória especial, reconhecida no art. 44.º do C. Comercial e 376.º-1 C. Civil;
- Os extractos de conta contabilísticos juntos reflectem as relações comerciais entre as partes;
- O laudo do perito confirmou a evolução da conta corrente contabilística entre AA. e R. e, consequentemente, a resposta aos quesitos 6.º a 10.º só poderia ter sido "provados";
- Toda a prova produzida nos autos, nomeadamente a documental, legitima a condenação da Ré nas quantias peticionadas;
- Os documentos juntos pelas AA. na petição e na réplica não foram impugnados nem foi arguida a sua falsidade pela R.;
- Tais documentos fazem, portanto, prova plena relativamente às declarações deles constantes, não sendo admissível prova testemunhal em contrário, nem tendo sido efectuada qualquer outra prova que possa impedir o mencionado efeito probatório;
- Razão pela qual deverá ser alterada a resposta dada pelo Tribunal aos quesitos 1.º a 10.º, dando-os como provados na sua totalidade.
- Foram violados os arts. 342.º-1, 374.º, 376.º, 393.º e 394.º C. Civil e o art. 44.º C. Comercial.

A Recorrida não ofereceu resposta.

2. - A questão a decidir é apenas a de saber se a matéria de facto, nos termos em que vem fixada pelas instâncias, pode ser modificada, mediante alteração das respostas aos quesitos 1.º a 10.º.

3. - Decidiu-se no acórdão recorrido que as respostas agora novamente postas em causa não poderiam ser alteradas por não ocorrer nenhuma das hipóteses contempladas nas alíneas do n.º 1 do art. 712.º CPC.

No que respeita ao objecto do recurso de revista, dele estão excluídos o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, estando vedada ao Supremo a alteração da decisão da 2.ª instância, salvo havendo ofensa duma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de certo meio de prova.

Não se invoca, nem há, preceito que, relativamente à factualidade dos autos exija formalidade alguma ad substantiam.

Trata-se, então, de averiguar se foi violada norma que fixe a algum dos meios de prova utilizados força probatória que tenha sido preterida ou desconsiderada.


Vejamos.

4. - Os documentos - facturas e notas de débito - são documentos particulares, com a força probatória que lhes é reconhecida no art. 376.º-1 e 2 C. Civil: - Quando não sejam impugnadas pela parte contra quem são apresentados, a letra e assinatura deles constantes consideram-se verdadeiras e reconhecida a autoria do documento, fazendo prova plena quanto às declarações atribuídas aos seus autores, considerando-se provados os factos contidos nessas declarações na medida em que forem contrários aos interesses do declarante.
Consequentemente, as declarações, cuja força probatória está ligada ao instituto da confissão - as declarações que valem são as contrárias aos interesses do autor do escrito e sujeitas ao princípio da indivisibilidade -, não valem a favor do seu autor se consistirem na constituição de direitos a seu favor por mera declaração sua e só a parte contra quem o documento é apresentado pode prevalecer-se da prova desses factos.
Não fora esse o regime legal e «cada um poderia desfrutar os bens, direitos ou vantagens jurídicas que lhe aprouvesse» (M. ANDRADE, "Noções Elem. de Processo Civil", 232).

A Ré não impugnou, nem tinha que impugnar a letra e a assinatura dos documentos particulares de que não era autora e cuja autoria não lhe era atribuída. Impugnou, sim - art. 1.º da p.i. -, a exactidão dos montantes e saldos que, com base no conteúdo desses documentos, as AA. dela reclamaram.
Daí a quesitação desse conteúdo, matéria sobre a qual não incidiram reclamações e foi requerida e produzida, nomeadamente pelas AA., prova pericial e testemunhal, o que tudo, face à actual tese da Recorrentes, integraria uma sucessão de actos inúteis e proibidos por lei - arts. 511.º, 646.º-3, 653.º-2, todos do CPC (na redacção aplicável) e 393.º-2 C. Civ..

5. - A Recorrente invoca ainda a seu favor o regime previsto no n.º 2 do art. 44.º C. Comercial e a força probatória especial que aí se atribui aos livros de escrituração comercial devidamente arrumados, força probatória que não teria sido considerada.

Prevê-se ali, efectivamente, uma hipótese especial relativamente à regra do n.º 1 do artigo, que se limita a respeitar e reiterar ao princípios consignados no art. 376.º C. Civil de que os escritos particulares não fazem prova a favor do seu autor.

Agora, no n.º 2, considera-se que se os livros estão devidamente arrumados, isto é, se foram observadas todas as regras legais relativamente à escrituração, dando a conhecer de forma clara todas as operações comerciais da empresa, então os assentos «fazem prova em favor dos seus respectivos proprietários, não apresentando o outro litigante assentos opostos nos mesmos termos ou prova em contrário».
Quando assim seja, cede o princípio de que ninguém pode fazer prova a seu favor - o que é consequência da função específica atribuída aos livros dos comerciantes, cuja existência a lei lhes impõe, "precisamente para criar uma prova pré-constituída" (P. COELHO, "Lições de D.to Comercial - Obrigações Mercantis em Geral", I, 70) -, ficando estabelecida uma presunção legal de veracidade ilidível pela apresentação de assentos opostos em livros também regularmente arrumados ou por outra prova em contrário.

Ora, se assim é, então, a escrituração comercial, mesmo regularmente arrumada, não goza, em caso algum, de força probatória plena, o que também emerge do que se dispõe no art. 380.º C. Civil (cfr. F. OLAVO, "D.to Comercial", I, 366).

Enquanto presunção, impende sobre a parte que dela pretende beneficiar, ou seja, beneficiar da prova do facto presumido, alegar e provar o facto que lhe serve de base.
Vale isto por dizer, in casu, que, para efeito de utilização como meio de prova, deveriam as ora Recorrentes ter invocado e declarado pretenderem fazer uso da "escrituração", alegando e demonstrando a sua regular arrumação (facto que serve de base à presunção), a fim de colocarem a parte contrária na situação prevista na hipótese que invocam, a qual pressupõe sempre a escrita das AA. regularmente arrumada.

Como nada disso se verificou, afigura-se-nos que não só, na medida em que estabelecem presunções, não são invocáveis as normas do art. 44.º C. Comercial, como também não há qualquer fundamento legal para que a escrita das Autoras prevaleça sobre a da Ré que, com ou sem divergências, se não presume não igualmente arrumada.

6. - Não merece, assim, o acórdão da Relação a censura que lhe vem dirigida por, designadamente ao abrigo do disposto na al. b) do art. 712.º- 1 CPC, não ter alterado matéria de facto que a 1.ª instância fixara, pois que não foi desconsiderada a força probatória atribuída pela lei - arts. 376.º C. Civil e 44.º C. Com. - aos documentos juntos com os articulados.

7. - Termos em que se nega a revista, com custas a cargo das Recorrentes.

Lisboa, 3 de Junho de 2003
Alves Velho
Moreira Camilo
Lopes Pinto