Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
99S342
Nº Convencional: JSTJ00040225
Relator: MANUEL PEREIRA
Descritores: DESPEDIMENTO COM JUSTA CAUSA
DEVER DE LEALDADE
INDEMNIZAÇÃO AO LESADO
RECONVENÇÃO
Nº do Documento: SJ200005030003424
Data do Acordão: 05/03/2000
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 1887/99
Data: 06/23/1999
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Área Temática: DIR TRAB - CONTRAT INDIV TRAB.
DIR CIV. DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: LCT69 ARTIGO 82.
CPT99 ARTIGO 33.
LOTJ77 ARTIGO 66. LOTJ87 ARTIGO 64 P.
LOTJ99 ARTIGO 85 O P. CCIV66 ARTIGO 483 N1 ARTIGO 562 ARTIGO 563 ARTIGO 564 N1 ARTIGO 785 ARTIGO 854 ARTIGO 855 N2.
Sumário : I- Se, ao celebrarem o contrato de trabalho, as partes acordaram, além do mais, em que A. (trabalhadora) haveria um carro da empresa no valor de 4000000 escudos e que a R. forneceria um cartão de crédito para pagar a gasolina para viajar dentro de Portugal a trabalhadora utilizou o veículo até ser despedida, ao longo de mais de quinze meses, sem oposição da R. que pagava o combustível, o uso de tal viatura preenchia a retribuição da trabalhadora.
II- Apesar de não ter havido despacho judicial a admitir o pedido reconvencional, ele foi considerado admissível se foram levados à especificação factos que apenas interessavam ao julgamento de tal pedido, pelo que não podia o mesmo ser rejeitado, a final, com o fundamento de ele ser inadmissível.
III- Se a trabalhadora (A.), ao serviço da empregadora (R.) realizou com terceira entidade, mas ao serviço e em nome da R., um contrato de fornecimento de material desta, e se, após ter sido despedida pela R., concretiza o aludido contrato de fornecimento com a terceira entidade, mas já em nome e ao serviço de uma sua e outra entidade empregadora, tal atitude justifica a perda de confiança na trabalhadora por parte daquela primeira empregadora.
IV- Os lucros que a primeira entidade empregadora deixou de auferir por aquele negócio, projectado mas não concretizado pelos referidos motivos, podem fundamentar pedido reconvencional (indemnização) na acção que a trabalhadora moveu à empregadora por virtude do seu despedimento.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:
A, demandou no Tribunal do Trabalho de Lisboa, em acção com processo ordinário, a Ré B, com sede em Atalaia de Cima, Sintra, pedindo que seja condenada a pagar-lhe a quantia que já totaliza 10210159 escudos, acrescida de comissões em dívida e cujos documentos estão na posse da Ré, e bem assim das prestações pecuniárias que normalmente auferiria até à data da sentença, com juros compensatórios da desvalorização da moeda e da inflação, à taxa legal de 10% ao ano, a contar da propositura da acção.
Alegou, no essencial, que foi contratada pela ré em 1 de Março de 1995, como "Sales Executive", cuja actividade consistia, principalmente, na venda de produtos informáticos Digital recondicionados, que a ré comercializa.
Sem precedência do processo disciplinar, e sem que, existisse razão para tal, a Ré rescindiu o contrato de trabalho com a Autora, em 12 de Junho de 1996, configurando-se assim um despedimento nulo.
A Autora auferia mensalmente a quantia de 350000 escudos, mais 100000 escudos para despesas, e tinha também direito a comissões nas vendas que efectuasse, cabendo-lhe 2% aquando da entrega do equipamento e mais 2% após o pagamento, recebendo ainda 1000 escudos a título de subsídio de alimentação, por dia de trabalho. Configurando remuneração complementar, a Autora tinha direito à utilização de veículo automóvel, incluindo nos fins de semana, férias e fora do horário de trabalho, sendo todas as despesas suportadas pela Ré, equivalendo tal benefício a montante não inferior a 80000 escudos mensais.
Assim, a Autora auferia o salário fixo mensal de 552000 escudos, tendo auferido nos últimos doze meses, em média, 543393 escudos mensais de comissões.
Optando pela indemnização de antiguidade, em detrimento da reintegração, e considerando que lhe são devidos 2314588 escudos de comissões, as férias e subsídios de férias vencidos em 1 de Janeiro de 1996 e proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal pelo trabalho prestado em 1996, e que estão vencidas, desde o despedimento, retribuições no montante de 1099393 escudos, alcança-se assim a quantia peticionada.
Contestou a Ré aduzindo não ter despedido a Autora em 12 de Junho de 1996, antes a suspendeu de funções naquela data, quando lhe entregou nota de acusação da qual constavam os factos cometidos pela Autora e que conduziram ao despedimento com justa causa, comunicado por carta de 7 de Janeiro de 1997.
Com efeito, a Autora exercia actividade extra e concorrente com a actividade comercial da Ré, passando a exercer as funções de Directora Comercial da C, constituída em Agosto de 1996.
A Autora contactou diversos clientes da Ré no sentido de passarem a ser clientes da C, o que aconteceu.
A Ré apenas deve à Autora as retribuições vencidas desde a data em que foi dispensada do exercício de funções e até à data do despedimento, e respectivas férias, subsídio de férias e subsídio de Natal.
A Autora auferia o salário líquido mensal de 249876 escudos, já incluído o subsídio de alimentação, e recebia, a título de ajudas de custo, 100000 escudos mensais.
A utilização do automóvel não configura remuneração complementar, pois destinava-se a serviço e não também para uso particular da Autora, sendo que apenas por tolerância da Ré a Autora podia servir-se do veículo nas suas deslocações particulares.
Quanto às comissões, não integravam a remuneração da Autora, tratando-se antes de "prémio" pela produtividade da trabalhadora, acontecendo que as dívidas à Autora perfazem apenas 1228788 escudos.
Relativamente às retribuições, a entender-se que são devidas, haverá que deduzir ao respectivo montante o que a Autora auferiu ao serviço da
C.
Em reconvenção, pede a condenação da Autora a pagar-lhe a indemnização de 13628080 escudos, a título de indemnização por lucros cessantes, correspondendo 2428080 escudos ao prejuízo sofrido por a Autora ter desviado para a C o fornecimento de um equipamento de informática "Lotus Notes" que a Ré se propusera vender à empresa D, e 11200000 escudos ao lucro que a Ré deixou de auferir em vendas a clientes que perdeu devido ao comportamento desleal da Autora; em execução de sentença far-se-à a compensação entre o valor devido pela Ré à Autora e o crédito da Ré sobre a Autora.
A Autora não respondeu.
Condensada, instruída e julgada a causa, proferiu-se sentença a condenar a Ré a pagar à Autora:
- 1220788 escudos a título de comissões;
- as retribuições que deixou de auferir entre 11 de Junho de 1996 e 1 de Agosto do mesmo ano, deduzidos da quantia de 349876 escudos - a Autora desistira do pedido relativamente às retribuições vencidas a partir de 1 de Agosto de 1996;
- 1060000 escudos de retribuição de férias vencidas em 1 de Janeiro de 1996 e de subsídio de férias respectivo;
- 265000 escudos de subsídio de Natal de 1996;
- 530000 escudos de retribuição de férias e de subsídio de férias referentes ao trabalho prestado em 1996;
- 1050000 escudos de indemnização de antiguidade;
- juros a partir de 11 de Julho de 1996.
No mais, improcedeu a acção, como improcedente foi julgada a reconvenção, sendo a Autora absolvida do pedido reconvencional na consideração de que este não é admissível. Como a reconvenção não foi liminarmente rejeitada, impunha-se julgá-la improcedente.
Apelou a Ré, impugnando o decidido na parte em que considerou que a verba correspondente ao benefício da recorrida com o uso pessoal da viatura integrava a retribuição da Autora, e no tocante à improcedência do pedido reconvencional, defendendo a sua admissibilidade e procedência.
O Tribunal da Relação de Lisboa, pelo acórdão de fls. 398 e seja, negou provimento à apelação.
A Ré, de novo inconformada, recorreu de revista, tendo assim concluído a sua alegação:
a) A retribuição é um conjunto de valores, expressos ou não em moeda, a que o trabalhador tem direito, por título contratual e normativo, correspondentes a um dever da entidade patronal.
b) Nos termos do disposto nos artigos 82 n. 1 e 87 da LCT, "a atribuição a um trabalhador de veículo automóvel, com despesas de manutenção e gasolina a cargo da entidade patronal, para o serviço e uso particular, constitui ou não retribuição de trabalho conforme se provar que essa atribuição é feita com carácter obrigatório ou como mera liberalidade concedida com animus donandi. O ónus da respectiva prova compete ao trabalhador" Acs. STJ de 29 de Janeiro de 1988 e 11 de Dezembro de 1988, in AD 317-695).
c) A recorrida não logrou provar que a utilização da viatura, que lhe foi atribuída pela recorrente, nas suas deslocações particulares correspondia a um direito convencionado, ou cláusula de contrato de trabalho que ligava as partes entre si. Sendo que o ónus da respectiva prova competia à ora recorrida (artigo 342 n. 1 do CC).
d) O n. 5 do doc. 2 junto à p.i. apenas diz que: "Haverá um carro da empresa no valor de 4000000 escudos (Volkswagen Golf ou similar)".
e) O contrato de trabalho nada diz sobre o uso pessoal da viatura e à recorrida cabia o ónus da prova.
f) O acórdão da Relação, ao entender que a verba correspondente ao benefício da recorrida com o uso pessoal da viatura é parte da sua remuneração ou retribuição, violou o disposto nos artigos 342 n. 1 do CC, e 82 n. 1 e 87 da LCT e fez incorrecta aplicação do n. 3 do artigo 82 da LCT.
g) Deveria o acórdão ter revogado a sentença nos termos do exposto, não incluindo na retribuição da Autora a verba correspondente ao benefício do uso pessoal do veículo automóvel.
h) A recorrente deduziu reconvenção, pedindo que a recorrida fosse condenada a pagar-lhe a quantia de 13628080 escudos a título de indemnização por lucros cessantes que deixou de auferir pelo facto de a recorrida, no exercício de actividades concorrentes na empresa C, ter desviado clientes da Ré entidade patronal.
i) A recorrente requereu, expressamente, que fosse feita a compensação entre o seu crédito sobre a recorrida e o seu débito à recorrida (cfr. artigo 127 e alínea f) do pedido, da contestação (reconvenção).
j) A decisão do tribunal da 1. instância admitiu liminarmente a reconvenção e deu como provados os factos que incluiu nas alíneas q), r) s) e t) da Especificação.
l) A sentença julgou improcedente a reconvenção com o fundamento de que o pedido reconvencional não obedece a nenhum dos requisitos exigidos pelo artigo 33 do CPT.
m) O acórdão confirmou a sentença, não atendendo o pedido reconvencional, mesmo que a título de compensação, por:
1) não emergir de facto jurídico que serve de fundamento à acção;
2) os créditos a compensar pedidos em reconvenção terem surgido em data posterior à data da cessação laboral e não se relacionarem com questões laborais, nos termos do disposto no artigo 38 n. 1 da LCT;
mas tal entendimento não tem o mínimo de apoio legal - n. 2 do artigo 9 do CCIV.
n) É aplicável ao caso dos autos a parte final do n. 1 do artigo 33 do CPT, uma vez que a Ré declarou compensar os créditos.
o) O Disposto no n. 1 do artigo 33 do CPT, conjugado com o disposto na alínea p) do artigo 85 da actual Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, Lei 3/99, admite a reconvenção sem qualquer espécie de restrições desde que com ela se pretenda obter a compensação, e a recorrente, como disse, declarou expressamente que pretendia que fosse feita a compensação.
p) Ao entender que não deve ser admitido o pedido reconvencional, o acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 33 n. 1 do CPT, 85 alínea p) da actual LOTJ, Lei 3/99, artigo 64 alínea p) da anterior LOTJ, Lei 38/87, e n. 2 artigo 9 do CCIV.
q) Os créditos da Ré resultam da violação expressa, pela recorrida, dos deveres de lealdade e de não concorrência, acordados e estabelecidos nos ns. 4 e 5 do contrato de trabalho, celebrado entre ambas as partes e junto à petição como doc. n. 1 (cfr. artigos 20 n. 1 e 36 da LCT).
r) E foi porque a recorrida violou os deveres de lealdade e de não concorrência que a Ré perdeu clientes, designadamente as empresas E, F e D, daí resultando elevados prejuízos patrimoniais - valor correspondente ao pedido reconvencional.
s) Entende ainda o acórdão recorrido que os créditos a compensar, pedidos em reconvenção, terão de ser os existentes à data da cessação da relação laboral, entendimento que, assentando no preceituado no n. 1 do artigo 38 do DL 49408, faz incorrecta aplicação do preceito, pois este respeita aos créditos derivados directamente das relações essenciais do trabalho e não aos créditos reconvencionados.
t) O regime prescricional a aplicar aos créditos reconvencionados é o da lei geral e nunca o regime prescrito no citado artigo 38 n. 1 da LCT.
u) Como a causa é de valor superior à alçada do tribunal recorrido e como a reconvenção foi, expressamente, formulada para efeitos de compensação, deveria o acórdão ter dado provimento ao recurso e, consequentemente, revogado a sentença, substituindo a decisão por outra que admitisse o pedido reconvencional.
v) Consequentemente, deve revogar-se o acórdão recorrido e decidir-se que não integra a retribuição da recorrida a atribuição da viatura, admitindo-se o pedido reconvencional, com as legais consequências.
A recorrida não ofereceu alegações.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de não ser concedida a revista.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
O acórdão em recurso considerou fixada a seguinte factualidade:
1) A Autora é licenciada pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa.
2) A Ré dedica-se à comercialização de equipamentos informáticos.
3) A Autora foi contratada pela Ré em 1 de Março de 1995, como "Sales Executive", mediante o salário bruto mensal de 350000 escudos, como consta a fls. 8 e 9, consistindo essa actividade essencialmente, na venda de produtos informáticos "Digital" recondicionados que a Ré comercializava e pressupondo a mesma actividade, a prospecção do mercado, detecção de necessidade por parte dos clientes ou potenciais clientes, estudo da melhor solução informática (tendo em consideração as ofertas da concorrência) e apresentação subsequente de propostas com vista à satisfação dessas mesmas necessidades.
4) Ficou ainda acordado que a Autora receberia, no final de cada ano civil, 4% de comissão nas vendas que efectuasse - 2% com a emissão da factura e 2% com o pagamento -, 1000 escudos de subsídio de almoço por cada dia de trabalho num total de 11 meses por ano e um pré-pagamento de 100000 escudos por cada mês x 14; teria um carro da empresa, para sua utilização, no valor de 4000000 escudos, fornecendo a Ré um cartão de crédito para a Autora pagar a gasolina.
5) A Autora utilizava o referido carro em deslocações de serviço e nas suas deslocações particulares.
6) No exercício das suas funções, a Autora tinha acesso ao ficheiro de clientes que estavam a seu cargo e ao arquivo geral.
7) Em 12 de Junho de 1996, a Ré entregou à Autora a carta que se encontra traduzida a fls. 15 e 16 que a informa que fica dispensada das funções que vinha exercendo, pelas seguintes razões:
a) nos últimos seis meses tem constantemente chegado atrasada de manhã sem nenhuma razão apesar dos avisos feitos;
b) não está a atingir o Budget;
c) falta de controlo nas contas;
d) tem actividades profissionais fora da B, sem ter pedido permissão;
e) não tem espírito de equipa;
f) pediu informação confidencial da empresa numa diskette e sem razão.
8) Nessa mesma carta a Ré refere que as dívidas pendentes serão calculadas durante as próximas duas semanas e os pagamentos efectuados depois de um período de seis meses.
9) Aquando da entrega da carta referida em 7), a Ré pediu à Autora que devolvesse as chaves do escritório, pedido que a mesma logo satisfez e pediu-lhe ainda que devolvesse o veículo automóvel e o telemóvel que tinha na sua posse, o que a Autora veio a fazer no dia 14 de Junho de 1996, tendo-lhe sido nesta data entregue uma caixa com bens pessoais e documentação que lhe pertencia ou dizia respeito.
10) No final do mês de Junho de 1996, a Ré depositou na conta bancária da Autora a quantia de 349876 escudos, sendo 249876 escudos relativos ao vencimento e subsídio de alimentação e os restantes 100000 escudos relativos a ajudas de custo.
11) Em 9 de Maio de 1996, a Ré instaurou à Autora processo disciplinar, nos termos que constam do documento cuja cópia está junta a fls. 77 e 78.
12) Na sequência desse processo disciplinar, por carta datada de 7 de Janeiro de 1997, recebida pela Autora no dia 8 de Janeiro de 1997, a Ré informou a Autora que decidira proceder ao seu despedimento, nos termos e com os fundamentos da decisão cuja cópia está junta a fls. 80 a 82.
13) No ano de 1995, a Ré pagou à Autora, a título de comissões a quantia de 4326348 escudos.
14) A C dedica-se, desde Agosto de 1996, à comercialização de soluções a nível de hardware e de software.
15) A Autora exerce funções de Directora Comercial da C.
16) No âmbito das funções referidas em 15), a Autora vendeu a D o equipamento informático que esta lhe tinha solicitado enquanto trabalhava na Ré e a que se reporta a proposta cuja cópia está junta a fls. 89 a 91, no valor de 6070200 escudos.
17) Nos primeiros seis meses de 1996, a E e F compraram à Ré equipamento informático no valor de 3100000 escudos.
18) Por sugestão da Autora no exercício das funções referidas em 15), a E e a F passaram a ser clientes da C.
19) A Ré tem lucro de 40% sobre cada factura.
Estes os factos, de resto inquestionados, a que o Supremo deve acatamento e aos quais lhe compete aplicar o regime jurídico que se mostre adequado (artigo 85 n. 1 do CPT; artigo 729 n. 1 do CPC).
Colocam-se na revista duas questões, as mesmas que foram objecto do recurso de apelação, e que são as seguintes:
a) a de saber se a utilização pela Autora da viatura da Ré constitui um valor que integrava a retribuição, em termos de o montante que as instâncias lhe fizerem corresponder dever ser computado na remuneração mensal a que a trabalhadora tinha direito, e consequentemente, nos subsídios que a Ré foi condenada a pagar-lhe;
b) a outra prende-se com o pedido reconvencional, insistindo a recorrente na tese de que há que conhecer de tal pedido, julgando-o procedente.
Vejamos.
Quanto à primeira questão, julgamos que as instâncias decidiram com acerto.
Com efeito, "se ao celebrarem o contrato de trabalho, as partes acordaram, além do mais, em que a Autora haverá um carro da empresa no valor de 4000000 escudos (Volksvagem Golf ou similar) e que a Ré fornecerá um cartão de crédito para pagar a gasolina para viajar dentro de Portugal - documento de fls. 11 traduzido a fls. 12.
Nada nos autos aponta no sentido de que havia condicionamentos à utilização do veículo pela Autora, nomeadamente que apenas podia servir-se dele no desempenho das suas funções, portanto em situações que pudessem aproveitar à Ré - tal não resulta do contrato nem da apurada factualidade.
Ora, se sabemos que a Ré tinha o veículo confiado à Autora, custeando, nomeadamente, as despesas de combustível, se a trabalhadora utilizou plenamente o veículo até ser despedida, ao longo de mais de 15 meses, sem demonstrada oposição da Ré, a conclusão das instâncias de que o uso da viatura preenchia a retribuição, atento o disposto no artigo 82 do Regime Jurídico aprovado pelo DL 49408, de 24 de Novembro de 1969, LCT, mostra-se por inteiro correcta.
Se os termos do contrato já apontavam no sentido de que o uso da viatura correspondia a uma parcela das vantagens económicas que a Autora retirava como contrapartida da actividade desenvolvida sob a autoridade e direcção da Ré, a verdade é que uma prática continuada de mais de 15 meses a que a Ré, desde sempre e sem reparo, assim, não pode deixar de ser entendida como demonstrativa de que a utilização da viatura pela trabalhadora integrava a contrapartida do trabalho prestado.
Julgamos, assim, que à luz do n. 1 do artigo 82 da LCT, o valor de uso do veículo, traduzido em montante que a recorrente não questionou, é elemento integrador da retribuição da Autora, tornando desnecessário o recurso à presunção do n. 3 do preceito, que de outro modo teria plena aplicação, conduzindo ao mesmo resultado.
Portanto, no domínio apreciado, é de negar a revista.
Vejamos agora a questão ligada ao pedido reconvencional, que foi julgado improcedente, como se disse, sendo a Autora dele absolvido.
Ainda que não haja sido proferido despacho a admitir o pedido reconvencional, certo é que a Mma. Juíza o considerou admissível na medida em que levou à especificação factos que apenas interessavam ao julgamento de tal pedido, a significar, obviamente, que se iria conhecer dele.
Se o fundamento de que se socorreu para absolver a Autora foi a inadmissibilidade da reconvenção, por haver considerado que a hipótese não cabia na previsão do artigo 33 do CPT, é seguro, parece-nos, que a absolvição do pedido reconvencional não foi o efeito adequado à inadmissibilidade de um tal pedido, pois que não chegou a ser apreciado o respectivo mérito.
Focado este pormenor, julgamos, contrariamente ao decidido, que é de conhecer da reconvenção.
Dispõe assim o artigo 33 do CPT:
"1. A reconvenção é admissível quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção e no caso referido na alínea p) do artigo 66 da Lei 82/77, de 6 de Dezembro desde que, em qualquer dos casos, o valor da causa exceda a alçada do tribunal.
2. Não é admissível a reconvenção quando ao pedido do réu corresponda espécie de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor; quando a diferença for unicamente de forma, e admissível a reconvenção".
Inexiste no caso o obstáculo à reconvenção previsto na 1. parte do n. 2 do preceito, certo que aos pedidos da Autora e reconvencional corresponde processo comum, declarativo, na forma ordinária.
Se no caso o pedido reconvencional não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção, ele encontra apoio na alínea p) do artigo 64 da Lei 38/87, de 23 de Dezembro, Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, preceito que corresponde à referida alínea p) do artigo 66 da Lei 82/77.
Definindo a competência dos tribunais de trabalho, aquele artigo 64 preceitua na alínea p) que compete àqueles tribunais conhecer, em matéria cível, das "questões reconvencionais que com a acção tenham as relações de conexão referidas na alínea anterior, salvo no caso de compensação, em que é dispensada a conexão" - nos termos da alínea o), os tribunais do trabalho conhecerão das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal seja directamente competente.
No caso, a Ré propõe-se operar a compensação, ou seja, fazer extinguir o seu débito à Autora, na medida em que fosse reconhecido, óbvio, com o crédito que sobre ela se arrojava e cujo reconhecimento, por isso, pedia, em termos de se declarar extinta a sua obrigação - a Ré reclamava um crédito de montante superior ao peticionado pela Autora (a disciplina da compensação contém-se nos artigos 847 e segs. do CCIV).
A natureza dos créditos reclamados não é impeditiva da respectiva extinção por compensação (artigo 853 do CCIV).
Acolheu o acórdão recorrido o entendimento de que os créditos a compensar através de reconvenção têm de existir à data da cessação da relação laboral, invocando em apoio de uma tal posição o disposto no artigo 38 n. 1 da LCT, que trata da prescrição dos créditos laborais.
Salvo o devido respeito, julgamos que do artigo 38 n. 1 da LCT não se pode extrair qualquer argumento que sirva a tese que se perfilhou - contempla disciplina específica, à margem á figura processual da reconvenção.
Ora, ao admitir que a compensação possa operar por via reconvencional e dispensar que o crédito do reconvinte respeite a uma relação jurídica conexa com uma relação de trabalho - é o que claramente resulta das citadas alíneas o) e p) do artigo 64 da Lei 38/87, que têm hoje correspondências em idênticas alíneas do artigo 85 da Lei 3/99, de 13 de Janeiro, Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais -, não aludindo ao momento constitutivo dos créditos objecto do pedido reconvencional, não encontramos na lei nada que possa levar á conclusão de que foi propósito do legislador limitar a compensação por via reconvencional aos créditos existentes à data da cessação da relação laboral.
Concluímos, assim, que a posição adoptada no acórdão recorrido não encontra fundamento legal, esquecendo as razões, nomeadamente de economia processual, que justificam a reconvenção, forma de num mesmo processo se solucionarem litígios recíprocos envolvendo as mesmas partes.
Portanto, a reconvenção é admissível, havendo que conhecer dela.
Pede a Ré a condenação da Autora no pagamento de quantias que diz traduzirem prejuízos já sofridos e outros que sofrerá nos próximos 5 anos mercê da perda de clientela por acção da Autora.
Com efeito, conhecedora da proposta de fornecimento de material informático a D, pois que a subscreveu quando ao serviço da Ré e em nome desta, a Autora fez venda desse material quando directora comercial da C, inviabilizando a venda pela Ré e com isso privando-a do lucro que obteria, 40% do preço; por outro lado, por sugestão da Autora, já directora comercial da C, tornaram-se clientes da nova entidade patronal as empresas E e F que antes foram clientes da Ré.
Quanto à perda destes clientes, e que se mostra provado não chega, como entendemos, para caracterizar uma actuação ilícita por parte da Autora.
Despedida pela Ré, a Autora procurou uma outra ocupação, como é plenamente normal. E mesmo que já tivesse em vista um outro trabalho, nada a obrigava a continuar vinculada à Ré, pondo ao dispor desta a sua actividade.
Introduzida num mercado muito específico e numa era de feroz concorrência - apercebemo-nos desta a cada momento -, é normal que a Autora haja desenvolvido os seus contactos junto de várias empresas, no sentido de as tornar clientes da C, a sua nova entidade patronal, e que algumas das empresas, fossem clientes da Ré.
A liberdade dos mercados não proíbe uma tal abordagem; o que proíbe são práticas desonestas na captação da clientela.
Desvinculada da Ré e prosseguindo um desempenho laboral semelhante ao desenvolvido ao serviço daquela, a actuação da Autora, virada para futuros negócios, não se caracteriza, neste aspecto, como ilícita - a todo o momento os clientes podem mudar de fornecedores, concretização de um mercado aberto à livre concorrência, em que cada operador não deixa de publicitar os seus produtos em termos de cativar a aquisição deles.
Diga-se que do contrato de trabalho que Autora e Ré subscreveram, documentado a fls. 6-9 e 11, com tradução a fls. 12, não resulta que a Autora, uma vez extinto o contrato, ficasse obrigada a não contactar os clientes da Ré de modo a não conseguir que, a partir de então, a nova entidade patronal passasse a fornecer-lhes produtos da actividade da Ré.
Consequentemente, na parte apreciada o pedido reconvencional não procede.
Já no tocante ao fornecimento, negociado pela Ré, através da Autora, com D, que não se concretizou por acção da Autora, a questão não se coloca nos mesmo termos.
Com efeito, a Autora teve intervenção activa, quando trabalhava sob a autoridade e direcção da Ré, nas negociações com D, subscrevendo o documento de fls. 89-91, proposta em que são indicados a natureza, condições e preço do material informático que a Ré se propunha fornecer à D.
É de todo evidente que à Ré interessava que se concretizasse a venda, que lhe proporcionaria uma muito significativa margem do lucro (40%).
Ora, se a actuação da Autora, nas negociações com a D, se fez no cumprimento das obrigações em que estava constituída para com a entidade patronal, se era remunerada pela Ré pela actividade desenvolvida, compreendendo-se nela aquelas negociações, julgamos que um elementar dever de lealdade, que nas circunstâncias não se pode considerar cessado com a extinção do contrato (ver artigo 20 n. 1 alínea d) da LCT), constituía obstáculo, até pelo acatamento de basilares e intuitivos princípios de boa fé, a que a Autora fizesse beneficiar a nova entidade patronal do trabalho que prestou à Ré e que esta lhe pagou, ao menos em larga medida.
Repare-se que, sendo a Autora licenciada pelo ISCTE, não lhe podia escapar que actuava ilicitamente e que ofendia legítimos interesses da Ré ao conseguir para a nova entidade patronal um fornecimento que tinha negociado para a Ré.
Decorre, assim, do disposto nos artigos 483 n. 1, 562, 563 e 564 n. 1, todos do CCIV, que a Autora tem de indemnizar a Ré pelos prejuízos causados, consistentes no benefício (lucro) que deixou de obter.
Para cálculo da dimensão do prejuízo há que atender ao documento de fls. 90, pois resulta dele que o preço total do material a fornecer pela Ré era de 5159670 escudos - não se considerou no facto do n. 16) que sobre os ali indicados 6070200 escudos incidia o desconto de 15%.
Assim, o lucro que a Ré deixou de obter foi de 2063868 escudos (40% de 5159670 escudos), nesta medida sendo de conceder a revista.
termos em que, concedendo parcialmente a revista, se acorda em condenar a Ré no pagamento à, Autora no pagamento à Ré da quantia de 2063868 escudos, que será imputada no pagamento dos juros devidos á autora à data em que foi notificada da contestação, e, no sobrante, no mais que a ré foi condenada a pagar à Autora artigos 854, 855 n. 2 e 785, todos do CCIV), mantendo-se, no mais, o decidido.
Custas na proporção do vencido.
Lisboa, 3 de Maio de 2000.
Manuel Pereira,
José Mesquita,
Almeida Deveza.