Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
188/20.4T8ADV.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
CAUSA DE PEDIR
PRINCÍPIO DA SUBSTANCIAÇÃO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
PEDIDO
ALTERAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR
ALTERAÇÃO DO PEDIDO
CONHECIMENTO OFICIOSO
Data do Acordão: 09/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Ao propor uma ação, o demandante formula uma pretensão fundada, por imposição de uma substanciação, numa causa de pedir que exerce a função individualizadora do pedido formulado, assim conformando o objeto do processo.

II. Essa causa de pedir é constituída pelos factos principais constitutivos da situação jurídica que o demandante pretende fazer valer como justificativa da pretensão deduzida, sendo a qualificação jurídica desses factos periférica à causa de pedir.

III. Este objeto inicial do processo, definido pelo pedido e respetiva causa de pedir, só pode vir a ser modificado, ampliado ou reduzido por iniciativa das partes ou do tribunal, nos termos e modos previstos e definidos na lei processual.

IV. Não o tendo sido e não se encontrando o tribunal perante situações que permitem o conhecimento oficioso de determinadas questões, o tribunal só pode ocupar-se das questões suscitadas pelas partes, ou seja só pode decidir sobre o mérito do pedido formulado, apreciando a causa de pedir que o individualiza, estando-lhe vedada a apreciação de qualquer outra causa de pedir que não tenha resultado das regras que permitem a modificação ou ampliação da causa de pedir original.

Decisão Texto Integral:

                                               *

I - Relatório

O Autor propôs ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra a Ré, alegando, em síntese, o seguinte:

- Autor e Ré acordaram, verbalmente, que aquele entregaria a esta a quantia de € 50.000,00, com a obrigação da Ré a restituir;

- Em execução do referido acordo e mediante instruções da Ré, o Autor, em 31-12-2012, transferiu da sua conta bancária, sedeada no Banco 1... com o n.º ...28, a quantia de € 50.0000, para a conta com o IBAN  ...17 da O... S.A.;

- A Ré utilizou essa quantia;

- No cumprimento da obrigação assumida, a Ré, em 12.03.2015, restituiu ao Autor a quantia de € 4.000,00;

- Apesar de interpelada, por diversas vezes, para restituir a quantia remanescente emprestada, a Ré não o fez.

- O contrato de mútuo celebrado é nulo por inobservância da forma legalmente imposta, estando o mutuário obrigado a restituir a quantia ainda não devolvida, ou seja € 46.000,00.

Concluiu, pedindo que se declare nulo o contrato celebrado entre as partes e se condene a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 46.000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação.

A Ré contestou, negando a versão dos factos alegada pelo Autor e alegando, em síntese, o seguinte:

- O Autor pediu-lhe um favor que consistiu na abertura de uma conta bancária em nome da Ré para ele próprio realizar movimentos bancários;

- No seguimento desse pedido, por iniciativa do Autor, foram abertas em nome da Ré no O... S.A., duas contas bancárias, uma em euros e outra em dólares;

- A Ré apenas movimentou as contas abertas na O... S.A. em três ocasiões, bem concretas, e sempre por indicação do Autor;

- A 12-03-2014, por indicação do Autor, a Ré deu ordem de transferência da quantia de 15.000,00€ para uma conta da Ré e da sua mãe na Banco 2..., tendo essa mesma quantia sido transferida, no dia 13-03-2014, por ordem da mãe da Ré, para uma conta titulada por ela, não sabendo a Ré o motivo ou a finalidade de tal movimento.

- No dia 01-09-2014 deu ordem de transferência do montante de 3.000,00 € para a suprarreferida conta da Banco 2..., tendo essa quantia sido levantada em numerário e entregue ao Autor.

- No dia 05-03-2015 foi dada nova ordem de transferência, por indicação do Autor, para a mesma conta da Ré e da sua mãe na Banco 2..., no montante de 367,69 € da conta em euros, e 7.785,82$, da conta em dólares, resultando, após câmbio, num crédito na conta de destino no montante de 7.394,74 €, tendo sido efetuada transferência de 4.000,00 € para a conta do Autor, na Banco 3... de ... e ....

- O remanescente destas últimas transferências foi utilizado pela Ré, em benefício do Autor e destinou-se a cobrir as despesas efetuadas pela Ré numa deslocação ao ..., a pedido do Autor, a fim de transportar uma encomenda a ser entregue a uma amiga ou parceira de negócios do Autor, em ....

- Os movimentos efetuados nas contas abertas na O... S.A., foram feitos em cumprimento de orientações dadas pelo Autor, relativamente a dinheiro que sempre foi dele, apesar de o mesmo se encontrar numa conta aberta em nome da Ré, a pedido dele.

Concluiu pela inexistência de qualquer contrato de mútuo com a consequente improcedência da ação e absolvição da Ré dos pedidos formulados.

A convite do tribunal, o Autor apresentou requerimento em que reduziu o pedido de pagamento de uma quantia de 46.000,00 € para € 43.000,00 € e aceitou a existência dos três movimentos bancários referidos pela Ré na contestação.

Foi proferido despacho admitindo a redução do pedido.

Realizou-se audiência de julgamento, tendo sido posteriormente proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo a Ré dos pedidos formulados.

Na sentença foram considerados provados os seguintes factos:

1. No final do ano de 2012, o Autor, que à data era companheiro da mãe da Ré e pai dos irmãos desta, solicitou à Ré um favor que consistia em que esta abrisse uma conta bancária na O... S.A. para permitir ao Autor a realização de movimentos bancários.

2. A Ré aceitou abrir a conta bancária referida em 1.

3. Na identificação do titular da conta bancária aberta pela Ré na O... S.A., consta o número de telemóvel do Autor e o endereço de correio eletrónico do Autor ....

4. A deslocação para a abertura da conta referida em 3. foi efetuada no automóvel do Autor.

5. Quando o Autor e a Ré chegaram às instalações da O... S.A., já ali se encontrava um funcionário conhecido do Autor com o contrato de abertura de conta pronto a assinar, que a Ré assinou sem discutir condições e sem solicitar cartões.

6. No dia 31.12.2012, o Autor transferiu da conta bancária sedeada no Banco 1... com o n.º ...28 a quantia de € 50.000,00 para a conta com o IBAN  ...17 da O... S.A..

7. A Ré era titular da conta com o n.º ...28 supra referida em 6., conjuntamente com o Autor.

8. Na sequência da transferência referida em 6., a conta bancária sedeada no Banco 1... com o n.º ...28 ficou com um saldo de € 40.871,98.

9. A ativação da conta bancária supra referida em 3. não foi realizada pela Ré.

10. A Ré só teve conhecimento da acivação da conta com a missiva para si endereçada pela O... S.A., datada de 19.02.2013.

11. A correspondência eletrónica dirigida pela O... S.A. à Ré era enviada para o endereço eletrónico do Autor.

12. Os códigos de acesso à plataforma electrónica O... S.A e à movimentação online da conta bancária foram enviados para o endereço de correio eletrónico do Autor.

13. A Ré nunca acedeu à conta bancária da O... S.A. a partir da plataforma O... S.A.

14. A Ré, por indicação do Autor, movimentou a conta aberta na O... S.A., em três ocasiões, a saber:

i. no dia 12.03.2014, deu ordem de transferência da quantia de € 15.000,00 para a sua conta na Banco 2... com o NIB ...11;

ii. no dia 01.09.2014, deu ordem de transferência do montante de € 3.000,00, para a sua conta na Banco 2... com o NIB ...11, quantia que levantou em numerário e entregou ao autor;

iii. no dia 05.03.2015, deu ordem de transferência para a sua conta na Banco 2... com o NIB ...11, do montante de € 367,69 da conta em euros e de $ 7.785,82 da conta em dólares, o que, após câmbio, perfez um crédito na conta destino no montante de € 7.394,74 tendo, tendo desse montante, efetuado uma transferência de € 4.000,00 para a conta do Autor no Banco 1... com o n.º ...28, da qual o Autor e a Ré eram titulares;

15. AA, mãe da Ré, cotitular da conta da ré sedeada na Banco 2... retirou a quantia de € 15.000,00 supra referida em 12., ponto i. dessa conta.

16. O remanescente da transferência supra referida em 12., ponto iii., foi utilizado pela Ré, em benefício do Autor, e destinou-se a cobrir as despesas efetuadas com uma deslocação ao ..., a pedido daquele, a fim de transportar uma encomenda para ser entregue a pessoa conhecida do Autor, em ....

17. Por mensagem de correio eletrónico datada de 3 de Julho de 2017, com origem no endereço “...”, pertencente a BB, advogado do Autor, consta: “D.ª CC venho por este meio em representação do Sr. DD, solicitar a sua presença no nosso escritório por forma a discutirmos forma de reembolso do empréstimo que aquele alega lhe ter feito no montante de €50.000,00 (cinquenta mil euros). Mais fomos informados, que V. Exª terá restituído, em várias tranches, a quantia global de cerca de €10.000,00, razão por que o valor em dívida rondará os €40.000,00. Agradeço que me informe qual a sua disponibilidade, para conciliarmos uma data ou, caso entenda preferível, poderemos falar via Skype”.

18. A Ré recorreu a um empréstimo bancário para pagar as propinas do curso que frequentou, em ....

19. A Ré conseguiu encerrar a conta supra referida em 3. no mês de novembro do ano de 2016.

20. Por e-mail datado de 10.11.2020, provindo da O... e endereçado para o correio eletrónico da Ré, consta “Após análise a todo o histórico da sua conta, informamos que não existem Log’s por si efectuados. Todas as operações existentes foram ordenadas através de contactos com a sala de mercados (…)”.

O Autor recorreu desta sentença para o Tribunal da Relação em que impugnou a decisão sobre a matéria de facto, requerendo as seguintes alterações:

- Os factos constantes dos pontos 4, 5, 9, 10, 12 e 16 devem passar para os não provados;

- E os seguintes devem passar a ter a seguinte redação:

1. No final do ano de 2012, o Autor que à data era companheiro da mãe da ré e pai dos irmãos desta solicitou à Ré um favor que consistia em que esta abrisse em nome da Ré uma conta bancária na O... S.A., para permitir que a Ré, no interesse por conta e mediante instruções do Autor, realizasse movimentos bancários.

3. No dia 27-12-2012, a Ré assinou ficha de abertura de conta de depósito (singular) e registo de instrumento financeiro junto da O..., S.A., na qual constam os números de telemóvel da Ré e do Autor, bem como o endereço eletrónico do Autor.

11. Em 21-01-2013 a O... remeteu email para o endereço eletrónico do Autor a solicitar documentação pessoal da Ré.

14. A Ré, por meio do seu email ..., movimentou a conta aberta na O... S.A., em três ocasiões, a saber (…)”.

19. Em 9-11-2016 a ré, por meio do seu email ... deu instruções à O... para encerrar as contas por aquela tituladas.

Por outro lado, devem ser aditados os seguintes factos:

4.1 - “A conta aberta pela Ré id. em … é unicamente titulada pela ré, e dela não consta qualquer autorizado à sua movimentação”.

4.2 - “Das condições gerais de movimentação da referida conta consta designadamente:

“Clausula quarta

Titularidade e movimentação da conta

1. A conta será aberta em nome do Cliente ou de vários titulares, cuja(s) identificação(ões) constará(ão) nas Condições Especificas.

2. Está habilitado a movimentar a Conta e, bem assim, a ordenar a realização de operações que nela devam ser registadas, o Cliente ou os vários titulares e quaisquer outras pessoas que por ele(s) seja, expressamente e por escrito, indicadas”.

Clausula Quinta

Ordens

1. A realização de operações relativas a Valores Mobiliários ou Instrumentos registados ou depositados, ou a registar ou a depositar:

a) Apenas pode ser ordenada pelo Cliente, pelos vários titulares no caso de contitularidade da Conta e pelas pessoas que por ele sejam, expressamente e por escrito, indicadas nas Condições Especificas”.

4.3 - “Não obstante o provado em …, a Ré reconhece que o saldo à data existente na conta bancária sedeada no Banco 1..., com o n.º ...28, era da propriedade exclusiva do Autor”.

4.4 - Em data não precisa, mas anterior a 11-03-2014, a Ré alterou a sua ficha de cliente, aditando o seu endereço eletrónico «...”.

4.5 - Aditado que : “As instruções para movimentação da conta tinham de provir do email da Ré”;

Quanto ao direito aplicável defendeu que se estava perante um negócio fiduciário, estando a Ré obrigada a restituir ao Autor a quantia que este lhe havia transmitido, abatida dos montantes já devolvidos, no valor de € 43.000,00.

Subsidiariamente, alegou que, caso fosse julgada improcedente a alteração do ponto 14 da matéria de facto, deveria a Ré ser condenada a pagar a quantia de € 28.000, correspondente à diferença entre a quantia por si recebida (€ 50.000,00) e o somatório da utilizada na execução do mandato (€ 15.000,00) com a quantia já restituída ao Autor (€ 7.000,00).

A Ré apresentou resposta, pronunciando-se pela manutenção da sentença recorrida.

O Tribunal da Relação, por acórdão proferido em 24.03.2022, aprovado por maioria, julgou improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.

O Autor recorreu desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:

...

3- O acórdão recorrido padece da nulidade a que se refere o art. 615.º, do CPC, ao não se pronunciar sobre questão que lhe estava acometida decidir-se sobre, nomeadamente, sobre a reapreciação da matéria de facto e impugnação dos pontos que o recorrente entendeu que mereciam decisão diversa da fixada pela 1.ª instância.

4 – Ademais, a decisão recorrida viola o disposto no art.º 5.º, n.º 3, do CPC e art.º 20.º, n.º 4, da CRP, quando alega que atendendo ao enquadramento legal apresentado pelo A. e considerando que não o sufragam, não lhe cabe a si alterá-lo.

5 – Salvo o devido respeito por opinião diversa, somos em crer que a realização da justiça no caso concreto deve ser conseguida no quadro dos princípios estruturantes do processo civil, como são os princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz, traves-mestras do princípio fundamental do processo equitativo proclamado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República.

6 - A decisão judicial, enquanto prestação do dever de julgar, deve conter-se dentro do perímetro objetivo e subjetivo da pretensão deduzida pelo autor, em função do qual se afere também o exercício do contraditório por parte do réu, não sendo lícito ao tribunal desviar-se desse âmbito ou desvirtuá-lo.

7 – Mas, incumbe ao tribunal proceder à qualificação jurídica que julgue adequada, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC, ainda dentro da fronteira da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido, sendo-lhe vedado enveredar pela decretação de uma medida de tutela que extravase aquele limite, ainda que pudesse, porventura, ser congeminada por extrapolação da factualidade apurada.

8 – Mais, com a decisão proferida, a 2.ª instância além de violar as disposições legais sobreditas, ao negar essa reapreciação da matéria de facto, viola, igualmente, o disposto no art. 652.º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. Civil, porquanto, acaso considerasse o que alega, cabia à 2.ª instância convidar o A/recorrente a aperfeiçoar as suas alegações de Direito, o que, também não o fez.

9 - Termos em que, pelas razões supra aduzidas, deverá ser revogado o acórdão recorrido, com as demais consequências legais.

10 - Decisão também totalmente desprovida de suporte legal, inquinando mais uma vez, a decisão de nulidade, porquanto, não especifica os fundamentos de facto e de direito, em que fundamenta a sua decisão – vd. art.º 615.º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Civil, devendo, consequentemente, ser declarada nula a decisão recorrida, com as demais consequências legais.

A Ré não apresentou resposta.

                                               *

II – Objeto do recurso

Tendo em consideração as conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida cumpre apreciar se o acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia e por falta de fundamentação e se o Tribunal da Relação deveria ter apreciado o mérito do recurso interposto pelo Autor.

III - Da nulidade do acórdão recorrido

O Autor alega que o acórdão recorrido é nulo por não ter conhecido das questões que lhe foram colocadas, designadamente da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, e por não fundamentar de direito e de facto a sua decisão.

É certo que o acórdão recorrido não conheceu das razões invocadas nas alegações do recurso de apelação. Não porque tenho omitido a apreciação dessas questões, mas sim porque entendeu que estava impedido de as conhecer, uma vez que com elas se visava uma alteração não admitida da causa de pedir da presente ação.

Esta opção foi expressa e devidamente fundamentada no acórdão recorrido, pelo que não estamos perante um vício de omissão de pronúncia ou de ausência de fundamentação geradores de nulidade do acórdão, competindo neste recurso verificar se essa posição do Tribunal da Relação foi correta.

Improcede, pois, este fundamento do recurso.

IV – O não conhecimento do recurso de apelação

Apesar do acórdão recorrido, na parte decisória, ter declarado a improcedência do recurso de apelação deduzido pelo Autor, lendo a sua fundamentação, constata-se que a sua posição foi a de não conhecimento do recurso, face ao conteúdo das alegações apresentadas pelo Recorrente. Entendeu o acórdão recorrido que o Autor, nas alegações do recurso de apelação, pretende que a ação por si deduzida seja julgada procedente, com fundamento numa “causa de pedir” diversa daquela que invocou na petição inicial e que delimita o objeto do processo, o que impede o tribunal de recurso de conhecer do mérito da “nova causa de pedir” só agora alegada.

O Recorrente, nas alegações de revista, defende que a nova fundamentação invocada nas alegações do recurso de apelação se traduz simplesmente num diferente enquadramento legal dos factos provados no processo, cujo conhecimento é permitido ao tribunal de recurso, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Cumpre decidir.

Na presente ação, o Autor, na petição inicial, invocou como causa de pedir a nulidade, por falta de observância da forma legalmente prescrita para a outorga de um contrato através do qual emprestou à Ré determinada quantia em dinheiro, com o consequente dever de restituição da quantia mutuada ainda não reembolsada, por força dos efeitos retroativos da nulidade do negócio jurídico.

Na contestação, a Ré impugnou de forma motivada a versão apresentada pelo Autor, negando que tenha celebrado com este qualquer contrato de mútuo e alegando que apenas acordou com este a abertura de contas bancárias em seu nome, através das quais o Autor procederia à realização de movimentos bancários, agindo a Ré na movimentação dessas contas, enquanto sua titular, segundo as instruções do Autor, o que ocorreu.

Foi esta última realidade que a sentença da 1.ª instância acolheu, tendo julgado não provada a versão apresentada pelo Autor, e provada, em grande parte, a narrativa da Ré.

Perante este resultado probatório, a sentença da 1.ª instância considerou que não se provou a existência do contrato de mútuo, nulo por inobservância de forma, que individualizava os pedidos formulados pelo Autor, tendo, por isso, julgado improcedente a ação e absolvido a Ré daqueles pedidos.

O Autor recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação, visando, em primeiro lugar, a introdução de algumas alterações à matéria de facto provada e, na sequência dessas alterações, a qualificação do contrato celebrado entre Autor e Ré como um negócio fiduciário, sujeito às regras de um mandato sem representação, uma vez que estes tinham acordado que a Ré abrisse em seu nome uma conta numa instituição bancária, para permitir que esta, no interesse, por conta e mediante instruções do Autor, realizasse movimentos bancários, estando a Ré obrigada a restituir ao Autor o saldo resultante desses movimentos, o qual correspondia ao valor do pedido, após a sua redução.

É flagrante que os fundamentos da pretendida procedência da ação, alegados no recurso de apelação, eram distintos da causa de pedir invocada na petição inicial como fundamento da pretensão aí deduzida. O Autor, na petição inicial, justificou o direito ao pagamento da quantia peticionada, no dever de restituição de um valor entregue à Ré, a título de empréstimo, na sequência de um contrato de mútuo inválido, por inobservância da forma legalmente exigida, enquanto no recurso de apelação pretendia que o tribunal de recurso lhe deferisse o pedido formulado na petição inicial, com fundamento no dever da Ré lhe devolver uma quantia que lhe havia confiado para que esta a gerisse segundo as suas instruções. Se em ambas as situações há coincidência na entrega pelo Autor à Ré de uma determinada quantia, enquanto na petição inicial se alega que essa quantia foi emprestada, com a consequente transmissão da propriedade sobre ela para a Ré e a inerente disponibilidade da mesma, nas alegações de recurso essa transmissão já se encontra limitada por um pactum fiduciae que condiciona a disponibilidade dessa quantia pela Ré - ela apenas a pode utilizar em cumprimento das instruções do Autor, no interesse deste – não se lhe aplicando as exigências de forma de um contrato de mútuo.

Não estamos, pois, perante uma diferente qualificação jurídica da mesma factualidade, mas sim perante a invocação de factualidades distintas em diferentes momentos processuais.

Ao propor uma ação, o demandante formula uma pretensão fundada, por imposição de uma substanciação, numa causa de pedir que exerce a função individualizadora do pedido formulado, assim conformando o objeto do processo (artigo 552.º, n.º 1, d), do Código de Processo Civil). Essa causa de pedir é constituída pelos factos principais constitutivos da situação jurídica que o demandante pretende fazer valer como justificativa da pretensão deduzida, sendo a qualificação jurídica desses factos periférica à causa de pedir.

Este objeto inicial do processo, definido pelo pedido e respetiva causa de pedir, só pode vir a ser modificado, ampliado ou reduzido por iniciativa das partes ou do tribunal, nos termos e modos previstos e definidos na lei processual. Não o tendo sido e não se encontrando o tribunal perante situações que permitem o conhecimento oficioso de determinadas questões, o tribunal só pode ocupar-se das questões suscitadas pelas partes (artigo 608.º e 615.º, n.º 1, d), do Código de Processo Civil), ou seja só pode decidir sobre o mérito do pedido formulado, julgando a causa de pedir que o individualiza, estando-lhe vedada a apreciação de qualquer outra causa de pedir que não tenha resultado das regras que permitem a modificação ou ampliação da causa de pedir original.

Diferente é a situação em que ao tribunal apenas se pede uma diferente qualificação jurídica dos factos integrantes da causa de pedir formulada pelo demandante. Essa já é uma atividade que lhe é permitida, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Ora, como vimos, no presente caso, o Autor pretendeu no recurso de apelação que um dos pedidos por si formulado (entretanto reduzido), fosse julgado procedente, com fundamento em factos com um conteúdo distinto daqueles que integravam a causa de pedir por si invocada na petição inicial.

Se é verdade que esses factos resultavam da defesa apresentada pela Ré na contestação e que o tribunal da 1.ª instância julgou provados, constata-se que o Autor não utilizou o mecanismo previsto no artigo  265.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, não tendo promovido a alteração da causa de pedir ou a dedução, subsidiária, de um nova causa de pedir, pelo que o objeto do processo se manteve inalterado, apesar do teor da defesa motivada apresentada pela Ré, pelo que aqueles factos não podem ser utilizados para julgar o mérito do pedido formulado nesta ação [1].

Assim sendo, nem o tribunal da 1.ª instância, nem o tribunal de recurso, podiam julgar o mérito do pedido formulado, com a fundamentação invocada pelo Autor nas alegações do recurso de apelação, pelo que se revela correta a opção do acórdão recorrido de não conhecer do mérito do recurso, incluindo a impugnação da decisão da matéria de facto, uma vez que a mesma visava a introdução de modificações que suportassem a “nova causa de pedir” que o Autor, indevidamente, pretendia fazer valer.

Resta acrescentar que a esta situação não é aplicável o disposto no artigo 652.º, n.º 1, a), do Código de Processo Civil, uma vez que não nos encontramos perante um caso de deficiência, obscuridade ou complexidade das conclusões ou de falta de especificação dos elementos referidos no n.º 2, do artigo 639.º, do Código de Processo Civil, mas sim perante uma situação em que as questões colocadas no recurso de apelação extravasam o objeto do processo, não sendo tal situação suscetível de correção.

Por estas razões, deve o recurso ser julgado improcedente, confirmando-se o acórdão recorrido

                                               *

Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

                                               *

Custas do recurso pelo Recorrente.

                                               *

Notifique.

Lisboa, 15 de Setembro de 2022

João Cura Mariano (Relator)

Fernando Baptista

Vieira e Cunha

________

[1] Neste sentido, LEBRE DE FREITAS, A Confissão no Direito Probatório, Coimbra Editora, 1991, pág. 34-37, e JOÃO DE CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Manual de Processo Civil, vol. I, AAFDL, 2022, pág. 464-465.