Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05S3139
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERNANDES CADILHA
Descritores: VIGILÂNCIA ELECTRÓNICA
Nº do Documento: SJ200602080031394
Data do Acordão: 02/08/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 10740/04
Data: 05/18/2005
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário :
I – A instalação de sistemas de vídeovigilância nos locais de trabalho envolve a restrição do direito de reserva da vida privada e apenas poderá mostrar-se justificada quando for necessária à prossecução de interesses legítimos e dentro dos limites definidos pelo princípio da proporcionalidade.

II – O empregador pode utilizar meios de vigilância à distância sempre que tenha por finalidade a protecção e segurança de pessoas e bens, devendo entender-se, contudo, que essa possibilidade se circunscreve a locais abertos ao público ou a espaços de acesso a pessoas estranhas à empresa, em que exista um razoável risco de ocorrência de delitos contra as pessoas ou contra o património.

III – Por outro lado, essa utilização deverá traduzir-se numa forma de vigilância genérica, destinada a detectar factos, situações ou acontecimentos incidentais, e não numa vigilância directamente dirigida aos postos de trabalho ou ao campo de acção dos trabalhadores;

IV – Os mesmos princípios têm aplicação mesmo que o fundamento da autorização para a recolha de gravação de imagens seja constituído por um potencial risco para a saúde pública que possa advir do desvio de medicamentos do interior de instalações de entidade que se dedica à actividade farmacêutica;

V- Nos termos das precedentes proposições, é ilícita, por violação do direito de reserva da vida privada, a captação de imagem através de câmaras de vídeo instaladas no local de trabalho e direccionadas para os trabalhadores, de tal modo que a actividade laboral se encontre sujeita a uma contínua e permanente observação.
Decisão Texto Integral:

1. Relatório

O SINDICATO DOS TRABALHADORES DA QUÍMICA, FARMACÊUTICA E GÁS DO CENTRO SUL E ILHAS intentou a presente acção declarativa contra a UFP – UNIÃO DOS FARMACÊUTICOS DE PORTUGAL, CRL, pedindo a condenação da Ré a retirar as máquinas de filmar dos locais de trabalho onde os trabalhadores exercem as suas funções, alegando, em resumo, que a Ré colocou diversas câmaras de filmar/vídeo em todo o espaço onde os trabalhadores exercem as suas tarefas e cuja actividade é assim permanentemente vigiada, com violação dos direitos de imagem consagrados nos artigos 26.º, n.º 1, da Constituição da República, e 70.º e 79.º do Código Civil.

Tendo sido reconhecida a competência do Tribunal do Trabalho em razão da matéria, a acção veio a ser julgada improcedente por se ter entendido que a utilização dos meios de vigilância utilizados era lícita, nas circunstâncias do caso, por ter como finalidade a protecção e segurança de bens e não o controlo do desempenho profissional dos trabalhadores.

Em apelação, a Relação confirmou a sentença recorrida e é contra esta decisão que o autor se insurge mediante recurso de revista, em cuja alegação formula as seguintes conclusões:

1.ª A recorrida colocou nas suas instalações 82 câmaras de videovigilância, sendo que 69 estão dirigidas para os postos de trabalho dos trabalhadores de cada turno;
2.ª Estas câmaras registam de forma permanente as tarefas executadas pelos trabalhadores, sendo visionados pelo pessoal da segurança e directores da recorrida;
3.ª A recorrida não foi autorizada pelo CNPD, a colocar as câmaras de vídeovigilância a focalizar os postos de trabalho, mas sim nos corredores, áreas administrativas e outros locais de acesso público;
4.ª O registo contínuo da actividade laboral dos trabalhadores, sem consentimento destes e contra a sua vontade, determina constrangimentos inibidores da sua actividade normal de liberdade, sabendo-se visionados, e no conhecimento de que tais registos são para avaliar a sua capacidade profissional, comportamental ou da personalidade;
5.ª Os registos da forma como são efectuados, mostram-se desajustados à protecção dos bens, pois as câmaras foram instaladas nos locais de trabalho não autorizados pelo CNPD, demonstrando a recorrida um comportamento eivado de má fé e de abuso do direito.
6.ª Os meios de videovigilância de 69 câmaras visionando e registando a actividade laboral dos trabalhadores, são manifestamente desajustados aos fins pretendidos pela recorrida, sendo excessivos, colidindo com os direitos de cidadania, por restringirem as liberdades e garantias, ínsitas nas normas constitucionais;
7.ª O princípio da proporcionalidade visa acautelar os excessos, devendo limitar-se quanto à sua extensão aos meios estritamente necessários aos interesses a proteger, respeitando os direitos e liberdades dos cidadãos ou dos trabalhadores;
8.ª Os ordenamentos jurídicos dos membros da comunidade europeia, apontam para o usos dos meios de vigilância proporcionais aos fins a proteger, acautelando os direitos de cidadania;
9.ª O sistema de videovigilância, tal como está montado nas instalações da recorrida, viola frontalmente as normas dos arts. 16.º, 18.º e 26.º da CRP e os arts. 79.º e 80.º do CC, configurando-se ainda o abuso do direito, art. 334.º do CC;
10.ª O douto acórdão tem de ser revogado e substituído por aresto, pelo qual se ordene a desmontagem das câmaras de videovigilância que filmam e fiscalizam de modo permanente os trabalhadores nos seus postos de trabalho.

A Ré contra-alegou, defendendo a manutenção do julgado, e a Exm.ª Magistrada do Ministério Público pronunciou-se igualmente no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos dos Exmos juízes adjuntos, cumpre apreciar e decidir.
2. Matéria de facto

As instâncias deram como assente a seguinte factualidade:

1.) A A. é uma associação sindical.
2.) A R. dedica-se à actividade de armazenista de produtos farmacêuticos.
3.) A R. tem ao seu serviço 177 trabalhadores.
4.) A R. colocou câmaras de filmar/vídeo em todo o armazém, as quais são colocadas em ângulo de forma a abranger todo o espaço onde os trabalhadores exercem as suas funções, incidindo sobre os mesmos.
5.) As tarefas que os trabalhadores exercem estão a ser permanentemente filmadas e gravadas.
6.) Existem monitores que visualizam todos os locais de trabalho e os trabalhadores estão permanentemente sob vigia e observação do operador das câmaras.
7.) A instalação das câmaras pela R. efectuou-se sem o consentimento dos trabalhadores.
8.) Antes da implementação do sistema de videovigilância, a R. via-se confrontada com furtos de medicamentos e demais produtos que comercializa.
9.) Sendo que muitas dessas situações eram perpetradas por pessoas que se encontravam devidamente autorizadas pela R. para se encontrarem no interior das suas instalações.
10.) O desaparecimento de produtos trazia inevitáveis reflexos negativos para a situação económico-financeira da R.
11.) Os medicamentos são produtos que não são de uso generalizado e indiscriminado por todos e de comercialização livre.
12.) Os medicamentos carecem, muitos deles, de prescrição e acompanhamento médico para poderem ser administrados.
13.) Os medicamentos são produtos perigosos e cuja comercialização se encontra sujeita a normas para defesa da saúde pública.
14.) A R. notificou, em 2000.06.05, a CNPD para efeitos de obter a legalização do tratamento e recolha de imagens com vista à segurança de instalações, equipamentos, medicamentos e outros produtos de venda em farmácia.
15.) Tendo sido indicados como locais abrangidos pelas câmaras as seguintes áreas: o armazém de produtos farmacêuticos, corredores e recepção, áreas administrativas, ante-sala dos Servers, sala de tesouraria, sala UPS´s e corredor externo entre área administrativa e refeitório.
16.) No interior do armazém, existe um letreiro visível e perceptível, afixado na parede com o seguinte texto: "Para sua segurança local sob vigilância vídeo".
17.) As imagens são processadas pela "S...", a qual se dedica ao exercício da actividade de segurança privada.
18.) A gravação das imagens é conservada pelo período de 5 dias, sem que haja qualquer tratamento posterior de tais dados.
19.) Só a empresa de segurança e os directores da R. têm acesso às imagens.
20.) Não há transmissão de dados e os mesmos só podem ser utilizados nos termos da lei penal.
21.) Mediante requisição fundamentada por escrito ao responsável pelo tratamento dos dados, os titulares dos dados podem exercer o direito de acesso e rectificação aos dados que lhe respeitem.

3. Fundamentação de direito.

A única questão a dirimir é a de saber se é lícito à recorrida manter em funcionamento as câmaras de filmar/vídeo que instalou no seu armazém de produtos farmacêuticos ou se essa instalação viola de modo inadmissível os direitos de personalidade dos trabalhadores que aí laboram, mormente na perspectiva da protecção do direito à reserva da intimidade da vida privada e do direito à imagem.

O direito à reserva da intimidade da vida privada e o direito à imagem encontram-se protegidos constitucionalmente, a par de outros direitos fundamentais, no n.º 1 do artigo 26º da Lei Fundamental, e o respectivo âmbito de tutela está igualmente concretizado nos artigos 79º e 80º do Código Civil.

O reconhecido efeito horizontal dos direitos fundamentais faz com que estes direitos devam ser respeitados não apenas pelas entidades públicas, mas também pelas entidades privadas, e, assim, também, no contexto das relações laborais de direito privado (José João Abrantes, Contrato de trabalho e meios de vigilância da actividade do trabalhador, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Raul Ventura”, vol. II, FDUL, 2003, pág. 815; Catarina Sarmento e Castro, A protecção dos dados pessoais dos trabalhadores, in “Questões Laborais”, ano IX, 2002, n.º 19, pág. 32).

Por outro lado, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 255/202 (publicado no Diário da República, I Série-A, de 8 de Julho de 2002), reportando-se à norma do artigo 12º do Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho, que permitia a utilização de equipamentos electrónicos de vigilância e controlo por parte das entidades que prestam serviços de segurança privada, não deixou de considerar que essa permissão constitui uma limitação ou uma restrição do direito de reserva da intimidade da vida privada, vindo a concluir pela inconstitucionalidade orgânica dessa norma por violação da reserva de competência legislativa da Assembleia da República.

Esta matéria tem sido também objecto de tratamento legislativo em diversos quadrantes. O Código de Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, veio regular inovatoriamente a instalação de meios de vigilância nos locais de trabalho, estatuindo, no seu artigo 20º, o seguinte:

“1 - O empregador não pode utilizar meios de vigilância a dis­tância no local de trabalho, mediante o emprego de equipamento tec­nológico, com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador.
2 - A utilização do equipamento identificado no número anterior é lícita sempre que tenha por finalidade a protecção e segurança de pessoas e bens ou quando particulares exigências inerentes à natureza da actividade o justifiquem.
3 - Nos casos previstos no número anterior o empregador deve informar o trabalhador sobre a existência e finalidade dos meios de vigilância utilizados.”

A utilização de sistemas de videovigilância encontra-se, por sua vez, especialmente regulada no Decreto-Lei n.º 35/2004, de 21 de Fevereiro, para o exercício da actividade de segurança privada, e na Lei n.º 1/2005, de 10 de Janeiro, no âmbito da intervenção das forças e serviços de segurança em locais públicos de utilização comum.

O primeiro desses diplomas autoriza as entidades titulares de alvará ou de licença para o exercício de actividade de segurança privada a “utilizar equipamentos electrónicos de vigilância com o objectivo de proteger pessoas e bens desde que sejam ressalvados os direitos e interesses legalmente protegidos”, estabelecendo um prazo de conservação da gravação de imagens e som de 30 dias, e remetendo no mais para a aplicação o regime geral em matéria de protecção de dados previsto na Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (artigo 13º, n.ºs 1, 2 e 4).

A Lei n.º 1/2005, por seu turno, admite a utilização de vídeovigilância para os fins aí especialmente previstos, e, mormente, para “protecção da segurança das pessoas e bens, públicos ou privados, e prevenção da prática de crimes em locais em que exista razoável risco da sua ocorrência” (artigo 2º, n.º 1, alínea c)), sujeitando, no entanto, o exercício dessa faculdade a um conjunto de princípios de utilização, com realce para a aplicação do princípio da proporcionalidade, com diversas especificações que constam do seu artigo 7º: só é autorizada a utilização de câmaras de vídeo quando tal meio se mostre concretamente o mais ade­quado para a manutenção da segurança e ordem públi­cas e para a prevenção da prática de crimes, tendo em conta as circunstâncias concretas do local a vigiar; na ponderação, caso a caso, da finalidade con­creta a que o sistema se destina são igualmente tidos em conta a possibilidade e o grau de afectação de direitos pessoais através da utilização de câmaras de vídeo; é vedada a utilização de câmaras de vídeo quando a captação de imagens e de sons abranja interior de casa ou edifício habitado ou sua dependência, salvo consentimento dos proprietários e de quem o habite legitimamente ou autorização judicial; é igualmente vedada a captação de imagens e sons nos locais previstos sob protecção, quando essa captação afecte, de forma directa e imediata, a intimidade das pessoas, ou resulte na gravação de conversas de natureza privada.

A legislação geral nesta matéria é, no entanto, constituída pela Lei n.º 67/98 de 26 de Outubro (Lei da Protecção de Dados Pessoais), que expressamente estende o seu âmbito de aplicação à videovigilância e a outras formas de captação de sons e imagens que permitam identificar pessoas (artigo 4º, n.º 4). Os princípios gerais a considerar, neste plano, são os que decorrem do artigo 5º, n.º 1, alínea c), onde se declara que os dados pessoais devem ser “adequados, pertinentes e não excessivos relativamente às finalidades para que são recolhidos e posteriormente tratados”, e do artigo 6º, que estabelece as condições de legitimidade do tratamento de dados, exigindo o consentimento do titular ou a verificação da necessidade de tratamento de dados para a “prossecução de interesses legítimos, (...) desde que não devam prevalecer os interesses ou os direitos, liberdades e garantias do titular dos dados”. Quanto a este último aspecto, existe uma maior concretização no que se refere à suspeita de actividades ilícitas, estipulando-se no artigo 8.° que o tratamento de dados pessoais para fins de investigação policial, para além de se encontrar subordinado ao princípio da prevalência dos direitos, liberdades e garantias do titular dos dados, “deve limitar-se ao necessário para a prevenção de um perigo concreto ou repressão de uma infracção determinada, para o exercício de competências previstas no respectivo estatuto orgânico ou noutra disposição legal (...)” (n.º s 2 e 3).

Considerando o particular enfoque do caso dos autos, importa ainda ter presente a norma do artigo 13º, n.º 1, da Lei n.º 67/98, que estabelece: “qualquer pessoa tem o direito de não ficar sujeita a uma decisão que produza efeitos na sua esfera jurídica ou que a afecte de modo significativo, tomada exclu­sivamente com base num tratamento automatizado de dados destinado a avaliar determinados aspectos da sua personalidade, designadamente a sua capacidade pro­fissional, o seu crédito, a confiança de que é merecedora ou o seu comportamento.”

Como logo ressalta da antecedente explanação, a instalação de sistemas de vídeovigilância nos locais de trabalho envolve a restrição do direito de reserva da vida privada e apenas poderá mostrar-se justificada quando for necessária à prossecução de interesses legítimos e dentro dos limites definidos pelo princípio da proporcionalidade. A captação de imagens através de sistemas electrónicos pode ser efectuada com o objectivo de garantir a protecção da segurança das pessoas e bens, excluindo-se, no entanto, que essa medida possa ser adoptada para avaliar a capacidade profissional dos trabalhadores. Por outro lado, no procedimento autorizativo deverá sempre verificar-se se os direitos, liberdades e garantias do titular dos dados não deverão prevalecer sobre os interesses que justificam, em concreto, a utilização de câmaras de vídeo. É esta ponderação dos interesses em conflito que convoca a aplicação do princípio da proporcionalidade.

A subordinação ao princípio da proporcionalidade surge claramente enunciada na Lei da Protecção de Dados Pessoais e constitui uma exigência comum a qualquer um dos regimes específicos de permissão legal de utilização de sistemas de videovigilância. O recurso à captação de imagens deverá constituir uma medida necessária e adequada para atingir os fins propostos, mas estes deverão ser de tal relevância que justifiquem o sacrifício do direito à reserva da intimidade privada, que se encontra constitucionalmente garantido.

Dentro desta linha de entendimento, a Comissão Nacional de Protecção de Dados, na sua deliberação n.º 61/2004 (www.cnpd.pt), explicitou os critérios gerais a adoptar, na autorização de instalação de sistemas de videoviglância, nos seguintes termos:

“O tratamento a realizar e os meios utilizados devem ser considerados os necessários, adequados e proporcionados com as finalidades estabelecidas: a protecção de pessoas e bens. Ou seja, para se poder verificar se uma medida restritiva de um direito fundamental supera o juízo de proporcionalidade imporá verificar se foram cumpridas três condições: se a medida adoptada é idónea para conseguir o objectivo proposto (princípio da idoneidade); se é necessária, no sentido de que não existia outra medida capaz de assegurar o objectivo com igual grau de eficácia (princípio da necessidade); se a medida adoptada foi ponderada e é equilibrada ao ponto de através dela, serem atingidos substanciais e superiores benefícios ou vantagens para o interesse geral quando confrontados com outros bens ou valores em conflito (juízo de proporcionalidade em sentido estrito.
Na linha do que referimos, será admissível aceitar que – quando haja razões justificativas da utilização destes meios – a gravação de imagens se apresente, em primeiro lugar, como medida preventiva ou dissuasora tendente à protecção de pessoas e bens e, ao mesmo tempo, como meio idóneo para captar a prática de factos passíveis de serem considerados como ilícitos penais e, nos termos da lei processual penal, servir de meio de prova. Estamos perante a aplicação do princípio da proporcionalidade que implica em cada caso concreto a idoneidade do meio utilizado – a vídeovigilância – bem como, e também, o respeito pelo princípio da intervenção mínima”.
(...)
Por isso, em cada caso concreto, e de acordo com os princípios acabados de enunciar, a CNPD deverá limitar ou condicionar a utilização de sistemas de videovigilância quando a utilização destes meios se apresentem como excessivos e desproporcionados aos fins pretendidos e tenham consequências gravosas para os cidadãos visados”.

É dentro do quadro genérico de legitimação acabado de expor que se insere a disposição do artigo 20º do Código de Trabalho. O empregador não pode utilizar meios de vigilância à distância com o propósito de controlar o desempenho profissional dos trabalhadores, mas será lícita essa utilização “sempre que tenha por finalidade a protecção e segurança de pessoas e bens ou quando particulares exigências inerentes à natureza da actividade o justifiquem”. Haverá, em todo o caso, que atender ao já enunciado princípio da proporcionalidade: “qualquer decisão sobre a realização de controlo à distância da actividade laboral deve ser criteriosa, evitando-se que os benefícios que o empregador pretende obter sejam desproporcionados em relação ao grau de lesão que vai ser causado à privacidade dos trabalhadores” (Pedro Romano Martinez et allii, Código de Trabalho Anotado, Almedina, Coimbra, 2003, pág. 102).

4. Revertendo ao caso dos autos, importa recordar os elementos de facto que mais relevam para a decisão da causa.

A Ré colocou câmaras de filmar/vídeo em todo o armazém, as quais são colocadas em ângulo de forma a abranger todo o espaço onde os trabalhadores exercem as suas funções, incidindo sobre os mesmos, de tal modo que as tarefas que estes exercem estão a ser permanentemente filmadas e gravadas (n.ºs 4 e 5). Existem monitores que visualizam todos os locais de trabalho e os trabalhadores estão permanentemente sob vigia e observação do operador das câmaras (n.º 6).

Antes da implementação do sistema de videovigilância, a Ré via-se confrontada com furtos de medicamentos e demais produtos que comercializa, sendo que muitas dessas situações eram perpetradas por pessoas que se encontravam devidamente autorizadas pela Ré para se encontrarem no interior das suas instalações (n.ºs 8 e 9).

O desaparecimento de produtos trazia inevitáveis reflexos negativos para a situação económico-financeira da Ré, além de que os medicamentos são produtos que não são de uso generalizado e indiscriminado e de comercialização livre, e muitos deles carecem de prescrição e acompanhamento médico para poderem ser administrados (n.ºs 10, 1 e 12).

Sabe-se, por outro lado, que a Comissão Nacional de Protecção de Dados, através da deliberação n.º 63/2000, de 17 de Outubro de 2000, documentada nos autos (fls. 38 e 39), autorizou a Ré a proceder à recolha de imagens e som com a finalidade de segurança das instalações, equipamentos, medicamentos e outros produtos de venda em farmácia, permitindo a instalação de 89 câmaras de vídeo que se distribuem pelo armazém de produtos farmacêuticos, corredores e recepção, áreas administrativas, sala de servers, sala de tesouraria, sala UPS’s, corredor externo entre a área administrativa e o refeitório.

Vê-se que a finalidade da captação de imagens é a da protecção dos bens do empregador, tratando-se, por isso, de uma medida que se destina a pôr cobro à subtracção de medicamentos e outros produtos de venda farmacêutica por parte de pessoas que tinham acesso às instalações da Ré, e que lhe acarretava prejuízos económicos.

No caso dos autos, o empregador foi autorizado pela entidade administrativa competente a instalar um circuito de videovigilância para proteger a segurança dos seus bens. E sabe-se que esse é um dos interesses legítimos que a entidade patronal pode invocar para obter a autorização para recolha de imagens (artigos 6º, alínea e), da Lei n.º 67/98, e 20º do Código de Trabalho). A questão que se coloca é, pois, a de saber se as vantagens económicas que derivam da sujeição dos trabalhadores a uma constante e ininterrupta vigilância por meio de câmaras de vídeo, dissuadindo-os de qualquer ilícita apropriação de produtos farmacêuticos, é, por si, suficiente para justificar a violação, por essa via, do direito à reserva da vida privada.

Neste momento da averiguação, interessa começar por densificar o conceito de “segurança das pessoas e bens” a que se referem as diversas disposições legais que definem o quadro legal da vídeovigilância.

A protecção da segurança das pessoas e bens, enquanto finalidade específica da recolha e tratamento de dados pessoais, tem em vista a prevenção da prática de crimes, o que pressupõe, pela natureza das coisas, que a utilização de videovigilância com esse objectivo deva reportar-se a locais onde exista um razoável risco de ocorrência de delitos contra as pessoas ou contra o património. E isso tanto é válido para a utilização de câmaras de vídeo pelas forças policiais relativamente a espaços públicos (conforme resulta expressamente do disposto no artigo 2º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 1/2005), como para a vigilância em instalações ou estabelecimentos privados. Neste último caso, o risco é potenciado essencialmente pela circunstância de se tratar de locais abertos ao público, e decorre da eventualidade de esses locais serem frequentados por pessoas anónimas sem possibilidade de qualquer prévio controlo de identificação.

Deverá convir-se que, no caso dos autos, a situação não se encontra caracterizada com suficiente nitidez. Sabe-se que a ré se dedica à actividade de armazenista de produtos farmacêuticos e tem ao seu serviço 177 trabalhadores (n.ºs 1 e 2). Dos subsequentes pontos da matéria de facto, parece depreender-se que é no armazém que os trabalhadores se concentram para desempenharem as suas tarefas específicas, o que está em consonância com a natureza da actividade que a ré desenvolve. Só assim se compreende que as câmaras de filmar colocadas pela ré em todo o armazém abranjam todo o espaço onde os trabalhadores laboram, e incidam sobre eles, a ponto de a sua actividade ser permanentemente vigiada e observada através dos monitores (n.ºs 4, 5 e 6).

Desconhece-se se o armazém funciona como um espaço aberto, sujeito a constantes entradas e saídas de pessoas e mercadorias, e à eventual intrusão de indivíduos estranhos à empresa, ou se funciona como uma zona de acesso condicionado em que seja possível um controlo mais apertado dos movimentos ocasionais de contacto com o exterior.

No entanto, o non liquet probatório quanto a estes aspectos não pode ser resolvido em desfavor do autor. De acordo com os critérios de repartição do ónus da prova, a cada uma das partes cabe o ónus de alegar e provar os pressupostos das normas que lhe são favoráveis (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1976, págs. 199-200), pelo que era à ré que competia trazer ao processo elementos suficientes para permitir concluir que o condicionalismo do caso se enquadra na finalidade típica que justificou, em concreto, a autorização para a recolha de imagens.

Ao contrário, o autor logrou demonstrar que a actividade dos trabalhadores é permanentemente escrutinada através das câmaras de vídeo, de tal modo que mesmo os gestos que executam no âmbito da sua prestação laboral, podem ser avaliados através dos registos de imagem.

Não se prova, em suma, que exista uma situação de mera captação difusa de imagens, com intersecção de diversos planos de movimento, e dirigida apenas à detecção de factos, situações ou acontecimentos incidentais, num circunstancialismo externo de potencial risco para os interesses patrimoniais ou a integridade física das pessoas. Antes se constata que se verifica uma incidência directa e necessariamente constrangedora sobre o campo de acção dos trabalhadores.

Não estamos, nessas circunstâncias, perante uma vigilância genérica de natureza essencialmente preventiva, dirigida a qualquer pessoa que acidental ou esporadicamente interfira no espaço de observação; mas perante vigilância individualmente dirigida que elege todos e cada um dos trabalhadores como potenciais suspeitos de prática de infracções criminais e que, desse modo, passam a constituir o objecto exclusivo e privilegiado de vigilância., Conforme se afirma num recente parecer da Procuradoria-Geral da República, uma acção de prevenção deste tipo, “apresentar-se-á, na normalidade dos casos, como um acto de averiguação ou então de prevenção directa determinada pela existência de elementos de suspeita relativamente a um comportamento individual” (Parecer n.º 95/2003, publicado no Diário da República, II Série, de 4 de Março de 2004).

Neste condicionalismo, a videovigilância configura uma típica medida de polícia, que apenas poderia ser implementada dentro das competências específicas das autoridades policiais, por períodos de tempo determinados, e com o objectivo preciso de recolha de informação destinada a habilitar a entidade competente a prevenir quaisquer possíveis perturbações da ordem e da segurança pública e a identificar os seus autores (cfr. artigo 16º da Lei de Segurança Interna, aprovada pela Lei nº 20/87, de 12 de Junho, alterada pela Lei n.º 8/91, de 1 de Abril).

E deve notar-se que, mesmo no quadro da protecção da segurança de pessoas e bens em locais públicos, a utilização de câmaras de vídeo pelas forças e serviços de segurança para prevenir a prática de crimes está sujeita a limites temporais, que deverão constar expressamente da decisão de autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados, sendo vedada essa utilização quando a captação de imagens e de som afecte, de forma directa e imediata, a intimidade das pessoas (artigos 5º, n.º 3, alínea e), e 7º, n.º 7, da Lei n.º 1/2005).

A colocação de câmaras de vídeo em todo o espaço em que os trabalhadores desempenham as suas tarefas, de forma a que estes se encontrem no exercício da sua actividade sob permanente vigilância e observação, constitui, nestes termos, uma intolerável intromissão na reserva da vida privada, na sua vertente de direito à imagem, e que se não mostra de nenhum modo justificada pelo simples interesse económico do empregador de evitar a desvio de produtos que ali são manuseados.

A entidade empregadora dispõe de mecanismos legais que lhe permitem reagir contra a actuações ilícitas dos seus trabalhadores, podendo não só exercer o poder disciplinar através do procedimento apropriado, efectuando as adequadas averiguações internas, como também participar criminalmente às entidades de investigação competentes, que poderão determinar as diligências instrutórias que se mostrarem convenientes.

Em qualquer caso, a instalação de câmaras de vídeo, incidindo directamente sobre os trabalhadores durante o seu desempenho profissional, não é uma medida adequada e necessária ao efeito pretendido pela entidade patronal, além de que gera um sacrifico dos direitos de personalidade que é inteiramente desproporcionado relativamente às vantagens de mero cariz económico que se visava obter.

5. Note-se, entretanto, que, no âmbito do processo, a Ré também alegou, e logrou provar, que os medicamentos não são de uso generalizado, que muitos deles carecem de prescrição médica e que a sua comercialização está sujeita a condicionamentos justificados por razões sanitárias (n.ºs 11, 12 e 13); o que permitiria supor que na base da instalação do sistema de vídeovigilância poderiam estar ainda razões de interesse público relacionadas com a saúde pública, que poderiam, por si, justificar a legalidade do procedimento.

Recorde-se a este propósito que o tratamento de dados foi especificamente autorizado para a finalidade de “segurança de instalações, equipamentos, medicamentos e outros produtos de venda em farmácias”, o que cobre aparentemente não apenas a protecção de bens pertencentes ao empregador, mas também a protecção de bens em função da sua específica qualidade e do potencial risco que resulta do seu uso indiscriminado.

Neste ponto, o acto autorizativo não é suficientemente explícito, nada permitindo concluir que se tenha tido em conta, não apenas a estrita finalidade da “segurança de pessoas e bens”, mas também ou sobretudo os fins de interesse público que estão associados ao fabrico e comercialização de medicamentos e à actividade farmacêutica em geral. Por outro lado, por este prisma, a utilização de meios tecnológicos de controlo e vigilância justificar-se-ia, não tanto em razão de interesses económicos do empregador, mas por particulares exigências inerentes à natureza da actividade desenvolvida, que o citado artigo 20º do Código de Trabalho inclui no elenco de interesses legítimos que poderão ser invocados pelo responsável pelo tratamento de dados pessoais.

Neste plano de consideração, porém, a ré, no quadro da presente acção, limitou-se a aduzir factos notórios, que não careciam sequer de alegação e prova, como são aqueles que constam dos pontos n.ºs 11, 12 e 13 da matéria de facto (cfr. artigo 514º, n.º 1, do Código de Processo Civil), e que, sem qualquer outra expressão concreta, apenas permitem conjecturar um potencial risco para a saúde pública que poderia advir do recorrente desvio de medicamentos do interior das instalações da ré.

A aceitar-se que esse interesse de carácter genérico constituía o pressuposto da decisão autorizativa e delimitava o quadro de actuação da ré, afigura-se ainda assim que a utilização de meios de gravação de imagem, nas circunstâncias do caso, tendo em conta o risco objectivo para a saúde pública e o grau de afectação de direitos pessoais, constitui uma medida desproporcionada.

Tem cabimento chamar aqui à colação as considerações há pouco expendidas quanto aos condicionamentos da autorização para a gravação de imagem quando se trate de uma vigilância de tipo preventivo individualmente dirigida. Acentuou-se, nessa ocasião, que, independentemente dos fins que justificam a videovigilância, ela apenas pode ter lugar em locais onde exista um razoável risco de ocorrência de delitos e deverá ser necessariamente limitada no tempo. Esses princípios são aplicáveis às forças de segurança por força do que dispõem os artigos 2º, n.º 3, e 5º, n.º 3, alínea e), da Lei n.º 1/2005, no âmbito da sua actividade de prevenção da criminalidade, e por maioria de razão deverão constituir condições de legitimidade de tratamento de dados pessoais por parte de simples sujeitos privados.

Por outras palavras, o empregador, ainda que com base num pretenso interesse público de segurança dos medicamentos, não pode sujeitar os seus trabalhadores a uma permanente medida de polícia, transformando-os indefinidamente em suspeitos de prática de ilícitos criminais, com clara violação dos seus direitos de personalidade.

A entidade empregadora dispõe de mecanismos legais que lhe permitem reagir contra a actuações ilícitas dos seus trabalhadores, podendo não só exercer o poder disciplinar através do procedimento apropriado, efectuando as adequadas averiguações internas, como também participar criminalmente às entidades de investigação competentes, que poderão determinar as diligências instrutórias que se mostrarem convenientes.

Por outro lado, poderá também implementar mecanismos de controlo de entrada e saída de pessoas nas suas instalações que permitam eliminar ou reduzir a ocorrência de desvios de medicamentos.

Em qualquer caso, a instalação de câmaras de vídeo, incidindo directamente sobre os trabalhadores durante o seu desempenho profissional, não é uma medida adequada e necessária ao efeito pretendido pela entidade patronal, além de que gera um sacrifico dos direitos de personalidade que é inteiramente desproporcionado relativamente às vantagens de cariz económico ou de interesse sanitário que supostamente visava obter.

Assim, independentemente da autorização concedida pela Comissão Nacional de Protecção de Dados, cuja legalidade apenas poderia ser discutida no foro administrativo, a efectiva utilização de câmaras de vídeo nos termos descritos nos autos é ilícita, sendo que se encontra fixada em termos definitivos a competência dos tribunais de trabalho para conhecer do objecto da acção.

Não vê, no entanto, motivo para que a proibição de captação de imagem extravase o espaço físico onde, de acordo com a factualidade provada, se localizam os postos de trabalho.

6. Decisão

Termos em que acordam em conceder a revista, revogar a decisão recorrida e julgar procedente a acção, condenando a Ré a retirar as câmaras de vídeo do local designado como armazém, onde os trabalhadores desempenham a sua actividade laboral.

Custas pela recorrida, nas instâncias e no recurso.

Lisboa, 8 de Fevereiro de 2006

Fernandes Cadilha (relator)

Mário Pereira

Maria Laura Leonardo