Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
072164
Nº Convencional: JSTJ00004308
Relator: MENERES PIMENTEL
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
TITULO
NULIDADE
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ198905100721641
Data do Acordão: 05/10/1989
Votação: MAIORIA COM 2 DEC VOT E 6 VOT VENC
Referência de Publicação: DR 161 IS 1989/07/15, PÁG. 2814 A 2818 - BMJ Nº 387 1989 PÁG. 79
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO.
Decisão: UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Indicações Eventuais: ASSENTO DO STJ.
Área Temática: DIR CIV - TEORIA GERAL / DIR REAIS.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 292 ARTIGO 294 ARTIGO 1415 ARTIGO 1416 N1 N2 ARTIGO 1417 ARTIGO 1419 ARTIGO 1422 C.
CPC67 ARTIGO 763 ARTIGO 766 N3.
RGEU51 ARTIGO 1 ARTIGO 2 ARTIGO 3 ARTIGO 6 ARTIGO 7 ARTIGO 8 ARTIGO 165.
DL 148/81 DE 1981/06/04 ARTIGO 13.
DL 13/86 DE 1986/01/23 ARTIGO 44 ARTIGO 51 N1.
DL 329/81 DE 1981/12/04 ARTIGO 1.
CONST82 ARTIGO 266 N1.
DL 44258 DE 1962/03/31.
CNOT67 ARTIGO 74 B C.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1984/01/26 IN BMJ N333 PAG457.
ACÓRDÃO STJ DE 1982/12/21 IN BMJ N322 PAG333.
Sumário :
Nos termos do artigo 294 do Codigo Civil, o titulo constitutivo ou modificativo da propriedade horizontal e parcialmente nulo ao atribuir a parte comum ou a fracção autonoma do edificio, destino ou utilização diferentes dos constantes do respectivo projecto aprovado pela camara municipal.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (STJ):

I - Relatorio


1 - A e mulher, recorreram para o tribunal pleno do Acordão do STJ de 26 de Janeiro de 1984 (folhas 7 a folhas 22), para o que alegaram estar o mesmo em contradição com o de 21 de Dezembro de 1982 (tambem do STJ), publicado no Boletim do Ministerio da Justiça, n. 322, paginas 333 e seguintes. E esta oposição incidiria sobre a mesma questão fundamental de direito, pois ambos decidiram acerca da nulidade (ou não) do titulo constitutivo da propriedade horizontal quando este violar ou infringir o projecto aprovado pela camara municipal quanto ao destino das partes componentes do predio urbano.


Assim, o acordão recorrido decidiu que a referida violação acarretava a nulidade parcial do titulo em causa por aplicação dos artigos 292 e 294 do Codigo Civil (CC), enquanto o acordão-fundamento optou por tese oposta, uma vez que so importava nulidade do titulo a falta neste dos requisitos legais mencionados no artigo 1415 do mesmo Codigo Civil.
2 - O acordão a folhas 41 reconheceu a existencia dos pressupostos ou requisitos exigidos pelo artigo 763 do Codigo de Processo Civil (CPC), pelo que o recurso prosseguiu os seus termos. Então, os recorrentes apresentaram alegação, propondo a revogação do acordão e a consequente emissão de assento no sentido de não ser nulo o titulo constitutivo de propriedade horizontal quando nele seja dada a certa fracção ou fracções autonomas destino diferente do constante do projecto aprovado pela autarquia local. De opinião oposta e a recorrida (administração do Edificio Tagus). O Ministerio Publico (MP) pronunciou-se no sentido de não haver oposição de julgados, mas, se assim não se vier a entender, sustenta a manutenção do acordão impugnado, propondo este assento:
O titulo constitutivo ou modificativo da propriedade horizontal e afectado por nulidade na parte em que infrinja os artigos 1415 ou 294 do Codigo Civil, este ultimo, nomeadamente, por violação de normas imperativas de interesse e ordem publica constantes do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU).


II - Discussão e fundamentação


1 - Importa reexaminar o problema de oposição relevante entre os dois acordãos, pois a lei assim o impõe (artigo 766, n. 3, do Codigo do Processo Civil) e, no caso concreto, quer o Ministerio Publico, quer a recorrida discordam do decidido sobre tal questão preliminar. Salvo o merecido respeito, neste aspecto não tem razão, pois ambos os arestos decidiram sobre as implicações juridicas resultantes da desconformidade (quanto ao destino de certa fracção autonoma) entre o projecto aprovado pela camara municipal e o titulo constitutivo da propriedade horizontal. Isto, por um lado. Por outro, o acordão-fundamento decidiu que, em tal caso, o titulo e totalmente valido, enquanto na decisão recorrida a conclusão foi a oposta, ou seja, a nulidade parcial daquele. Acresce que, no intervalo entre os dois acordãos, não foi proferida modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida. Finalmente, as situações de facto são identicas: no de 1982, o projecto camarario destinou a cave do imovel a estacionamento privativo dos inquilinos e o titulo afectou-a a armazem; no acordão recorrido, a decisão da camara destinou todo o predio a habitação e o titulo conferiu a uma das fracções (o res-do-chão) a utilização como atlier.


2 - Esta em causa saber qual a interpretação a dar ao artigo 1416, n. 1, do Codigo Civil, isto e, a expressão "falta de requisitos legalmente exigidos" abrange tão-so os enunciados no artigo 1415 do mesmo Codigo Civil (constituirem as fracções autonomas unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saida propria para uma parte comum ou para a via publica) ou tambem "os concretizados pelas competentes autoridades camararias, de acordo com as normas que regem as construções urbanas". Como decorrencia desta questão, importa saber qual a consequencia da nulidade, no caso, como e evidente, de esta existir.


3 - A solução contraria a do acordão recorrido (não atribuir, no plano da invalidade, qualquer consequencia a desconformidade entre o destino conferido a fracção autonoma pelo projecto aprovado pela camara municipal e o negocio juridico constitutivo da propriedade horizontal) tem de aceitar, pelo menos, a possibilidade de as autarquias locais ordenarem a demolição ou o embargo administrativo das obras executadas em desconformidade com o disposto nos artigos 1 a 7 do RGEU, aprovado pelo Decreto-Lei n. 38382, de 7 de Agosto de 1951, bem como o despejo sumario dos inquilinos e demais ocupantes das edificações ou parte das edificações utilizadas sem as respectivas licenças ou em contradição com elas, pois isto resulta do artigo 165 do citado RGEU (redacção do Decreto-Lei n. 44258, de 31 de Março de 1962).


Consequentemente, a tese oposta a do acordão recorrido consistiria, por um lado, no reconhecimento da validade do negocio juridico constitutivo da propriedade horizontal e, por outro, na permissão de a camara municipal sumariamente despejar o inquilino e ocupantes da fracção quando verificasse a desconformidade entre a utilização prevista naquele titulo e aquela que esta destinada para os diferentes compartimentos no projecto aprovado (artigo 6 do RGEU).


Esta chocante consequencia constitui o primeiro sinal de alarme para se tentar harmonizar o nosso sistema juridico, tanto mais que tal harmonia existe, quer com base no Codigo Civil, quer com fundamento noutras disposições legais. Com efeito, o artigo 13 do Decreto-Lei n. 148/81, de 4 de Junho (em vigor entre as datas dos dois acordãos e hoje revogado pelo artigo 51, n. 1, do Decreto-Lei n. 13/86, de 23 de Janeiro, mas com a sua doutrina mantida no artigo 44 deste diploma), dispõe "não poderem ser celebrados contratos que envolvam a transmissão de propri. de predios urbanos destinados a habitação sem que se faça perante o notario prova suficiente da existencia da correspondente licença de construção , ou de habitação, quando exigivel, da qual se fara sempre menção na escritura". A seguir-se a doutrina contraria a do acordão em recurso, o negocio juridico modificativo da utilização de certa fracção autonoma e em desconformidade com o projecto aprovado, apesar de valido, impediria, por exemplo, a compra e venda daquele andar ou fracção.


Acresce que, nos termos do artigo 1 do Decreto-Lei n. 329/81, de 4 de Dezembro, "so poderão ser efectuadas escrituras de arrendamento para comercio, industria ou profissão liberal mediante a apresentação pelo locador de licença camararia donde conste ser essa a finalidade do imovel ou que autorize a mudança de finalidade". Ora, tambem daqui se retira outro argumento no sentido da importancia fundamental da conformidade entre a utilização de facto e aquela que e permitida pela camara municipal, e tudo isto, como consta do preambulo do citado Decreto-Lei n. 329/81, com vista a permitir "as camaras municipais prosseguir uma politica de ordenamento urbanistico".


4 - O exposto no n. 3 precedente conduz-nos ao campo dos principios fixados no Codigo Civil que, como se vera, esta em sintonia com os restantes diplomas legais. Resulta dos artigos 3, 6, 8 e 165 do RGEU a necessidade de os projectos de construção indicarem sempre "o destino da edificação e a utilização prevista para os diferentes compartimentos". Ora, parece evidente que o interesse subjacente a toda esta disciplina e o interesse publico prosseguido pelas camaras minicipais. Nos termos do artigo 266, n. 1, da Constituição da Republica Portuguesa (CRP), a Administração Publica (esta entendida como toda a Administração Publica, incluindo a administração central, a regional e a local, tal como e defendido por Gomes Canotilho e Vital Moreira , Constituição Anotada,
2 Edição, 2 Volume , paginas 417) visa a prossecução do interesse publico e, como ensina Servulo Correia (Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, paginas 297), a unica garantia de que assim seja efectivamente em cada acto concreto praticado pela Administração e a de que não seja deixada casuisticamente ao seu autor a definição e a escolha do interesse a prosseguir. Tal opção, continua o referido professor , deve anteceder logica e cronologicamente a definição das situações juridico-administrativas concretas. De acordo com as citadas normas legais, as camaras municipais não escolhem discricionariamente o interesse publico a prosseguir, pois este esta predeterminado em função de criterios gerais, como sejam os da urbanização, estetica, segurança e equilibrio economico das construções que licenciam.


Por tudo isto e que o artigo 294 do Codigo Civil considera como nulos os negocios juridicos celebrados contra disposição legal de caracter imperativo, aqui equiparada a norma de interesse e ordem publica, tal como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela (Anotado, volume I, 4 edição, paginas 269). Por tudo isto e que o desrespeito pelas licenças emitidas em conformidade com as normas imperativas do RGEU envolve ilegalidade do titulo constitutivo.


Por tudo isto e que, coerentemente, se tem de incluir entre os "requisitos legalmente exigidos" referidos no artigo 1416, n. 1, do Codigo Civil "os concretizados pelas competentes autoridades camararias, de acordo com as normas que regem as construções urbanas" (cf. Pessoa Jorge, parecer a folhas 55 e seguintes deste processo).


Por tudo isto e que o artigo 1416, n. 2, do Codigo Civil "estende ao Ministerio Publico a legitimidade para arguir a nulidade sobre participação da entidade publica a quem caiba a aprovação ou fiscalização das construções". Por Tudo isto e que a falta dos requisitos do artigo 1415 não esgota as causas de nulidade do titulo e dai a latitude da expressão "requisitos legalmente exigidos" contida no artigo 1416.


5 - A consequencia da nulidade do titulo constitutivo da propriedade horizontal e, em principio, a sujeição ao regime da compropriedade (artigo 1416 do Codigo Civil), mas esta conclusão e apenas parcialmente verdadeira, pois, como se diz no referido parecer de Pessoa Jorge, e suficiente pensar na hipotese de a constituição daquela propriedade horizontal resultar de acto unilateral do proprietario, "caso em que a nulidade do titulo implica a subsistencia do regime de propriedade singular". Assim, o artigo 1416 visa o caso de ser constituido "o regime de propriedade horizontal de um predio, com a aquisição de fracções por varias pessoas, e verificar-se depois a nulidade do titulo". Esta solução (aproveitamento do negocio juridico) esta, alias, de harmonia ou tem similitude com casos, como o presente, de nulidade parcial, expressamente decidida pelo acordão recorrido.

6 - A tese de que o artigo 1419 do Codigo Civil, ao permitir a modificação por unanimidade do titulo constitutivo da propriedade horizontal, esta a pressupor a legalidade da desconformidade entre o projecto aprovado e o novo destino das respectivas fracções e, salvo o merecido respeito, claramente errada. A declaração unilateral do proprietario do edificio, ao constituir aquela propriedade por fracções autonomas, esta condicionada, como ja se referiu, pelas decisões da entidade publica (actos administrativos definitivos e executorios e, como assim, tomados na prossecução do interesse publico). Por consequencia, qualquer alteração a essa constituição inicial esta naturalmente sujeita ao mesmo condicionalismo, pelo que a referida tese incorre em autentica petição de principio.
7 - Muito do exposto foi baseado na argumentação desenvolvida pelos ilustres conselheiros Rodrigues Pardal e Dias da Fonseca a proposito de problemas semelhantes e ate do caso concreto (cf. Da Propriedade Horizontal, 5 edição, 1988, paginas 148 a 152).
III - Decisão
Nos termos expostos, confirma-se o douto acordão recorrido e formula-se o seguinte assento:
Nos termos do artigo 294 do Codigo Civil, o titulo constitutivo ou modificativo da propriedade horizontal e parcialmente nulo ao atribuir a parte comum ou a fracção autonoma do edificio destino ou utilização diferentes dos constantes do respectivo projecto aprovado pela camara municipal.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 10 de Maio de 1989

- Jose Manuel Meneres Sampaio Pimentel
- Antonio de Almeida Simões - João Alcides de Almeida
- Antonio Soares Tome - Joaquim Jose Rodrigues Gonçalves -
- Mario Sereno Cura Mariano - Jose Saraiva - Jose Isolino Enes Calejo - Jose Manuel de Oliveira Domingues - Eliseu Rodrigues Figueira Junior - Adelino Barbosa de Almeida -
- Jose Alexandre Paiva Mendes Pinto - Vasco Eduardo Crispiniano Correia de Lacerda Abrantes Tinoco - Afonso de Castro Mendes - Alberto Carlos Antunes Ferreira da Silva -
- Pedro de Lemos e Sousa Macedo - Flavio Parreira da Trindade Pinto Ferreira - Jorge da Cruz Vasconcelos - Jose Henrrique Ferreira Vidigal - João Solano Viana (vencido, pelas razões constantes da declaração de voto que junto) - Silvino Alberto Villa Nova (vencido, pelos fundamentos constantes da declaração de voto do Excelentissimo Conselheiro Solano Viana) - Augusto Tinoco de Almeida (vencido, por entender que a nulidade do titulo so deveria decretar-se quando o destino ou utilização em causa ofendam o interesse e ordem publicos) - Manuel Augusto Gama Prazeres (vencido pelas razões aduzidas pelo Excelentissimo Colega Doutor Solano Viana) - Fernando Maria Xavier de Figueiredo Brochado Brandão (vencido em parte, conforme declaração anexa) Jorge de Araujo Fernandes Fugas (vencido, de harmonia com a declaração de voto do Excelentissimo Conselheiro Solano Viana) - Alberto Baltazar Coelho (vencido, nos termos da declaração de voto que junto) - Fernando Heitor Barros de Sequeiros (vencido, nos mesmos termos do Excelentissimo Conselheiro Solano Viana) - Fernando Faria Pimentel Lopes de Melo (vencido, por ter concordado com os fundamentos invocados pelo Senhor Conselheiro Solano Viana ) - (Tem votos de vencido dos Excelentissimos Conselheiros Antonio Carlos Vidal de Almeida Ribeiro, Licinio Adalberto Vieira de Castro Caseiro, Jose Alfredo Soares Manso Preto, Salviano Francisco de Sousa e Mario Augusto Fernandes Afonso, que não assinaram por não se encontrarem presentes).
Declaração de Voto
Esta em causa neste recurso a determinação das consequencias de a escritura de constituição da propriedade horizontal não respeitar o destino dado a fracção autonoma no projecto do edificio aprovado pela camara municipal.
Acarretara ou não tal desrespeito a nulidade parcial dessa escritura?
No artigo 1416 do Codigo Civil estabelece-se que a falta de requisitos legalmente exigidos para a propriedade horizontal importa a nulidade do titulo constitutivo da mesma propriedade e a sujeição do predio ao regime de compropriedade, pela atribuição a cada consorte da quota que lhe tiver sido fixada nos termos do artigo 1418 ou, na falta de fixação, da quota correspondentes ao valor relativo da sua fracção (n. 1), tendo legitimidade para arguir a nulidade do titulo os condominos e tambem o Ministerio Publico, sobre a participação da entidade publica a quem caiba a aprovação ou fiscalização das construções (n. 2).
Assim, quando no titulo de constituição da propriedade horizontal se deixarem de observar os requisitos impostos pela lei para tal constituição - requisitos esses constantes dos artigos 1414 e 1415 do Codigo Civil -, o regime de nulidade dai resultante e o que se encontra estabelecido no citado artigo 1416 n. 1, do Codigo Civil.
Sempre que no titulo constitutivo da propriedade horizontal se da a fracção autonoma destino diferente daquele que consta do projecto aprovado pela camara municipal, não e de considerar nulo nessa parte tal titulo, ja que não e requisito legal da constituição da propriedade horizontal a indicação do destino das fracções autonomas.
O desrespeito do projecto não conduz a nulidade parcial do titulo por ofensa da disposição legal de caracter imperativo (artigo 294 do Codigo Civil).
Dispõe-se no artigo 6 do RGEU, aprovado pelo Decreto-Lei n. 38382, de 7 de Agosto de 1951, que nos projectos de novas construções e de reconstrução, ampliação e alteração de construções existentes serão sempre indicados o destino da edificação e a utilização prevista para os diferentes compartimentos.
E no artigo 2 do mesmo Regulamento diz-se que a execução dessas obras e trabalhos não pode ser levada a efeito sem previa licença das camaras municipais, as quais incumbe tambem a fiscalização do cumprimento das disposições desse Regulamento.
Estabelecem-se regras para a realização de obras de construção, submetendo-as a previo licenciamento das camaras municipais, e punindo-se com multa a execução de qualquer obra em desacordo com os termos de tal Regulamento ou com o projecto aprovado ( artigo 161), podendo ainda as camaras ordenar, independentemente da aplicação da tal penalidade, a demolição ou o embargo administrativo das obras executadas em desconformidade com o Regulamento ou o projecto, bem como o despejo sumario dos inquilinos e demais ocupantes das edificações utilizadas sem as respectivas licenças ou em desconformidade com elas (artigo 165).
Trata-se de disposições em que se regulamenta a execução de obras de construção e reconstrução, sujeitando-as a licença das camaras municipais, e onde se estabelecem sanções de varia ordem para a violação de tais normas.
As normas do RGEU tem em vista assegurar as condições de segurança, estetica e salubridade das edificações, submetendo-as a licenciamento e fiscalização das camaras municipais.
Nada leva a considerar que, se, em escritura de constituição da propriedade horizontal de imovel, se atribuir as fracções autonomas deste destino diferente do que consta do projecto aprovado pela camara municipal em obdiencia ao citado Regulamento, dai resulte a nulidade de tal estipulação.
Não se deve confundir a construção de edificio sem as devidas condições de segurança, estetica e salubridade, construção essa que acarreta as sanções atras referidas, e a estipulação em titulo constitutivo da propriedade horizontal de destino da fracção autonoma distinto do que consta do projecto de edificio.
De resto, como se nota no Acordão de 21 de Dezembro de 1982, o titulo constitutivo de propriedade horizontal pode ser modificado por escritura publica, havendo acordo de todos os condominos (artigo 1419 do Codigo Civil), pelo que, nada obstando a que se altere o fim a que se destinam as fracções autonomas, e admissivel que tal fim seja diferente daquele que e indicado no projecto do edificio aprovado pela camara municipal.
A atribuição de legitimidade para arguir a nulidade do titulo constitutivo da propriedade horizontal não so aos condominos, mas tambem ao Ministerio Publico, sob participação da entidade publica a quem caiba a aprovação ou fiscalização das construções (n. 2 do artigo 1 416 do Codigo Civil), apenas significa que o Ministerio Publico pode usar de tal faculdade no caso previsto no n. 1 desse artigo 1416, isto e, quando se verificar falta dos requisitos legalmente exigidos para a constituição da propriedade horizontal, que, como atras se referiu, constam dos artigos 1414 e 1415 do mesmo Codigo.
Entendo, assim, que não deve ser declarada a nulidade, ainda que parcial, do titulo constitutivo da propriedade horizontal que atribua as fracções autonomas do edificio destino diferente daquele que consta do respectivo projecto aprovado pela camara municipal, do que resultaria o provimento do recurso - João Solano Viana.
Declaração de voto
Os "requisitos legais" de que se fala [ver o artigo 1416 e Codigo do Notariado - artigo 74, alineas b) e c)] são os do artigo 1415 e todos os que violem normas imperativas (idem - artigos 280 e 294). So essa violação constitui verdadeira nulidade.
O RGEU tem a ver com outras realidades de imperatividade geral, como a segurança e a estetica. E as "aprovações camararias" contam-se nos limites expostos, não definindo direitos nem criando proibições (limitam-se a uma primeira verificação da correspondencia com a lei).
Ha assim que ser casuista e ver do que se trata no concreto.
Na hipotese, a mudança de destino não colidia em norma imperativa. Dai votar a revogação do acordão recorrido.
Mas, em obediencia a "imperatividade", formularia assento onde se dissesse não haver nulidade na "atribuição de destino diferente" simples, salvo se isso for contra o interesse publico ou a imperatividade (por exemplo, isso sucederia na transformação de garagem comum em armazem, discoteca, etc).
Dai a minha posição equidistante da tese vencedora e da vencida.
- Pedro de Lemos e Sousa Macedo.
Declaração de voto:
Entendi, na senda dos pareceres juntos aos autos, não haver entre o acordão fundamento e o acordão recorrido a requerida oposição para que se pudesse tirar assento.

Na verdade, no acordão-fundamento cuidou-se de uma alteração do destino de uma cave, que era "de estacionamento privativo dos inquilinos" no projecto aprovado e passou a ser, de acordo com a escritura da constituição da propriedade horizontal, de armazem.
Pois bem, tanto quanto nos garante o indicado aresto, não so ninguem questionou que o novo destino não fosse, em si mesmo, legal e adequado a respectiva fracção, mas ainda nele se afirmaram, repetida e expressamente, estas legalidades e adequação.
Por isso, encarando o diferendo nestes parametros - e, note-se bem, fora dentro deles que a recorrente, na revista onde foi proferido o acordão-fundamento, o colocou, ao indicar apenas como disposições violadas os artigos 1415 e 1417 do Codigo Civil -, no dito aresto decidiu-se, com base unicamente nos artigos 1415, 1416, 1417, 1419 e 1422, alinea c), daquele Codigo, não se encontrar ferido de nulidade o negocio constitutivo da respectiva propriedade horizontal.
Esta tomada de posição, dentro do campo em que se moveu, parece-me de inquestionavel acerto, tendo granjeado o apoio de Pires de Lima e Antunes Varela, Anotado, volume III, 2 edição, pagina 401.
Mas de inquestionavel acerto me parecer ser tambem o julgado no acordão recorrido, publicado no Boletim do Ministerio da Justiça, n. 333, paginas 457, de constituir nulidade, por ofensa dos preceitos regulamentares de interesses e ordem publica (RGEU), afectando o titulo constitutivo de propriedade horizontal, o facto de se ter designado, nesse titulo, como fracção autonoma e com destino e utilização proprios uma dependencia que, a luz do projecto e da licença de loteamento, era tido como gabinete de administração, portanto parte comum do predio.
Esta nulidade não atinge a totalidade do negocio, mas apenas a parte do titulo constitutivo de propriedade horizontal em que se menciona aquela dependencia como fracção autonoma.
E que aqui entendeu-se que, em função do "alvara de loteamento para a Urbanização da Portela", a alteração conseguida na constituição da propriedade horizontal do que constava do projecto aprovado ofendera o interesse geral e normas imperativas do RGEU, motivo por que o problema sub judice foi equacionado e resolvido, fundamentalmente, face a violação do disposto nos artigos
6, 8 e 165 daquele Regulamento e por aplicação dos artigos 292 e 294 do Codigo Civil.
Quer dizer: as situações de facto e de direito apreciadas no acordão recorrido não se compaginam - bem ao contrario - com as situações daqueles tipos julgadas no acordão-fundamento.
Neste tratou-se de uma situação no ambito dos puros interesses privados na disciplina da propriedade horizontal, pelo que os respectivos preceitos não representam normas imperativas, antes se configuram como normas na disponibilidade das partes; naquele outro, ou seja, no acordão recorrido, cuidou-se de uma situação desrespeitadora de normas imperativas de interesse publico, o que vale por dizer de normas fora da disponibilidade das partes.
Contra o precedentemente exposto não se diga que o cerne da questão em debate esta em saber se não havera sempre violação de normas imperativas quando, na constituição da propriedade horizontal, se desrespeitam os destinos das fracções indicadas no projecto aprovado.
E isto por duas ordens de razões.
A primeira consiste em, para mim, haver alterações do projecto aprovado quanto ao destino das fracções que, para alem de não exigirem quaisquer obras, não colidem minimamente com normas de natureza imperativa. Pense-se nas seguintes hipoteses - e muitas outras podiam ser indicadas: predio em que, de acordo com o projecto, todas as fracções autonomas são destinadas a habitação e no negocio constitutivo da propriedade horizontal uma das fracções passa a ser afectada a habitação do porteiro ou a habitação e tambem a consultorio medico ou a escritorio de advogado.
A segunda e a de que o aspecto posto na objecção não aparece apreciado, e muito menos decidido, no acordão recorrido ou no acordão-fundamento, pelo que, tambem neste campo, não ha oposição entre eles.
Pelo que fica exposto, salvo o devido respeito pela opinião que fez vencimento, não havendo a requerida oposição, o meu voto foi no sentido de não se dever nem se poder tirar assento. - Alberto Baltazar Coelho.