Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | NASCIMENTO COSTA | ||
| Descritores: | DIREITO DE RETENÇÃO CONFUSÃO CONSTITUCIONALIDADE | ||
| Nº do Documento: | SJ200301300044717 | ||
| Data do Acordão: | 01/30/2003 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | T REL ÉVORA | ||
| Processo no Tribunal Recurso: | 273/02 | ||
| Data: | 06/13/2002 | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA. | ||
| Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
| Área Temática: | DIR CIV - DIR OBG. | ||
| Legislação Nacional: | CCIV66 ARTIGO 76 ARTIGO 730 ARTIGO 755 N1 F ARTIGO 759 ARTIGO 824 N2 N3 ARTIGO 869 N1 N3. CONST92 ARTIGO 2 ARTIGO 20 ARTIGO 168 N1 B. | ||
| Sumário : | 1 - Mantém o direito de retenção o promitente-comprador que mais tarde adquire o prédio objecto do contrato a quem o adquirira em execução, se assim for do seu interesse. 2 - Não se verifica confusão, uma vez que há hipotecas, podendo a titular do direito de retenção ser prejudicada caso se entendesse que o seu direito se extinguira. 3 - Não é inconstitucional o preceito do art. 751 n. 1 -f) do CC. | ||
| Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: I "A", residente na Quinta das ...., lote .. - ... Dto., em Setúbal, instaurou em 3-1-97 acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra: B e sua mulher, C, residentes, o primeiro no Bairro Real, n° 9, em Palmela, e a segunda com domicílio profissional na Direcção Distrital de Finanças de Setúbal, e D, com sede na Rua ..., n°s ... a ..., em Lisboa, alegando, em síntese: - em 5 de Janeiro de 1994, celebrou com a ré C um contrato-promessa de compra e venda da fracção autónoma, identificada no n° 1 da petição inicial, por 9.000 contos, tendo a autora pago 1.000 contos a título de sinal e depois a quantia de 510 contos, também a título de sinal; - na sequência do dito contrato-promessa foi viver para a fracção; - porém, no dia anterior à data da escritura, a procuradora dos réus B e C informou-a de que, para se proceder ao negócio, seria necessário um aumento de preço, para se poder distratar a hipoteca, que incidia sobre a fracção, o que não aceitou; - o prédio acabou por ser retirado da disponibilidade jurídica dos réus, por ter sido instaurada uma execução hipotecária pela ré D, sendo esta demandada em tal qualidade e para efeitos do disposto no art° 869° do CPC; - a fracção valia, na altura, 13.000 contos. Pede que os primeiros réus sejam condenados a pagar à autora a indemnização de 5510 contos, acrescida de juros desde a citação e que se declare que esta goza do direito de retenção sobre o andar negociado enquanto tal indemnização não lhe for paga. Os réus C e B, separadamente mas em termos essencialmente idênticos, contestaram afirmando, em síntese, que por causa das dívidas que tinham com a ré D fizeram um acordo com terceira pessoa, segundo o qual esta, munida de uma procuração com poderes irrevogáveis, venderia a fracção pelo preço que entendesse, pagando as dívidas dos RR e entregando a estes 150 contos. Sustentam que o contrato-promessa é nulo e ineficaz, porque outorgado por pessoa sem poderes para tanto, invocando ainda a sua ilegitimidade processual e a nulidade formal do contrato-promessa e negando a existência do direito de retenção. Por seu turno, o D contestou excepcionando a ilegitimidade processual dos primeiros réus, por não serem quem figura nos contratos como promitentes vendedores, e consequentemente a sua própria ilegitimidade processual. Na réplica, a autora impugnou a matéria das excepções, sustentando que houve ratificação posterior do contrato-promessa por parte dos réus. E, a pessoa que subscreveu o contrato-promessa, foi chamada a intervir a requerimento dos RR. C e B. Citada, nada disse, nem posteriormente teve qualquer intervenção no processo. Na audiência preliminar, procedeu-se ao saneamento do processo, afirmando-se a legitimidade processual de todos os réus e julgando-se improcedente a excepção de nulidade formal do contrato-promessa. Instruída e discutida a causa, foi proferida sentença (fl. 258) que, julgando a acção parcialmente procedente, decidiu: a) Considerar a instância extinta por inutilidade superveniente no que respeita ao pedido de reconhecimento do direito de retenção, uma vez que a A. é actualmente proprietária do andar; b) Declarar o contrato-promessa resolvido; c) Condenar os réus B e C a pagar à autora a quantia de um milhão quinhentos e dez mil escudos, acrescida de juros de mora desde a citação, à taxa supletiva para as obrigações de natureza civil, absolvendo-os do que mais foi pedido, a título de indemnização. Inconformados, a autora e os RR B e C interpuseram recurso, vindo o desta a ser declarado deserto. Por acórdão de fl. 351 e seg., a Relação de Évora julgou improcedente a apelação do réu B e procedente a apelação da autora A. Consequentemente condenou aquele réu e a ré C a pagar à autora a quantia de € 15.064 (quinze mil e sessenta e quatro euros), crédito resultante do não cumprimento por parte destes do contrato promessa de compra e venda da fracção "C" do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o n° 00271/280886, e declarou que, para efeitos do disposto no art° 869 n. 1 n. 3 do CPC, tal direito goza de garantia real, correspondente ao direito de retenção. Nesta medida, revogou a sentença recorrida, no mais a mantendo. Interpuseram recurso de revista o D e o R. B. ALEGOU o D: 1) A compra da fracção em causa por parte da A. originou a extinção do direito de retenção por confusão de direitos; 2) Onde existe direito de propriedade não pode existir direito de retenção, de que seja titular o próprio dono da coisa; 3) No caso presente, a acção só podia seguir para apreciação e julgamento da parte do pedido respeitante ao reconhecimento do direito de crédito sobre os RR promitentes vendedores; 4) Verifica-se, assim, uma impossibilidade legal para ser declarado o direito de retenção invocado pela A.; 5) Pelo que não pode ela fazer valer em sede executiva esse inexistente direito sobre o produto obtido com a venda da aludida fracção autónoma; 6) O regime jurídico do direito de retenção concedido ao promitente comprador, fixado através do D.L. 236/80, de 18/07 e D.L. 379/86, de 11/11 e constante das normas contidas no n° 2 do artigo 442° e alínea f) do artigo 755°, ambos do C. Civil, frustra a legítima confiança que o credor hipotecário tem em que o Estado garanta os sus direitos fundamentais; 7) A hipoteca foi constituída e registada em 1993 e o contrato promessa foi celebrado em 1994; 8) No caso dos autos, a recorrente vê-se confrontada com um direito real de garantia, não sujeito a registo, com o qual não contava; 9) Tal direito de retenção sobrepõe-se à hipoteca constituída e registada cerca de um ano antes; 10) É uma injustiça para o credor hipotecário sofrer a ofensa dos seus interesses e direitos patrimoniais legitimamente constituídos e registados anteriormente à constituição e invocação do direito de retenção; 11) A recorrente credora hipotecária vê frustrada a confiança no comércio jurídico imobiliário; 12) No acórdão recorrido encontra-se manifestamente violado o princípio da confiança no comércio jurídico, princípio constitucional contido no artigo 2° da C.R.P.; 13) Os ónus ocultos não registados afectam a segurança do comércio jurídico; 14) Os referidos diplomas e as normas em apreço, o n° 2 do artigo 442° e alínea f) do artigo 755°, ambos do C.Civil, interpretadas e aplicadas no sentido de que o direito de retenção tem preferência sobre a hipoteca registada anteriormente, são inconstitucionais por violação do princípio da confiança no comércio jurídico ínsito no artigo 2° da C.R.P.; 15) Os D.L. n° 236/80, de 18/07, e n°. 379/86, de 11 de Novembro são inconstitucionais por regularem matéria respeitante a direitos e garantias patrimoniais da competência exclusiva da Assembleia da República; 16) Para que o Governo pudesse legislar sobre tal matéria necessitava de autorização do ente legislativo competente;. 17) Não foi concedida tal autorização; 18) Ao fazer inovações sobre tal matéria sem autorização, houve a vio lação da esfera de competência de outro órgão; 19) Verifica-se, assim, haver uma inconstitucionalidade orgânica; 20) O n° 2 do artigo 442° e a alínea f) do n° 1 do artigo 755°, ambos do C.Civil, são inconstitucionais. 21) Sendo inconstitucionais tais normas, bem como os diplomas de onde elas emanam, não podem as mesmas ser invocadas e aplicadas em qualquer procedimento judicial. 22) A A. optou pelo valor da coisa à data do incumprimento, não tendo formulado qualquer outro pedido subsidiário; 23) A Relação não podia condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que foi pedido na petição inicial pela A., por lhe estar legalmente vedado fazê-lo; 24) O valor de esc. 510.000$00 não podia ser tomado em consideração para a determinação do valor indemnizatório; 25) Ao julgar-se, como se julgou, encontram-se violadas normas de ordem substantiva e processual, nomeadamente os artigos 442°, n° 2 e al. f) do n° 1 artigo 755° do CC, artigo 661°, n° 1 do CPC e ainda os artigos 2° e 20° da CRP; Deve ser dado provimento ao presente recurso, revogar-se o acórdão recorrido, e ser declarada a inconstitucionalidade material do n° 2 do artigo 442° e da alínea f) do artigo 755°, todos do Código Civil, por na sua interpretação e aplicação nos presentes autos, ter sido violado o n° 1 do artigo 20° da C.R.P. e artigo 2° da C.R.P e, ainda, declarada a inconstitucionalidade orgânica do D.L. n° 236/80, de 18/07 e D.L. n° 379/86, de 11/11, devendo em consequência ser revogado o acórdão recorrido, que confere à A. o direito de retenção, que ofende o seu direito de hipoteca, registado a seu favor anteriormente, por tais normas legais e os diplomas de onde emanam enfermarem de inconstitucionalidade. ALEGOU o R. B: 1) Não está provado que em finais de 1993 os RR. hajam feito um acordo verbal com a E para que esta procedesse à venda da fracção. 2) Ainda que assim se entenda, tal não legitima o contrato-promessa celebrado em 5-1-94, porque tais poderes só podiam ser conferidos por escrito, não se encontrando o negócio ao abrigo do artº258º do CC. 3) Só em 7-1-94 os RR. conferiram procuração à E, balizada por condições que esta incumpriu. 4) Nessa procuração não eram conferidos poderes para ratificar negócios anteriores. 5) A compra da fracção por parte da A. originou a extinção do direito de retenção, por confusão de direitos. 6) São inconstitucionais os artº442º-2 e 755º-1-f) introduzidos pelos DL 236/80 e 379/86, por violação do artº2º da CR. 7) O Governo carecia de autorização legislativa da Assembleia da Republica para legislar em tais matérias, pelo que se verifica igualmente a inconstitucionalidade orgânica de tais diplomas. 8) A A. optou no pedido, pelo valor da coisa, não o tendo alterado até ao encerramento da audiência de julgamento em primeira Instância. Como tal, estava a Relação inibida de condenar, em pedido diverso. 9) Foram violados por erro de interpretação os artigos 258, 262, 220, 334, 442 e 755 do CC, 272, 273, 661 e 713 do CPC e ainda os artigos 2° e 20° da CRP. Deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se o Acórdão recorrido, declarando-se a ineficácia do contrato-promessa em relação ao recorrente, a inexistência de direito de retenção da A., mantendo-se nessa parte a sentença da 1ª Instância, a impossibilidade de ser alterado o pedido, e em todo o caso declarada a inconstitucionalidade material do n° 2 do artigo 442° e da alínea f) do artigo 755° do CC e a inconstitucionalidade orgânica dos DLs. 236/80 de 18-7 e 379/86 de 11/11. Contra-alegou a A.: 1 - Onde exista direito de propriedade não pode existir direito de hipoteca, o que não impediu o D de receber o seu crédito, na execução, pelo produto do bem vendido, o mesmo sucedendo com o titular do direito de retenção já que o regime jurídico é o mesmo. 2 - A recorrida, titular do direito de retenção nem sequer comprou na hasta pública o andar que ocupava, pois este foi adquirido na execução pelo D, que decorrido mais de um ano o vendeu à recorrida, livre de ónus ou encargos, não sendo concebível sequer que o andar permanecesse onerado com um direito de retenção, pois nesse caso a recorrida (ou outro comprador do andar) seria enganada, pois comprava onerado o que lhe foi vendido livre de ónus ou encargos. 3 - Com a venda em hasta pública caducou o direito de retenção transferindo-se este direito e os demais para o produto da venda. 4 - Não há confusão entre a propriedade e o direito de retenção, pois a propriedade passou a ser do D, primeiro, e da recorrida depois, e o andar estava desonerado. 5 - Uma garantia hipotecária não equivale ao direito de propriedade, pelo que a f) do artigo 755° do CC não é materialmente inconstitucional. 6 - Nem organicamente inconstitucional porque os Direitos, Liberdades e Garantias, cuja competência para legislar pertence exclusivamente à Assembleia da República não têm a ver com garantias patrimoniais, mas com garantias, liberdades e direitos pessoais. 7 - O montante da condenação foi muito inferior ao pedido, e a sentença não condenou em coisa diferente do pedido, mas em quantia inferior ao pedido. (Sinal que era da recorrida, e quantia igual a cargo dos vendedores, sendo esta que constitui a indemnização). II MATÉRIA DE FACTO fixada no acórdão recorrido: 1) Os réus B e C contraíram um empréstimo hipotecário para a aquisição da fracção "C", correspondente ao primeiro andar direito do lote 21 da Quinta ...... 2) Por graves dificuldades económicas, em fins do ano de 1993, encontravam-se por pagar à ré D, a entidade mutuante, algumas prestações desse empréstimo. 3) Nos fins do ano de 1993 os réus B e C encontravam-se totalmente impossibilitados de prever a entrada de rendimentos por parte de um ou de outro que lhes permitissem regularizar a situação com o D. 4) A interveniente E dirige com o seu companheiro uma agência imobiliária. 5) Os réus B e C acordaram então com a interveniente E que esta encontraria comprador para a casa e que com o preço da venda, que ela definiria, pagaria toda a dívida à terceira ré e ficaria com o que sobrasse. 6) Em contrapartida os réus deixariam ao seu critério a fixação do preço, entregar-lhe-iam as chaves da casa e passariam uma procuração irrevogável para vender o andar como entendesse. 7) Os réus cumpriram esse acordo. 8) A autora e E, em 5 de Janeiro de 1994, celebraram o acordo escrito junto a fls. 6, pelo qual a segunda prometeu comprar por 9.000 contos o mencionado andar, tendo aí ficado consignado que a primeira entregou a quantia de 1000 contos a título de sinal à segunda. 9) A autora entregou à ré, ao celebrar o contrato, a quantia de 1000 contos, como sinal e princípio de pagamento, e posteriormente entregou-lhe a quantia de 510 contos. 10) O andar valia na altura 9000 contos. 11) Em 7 de Janeiro de 1994, os primeiros réus assinaram o documento cuja cópia se mostra junta a fls. 37 a 39, pelo qual declararam constituir como sua procuradora E, conferindo-lhe poderes para proceder à venda do andar referido, pelo preço, cláusulas e condições que entendesse, para outorgar a referida escritura, receber o preço e dele dar quitação e ainda para assinar contratos-promessa de compra e venda, mais tendo ficado consignado que a procuração era passada no interesse da mandatária e que era irrevogável. 12) Esta procuração foi assinada pelos réus e aceite por E, para formalizar o acordo supra referido em 5) e 6). 13) Os réus procederam ao registo provisório de transmissão do andar em nome da autora, que recorreu a um empréstimo hipotecário de que necessitava para comprar o andar. 14) A autora e E assinaram o acordo escrito junto a fls. 7, datado de 24 de Março de 1994, pelo qual declararam que, relativamente ao contrato-promessa de compra e venda celebrado em Janeiro de 1994, a segunda interveio como representante dos devedores B e C , de que tem procuração com poderes para o acto e que são os proprietários do andar quem se obrigou a vendê-lo e não a mandatária. 15) Os réus marcaram a escritura no Banco Comercial Português - Nova rede, para o dia 19 de Setembro de 1994. 16) No dia anterior à escritura, a procuradora dos réus informou a autora de que a escritura não podia ser celebrada, a não ser que ela pagasse mais dinheiro, pois a verba a receber pelos vendedores não era suficiente para distratar a hipoteca existente a favor da ré D. 17) A autora não esteve disposta a pagar mais dinheiro, que aliás não tinha, pelo que a procuradora dos primeiros réus informou ainda a autora de que iriam obter o dinheiro necessário para expurgar a hipoteca e que celebrariam a escritura quatro meses depois. 18) Mas a procuradora desses réus acabou por informar a autora de que os mesmos não tinham possibilidades de cancelar a hipoteca. 19) Na sequência do contrato-promessa celebrado, a autora, que se divorciou do seu marido, instalou-se no andar, mobilou-o, requisitou água, electricidade e gás e passou a dormir aí todos os dias e a confeccionar as refeições. 20) E assinou o documento de fls. 8, datado de 6 de Janeiro de 1995, pelo qual declarou que rectificava a cláusula 5ª pois a quantia de 51.000$00 a pagar até ao acto da escritura revestia a natureza de sinal e que além dos 1000 contos entregues em 5 de Janeiro de 1994 a autora entregou ainda, a título de sinal, a quantia de 510 contos. 21) A ré D instaurou uma acção executiva contra os primeiros réus, tendo penhorado o referido andar. 22) A ré D veio a adquirir a fracção por venda em hasta pública registada em 25 de Março de 1998, tendo-a depois vendido à autora, que a registou a seu favor em 12 de Outubro de 1998. III CUMPRE DECIDIR:Estão em discussão três questões: a) saber se o contrato-promessa celebrado é ineficaz em relação ao recorrente B e co-R. C; b) se a Relação violou o artº661º do CPC, exorbitando do pedido; c) se existe ainda direito de retenção. Vamos conhecer das três questões pela ordem indicada. Há que lembrar limitar-se este Tribunal a aplicar o direito aos factos fixados na Relação - art. 729 do CPC. Vejamos os documentos fundamentais, pela sua ordem cronológica: Em 5-1-94 a A. e a mediadora E subscreveram o contrato-promessa de compra e venda do andar onde a A. desde logo passou a viver, uma vez que a E entregou a respectiva chave. O documento não foi reconhecido notarialmente, o que era obrigatório (reconhecimento presencial) - art. 410 n. 3 do CC. Tão pouco se faz referência à licença de utilização. De todo o modo, nesta acção, essa nulidade não pode ser invocada contra a A.- parte final do preceito. No contrato-promessa (fl. 6) a E afirmou-se dona do imóvel. Em 7-1-94 (fl. 37) os RR. B e C passaram a favor da E a procuração com plenos poderes para venda do andar - ver supra II-11. Em 24-3-94 (fl. 7) a A. e a E assinaram o "aditamento ao contrato-promessa" para esclarecerem que afinal a E interviera naquele não em nome próprio mas em representação dos RR. B e C, proprietários do andar. Em 6-1-95 (fl. 8) a A. e a E assinaram a "rectificação ao contrato celebrado em 4-1-94". Novamente a E diz intervir na qualidade de representante dos RR. B e C. Que a quantia de 51000$00 revestia a natureza de sinal, acrescentam. E que fora ainda entregue, a título de sinal, a quantia de 510000$00. Perante o factualismo exposto, é de concluir que em 5-1-94 foi celebrado o contrato-promessa entre a A. e a E. Em 24-3-94 elas procederam à cessão da posição contratual (art. 424 e seg. do CC), ficando como promitentes-vendedores os RR. B e C. A E estava já então legitimada para representar os RR. B e C (1). Nem se diga que a E não podia ceder a sua posição contratual aos seus representados, por força do art. 261º do CC (negócio consigo mesmo). Os representados consentiram previamente no negócio. Por outro lado, tal como tudo se passou (ver supra II-5 e seg.), estava por natureza excluído o conflito de interesses. Conclusão: os RR. B e C ficaram vinculados ao contrato-promessa. O contrato, embora formalmente nulo, para eles e para a A., vale. 2ª questão: terá sido violado o artº661º do CPC? Alegou a A. que à data do incumprimento pelos RR., o andar valeria 13000000$00. Ao abrigo do artº442º-2 do CC, pediu 5510000$00 (13000000$00 - 9000000$00+1510000$00), e juros legais a partir da citação. Aconteceu que na alegação após as respostas aos quesitos a A. alterou o pedido. Face à prova obtida, passou a pretender o sinal em dobro. O Sr. Juiz considerou inadmissível essa alteração do pedido. Por isso condenou nos termos expressos supra. Diferente foi o entendimento da Relação. Optou por fixar a indemnização no dobro do sinal (1510000$00 x 2 - hoje 15064 euros). Não merece censura esta decisão. Estando assente, inclusive para as partes, que houve incumprimento, sempre podia optar a A. pela restituição do sinal em dobro. Alegando que o andar valeria à data do incumprimento 13000000$00, e uma vez que houve tradição, era mais vantajoso optar pela alternativa concedida pelo art. 442 n. 2. Perante o resultado da prova, veio por fim a verificar-se que o sinal em dobro era mais vantajoso para ela. Daí que o tenha pedido na alegação antes de lavrada a sentença. Não o podia fazer já, diz o Sr. juiz, num alarde de formalismo deslocado. A verdade é que a A. pediu 5510 c., que fundamentou, como se explicou. É óbvio que o tribunal não pode dar-lhe mais - art. 661 do CPC. Mas não está inibido de dar essa quantia, ou outra menor, a diferente título. "Da mihi factum, dabo tibi jus" - art. 664 do CPC. Por outro lado, é evidente que a A. pretendia ser indemnizada pela outra parte. Esse o seu pedido. Que baseou no incumprimento dos RR - causa de pedir. O Tribunal pode arbitrar quantia menor, sempre ao abrigo do art. 442 n. 2, sem que por isso altere os dados da questão. Não viola o art. 661 do CPC. As partes aceitaram que os 510000$00 também faziam parte do sinal. 3ª e última questão: Direito de retenção Goza do direito de retenção o beneficiário de promessa de transmissão de direito real que obteve a tradição da coisa, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte - art. 755 n. 1 f) do CC (redacção do DL 379/86 de 11-11). Acontece que a A. veio a adquirir o andar, ao comprá-lo ao D, que por sua vez o adquirira em execução - supra II-21) e 22). "Quid Juris" ? A Relação considerou que se mantém o direito de retenção, para efeitos do art. 869 n. 1 e 3 do CPC. O direito de retenção extingue-se pelas mesmas causas por que cessa o direito de hipoteca - art. 761 do CC. Por sua vez o art. 730 prevê vários casos de extinção da hipoteca, não taxativamente, como sublinham Pires de Lima e A. Varela, em nota no CC Anot. No estudo sobre a hipoteca, Vaz Serra (2) cita precisamente entre as hipóteses de extinção da hipoteca a de "confusão" na mesma pessoa das qualidades de credor hipotecário e de proprietário da coisa hipotecada. "A hipoteca extingue-se por falta de interesse". Isto no caso de só haver um credor hipotecário. Versa depois a hipótese de haver outros credores hipotecários. Pode então o credor ter interesse em invocar a sua hipoteca, por motivos óbvios (imagine-se o caso de haver outra hipoteca mais recente). Quando se trata de compra do prédio por credor hipotecário, este corre o risco de ter de pagar várias vezes o valor do prédio adquirido. Compreende-se por isso que lhe possa convir invocar a sua hipoteca, se anterior às outras. Não será então de admitir confusão (3). Com o direito de retenção tem de admitir-se o mesmo regime. Também o direito de retenção caduca com a venda judicial - art. 824 n. 2 do CC. Os direitos que caducarem transferem-se para o produto da venda - n. 3 do artigo. Conservam a prioridade ou preferência que o direito caducado lhes conferia - art. 759 do CC (4) . Neste caso, importa à A. manter a preferência do direito de retenção sobre a hipoteca do D. Há que reconhecer a manutenção desse efeito, como se fez no acórdão recorrido. Para obstar a tal consequência, invocam os RR. a inconstitucionalidade das normas citadas que conferem direito de retenção à A. Mas não têm razão. Os DL 236/80 de 18-7 e 379/86 de 11-11 têm sido criticados na doutrina por conferirem ao promitente-comprador direito de retenção (5). Não se tem posto em dúvida, que saibamos, a sua conformidade ao diploma fundamental (CR). Não se invoque nomeadamente o princípio da confiança, ínsito na ideia do Estado de Direito Democrático (art. 2 da CR). O art. 20, também citado, não vem ao caso. Como escreve Galvão Teles (6), os credores não podem queixar-se pelo facto de o direito de retenção não estar sujeito a registo. Em primeiro lugar porque o registo não é aplicável a todas as coisas. Inclusive a todos os imóveis (pense-se nos privilégios creditórios). Depois, e esta é uma ideia relevante: o direito de retenção envolve por si publicidade de facto. Os credores hipotecários só têm que averiguar quem na realidade habita ou tem a posse do prédio. Não se diga que estão em causa direitos fundamentais, que não é o caso. Nem se pode falar de direitos análogos a direitos, liberdades e garantias. Está em causa apenas a organização económica dos bens. Não se vê que a concessão do direito de retenção ao promitente-comprador viole qualquer desses direitos dos credores hipotecários. Tão pouco os DL em apreço fazem parte da competência exclusiva da Assembleia da República - art. 164 e 165 da CR (na época art. 168 n. 1 b). Não necessitava o Governo de autorização legislativa para legislar sobre essa matéria. Este Tribunal pronunciou-se noutras ocasiões pela conformidade à CR dos DL 236/80 (7) e DL 379/86 (8). Improcedendo as razões dos recorrentes, negam-se as revistas. Custas pelos recorrentes. Lisboa, 30 de Janeiro de 2003. Nascimento Costa, Dionísio Correia, Quirino Soares. ---------------------------- (1) ver hipótese equiparável de cessão da posição contratual apontada por M. Henrique Mesquita, in RLJ 132, 130 (2)BMJ 63, 316 (3)Vaz Serra (ibidem) cita nesse sentido a generalidade da doutrina estrangeira) (4)Calvão da Silva, in Sinal e Contrato-Promessa, 8ª edição, pg. 165 e Galvão Teles, in O Direito anos 106-119, pg. 28 (5)ver por todos a. Varela, in Sobre o Contrato-Promessa, 2ª edição, pg. 106 e seg. (6)loc. cit., 29 (7)acórdãos de 15-5-90, in BMJ 397, 478 e de 28-1-99, rec. 1061/98 (8)citado ac. de 28-1-99 |