Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08S0930
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA GRANDÃO
Descritores: TRABALHO SUPLEMENTAR
TEMPO DE TRABALHO
TEMPO DE DESCANSO
DURAÇÃO DO TRABALHO
BOMBEIRO
LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA
QUESTÃO NOVA
Nº do Documento: SJ200911190009304
Data do Acordão: 11/19/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA
Sumário :
I – O direito comunitário, como o nosso direito interno, dividem o tempo de cada trabalhador por conta de outrem, em duas grandes categorias dicotómicas: tempo de trabalho e tempo de descanso.

II – O tempo de trabalho corresponde ao período em que o trabalhador está a trabalhar ou se encontra à disposição da entidade empregadora e no exercício da sua actividade ou das suas funções; o tempo de descanso obtém-se por exclusão, de onde decorre que o respectivo conceito pressupõe a prévia e necessária integração da primeira modalidade (tempo de trabalho).

III – A disponibilidade relevante, para efeitos da sua qualificação como tempo de trabalho, pressupõe que o trabalhador permaneça no seu local de trabalho.

IV – Assim, se o trabalhador permanece no seu local de trabalho e se encontra disponível para trabalhar, esse período de tempo deve considerar-se como tempo de trabalho; se o trabalhador permanece disponível ou acessível para trabalhar, mas fora do seu local de trabalho ou do local controlado pelo empregador (por exemplo, no seu domicílio), esse período de tempo deve considerar-se como tempo de repouso.

V – Não se demonstra que o trabalhador (Bombeiro) prestou trabalho suplementar se, tendo sido admitido ao serviço do empregador (Associação de Bombeiros Voluntários), como quarteleiro – o que pressupunha uma disponibilidade permanente de 24 horas por dia (excepto aos domingos e feriados, das 8h às 21.00h), uma vez que tinha de atender o telefone a qualquer hora do dia ou da noite e, na sequência deles, eventualmente, contactar motoristas das viaturas e o Comando dos Bombeiros –, se constata que residia no 1.º andar do edifício onde se encontrava sediada a delegação dos Bombeiros, não sendo, todavia, tal residência o seu local de trabalho, e não especificou na petição inicial os concretos períodos de tempo prestados em laboração para além dos limites diários e semanal legalmente estabelecidos.

VI – Tendo o trabalhador fundado o pedido de pagamento de trabalho suplementar prestado (toda a prestação laboral excedentária das 8 horas diárias) apenas na aludida disponibilidade permanente para a prestação desse acréscimo de trabalho – omitindo qualquer referência alegatória e, consequentemente, probatória, sobre a sua efectiva produção –, não é possível utilizar o mecanismo enunciado no artigo 661.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (relegação da liquidação para momento ulterior).

VII – E, tendo apenas na revista formulado a pretensão, subsidiária, de indemnização por eventuais danos que a operacionalização da disponibilidade permanente lhe acarretou, não é possível conhecer-se dela se, por um lado, o trabalhador havia intentado a acção não questionando a própria validade de uma relação jus-laboral em que se convencione um regime de disponibilidade permanente, por banda do trabalhador, durante 24 horas por dia, e se, por outro, essa questão não foi submetida à apreciação das instâncias.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:



1- RELATÓRIO


1.1
AA intentou, no Tribunal do Trabalho de Viseu, acção declarativa de condenação, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho contra “Associação H... dos B... V... de V...”, pedindo que seja declarada a nulidade do despedimento de que foi alvo por parte da demandada e que esta seja condenada a pagar-lhe, entre o mais que discrimina, a retribuição do tempo de trabalho suplementar prestado, uma indemnização moratória e outra por despedimento ou, em alternativa desta última, a reintegração no seu posto de trabalho.
A Ré sustenta a plena legalidade do despedimento operado, o pagamento integral de todas as retribuições devidas e a inexigibilidade de qualquer prestação a título de trabalho suplementar, uma vez que as funções da Autora pressupunham uma disponibilidade permanente de 24 horas por dia.
Em sede reconvencional, reclama da Autora o pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais, perda de donativos e valor correspondente à utilização gratuita de uma fracção autónoma instalada em edifício da Ré, exploração de um bar sediado no mesmo edifício e consumos, também gratuitos, de água, luz e telefone.
Ambas as partes peticionam ainda a condenação da outra como litigante de má fé.
1.2
Instruída e discutida a causa, veio a 1ª instância a julgar improcedente todos os pedidos das partes, com excepção da remuneração devida à Autora a título de trabalho suplementar, que quantificou em € 100.453,16 condenando a Ré no pagamento respectivo, com a componente moratória inerente.
Irresignada com o segmento decisório que a desfavoreceu, a Ré – e apenas ela – apelou para o Tribunal da Relação de Coimbra, onde obteve integral ganho da causa, visto que ali foi revogado o segmento em questão e absolvida a demandada do pedido correspondente.
A apontada divergência decisória radica no díspar entendimento das instâncias sobre o conceito de trabalho suplementar:
- enquanto o Exm.º Juiz valorizou como tal a permanente disponibilidade da Autora, considerando que “… todo o tempo era de trabalho” – afora o descanso semanal, as férias e os períodos de baixa – a Relação entendeu “… que a retribuição de qualquer trabalho suplementar só relevaria se alegada e demonstrada tivesse sido a sua efectiva execução no âmbito da disponibilidade permanente”, sendo que esses dados factuais não foram carreados ao petitório.
1.3
Desta feita, a dissidência provém da Autora, que pede a presente revista, onde colige o seguinte núcleo conclusivo útil:
1 – face à factualidade levada aos docs. de fls. 38 a 43, que constam dos factos provados nºs 32 e 35 – que a Ré não impugnou nem pôs em causa, face aos termos em que a Ré transmitiu a tal correspondência trocada com a A. e dada como provada, resulta de forma incontroversa, não só que esta estava ao serviço da R. em disponibilidade permanente de 24 horas por dia, mas também que a R. confirma que assim era e, reconhecendo a premência dessa disponibilidade permanente de quem assegurasse o serviço, quando a A. se recusou a continuar a cumprir aquele horário, não só propôs o desdobramento do período de 24 horas por 3 pessoas em rotatividade, como contratou (não uma) mas novos quarteleiros para o efeito;
2 – a constatação daquele factos, traduzida em actos de atendimento do telefone, contacto com motoristas e bombeiros e com o Comando de Vouzela a qualquer hora do dia ou da noite, limpeza de instalações e viaturas, resulta de forma ostensiva de confissão expressa da R., que é irretractável – art.º 567º nº1 do C.P.C. – e é o reconhecimento efectivo que a R. fez da realidade dos factos que lhe são desfavoráveis e favorecem a Autora – art.ºs 352º e 356º nº1 do C.C. – confissão essa que sendo escrita, tem força probatória plena contra a A. – art.º 358º nº1 do C.C. -;
3 – a R., ao confessar a disponibilidade de 24 horas por dia da A., no exercício das suas funções de quarteleira desde 1/11/98, confessou também, e em consequência que o horário de trabalho da A. era de facto de 24 horas por dia, o qual excedia em 16 horas/dia o horário legal de trabalho, como confessou, do mesmo passo, que a A. prestou trabalho suplementar para aquela, reportado a todo o tempo que o mesmo excedia o período diário legal, desde 1/11/98 até à data em que cessou o vínculo laboral (art.ºs 349º e 351º do C.C.);
4 – ao confessar tais factos, aliás provados na sentença e documentados nos autos através das cartas que remeteu à A., a R. veio confirmar a matéria a tal propósito alegada pela A., quanto à prestação de trabalho suplementar, nos art.ºs 15º, 17º a 20º, 29º a 32º (docs. Nºs 2 e 3), 100º a 104º da P.I. e, portanto, confirmar, do mesmo passo, o teor do doc. nº16 da P.I., que discrimina o trabalho suplementar prestado de 1/11/98 até à data da cessação do vínculo, o que tudo determina que aquele doc. nº 16 é documento idóneo bastante para fazer prova dos créditos reclamados de trabalho suplementar, em conformidade com os art.ºs 349º, 351º, 352º, 356º, nº1, 358º nº1 e 376º nºs 1 e 2 do C.C., 567º do C.P.C. e 381º do C.T., cujos preceitos o Acórdão revidendo expressamente violou;
5 – está assente nas instâncias, e aceite pelas partes, que o regime de trabalho da A. era o de disponibilidade permanente de 24 horas por dia… factualidade que não pode ceder a argumentos de cariz moralista e indutor de problemas de consciência, como pretende a Ré e o referido Acórdão, com a finalidade de contrariar a situação real dos autos;
6 – a A. cumpria as tarefas supra referidas em 2 -, que lhe eram cometidas pela R., sob as suas ordens e direcção, fazendo-o em disponibilidade permanente, até porque a R. não tinha outro trabalhador ao serviço que permitisse praticar um horário rotativo – a A. apenas não tinha de estar disponível aos Domingos e feriados e, tão só, das 8 às 21 horas – factos nºs 15, 19, 20º e 35;
7 – fosse o trabalho muito ou pouco, a A. é que tinha de o executar, durante as 24 horas do dia, ainda que com prejuízo da sua liberdade e vida pessoal, pois era-lhe exigido que estivesse disponível durante aquele período para executar as ditas tarefas;
8 - a disponibilidade permanente da A., para executar a sua actividade ao serviço da R., implicava a indisponibilidade permanente para si própria, para a sua vida pessoal e familiar, pois nunca poderia ter a certeza do tempo de que para o efeito poderia dispor;
9 – a disponibilidade permanente para atender chamadas e coordenar o serviço, contactando bombeiros, motoristas das viaturas e o Comando de Vouzela, sem prejuízo de outros trabalhos que a A. também executava, corresponde inequivocamente a matéria de facto;
10 – não se mostra excluído do tempo de trabalho remunerável aquele em que o trabalhador, embora não estando a desenvolver trabalho efectivo, tem de estar de facto adstrito à realização da prestação do trabalho a qualquer momento, desde que seja necessário e seja chamado para o efeito, tudo em cumprimento das ordens, instruções e determinação do empregador, no exercício das funções que lhe estão afectas;
11 – perante os art.ºs 163º e 197º nº1 do C.T. , é manifesto que tem de se considerar trabalho suplementar todo aquele que é prestado fora do horário de trabalho, quer o trabalhador esteja em efectivo exercício de actividade, quer esteja disponível e adstrito a exercê-la , segundo o critério e disposição da entidade patronal, o que lhe confere o direito à respectiva remuneração – art.º 258 nºs 1 e 2 do C.T.;
12 – o argumento da anuência do trabalhador deve ser esgrimido com particular cautela num ramo de direito que assenta, em grande medida, sobre a crítica à autonomia negocial, por considerar-se que a vontade aparentemente expressa do trabalhador é, frequentemente, tão só a expressão da sua necessidade económica…e, por maioria de razão, as anuências tácitas devem ser afirmadas com especial cuidado, não confundindo situações de tolerância com situações de concordância ou adesão contratual;
13 – estão aqui em jogo direitos indisponíveis (à duração legal do trabalho) e limitações de ordem pública para a tutela da própria saúde física e mental do trabalhador, como, aliás, decorre da Directiva sobre organização do tempo de trabalho e dos diplomas legais em vigor em parte do período em causa (1998 a 2005);
14 – nos termos da “Declaração Universal dos Direitos do Homem” de 10/12/98 (art.ºs 23º nº1 e 24º), do “Pacto Internacional Sobre os Direitos Económicos Sociais e Culturais” – L. 45/78, de 11 de Julho – (art.º 7º al. D)), da “Carta Social Europeia”, aprovado por resolução da A.R. de 21/91, publicada no D.R. , I Série, de 6/8/92 e ratificada pelo Decreto do D.R. nº 38/91, de 6/8/91 (Preâmbulo 1 art.º 2º nº1), da “Carta Comunitária dos Direitos Sociais e Fundamentais dos Trabalhadores” de 9/12/89 a que Portugal aderiu, os Estados partes reconhecem o direito de todas as pessoas de gozar de condições de trabalho equitativas, justas e favoráveis, que assegurem em especial repouso, lazer, limitação razoável de horas de trabalho, férias periódicas pagas… e comprometendo-se a assegurar o exercício e desenvolvimento efectivo de tais condições;
15 – permitir a invocação de que o trabalhador aceitou trabalhar, com total desrespeito pelos limites legais do período normal de trabalho, implicaria, na prática, tornar irrelevante a exigência de acordo escrito do trabalhador para a isenção do horário de trabalho, figura aliás restrita a algumas actividades, que implica retribuição especial e exige a necessária autorização da Inspecção de trabalho (hoje Autoridade para As Condições de Trabalho), o que não é o caso dos autos;
16 – a partir do momento em que a “Directiva Sobre Organização do Tempo de Trabalho” foi transposta para nós, o legislador e o intérprete ficam vinculados à opção fundamental da “Directiva” em matéria de organização do tempo de trabalho em geral, segundo o qual só existe ou tempo de trabalho ou tempo de descanso: “tertium non datur”.
17 – o Acórdão revidendo não teve em conta as funções concretamente desempenhadas pela A. : é que até pode existir trabalho subordinado no domicílio e das funções exercidas pela A. decorre, e resulta da matéria provada, que o local onde esta vivia era ainda (e também) o seu local de trabalho (a A. vivia na Fracção – casa do quarteleiro- instalada no próprio edifício da Secção de Campia), pois os atendimentos telefónicos, a qualquer hora do dia e da noite, eram, e podiam ser, também realizados na própria Fracção ou, em todo o caso, no mesmo edifício, na casa do quarteleiro;
18 – por virtude do seu contrato, o tempo alegadamente livre da A. não era inteira e genuinamente livre, pois este implica inteira disponibilidade para o gerir; no caso, a A. cometeria uma infracção disciplinar se, no quadro temporal exposto, não estivesse em casa para atender as chamadas e desenvolver os contactos posteriores, de onde resulta que a fracção onde ela vivia era ainda e também o seu local de trabalho;
19 – seria insustentável que, por a entidade patronal não ter cumprido o seu dever legal de fixar o horário de trabalho, a trabalhadora ficasse sem quaisquer direitos relativamente ao número de horas de trabalho que prestou, muito para além do limite legal. A solução terá, pois, que consistir em atribuir-lhe uma compensação por esse número de horas “extra” de trabalho que realizou e que, na falta de qualquer outro equivalente legal, terão de ser consideradas outras tantas horas de trabalho suplementar;
20 - o menor dos males será fazer pagar o empregador pelo incumprimento manifesto das regras legais em matéria de tempo de trabalho, não se podendo admitir que, em homenagem ao interesse público, por se tratar de Associação Humanitária, seja permitido à Ré fazer tábua rasa daquelas regras;
21 – isto é, independentemente das alegadas características humanitárias, ou outras, do empregador, tem de entender-se que são também tempo de trabalho os momentos em que o trabalhador se mostra disponível para oferecer a sua prestação, disponibilidade não aproveitada pelo empregador, por qualquer causa;
22 – a não observância dos dispositivos legais supra citados, dos princípios enformadores que lhes subjazem e a adopção de comportamentos violadores dos mesmos, que contendem com os direitos e garantias dos trabalhadores, com a sua dignidade humana, com a segurança e saúde no trabalho, são obviamente inconstitucionais, porque violam os princípios consagrados na nossa Lei Fundamental, nomeadamente os seus art.ºs 58º nº1, 59º nº1 als B), C) e D) e nº2 al. B), que acarretam também a violação dos princípios da igualdade, da Segurança Social e da Solidariedade, previstos nos art.ºs 13º e 63º nºs 1, 3 e 4 da C.R.P;
23 – o Acórdão revidendo, ao decidir como fez, violou os comandos legais supra referidos em 11, 14- e 22-;
24 – não obstante o que se vem de expor, e caso fosse outro o entendimento do S.T.J., sempre estaria, como está, nos seus poderes de disposição e decisão condenar a Ré em indemnização à Autora, a título de danos não patrimoniais, até ao limite do valor do pedido e em nunca menos do que a condenação da 1ª instância, o que não fere o art.º 661º nº1 do C.P.C., nos termos do qual o Tribunal pode corrigir o pedido, quando este traduza mera qualificação jurídica, sem alteração do teor substantivo, ou quando a causa de pedir, invocada expressamente pelo Autor, não exclua uma outra abarcada por aquela, sendo que, no caso dos autos, a actuação ilegítima e abusiva do empregador sempre daria lugar à obrigação de indemnizar;
25 – não operando a revogação do Acórdão recorrido pelos motivos apontados supra, sempre assistiria à Autora, como assiste, o direito à indemnização pelos danos morais decorrentes das situações descritas, que lesaram a sua dignidade humana, o seu direito à qualidade de vida e de trabalho, o seu direito ao lazer, à vida em sociedade, ao descanso e a tudo o mais o que vem consagrado na C.R.P. e nos demais diplomas – supra estatais – a que Portugal se vinculou;
26 – esses danos, que a Autora sofreu pela violação reiterada dos seus direitos desde 1/11/98 até à cessação do contrato em 2005, conduziram até que ela viesse a padecer de depressão, pelo que deverão os mesmos ser indemnizados nos termos supra referidos, sob pena de tremenda injustiça, com violação manifesta dos art.ºs 661º do C.P.C., 494º e 496º do Cod. Civil.
1.4
Em abono da sua pretensão, a recorrente juntou com as alegações douto Parecer subscrito pelo Senhor Professor Júlio Vieira Gomes.
1.5
A Ré contra-alegou, sustentando a necessária confirmação do julgado.
1.6
A Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta, cujo douto Parecer mereceu resposta dissidente por banda da Ré, sufraga o entendimento de que “… a Autora tem direito ao acréscimo retributivo pelo trabalho suplementar prestado, devendo relegar-se para execução de sentença o apuramento dos períodos concretos de tempo em que esse trabalho foi prestado”.
1.7
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
**

2 – FACTOS
Dá-se aqui por reproduzida a factualidade fixada pelas instâncias, que não vem censurada nem se afigura possível de alteração – art.ºs 713º nº6 e 726º do C.P.C. – sem prejuízo de se coligirem pontualmente os factos tidos por pertinentes.
3 – DIREITO
3.1
O petitório inicial da Autora comportava dois blocos nucleares:
- o pedido de reconhecimento da ilicitude do seu despedimento, com as consequências retributivas e ressarcitórias daí resultantes;
- o pedido de retribuição do trabalho suplementar alegadamente prestado a favor da Ré.
A Autora conformou-se com a decisão da 1ª instância, no ponto em que ali se rejeitou a sua tese sobre a natureza supostamente ilícita do falado despedimento, cujo segmento decisório transitou, por isso, em julgado.
Em contrapartida, a sentença acolheu, quase integralmente, o entendimento da demandante sobre a reclamada retribuição do dito trabalho suplementar, condenando a Ré a pagar-lhe, a esse título, a quantia de € 100.453,16, acrescida de juros moratórios.
Foi esta vertente decisória que mereceu a censura da Ré, pelo que o litígio das partes ficou circunscrito, desde então, à problemática do trabalho suplementar.
A Ré obteve integral ganho de causa na Relação, que a absolveu do pedido correspondente.
Perante a divergência frontal das instâncias – cujas motivações já ficaram sumariamente anotadas na rubrica “Relatório” – o impulso recursório para este Supremo Tribunal foi accionado, desta feita, pela Autora.
É, pois, esta a única questão em debate na revista.
3.2.1
A anunciada questão assume, no concreto dos autos, uma matriz específica: ao invés daquilo que é mais recorrente neste domínio – saber se ocorreu efectiva prestação laboral para além do horário convencionado, sob a directa incumbência do empregador ou, quando menos, com o seu conhecimento e expressa ou tácita concordância – no caso em apreço importa averiguar apenas se o regime de “disponibilidade permanente”, a que a Autora se achava contratualmente vinculada, deve ser havido como trabalho efectivamente prestado para efeito da sua remuneração como trabalho suplementar.
A 1ª instância considerou que a sobredita disponibilidade (com excepção do período que medeava, aos domingos e feriados, entre as 8h e as 21h) integrava o próprio horário de trabalho da Autora, pelo que se impunha qualificar como suplementar toda a prestação laboral – efectiva ou ficcionada – que ultrapassasse as 8 horas diárias e as 40 horas semanais.
Conferindo à questão um enquadramento jurídico diverso – e coligindo, nesse sentido, o entendimento sufragado pelos Acórdãos desta Secção de 2/11/2004 e de 23/2/2005, respectivamente nas revistas nºs 340/04 e 3164/04 – sentenciou o Acórdão em crise que a retribuição de qualquer trabalho suplementar pressupõe a sua efectiva execução no âmbito de uma aprazada disponibilidade permanente, acabando por rejeitar a pretensão da Autora com base em omissão alegatória dos elementos factuais susceptíveis de corporizar essa efectiva prestação.
Censurando o entendimento da Relação, a recorrente discorre, em suma, como segue:
-não se mostra excluído do tempo de trabalho remunerável aquele em que o trabalhador, não estando embora a desenvolver trabalho efectivo, está efectivamente disponível para realizar a qualquer momento a sua prestação, bastando que isso se torne necessário e ele seja chamado para o efeito;
- como assim – e visto o preceituado nos art.ºs 163º, 197º nº1 e 258º nºs 1 e 2 do Código do Trabalho – torna-se mister que se haja como trabalho suplementar, e a ser remunerado como tal, todo aquele que exorbite o horário convencionado, sendo indiferente que o trabalhador esteja em efectivo exercício prestacional ou meramente disponível para o efeito;
-acresce que a casa onde vivia era ainda (e também) o seu local de trabalho, pois os atendimentos de telefone, a qualquer hora, eram, e podiam ser, igualmente efectuados naquela casa, de onde decorre que o seu tempo supostamente disponível (para actos da sua vida pessoal e familiar) não era genuinamente livre.
Considera ainda a recorrente que a violação dos princípios informadores dos citados preceitos legais, beliscando os direitos e garantias dos trabalhadores, designadamente a segurança e saúde no trabalho, infringe os art.ºs 58º nº1, 59º nºs 1 als. B), C) e D) e 2 al. B) do Texto Fundamental e, por inerência, viola os princípios da igualdade, da segurança social e da solidariedade, plasmados nos art.ºs 13º e 63º nºs 1, 3 e 4 do mesmo diploma.
Por fim, reclama a recorrente que este Supremo Tribunal, ainda que não acolha a sua tese, condene a Ré a pagar-lhe uma indemnização – de montante não inferior à retribuição fixada em 1ª instância – pelos danos não patrimoniais decorrentes da violação reiterada dos seus apontados direitos.
3.2.2
A disciplina legal da duração do trabalho, ainda que haja assimilado, desde há muito, conceitos nucleares duradouros, não se manteve homogénea no tempo, conhecendo diversas alterações, corporizadas em sucessivos diplomas legais.
O art.º 45º do “Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho”, aprovado pelo D.L. nº 49.408, de 24 de Novembro de 1969 (LCT) entendia por período normal de trabalho o tempo de trabalho que o trabalhador deve prestar ao empregador, a aferir por um número de horas diárias e semanais.
Trata-se de conceito integralmente recuperado pelo art.º 158º do Código do Trabalho.
Esse número de horas começou por ser fixado em 8 diárias e 48 semanais – art.º 5º nº1 do D.L. nº 409/71, de 27 de Setembro ( LDT) – passando o período semanal, sucessivamente, para 44 horas – art.º 1º da Lei nº2/91, de 17 de Janeiro e D.L. nº 398/91, de 16 de Outubro – e, por virtude da Lei nº 21/96, de 23 de Julho, para 42 horas com efeitos reportados a 1 de Dezembro de 1996 e para 40 horas a partir de 1 de Dezembro de 1997.
Este último é o período que actualmente ainda se mantém – art.º 163º nº1 do C.T..
O horário de trabalho, por sua vez, consiste na determinação das horas do início e termo do período normal de trabalho diário e dos intervalos de descanso, incumbindo a sua fixação ao empregador, dentro dos condicionalismos legais – art.ºs 49º da LCT, 11º nº1 e 2 da LDT e 170º do C.T..
Neste contexto, está assegurado que o trabalhador não pode prestar mais de cinco horas de trabalho consecutivo, impondo-se um “intervalo de descanso” não inferior a 1 hora nem superior a 2 horas – art.º 10º nº1 da LDT.
A Lei nº 73/98, de 10 de Novembro – em vigor à data em que se iniciou a relação laboral questionada nos autos – assume particular relevo no domínio da “Organização de Tempo de Trabalho”, visto que procedeu à transposição da Directiva Europeia nº 93/104 CE, do Conselho, de 23 de Novembro, operando a definição de “tempo de trabalho” e, por exclusão, de “Período de Descanso”.
Assim, Tempo de Trabalho é “qualquer período durante o qual o trabalhador está a trabalhar ou se encontra à disposição da entidade empregadora e no exercício da sua actividade ou das suas funções”, sendo Período de Descanso “qualquer período que não seja de trabalho” – art.º 2º nº1 als. A) e B), respectivamente.
Estas noções correspondem, aliás, às que se acham vertidas nos art.ºs 155º e 157º do C.T..
3-2-3
O quadro normativo atinente ao “Tempo de Trabalho” é decisivo para a solução do caso “sub-judicie”.
Já deixámos consignado que esse quadro reflecte a disciplina consagrada pela Directiva Comunitária nº 93/104/CE.
Tal Directiva veio a ser inicialmente emendada pela Directiva nº 2000/34/CE, de 22 de Junho e, mais tarde, substituída pela Directiva nº 2003/88/CE, de 18 de Novembro, actualmente em vigor.
Apesar disso, o bloco normativo relevante, na parte ora útil, continua a ser idêntico: em todos esses diplomas se acolhe a mesma definição de Tempo de Trabalho, entendendo-se como tal “ qualquer período durante o qual o trabalhador está a trabalhar ou se encontra à disposição da entidade patronal e no exercício da sua actividade ou das suas funções, de acordo com a legislação e/ou a prática nacional” – art.º 2º nº1.
Como se vê, trata-se de conceito em tudo idêntico àquele que veio a ser consagrado no nosso direito interno.
Do mesmo passo, também as faladas Directivas – à semelhança do que igualmente se passa entre nós – qualificaram como Período de Descanso qualquer período que não seja tempo de trabalho – art.º 2º nº2.
Desta sorte, será forçoso reconhecer que o direito comunitário, como o nosso direito interno, dividem o tempo de cada trabalhador por conta de outrem em duas grandes categorias dicotómicas: tempo de trabalho e tempo de descanso.
Ademais, a qualificação desta segunda modalidade é obtida por exclusão, de onde decorre que o respectivo conceito pressupõe a prévia e necessária integração daquela primeira modalidade.
Deste modo, torna-se mister apurar a exacta densificação do conceito “tempo de trabalho”.
3.2.4
A questão principal que se coloca reside em saber se o legislador (comunitário e nacional), ao utilizar a disjuntiva entre os dois primeiros critérios da norma (“está a trabalhar ou se encontra à disposição da entidade patronal”), pretendeu, ou não, introduzir uma alternativa entre a realização efectiva da prestação laboral e a mera disponibilidade do trabalhador.
Embora o elemento literal aponte claramente para a primeira hipótese, a questão foi já objecto de largo debate no Tribunal de Justiça das Comunidades, designadamente no âmbito do “Caso Simap” (Espanhol) e do “Caso Jaeger” (Alemão).
E a verdade é que aquele Órgão – contrariando a tese defendida pelos respectivos Advogados Gerais, que convergiam nesse ponto – propendeu para a exigência cumulativa daqueles dois critérios.
Mais: estendeu essa exigência ao terceiro elemento da norma (“e no exercício da sua actividade ou das suas funções”).
Apesar disso, veio a concluir – era esta a questão nuclear nos dois casos – que a simples presença de pessoal hospitalar no seu local de trabalho, prevenindo a hipótese de se tornar necessária a sua intervenção laboral, era suficiente para integrar o conceito de tempo de trabalho, não sendo necessário, para esse efeito, que surgisse algum paciente a demandar uma efectiva prestação dos serviços disponibilizados.
Neste contexto, o referido Tribunal também já teve ensejo de precisar, a diferença entre as situações de disponibilidade e de acessibilidade.
Conforme nos dá conta o Prof. Júlio Vieira Gomes (in “Direito do Trabalho, Volume I, pág. 657, nota 1682), “… em acórdão de 3 de Outubro de 2000, o Tribunal entendeu que a actividade levada a cabo pelos médicos que tinham de estar presentes no hospital de prontidão representava tempo de trabalho no sentido da Directiva. A argumentação diverge, contudo, a nosso ver, da do Advogado Geral. Em primeiro lugar, porque o tribunal, que considera que as noções de tempo de descanso e tempo de trabalho se excluem mutuamente, parece entender (ponto 48) que nestes períodos de disponibilidade, com presença física no local de trabalho, as várias condições (pelo menos as duas primeiras) da definição de tempo estão preenchidas: “mesmo que a actividade efectivamente desenvolvida varie segundo as circunstâncias, a obrigação destes médicos de estar presentes e disponíveis no local de trabalho, com vista à prestação dos seus serviços profissionais, corresponde ao exercício das suas funções”.
Resulta do ponto 50 do Acórdão ser diversa a posição do Tribunal quanto aos períodos em que o trabalhador esteja disponível, mas não fisicamente presente no local de trabalho, estando simplesmente disponível: nesta situação, “os médicos podem gerir o seu tempo com menos constrangimentos e aplicá-lo na prossecução de interesses próprios, pelo que só o tempo ligado à prestação efectiva de serviços deveria ser considerado como tempo de trabalho” “ (FIM DE TRANSCRIÇÃO – sublinhados nossos).
Poderá questionar-se a justiça de reconduzir, sem mais, a situação de mera acessibilidade ao conceito de tempo de repouso.
Neste particular, talvez se impusesse a criação de uma categoria intermédia, susceptível de conferir uma mais adequada protecção à saúde e segurança dos trabalhadores.
Mas, para um sistema dicotómico – “tertium non datur” - como é o nosso, e também o Comunitário, não se vislumbra como possa sustentar-se que os tempos de disponibilidade fora do local de trabalho, (acessibilidade) sejam outra coisa que não tempo de repouso.
Também aqui nos deixa o referido Professor (ob. cit., pags. 660 e 661) uma específica reflexão:
“… Uma pura bipartição do tempo entre tempo de trabalho e tempo de descanso, sem que exista qualquer terceira categoria, embora tenha a vantagem da simplicidade, suscita sérios problemas. Em primeiro lugar, e na esteira das posições assumidas pelo Tribunal de Justiça, parece que o tempo em que o trabalhador permanece acessível ou disponível, mas fora do seu local de trabalho ou do local controlado pelo empregador – por exemplo, no próprio domicílio do trabalhador – dificilmente poderá ser considerado tempo de trabalho. Mas a sua qualificação, que se afigura forçosa como tempo de descanso, não deixa de ser problemática: será, no limite, conforme os objectivos da directiva, e à noção tão ampla de saúde em que ela assenta, que o tempo de descanso seja integralmente composto por tempo em que o trabalhador se obrigue a estar disponível no seu domicílio, à espera de um eventual pedido de actividade pelo empregador? “ (FIM DE TRANSCRIÇÃO – sublinhados nossos).
Os dois Acórdãos deste Supremo Tribunal, já identificados anteriormente, (3-2-1, fls ) também discorreram sobre a questão ora em debate, fazendo-o em termos que merecem o nosso acolhimento.
Citando Albino Mendes Baptista (“Tempo de trabalho efectivo, tempos de pausa e tempo de “terceiro tipo”, in R.D.E.S., Ano XLIII, Janeiro-Março de 2002, pags. 29 e segs.), aqueles Arestos também aludem ao “Caso Simap”, dizendo que ali se fez a distinção entre “tempo de presença física na empresa e “tempo de localização “nos seguintes termos:
“Na primeira, uma vez que o trabalhador… tem que estar presente e disponível no local de trabalho, com vista à prestação dos serviços, a actividade insere-se no exercício das suas funções, pelo que é de qualificar de tempo de trabalho.
Na segunda, embora o trabalhador esteja à disposição da entidade patronal, na medida em que deve poder ser sempre localizado, ele pode gerir o seu tempo com menos constrangimentos que na situação anterior e pode dedicar-se a actos do seu próprio interesse, daí que, se bem que o trabalhador deva estar acessível permanentemente, apenas o tempo relacionado com a sua prestação efectiva de trabalho deve ser considerado “tempo de trabalho”.
Por isso, no dizer do referido autor, “… o conceito de trabalho efectivo deve ser construído tendo por base as ideias de disponibilidade e de presença física na empresa, sem prejuízo de uma abordagem específica para as profissões de exercício itinerante e do trabalho realizado pelo trabalhador no seu domicilio”.
Dito de outro modo: se o trabalhador permanece no local de trabalho e está disponível para trabalhar, esse período de tempo deve considerar-se como tempo de trabalho; mas já se o trabalhador permanece fora do seu local de trabalho, por exemplo em casa, em que pode, ainda que de uma forma limitada, gerir os seus próprios interesses e desenvolver, até, actividades à margem da relação laboral que mantém com a entidade empregadora, apesar de se encontrar disponível para trabalhar para esta, como regra esse período de tempo não pode considerar-se tempo de trabalho” (FIM DE TRANSCRIÇÃO).
Como se vê, o entendimento perfilhado nestes dois Arestos está em perfeita sintonia com aquele que, num quadro normativo idêntico, também vem sendo acolhido pelo Tribunal de Justiça das Comunidades: a disponibilidade relevante, para efeitos da sua qualificação como tempo de trabalho, pressupõe que o trabalhador permaneça no seu local de trabalho.
3.2.5.
É altura de reverter ao concreto dos autos.
Na parte ora útil, as instâncias fixaram a seguinte factualidade:
- o marido da A. foi admitido ao serviço da R. como motorista, a tempo inteiro, em Junho de 1993;
- após essa admissão, a R. cedeu ao marido da A. gratuitamente, a Fracção Autónoma (1ª autora) do edifício onde está instalada a Secção de C... dos B... V... de V... e disse-lhe para trazer para lá a sua esposa, a qual, ao tempo, não trabalhava;
- a cedência dessa fracção incluía a utilização gratuita de água, luz e telefone;
- tratava-se de uma casa de quarteleiro, como também existe em Vouzela e em tantas outras Associações de Bombeiros pelo País fora;
- logo no ano de 1993, e na sequência da cedência daquela casa de quarteleiro ao marido da A., o casal, que não tinha casa própria, passou a viver nessa fracção;
- a Direcção da R. combinou com a A., que se encontrava desempregada, que esta efectuaria serviços de limpeza e de atendimento do telefone, no quartel de Campia, em casos pontuais, tendo pedido ao Presidente da Junta de Freguesia de Campia que este a compensasse com alguma verba, ao que esta anuiu, tendo o Presidente daquela Junta passado a pagar a A., directamente, a quantia de 15.000$00 mensais;
- em 1/11/98, a A. foi admitida ao serviço da R. para, sob as suas ordens e direcção, exercer as funções de quarteleira na Secção destacada de Campia, mediante a remuneração acordada ao tempo entre as partes, correspondente ao salário mínimo nacional, remuneração essa sucessivamente actualizada;
- a função de quarteleira pressupunha uma disponibilidade permanente de 24h por dia, uma vez que tinha de atender o telefone a qualquer hora do dia ou da noite e contactar motoristas das viaturas e o Comando de Vouzela;
- desde a sua admissão ao serviço da R., a A. trabalhou nas instalações da Secção de Campia, cumprindo as tarefas que lhe eram cometidas, nomeadamente atendendo o telefone, contactando com o Comando de Vouzela e com os motoristas e bombeiros, limpando as instalações de Campia e as viaturas;
- a R. não tinha ao seu serviço, naquela Secção de Campia, outro trabalhador que permitisse à A. praticar um horário rotativo, pelo que esta, de acordo com as instruções da R., tinha de estar pronta a atender o telefone a qualquer hora do dia ou da noite;
- a A. apenas não tinha que estar disponível ao serviço da R. aos domingos e feriados, das 8 às 22 horas;
- a R. não pagou à A. qualquer importância a título de retribuição por trabalho suplementar.
A factualidade transcrita demonstra que a Autora, com excepção do período que mediava entre as 8 e as 21 horas dos Domingos e feriados, se encontrava em regime de disponibilidade permanente.
Mas, de entre o núcleo funcional da prestação que lhe estava cometida, aquela disponibilidade da Autora circunscrevia-se, naturalmente, ao atendimento telefónico e aos contactos que, na sequência deles, eventualmente se impusesse estabelecer com os motoristas e o comando de Vouzela.
Neste contexto, não devemos ignorar que a residência da demandante se situava no 1º andar do edifício onde se mostravam sediadas as instalações da Secção de Campia da Ré.
Esta continuidade geográfica permite concluir que na prestação laboral da Autora “... havia momentos de trabalho efectivo, prestado em termos descontínuos, e havia momentos de autodisponibilidade, durante os quais a Autora se podia dedicar à sua vida pessoal e familiar” – cfr. Parecer da Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta.
Contudo, não se queira com isso significar que o mencionado atendimento telefónico tinha lugar na residência da Autora, pois os autos não reflectem minimamente esse circunstancialismo.
É dizer que tal residência não pode ser considerada como sendo ainda, e também, o local de trabalho da demandante.
Aqui chegados, e tendo em atenção o quadro normativo atendível, somos a concluir que a comprovada disponibilidade permanente não pode, só por si, conferir à Autora o reclamado direito retributivo, na exacta medida em que tal mera disponibilidade não se reconduz a “tempo de trabalho” (para efeitos – repete-se – meramente retributivos).
Essa accionada pretensão só lograria acolhimento se a Autora tivesse especificado, no petitório, os concretos períodos de tempo prestados em laboração para além dos limites diário e semanal legalmente estabelecidos.
Não foi esse o caso, visto que a mesma se quedou por invocar a falada disponibilidade permanente para a prestação desse acrescido trabalho, omitindo qualquer referência alegatória – e, consequentemente, probatória – sobre a sua efectiva produção.
Essa omissão impede-nos de utilizar o mecanismo enunciado no art. 661º n.º 2 do C.P.C. – relegação da liquidação para momento ulterior – ao contrário do que defende a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, como nos impede de equacionar, sequer, a eventual ampliação da base instrutória para os específicos efeitos plasmados no art. 729º n.º 3 do mesmo Código.
Aliás, o documento que serve de suporte à quantificação da retribuição peticionada apenas reproduz o confronto entre a “disponibilidade” da Autora para trabalhar 24 horas por dia e o limite legalmente estabelecido para o efeito.
3.2.6.
Até aqui, a questão foi tratada na exacta parametrização que a Autora lhe conferiu no petitório inicial: a remuneração, como trabalho suplementar, de toda a prestação laboral excedentária das 8 horas diárias.
Coisa bem diferente seria a própria ponderação da validade de uma relação jus-laboral em que se convencione um regime de disponibilidade permanente, por banda do trabalhador, durante 24 horas por dia.
Nesta diferenciada vertente, não seria de rejeitar a tese da Autora, quando aduz que uma tal convenção contenderia “com os direitos e garantias dos trabalhadores, com a sua dignidade humana, com a segurança e saúde no trabalho”, tornando-se materialmente inconstitucional, desde logo por violação do art. 59º da C.R.P..
Estamos efectivamente em crer que uma tal convenção não deixaria de afectar, em termos de insuportável penosidade, a realização pessoal e profissional do trabalhador, atingindo uma densidade constitucionalmente relevante.
E até nos parece oportuno recordar o que, a este propósito, vem firmado no sumário do Acórdão do T.C. de 14/5/97 (recurso n.º 368/97):
“O direito a um limite máximo de jornada de trabalho é um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias e, por isso, beneficia do seu regime, pelo que: tem aplicabilidade directa, independentemente da eventual intervenção do legislador; vincula imediatamente os poderes públicos e as entidades privadas; sujeita as leis restritivas aos princípios da exigibilidade ou necessidade, da adequação e da proporcionalidade; e vê salvaguardada a extensão do seu conteúdo essencial perante leis restritivas.
Os direitos ao repouso e ao estabelecimento de um limite máximo de jornada de trabalho impõem que a actividade laboral, mesmo a acentuadamente intermitente, esteja temporalmente limitada, não sendo suficiente a possibilidade que o trabalhador tem de exercer actividades pessoais durante os intervalos entre as prestações de trabalho efectivo. A referida possibilidade de aproveitamento para fins pessoais dos intervalos decorre da natureza do trabalho em causa e, na medida em que cederá mediante qualquer solicitação decorrente da actividade profissional, não pode ser tida como período de descanso para efeito de preenchimento do núcleo essencial do respectivo direito constitucionalmente consagrado”(sublinhado nosso).
Não se duvida que a Autora tinha o ensejo de, nesta própria acção, questionar a validade do comprovado aprazamento – “disponibilidade permanente” – para nisso ancorar uma pretensão indemnizatória por eventuais danos que a sua operacionalização lhe acarretou.
É essa, de resto, a pretensão subsidiária trazida à revista (conclusões 24 a 26).
Contudo, o seu acolhimento é de todo inviável, sob um duplo fundamento:
- trata-se, desde logo, de uma alteração radical da causa de pedir, feita em momento adjectivamente impróprio;
- trata-se, ademais, de questão não submetida à apreciação das instâncias (todas as violações imputadas à Ré integram-se apenas no âmbito da pretensa ilegalidade do despedimento), logo, de “questão nova”, sobre a qual está este Supremo Tribunal inibido de emitir pronúncia.
Assim, e tendo em conta a configuração dada pela Autora à demanda, resta confirmar o Acórdão em crise.
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4- DECISÃO

Em face do exposto, nega-se a revista, confirmando-se o Acórdão impugnado.
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Custas pela recorrente.
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Lisboa, 19 de Novembro de 2009

Sousa Grandão (Relator)
Pinto Hespanhol
Vasques Dinis