Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
182/19.8T8PVZ.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
OBRAS
DANOS PATRIMONIAIS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
COVID-19
CONDENAÇÃO EM QUANTIA A LIQUIDAR
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
Data do Acordão: 07/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I- Os senhorios do contrato de arrendamento destinado ao funcionamento de um restaurante, instalado no ..., que realizam obras no ... andar (também sua propriedade), causadoras de inundações que determinam o encerramento do restaurante, tanto podem ser responsabilizados por factos ilícitos (art.483º do CC), por violação do direito de propriedade do autor (enquanto faculdade de retirar rendimentos do restaurante), como na qualidade de locadores por incumprimento do dever de garantirem o gozo da coisa locada e de se absterem de praticar atos impeditivos desse gozo [art.1031º, alínea b), 1037º, n.1 e 798º do CC].

II- Se durante o período em que o restaurante se encontrou encerrado sobreveio a pandemia da doença Covid 19, com as inerentes restrições ao funcionamento dos restaurantes (a partir de março de 2020), os fatores de calculo da indemnização não podem ser idênticos aos correspondentes ao tempo decorrido até aí, pelo que é correta a decisão de relegar para liquidação de sentença a determinação da concreta quantificação da obrigação de indemnizar. 

Decisão Texto Integral:


Processo n.182/19.8T8PVZ.P1

Recorrentes:

- AA

- BB

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. CC propôs ação declarativa comum contra AA e BB (casados entre si no regime geral de comunhão de bens), alegando, em síntese, que adquiriu, por trespasse, um restaurante instalado no ... de um edifício propriedade dos réus, do qual se tornou arrendatário, tendo cedido a exploração desse restaurante a DD em maio de 2017.

Afirmou o autor que se preparava para retomar a exploração direta do seu estabelecimento quando, no início de novembro de 2017, por causa de obras que decorriam no andar de cima, destinado a habitação, passou a haver infiltrações de água no restaurante que levaram ao seu encerramento, com cessação antecipada da cessão de exploração.

Mais afirmou que os danos materiais se foram avolumando e que o Réu marido, no ano de 2018, se prontificou a repará-los e a indemnizar o A. pelos lucros cessantes, mas nada fez.

A reparação dos danos que o A. descreveu como tendo sido causados pelas obras que os RR. levaram a cabo custará, na sua perspetiva, não menos de € 79.594,38.

Alegou ainda o autor que, privado da sua única fonte de rendimento, as suas dívidas atingiram o volume de € 9.307,96. Estava a negociar um trespasse no valor de € 140.000,00, que não se concretizou, por se manter a o encerramento do estabelecimento e mau estado das suas existências. Com a sua exploração direta, a partir de dezembro de 2017, o A. esperaria obter um lucro médio mensal de € 4.919,56, mas o imóvel deixou de cumprir os requisitos para o funcionamento de um estabelecimento de restauração. Desde janeiro de 2018 que o A. deixou de pagar as rendas, o que foi aceite pelos RR. proprietários das instalações do restaurante e do ... andar onde as obras decorreram.

O A. alegou danos não patrimoniais emergentes daquela situação causada pelas obras dos RR., pretendendo uma compensação no valor de € 2.000,00, acrescidos de € 5.000,00 por danos de imagem e credibilidade do restaurante.

Formulou o seguinte pedido:

Serem os Réus condenados ao pagamento da quantia de 292.856,62€ a título de danos patrimoniais que se discriminam:

79.594,38€ relativos às reparações a realizar no restaurante do Autor; 9.307,96€ relativos às dívidas acumuladas devido ao encerramento do restaurante do Autor; 140.000,00€ relativos à perda de chance do negócio de trespasse; 63.954,28€ relativos aos lucros cessantes;

Serem os Réus condenados ao pagamento da quantia de 7.000,00€ a título de danos não patrimoniais que se descriminam: 2.000,00€ relativos ao desgaste psicológico sofrido pelo Autor; 5.000,00€ relativos aos danos de imagem, prestígio e credibilidade do restaurante do Autor;

Serem os Réus condenados ao pagamento dos danos patrimoniais futuros, até ao estabelecimento comercial do Autor reunir condições de abertura ao público;

Acrescido dos juros de mora vencidos desde a citação até ao efetivo e integral pagamento da quantia peticionada;

Ser reconhecido que nenhuma quantia é devida pelo Autor aos Réus a título de pagamento de rendas atenta a exceção de não cumprimento invocada.

Remete-se para apuramento em sede de liquidação de sentença o montante dos danos patrimoniais futuros e lucros cessantes do que o Autor e a partir desta data são ainda não determináveis nem quantificáveis.

2. Os réus contestaram a ação, alegando, em síntese, que:

O Autor não soube rentabilizar o seu estabelecimento comercial, o qual estava em declínio sob a exploração daquele. Ocorreu uma pequena inundação, que foi reparada e o estabelecimento continuou em funcionamento. Os RR. assumiram reparar os danos verificados e indemnizar o A. por um valor justo. Nem todos os danos invocados foram causados pelas obras realizadas no andar de cima, mas por falta de conservação do imóvel. O Autor não pode pedir uma indemnização pelos danos sofridos, mas exigir dos RR. a sua reparação, o que não fez. Desconhecem a que dívidas se reporta o A., sendo que este não pode pedir simultaneamente o rendimento que deixou de obter pela exploração do restaurante e os valores das despesas com a sua exploração, por ser daqueles que sairiam os montantes necessários ao pagamento das referidas despesas. Os pedidos formulados são contraditórios entre si, pois que o A. peticiona simultaneamente quantias que pressupõem que o contrato de arrendamento se manteria e a quantia de € 140.000,00 que pressupunha o seu trespasse. O A. não perdeu o que peticiona a título de lucros cessantes, sendo o valor destes, no máximo, no valor mensal de € 614,94, sendo que o A. teria ainda de proceder ao pagamento mensal da renda.

Os RR. deduziram ainda pedido reconvencional contra o A. e os fiadores do contrato de arrendamento, requerendo a sua intervenção como reconvindos.

Terminaram requerendo a improcedência da ação e a procedência do pedido reconvencional, devendo ser declarada a resolução do contrato de arrendamento e o autor condenado no pagamento das rendas vencidas e não pagas, no montante de € 21.000,00, acrescida das vincendas e até efetiva entrega do locado. Requereram ainda a condenação do autor no pagamento de indemnização pela mora no pagamento das rendas vencidas no montante de € 11.500,00, acrescido de indemnização vincenda pelo não pagamento das rendas vincendas, no caso de a resolução do contrato ser determinada por diferente causa da falta de pagamento de rendas. Requererem a condenação do autor no pagamento de indemnização em montante a apurar em sede de execução de sentença, bem como no pagamento de indemnização no valor de € 10.000,00, a título de danos morais. E mais requereram a condenação dos fiadores no pagamento da quantia total equivalente às responsabilidades do autor.

3. Veio a ser proferida sentença nos seguintes termos

«o Tribunal julga a acção parcialmente procedente e a reconvenção parcialmente procedente e, em consequência:

I - Quanto à acção:

a) Condena os Rs. AA e BB a pagar ao A. CC a quantia de 7.800,00 euros (sete mil e oitocentos euros) a título de danos patrimoniais;

b) Condena os mesmos Rs. a pagar ao A. a quantia de 2.000,00 euros (dois mil euros) a título de danos não patrimoniais;

c) Condena os mesmos Rs. a pagar ao A. a quantia que se vier a liquidar e relativa aos rendimentos que deixou de auferir desde Fevereiro de 2019 até à data desta decisão, no valor mensal de 600,00 euros;

d) Condena os mesmos Rs. a pagar ao A juros de mora sobre as quantias referidas a contabilizar deste a citação, nos termos definidos nesta decisão, à taxa de 4%, até integral pagamento, sendo aplicável qualquer alteração que venha a ser introduzida a esta taxa de juro enquanto aquele não se verificar.

e) Reconhece que o A. não tem de proceder ao pagamento das rendas relativas ao imóvel arrendado após Janeiro de 2018 com fundamento na excepção de não cumprimento do contrato.

f) Absolve os Rs. quanto ao mais peticionado pelo A.

II - Quanto à reconvenção:

  a) Declara a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre o A. e os Rs..

  b) Condena o A. a entregar o imóvel arrendado aos Rs. livre de pessoas e bens.

 c) Absolve o A. e os intervenientes reconvindos EE e FF quanto ao mais peticionado pelos Rs. reconvintes.»

4. Inconformados com essa decisão, os réus interpuseram recurso de apelação, tendo o TR... decidido nos seguintes termos:

«acorda-se nesta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência, condenam-se os RR. a pagar ao A. a quantia que resultar de oportuna liquidação (agora sem qualquer referência de valor mensal), relativamente aos danos resultantes para o autor, por perda de rendimento, face ao encerramento do estabelecimento, entre janeiro de 2018 e a data da sentença proferida em 1ª instância (29.01.2021), assim se alterando as alíneas a) e c) do dispositivo da sentença recorrida que em tudo o mais se mantém»


5. Inconformados com o acórdão do TR..., os réus interpuseram o presente recurso de revista, em cujas alegações formularam as seguintes
conclusões:

«a) É recorrido o Acórdão da Relação ... que julgou a apelação parcialmente procedente e, em consequência, condenou os RR. a pagar ao A. a quantia que resultar de oportuna liquidação (agora sem qualquer referência de valor mensal), relativamente aos danos resultantes para o A., por perda de rendimento, face ao encerramento do estabelecimento entre janeiro de 2018 e a data da sentença proferida em 1ª instância (29.1.2021), com a alteração das al.s a) e c) do dispositivo da sentença recorrida;

b) O objecto do recurso é limitado ao segmento do Acórdão da Relação ... que alterou a condenação dos réus proferida em primeira instância, nos termos das alíneas a) e c) do dispositivo, para uma condenação genérica, em quantia a apurar em incidente de liquidação;

c) O recurso para o STJ é admissível pois inexiste dupla conforme face à alteração da decisão condenatória, e face à fundamentação substancialmente diferente utilizada pelo Acórdão recorrido;

d) A decisão é desfavorável aos réus pois estes defenderam em recurso dever ser o pedido julgado improcedente na medida em que o autor não provou todos os requisitos da responsabilidade civil por factos ilícitos, seja na vertente contratual como na extra-contratual, e, nomeadamente, a existência de dano ou prejuízo;

e) O autor não provou a perda de rendimento expectável decorrente da impossibilidade de explorar o estabelecimento comercial;

f) O único facto alegado e provado pelo autor relativamente a esta matéria é o referente ao rendimento bruto dos anos de 2016 e 2017, período em que explorou o estabelecimento comercial;

g) À data da entrada da acção, o autor já tinha na sua posse os elementos de facto que lhe permitissem alegar e eventualmente demonstrar a perda de rendimento expectável;

h) Da análise do rendimento bruto anual dos anos de 2016 e 2017 o que resulta evidente é que o autor tinha prejuízo na exploração do restaurante;

i) Se a um rendimento bruto mensal de € 3.845,00 [ano de 2016] ou de € 2.500,00 [ano de 2017] subtrairmos o valor da renda de €1.400,00, dois ou três salários de funcionários, despesas com a aquisição de consumíveis, gastos com luz, água, eletricidade e gás, percebermos facilmente essa realidade;

j) O Acórdão recorrido errou ao não ter julgado improcedente o pedido, face à ausência de prova do dano e prejuízo, e ao ter decidido remeter a determinação do valor indemnizatório para incidente de liquidação;

k) O incidente de liquidação não serve para dar nova oportunidade à parte de alegar e provar os factos que podia e devia ter alegado na instância declarativa;

l) O incidente de liquidação também não serve para dar nova oportunidade à parte de provar os pressupostos do seu direito [no caso, os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, e nomeadamente, a existência de dano], por tal ónus dever ser cumprido na instância declarativa;

m) Não se aceita que o autor possa no incidente de liquidação alegar e provar os factos relativos à demonstração desse dano e do prejuízo [perda de rendimento], como sejam os relativos à obtenção de receita e à realização da consequente despesa, quando, em sede da presente acção declarativa, já tinha na sua posse todo o conhecimento dos factos necessários para o efeito e entendeu não os alegar nem logrou a sua prova;

n) O Acórdão recorrido violou os artigos 342º, 483º e seguintes, 564º, 566º, n.3, 798º, todos do Código Civil na medida em que a sua aplicação não prescinde da prova da “existência de dano”, o que não sucedeu nos autos;

o) Foi também violado o artigo 609º, n.2 do CPC por ser ilegal a condenação genérica, em valor a determinar em incidente de liquidação, por inverificação dos respectivos pressupostos, pois também, nesta sede declarativa, devia o autor provar o dano e os prejuízos sofridos, não podendo em incidente de liquidação fazer prova de factos que deveriam ser demonstrados na acção declarativa.

Termos em que, na procedente do recurso, devem os réus ser absolvidos dos pedidos referentes aos valores            a título de danos patrimoniais por perda de rendimento [al. a) e c) do dispositivo da sentença].»

Cabe apreciar.

II. FUNDAMENTOS

1. Admissibilidade e objeto do recurso.

Embora o acórdão recorrido tenha mantido o sentido decisório da sentença, sendo ambas as decisões desfavoráveis aos réus (agora recorrentes), a fundamentação deste acórdão apresenta divergência significativa face à sentença, porquanto em primeira instância haviam os réus sido condenados no pagamento de quantia certa pelos danos patrimoniais, enquanto que em segunda instância a concreta determinação dos montantes indemnizatórios é remetida para liquidação de sentença. Não existe, assim, obstáculo à admissibilidade do recurso de revista – art.671º, n.3 do CPC.

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes (art. 635º, n.4 do CPC), concluiu-se que o objeto da presente revista se traduz na questão de saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação do direito ao confirmar que o autor tem direito a indemnização por danos patrimoniais e ao remeter a sua concreta quantificação para incidente de liquidação de sentença. Os recorrentes não se manifestaram contra a condenação em danos não patrimoniais.

2. A factualidade provada.

As instâncias deram como provada a factualidade que se transcreve:

«1. Por acordo escrito de 20/09/2013, nos termos de fls. 23 que aqui se consideram reproduzidos, os RR. declararam dar de arrendamento a M... Unipessoal Ldª que, por sua vez declarou aceitar, o ... do imóvel sito na Travessa ... para aí instalar e desenvolver a sua actividade de restauração, sendo a renda inicial de 1.250,00 euros e a partir do segundo ano de contrato de 1.400,00 euros, fazendo-se expressa menção que aquele se encontrava equipado com os bens que constantes do anexo A e que estes eram também objecto de locação - fls. 27 e 28.

2. Desse documento consta como cláusula décima que à segunda outorgante (arrendatária) é expressamente proibido o subarrendamento do local arrendado.

3. Desse documento consta como cláusula décima segunda que a segunda outorgante (arrendatária) deve fazer um uso prudente do arrendado, sendo a seu cargo todas as obras de conservação do bom estado do funcionamento das instalações da rede de distribuição e água, electridade e saneamento, que sirvam o arrendado, bem como a manutenção dos pavimentos, tectos, paredes, janelas e vidros, obrigando-se ainda ao pagamento da água municipalizada e de energia eléctrica que for consumida no arrendado.

4. Por acordo escrito de 29.02.2016, e que consta dos autos a fls. 41 e aqui se considera reproduzido, M... Unipessoal Ldª declarou vender ao A. o estabelecimento comercial referido, operando os seus efeitos a 18.04.2016, pelo preço de 60.000,00 euros, fazendo parte a relação de bens e equipamentos dele constante.

5. Por acordo escrito de 01.02.2016, e que consta dos autos a fls. 28, e aqui se considera reproduzido, assinado por M... Unipessoal Ldª, os Réus e os intervenientes EE e FF, os primeiros aceitaram substituir os fiadores do acordo referido em 1 por EE e FF, ficando englobados na locação os bens agora identificados no anexo A, a fls. 34, de onde constam: dois aparelhos de ar condicionado; um balcão frigorífico; duas arcas frigoríficas; uma máquina de lavar louça; forno em inox; fritadeira eléctrica; uma máquina de gelo; um micro-ondas; um latão de lixo; um fogão a gás; um fogão a lenha; uma balança relógio; uma mesa de escritório; máquina de café; moinho de café; armário para roupa; dois escaparates.

6. Por acordo escrito de 12.05.2017, nos termos de fls. 48 cujo teor aqui se considera reproduzido, o A. declarou ceder a exploração do restaurante a DD, que declarou aceita-la.

7. A cedência referida em 4 foi efectuada pelo prazo de um ano, renovável automaticamente por iguais períodos enquanto não fosse denunciado por qualquer das partes, ficando acordado o pagamento do valor mensal de 600,00 euros a que acrescia o valor da renda de 1.400,00 euros a entregar ao A..

8. O A. não paga rendas aos RR. deste Janeiro de 2018.

9. O estabelecimento comercial de restaurante que funcionava no ... arrendado encontra-se encerrado desde Janeiro de 2018.

10. No ano de 2016, considerando o período posterior a 29.02.2016, o A. declarou um rendimento bruto de 38.459,27 euros por “prestação de serviços efectuados a pessoas singulares sem actividade empresarial”.

11. No ano de 2017, considerando o período até 12/05, o A. declarou um rendimento bruto de 10.036,18 euros por “prestação de serviços efectuados a pessoas singulares sem actividade empresarial”.

12. Em Setembro de 2017, os RR. iniciaram a execução de obras profundas no ... andar do imóvel onde estava instalado o restaurante, que também lhes pertencia, visando torna-lo habitável para utilização da filha do casal, ficando responsável pela sua execução a empresa M... Ldª, como empreiteira.

13. Em Novembro de 2017, mas quando ainda se mantinha a cessão de exploração do estabelecimento, por via das obras realizadas no ... andar, ocorreu entrada de água no restaurante, levando ao seu encerramento.

14. Após a limpeza da água e uma reparação efectuada pelo empreiteiro, o restaurante ainda reabriu sob a exploração da referida DD.

15. DD fez cessar, por comunicação escrita de 22.11.2017, o acordo de cessão de exploração, com efeitos a 23.12.2017.[1]

16. A execução das obras no ... andar determinou nova entrada de água no ..., ainda em Dezembro de 2017, tendo ocorrido várias reuniões entre o A., a filha dos RR. e a empresa que estava a realizar essas obras, no sentido de serem reparados os danos causados no restaurante pela entrada da água.

17. A empresa que estava a realizar as obras no ... andar assumiu o seu dever de reparar os danos que a entrada de água causou no restaurante.

18. Não foram realizadas quaisquer obras de reparação após tais reuniões.

19. Após ter reunido com os RR. em Março de 2018, estes assumiram a sua obrigação de reparar os danos que a entrada de água causou no restaurante.

20. Em 13.06.2018, a empresa que estava a realizar a obra do ... andar dirigiu-se ao estabelecimento para efectuar uma reparação no tecto da cozinha e o A. não permitiu a sua entrada, alegando que aguardava uma resposta dos Rs. quanto à natureza das obras que seriam realizadas no imóvel.

21. As partes continuaram em negociações para alcançar um acordo que resolvesse a situação criada no estabelecimento comercial pelas obras realizadas no ... andar do imóvel, que não foi alcançado.

22. As obras continuaram a realizar-se no ... andar do imóvel.

23. Desde dezembro de 2017 que, por causa das infiltrações e dos danos dali resultantes, também devido à subsistência da falta de reparações e ao encerramento, o restaurante “A N...” não reúne as condições necessárias ao seu funcionamento, designadamente para receber clientes e servir refeições.[2]

24. O estado do ... tem vindo a degradar-se desde o encerramento do estabelecimento comercial.

25. A infiltração de água no ..., proveniente das obras do ... andar, provocou:

- A deterioração do pavimento das salas do restaurante que era em soalho flutuante que necessita de ser inteiramente substituído;
- A deterioração de cerca de 20% dos rodapés, que têm de ser reparados.[3]

25-A. A falta de reparação e limpeza das instalações do estabelecimento na sequência das infiltrações de água e o seu encerramento determinaram, por condensações também associadas às infiltrações, o empolamento dos tetos de madeira das salas do restaurante e dos painéis em madeira da sala grande que têm de ser reparados.[4]

26. A reparação dos danos referidos ascende:

- 3.475,98 euros para a substituição do soalho das salas do restaurante;

- 195,84 euros para a reparação de 20% dos rodapés das salas do restaurante;

- 902,00 euros para a reparação de 20% dos tectos das salas do restaurante

- 502,60 euros para a reparação de 20% dos painéis em madeira da sala grande[5].

27. As caixas de aparelho do ar condicionado que se encontram na parede superior da fachada do restaurante encontram-se deterioradas.

28. A sua substituição, que implica necessariamente a substituição do aparelho que se encontra colocado no interior do estabelecimento, ascende a 4.100,00 euros.

29. As portas interiores de acesso às salas do restaurante apresentam algumas deficiências de funcionamento, em cerca de 25%, resultante do seu uso e idade, importando a sua reparação a quantia de 140,00 euros.

30. As janelas não fecham convenientemente, sendo necessário substituir as ferragens que se encontram deterioradas pelo encerramento do estabelecimento e as consequentes condensações, importando esta substituição a quantia de 75,00 euros.

31. As madeiras das portas e portadas dos móveis das instalações sanitárias incharam com a absorção de água, não sendo o material utilizado o adequado o que, considerando o uso que teve e as condensações resultantes do encerramento do estabelecimento, justificam o estado em que se encontram, necessitando de ser substituídas e importando a sua substituição a quantia de 430,00 euros, sendo 30% imputável à inundação.

32. O mosaico cerâmico da cozinha apresenta-se deteriorado, sendo que o seu uso normal e a suas limpezas diárias provocam tal deterioração, importando a sua reparação em 464,40 euros.

33. Alguns equipamentos da cozinha apresentam pontos de oxidação nas superfícies que não obstam ao seu funcionamento, estando mais relacionados com a falta de ventilação do espaço e consequentes condensações do que com a inundação verificada.

34. As obras realizadas no ... andar partiram três telhas das ombreiras, importando a sua reparação em 75,00 euros.

35. O tapete limpa-pés encontra-se deteriorado, importando a sua reparação em 155,00 euros, sendo imputável ao encerramento do estabelecimento resultante da inundação apenas 38,75 euros.

36. Os tectos falsos do piso superior / armazém estão empenados, orçando a sua reparação em 112,00 euros, imputável à inundação.

37. As portas exteriores necessitam de manutenção.

38. A situação do restaurante, o seu estado e a demora na resolução desta situação causam ao A. tristeza e angústia.[6]

39. O A. retirava da actividade explorada no restaurante o seu único rendimento.

40. O A. não comunicou aos Rs. a cedência de exploração do estabelecimento comercial a DD, nem esta foi autorizada pelos Rs..

41. Os electrodomésticos locados e pertencentes aos Rs. que se encontram no estabelecimento necessitam de revisão para voltar a funcionar, considerando que estão há mais de um ano sem utilização.

42. Em Agosto de 2018 foi facturado ao A. o valor de 115,93 euros a título de consumo de gás no estabelecimento comercial.

43. De Julho a Setembro de 2018 foi facturado ao A. o valor de 474,15 euros a título de consumo de electricidade.

44. Estando o estabelecimento comercial encerrado o A. poderia ter cancelado os contratos de fornecimento de gás e electricidade.

45. Os RR. casaram em 07/02/1963 e sem convenção antenupcial.

46. O R. aufere a quantia de 334,44 euros a título de pensão de reforma.

47. A R. aufere a quantia de 281,00 euros a título de pensão de reforma.

48. A falta de pagamento das rendas pelo A. causa aos RR. sofrimento.»

3. O direito aplicável.

3.1. A questão em apreço é a de saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação do direito ao confirmar que o autor tem direito a indemnização por danos patrimoniais, e ao remeter a sua concreta quantificação para incidente de liquidação de sentença.

Entendem os recorrentes que a ação devia ser improcedente porque o autor não teria provado os requisitos da responsabilidade civil, nomeadamente a existência de danos patrimoniais. Consequentemente, por não haver danos, não deveria ter sido remetida a sua quantificação para liquidação de sentença.

3.2. Entendeu-se no acórdão recorrido que os autos não forneciam elementos suficientes para quantificar os lucros cessantes no montante de 600,00 Euros mensais, devendo essa quantificação operar-se em liquidação de sentença com base no n. 2 do art.º 609º do Código de Processo Civil.

A justificação para essa opção decisória pode sintetizar-se com o excerto das seguintes passagens do acórdão recorrido, onde se afirma:

«O espaço locado tornou-se inadequado ao funcionamento do restaurante após a segunda inundação, ocorrida em dezembro de 2017[7]. Só depois desta inundação o A. encerrou o estabelecimento.

A questão é saber qual foi o rendimento mensal futuro que o A. perdeu por causa daquele facto

[…]

E concluiu-se, em síntese, o seguinte:

«(…) não é previsível que o A. tenha optado pela celebração do contrato de cessão de exploração de 2017 para obter pior rendimento do que aquele que obtinha até àquela data através da exploração direta. Por isso, é mais provável que então o seu rendimento líquido mensal ficasse aquém de € 600,00 e que até estivesse em declínio face à sua redução considerável (de cerca de 1/3) no ano de 2017 face ao no de 2016.

A toda esta incerteza acresce o facto notório dos efeitos da pandemia ditada pela doença Covid 19 que levou ao encerramento temporário obrigatório dos estabelecimentos de restauração, com a consequente perda de rendimentos que sempre iriam penalizar o A., sem culpa dos RR., em algum período de tempo até à data em que foi proferida a sentença recorrida e que declarou resolvido o contrato.

Subsistindo a possibilidade de os lucros cessantes do A. poderem vir a ser quantificados com algum rigor com o oportuno conhecimento de novos factos, ainda que apenas relevantes possam ser para efeito de cálculo segundo a equidade, qualquer indemnização dependente da determinação do rendimento líquido mensal do A. deve ser relegada para o futuro, com oportuna liquidação daquele rendimento (que aqui não é possível obter, ao contrário do que foi decidido pelo tribunal recorrido).

Assim acontece com a determinação da indemnização por lucros cessantes, relativa ao período de tempo decorrido desde janeiro de 2018 até à data de apresentação da petição inicial (28.1.2019) e desde fevereiro de 2019 até à data da produção dos efeitos da resolução do contrato (…)»

3.3.  Deve, desde já, afirmar-se que não assiste razão aos recorrentes quando alegam que não se verificam os pressupostos para serem condenados a indemnizar o autor, nomeadamente quando defendem a tese de que este não sofreu danos.

O restaurante, propriedade do autor (facto provado n.4), instalado no ... do imóvel do qual os réus são proprietários, sofreu duas inundações causadas pelas obras realizadas, em 2017, no ... andar, também propriedade dos réus, o que veio a conduzir ao seu encerramento, em janeiro de 2018 (factos provados n.s 9, 12, 13, 16, 23).

Dúvidas não existem de que por ação dos réus (ou de terceiros por sua conta) o direito de propriedade do autor (dono do restaurante), na vertente de poder de retirar desse bem determinados rendimentos, foi ilicitamente atingido, sendo esse facto imputável aos réus, no mínimo a título de negligência, pois se tivesse existido o cuidado devido na realização das obras o restaurante não teria sido afetado na sua funcionalidade. Consequentemente, o restaurante não teria sido encerrado e teria podido (pelo menos potencialmente) continuar a ser usado como fonte de rendimentos. Acresce que, como resulta do art. 493º, n.1 do CC, aquele que tiver em seu poder coisa imóvel, com o dever de a vigiar, responde pelos danos que a coisa causar, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua. Desta disposição emerge, assim, uma presunção de culpa que, no caso concreto, os réus não conseguiram ilidir.

Encontram-se, portanto, demonstrados todos os requisitos dos quais o art.483º do CC faz depender a responsabilidade por factos ilícitos, verificando-se, consequentemente, a inerente obrigação de indemnizar os danos que não se teriam produzido se o restaurante não tivesse sido afetado no seu funcionamento pelas obras levadas a cabo pelos réus no andar superior – art.563º e 564º do CC.

Por outro lado, para além de os réus serem responsabilizados por factos ilícitos, eles tinham simultaneamente a qualidade de senhorios no contrato de arrendamento respeitante ao ... onde o imóvel se encontrava instalado. Por essa razão, estavam vinculados a garantir ao autor (seu arrendatário) o gozo da coisa locada de modo a que esta pudesse servir os fins para que fora locada, como decorre do art.1031º, alínea b) do CC e a absterem-se de praticar atos que impedissem ou diminuíssem o gozo da coisa pelo arrendatário, como estabelece o art.1037º, n.1 do CC. Não tendo cumprido esses deveres, sempre os réus/senhorios incorreriam em responsabilidade contratual nos termos gerais do art.798º e seguintes do CC (tendo o ónus de ilidir a presunção de culpa estabelecida pelo art.799º) pelos danos causados ao autor, que não pôde usar o imóvel para o fim a que se destinava (servir o funcionamento do restaurante), determináveis nos termos da obrigação de indemnizar (art.562º e seguintes do CC), até à extinção do contrato de arrendamento (ocorrida por resolução com a prolação da sentença, que atendeu ao pedido reconvencional). 

3.4. Apurado que o autor sofreu danos e verificados os requisitos legais que sustentam a responsabilização dos autores por tais danos, importa apurar a questão de saber se a sua concreta quantificação devia ter sido remetida para liquidação de sentença (nos termos do art.609º, n.2 do CPC).

A primeira instância decidiu condenar os réus a pagarem ao autor a quantia de 7.800 Euros [alínea a) da sentença], a título de danos patrimoniais sofridos, na vertente de lucro cessante, desde a data do encerramento do estabelecimento comercial, ou seja, janeiro de 2018 [facto provado n.9], até à propositura da ação – 28.01.2021 – tomando por referente de cálculo o valor que o autor recebia da cessionária antes desse encerramento, ou seja, 600 Euros mensais (depois de paga a renda).

No que respeita aos rendimentos que o autor deixou de obter desde fevereiro de 2019 até à data da sentença, ou seja, até 29.01.2021 [como referido na alínea c) da sentença], a primeira instância condenou no pagamento de 600 Euros mensais, dependente de ulterior liquidação, dado que, nessa parte, o autor havia formulado pedido genérico dependente de liquidação de sentença.

Esta decisão parece ter subjacente a ideia de que, durante todo esse tempo, o restaurante poderia ter funcionado normalmente, se não tivessem ocorrido as obras no ... andar do edifício e que o contrato de cessão de exploração do restaurante, que terminou em 23.12.2017, por iniciativa da cessionária (facto provado n.15) poderia ter continuado.

Porém, da factualidade provada não consta que a cessão de exploração teria continuado, se não fossem as inundações causadas pelas obras realizadas no ... andar do edifício e que, consequentemente, o autor teria o rendimento de 600 Euros como seguro (ou, pelo menos, muito provável). Tal como não se encontra provado qual o lucro provável que o autor retiraria da exploração direta do restaurante, na eventualidade de a cessão de exploração não continuar.

Por outro lado, em março de 2020, foi decretado o estado de emergência, pelo Decreto do Presidente da República 14-A/2020 (de 18 de março), em virtude da pandemia provocada pela doença Covid 19, a qual teve reflexos no normal funcionamento de múltiplas atividades (como é facto público e notório) onde se incluem fortes restrições legais à abertura dos restaurantes ao público, previstas (entre outros diplomas), no DL n.10-A/2020 (de 13 de março) e na Portaria n.71/2020 (de 15 de março).

Neste quadro, bem se compreende que o acórdão recorrido não tenha subscrito o critério matemático (600 Euros por mês) adotado pela primeira instância, e tenha remetido o cálculo da concreta fixação dos danos que o autor sofreu para liquidação de sentença, onde as especificidades do período correspondente ao tempo da pandemia podem ser tidas em conta.

3.5. Em suma, dúvidas não existem de que o autor sofreu danos, correspondentes à privação de rendimentos que o restaurante, do qual é proprietário, lhe teria proporcionado, caso o ..., onde se encontrava instalado, não tivesse sido afetado na sua funcionalidade e aptidão para servir o fim próprio da atividade de restauração pelas obras que os réus realizaram no ... andar do edifício.

Porém, a factualidade provada não se encontra suficientemente densificada para se saber qual o lucro aproximado que o autor retiraria do restaurante caso este pudesse ter funcionado normalmente (por meio de cessão de exploração ou por exploração direta do autor), se não tivessem ocorrido as inundações causadas pelas obras que os réus realizaram no ... andar do imóvel, pelo que não se pode dar como certo que esse valor teria sido de 600 Euros mensais. E não se pode tratar o tempo decorrido depois de março de 2020 (superveniência do estado de emergência) até janeiro de 2021 (data da sentença) de modo idêntico ao tempo anterior, pelas razões supra referidas inerentes às medidas próprias da pandemia causada pela doença Covid 19.

Em resumo, o acórdão recorrido não merece censura, pois fez a correta aplicação do direito à factualidade provada.

DECISÃO: Pelo exposto, considera-se a revista improcedente e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas na revista pelos recorrentes.

Lisboa, 05.07.2022

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Ricardo Costa

António Barateiro Martins

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Redação dada pela segunda instância.
[2] Redação dada pela segunda instância.
[3] Redação dada pela segunda instância.
[4] Acrescentado pela segunda instância.
[5] Alterado pela segunda instância.
[6] Alterado pela segunda instância.
[7] E não 2020, como por lapso manifesto consta do texto do acórdão recorrido.