Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4691/13.4TDLSB.L3.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO BRANQUINHO DIAS
Descritores: PROCESSO PENAL
REVISTA EXCECIONAL
DUPLA CONFORME
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 04/03/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I. O regime de recursos em processo penal constitui um regime próprio e autónomo, definido no art. 399.º e ss., do C.P.P., só havendo lugar à aplicação de normas do processo civil, que se harmonizem com o processo penal, em casos omissos, nos termos do art. 4.º, do C.P.P., havendo que levar em conta o disposto no art. 400.º n.ºs 2 e 3, do mesmo diploma, nos recursos da parte da sentença relativa à indemnização civil.

II. Constitui posição consolidada na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, na linha, aliás, da doutrina que se tem debruçado sobre o tema, que a revista excecional não tem aplicação no processo penal, pois só em caso de lacuna poderia o intérprete socorrer-se das normas processuais civis, situação que não ocorre neste âmbito.

III. Tendo o recurso sido admitido apenas relativamente à parte cível, há que ter em consideração o disposto no art. 671.º n.º 3, do C.P.C., que estatui que não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, que é o que justamente acontece, no caso sub judice.

IV. Nesta conformidade, acorda-se em rejeitar, por inadmissibilidade legal, os recursos interpostos pelas demandadas civis.

Decisão Texto Integral:
Proc. n.º 4691/13.4TDLSB.L3.S1

Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 9.ª Secção, de 09/03/2023, foi negado provimento aos recursos das arguidas AA e BB, com os sinais dos autos, e, em consequência, confirmado o acórdão do Juízo Central Criminal de Lisboa ..., de .../.../2022, que as condenou, em coautoria e em concurso real, pela prática de um crime de falsificação de documento, um crime de burla qualificada e um crime de branqueamento, na pena única, para cada uma delas, de 5 (cinco) de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 (cinco) anos, a contar do trânsito em julgado da decisão, acompanhada de regime de prova e sob condição de, no prazo de 3 meses, pagarem aos demandantes civis CC, DD, EE, FF e GG as importâncias, respetivamente, de € 528 902,86, € 276 374,25, € 1 025057,82, € 4 369,76 e € 2 611881,66, valores correspondentes aos pedidos de indemnização em que foram condenadas.

Tais importâncias serão acrescidas de juros vencidos e vincendos.

2. Inconformadas, interpuseram, em 28/07/2023, recursos para este Supremo Tribunal, apresentando as seguintes Conclusões que passamos a transcrever, sem qualquer tipo de destaque:

Recorrente AA:

I. A ora Recorrente, condenada em 5 anos de prisão em cúmulo, suspensa na sua execução por um período de 5 anos sob condição de em 3 meses efectuar o pagamento de quantias que rondam 4.450.000,00€, vem interpor recurso limitado à matéria civil, nos termos do n.º 1, al. b), do art. 403.º e nº 3 do art. 400º, ambos do CPP; e ainda nos termos do n.º 1, al. b), do art. 403.º e art. 4º ambos do CPP, e ainda dos art. 672.º e 671.º, n.º 3, ambos do CPC;.

II. Observando a regra do art.4º do CPP,), recorre-se ao abrigo do art. 672.º do CPC conjugado com o art. 671.º, n.º 3 do mesmo CPC, em recurso de revista de acórdão da Relação que confirmou sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente a decisão proferida na 1ª Instância. Revista, assim, necessariamente excepcional, dado que a revista normal não é admissível. Pelo que preenchidos os requisitos de recorribilidade necessários e tendo a recorrente legitimidade e interesse em agir, verificam-se ainda os pressupostos que permitem a revista excepcional.

III. O recurso é interposto, nos termos do art.672.º, n.º 1, al. a) b) e c) do CPC, do douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de ... de ... de 2023, tirado nos presentes autos, que condena a ora Recorrente no pedido civil como acima referido, mantendo a decisão proferida em 1ª instância; pois que o Acórdão recorrido abre uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito; simultaneamente levanta ainda questões que colocam em causa interesses de enorme e particular relevância social; e ao mesmo tempo está em contradição com o Acórdão anterior da mesma Relação, aliás tirado nos mesmos autos, ambos no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito – aliás sobre o mesmo processo concreto – sem que exista Acórdão de uniformização de jurisprudência, conforme ao 2º Acórdão, o ora recorrido.

A questão com relevância jurídica para a melhor aplicação do direito, aqui alegada nos termos da al a) do n.º 1 do art. 672º. do CPC

IV. Nos presentes autos, no 1º Acórdão da 1ª Instância que neles está e para o qual se remete, face à condenação da recorrente e da sua co-Demandada BB, a Relação de Lisboa em Acórdão tirado em ... de ... de 2017, também nos autos, identificou um conjunto largo de questões que, do seu ponto de vista, tinham que ser esclarecidas para se poder entender como podiam ser condenadas duas arguidas/demandadas (uma delas a aqui ora Recorrente) quanto aos crimes que decorrem da obtenção daquelas procurações e quanto ao pedido civil deduzido;

V. e como concomitantemente podiam ser absolvidos os demais arguidos, notário, testemunha e advogada, que no exercício das suas funções e deveres profissionais confirmaram nessas procurações que o emitente estava capaz de entender o teor das procurações e capaz de expressar a sua vontade e confirmá-la ante aqueles profissionais e a testemunha.

VI. E reenviou o processo para novo julgamento, a fim de serem esclarecidas aquelas questões e apuradas com exaustão as circunstâncias que as rodeavam. Questões que estão transcritas supra em 22 da Motivação, aqui as dando por reproduzidas; e que foram condensadas em 5 pontos pela 1ª Instância, após reenvio, como em 25 supra.

VII. O alcance e finalidade do reenvio consta expressamente nesse Acórdão da Relação: impõe-se reenviar o processo para novo julgamento, visando este essencialmente as questões agora suscitáveis e todas as demais que, na sequência da prova a produzir, se venham a revelar de interesse para o apuramento da verdade dos factos, proferindo-se, em conformidade, o respectivo acórdão.

VIII. Depreende-se que a Relação entendia haver sérias e fortes dúvidas (que aliás expressava no texto do Acórdão) sobre a justeza da absolvição dos três outros arguidos/demandados HH, II e JJ; e dúvidas ainda de que, a manter-se a absolvição destes, pudesse haver em disparidade a condenação das arguidas/demandadas, nomeadamente da AA. No caso que aqui nos interessa, condenação também em sede civil, propiciada pela condenação criminal.

IX. Porém, tais dúvidas invocadas pela Relação nunca foram esclarecidas cabalmente.

X. A cada uma daquelas questões que a Relação no seu 1ºAcórdão levantara e que a Instância listara de 1 a 5 como se transcreve em 25 supra, a resposta da 1ª Instância foi inconclusiva; a cada dessas questões respondeu invariavelmente: da prova produzida em audiência de novo julgamento não foi possível alcançar, de forma segura, a resposta a conferir a esta questão.

XI. E assim nenhuma das questões que motivaram o reenvio, questões que a Relação queria ver respondidas e apuradas com a exaustão necessária, foram respondidas. A 1ª Instância assim o diz: não conseguiu, não obstante o novo julgamento, dar qualquer resposta segura (ou seja: firme, clara, indiscutível) que permitisse concluir daquelas questões – de forma segura e isenta de dúvidas sérias –a vexata questio: perceber como se pode absolver os demais demandados / arguidos e condenar a Recorrente.

XII. As respostas são, a nosso ver – e interpretando o pensamento da Relação aquando do reenvio, também no ver do Acórdão – absolutamente necessárias para propiciar uma solução de direito, justa e equilibrada, não só em termos penais mas igualmente em termos civis. Além de serem fundamentais para definir como, mantendo a absolvição, poderia considerar-se a prática do crime por parte da recorrente AA e de outra arguida, pelo uso da procuração em causa, se elas por si não tinham a hipótese de obter essa procuração sem a participação decisiva dos profissionais que as emitem e lhes confere a fé pública.

XIII. Sem qualquer resposta a nenhuma daquelas questões, nenhuma dúvida foi esclarecida, nenhuma dúvida foi afastada e nenhuma certeza segura foi assim alcançada pelo Tribunal da 1ª Instância quanto a nenhum daqueles pontos que a Relação considerava fundamentais para a decisão. Como pode então manter-se a condenação da recorrente, se nenhuma dessas dúvidas foi esclarecida e nenhuma questão teve sequer resposta, que não aquela fórmula de quase non liquet?

XIV. Como diz a Relação no seu Acórdão de reenvio, de fls. 85 a fls. 86 (…) como justificar, então, a fundamentação apresentada para a não condenação dos referidos arguidos e como justificar, também, a condenação das arguidas e AA, cuja participação na elaboração nas respectivas procurações foi indirecta ou mediata, isto é, limitaram-se, tão só, a solicitar os serviços de quem tinha poderes legalmente conferidos para o efeito?

XV. A violação do in dubio pro reo deve ser apreciada, ainda que neste recurso limitado à matéria civil, pois que para a condenação civil decidida a condenação criminal é de todo relevante. Como também se diz naquele Acórdão que decide o reenvio, por mais interesse que estas tivessem na elaboração das procurações, por mais tentativas que fizessem para, dolosamente, determinar a advogada e o funcionário em causa à prática do suposto acto ilícito, que seria a outorga de uma procuração por quem não tinha a capacidade de entender e querer a natureza e o âmbito dos poderes pela mesma conferidos, se aqueles se recusassem a fazê-lo, as arguidas, não o podendo obrigá-lo a isso, também não poderiam se constituir como autoras de qualquer crime, designadamente o imputado, à luz do conceito de autoria previsto no artigo 26.º do Cód. Penal, não se configurando, sequer, a possibilidade de tentativa, pois que não podendo executar o acto por si, também não contavam com a colaboração daqueles, únicos com poderes para tal.

XVI. Ficou completamente por esclarecer se, mantendo a absolvição em sede penal daquelas 3 pessoas arguidas em sede crime, não se deverá, ante as circunstâncias apuradas, condená-las em sede civil, ao apurar-se que existe responsabilidade civil desses absolvidos criminalmente. Condenação em sede civil sempre importante e extremamente relevante para a ora recorrente, uma vez que a sua responsabilidade civil, devendo ser, em caso de condenação, solidária com os demais condenados, configuraria um cenário de responsabilidade absolutamente diverso do que resulta da decisão aqui recorrida; pois em sede do PIC sempre repartiria tal responsabilidade (e, portanto, a possibilidade de ressarcimento) por 5 demandados e não apenas por 2.

XVII. Novo quadro de responsabilidade que necessariamente significaria que fosse revista e alterada a fixação das condições a que a suspensão da pena fica submetida.

XVIII. O reenvio admitia também outra solução, qual seja a da absolvição de todos os demandados. Ora, não tendo havido recurso da decisão que absolveu aqueles 3 arguidos em 1º Instância, a sua condenação é, agora, de todo inviável desde que a manteve o 2º Acórdão de 1ª Instância, acórdão este confirmado pela Relação no Acórdão agora recorrido.

XIX. Assim, e nestas circunstâncias, a manter-se a absolvição daqueles 3 arguidos/demandados, deve necessariamente daí decorrer a absolvição das duas arguidas BB e AA, nomeadamente desta que é aqui recorrente. Concretamente, a sua absolvição em sede civil, pela qual aqui se pugna.

XX. O que até evitaria a contradição de julgados que decorre de ter havido, anteriormente a esta condenação civil, uma outra decisão que entende não haver qualquer ilícito por parte da Ré BB ao usar a procuração e transferir o dinheiro; acção essa que correu na 4ª Vara Cível do Tribunal Civil de Lisboa, sob o nº 2000/12.9TVLSBL1.S1, que teve recurso até ao Supremo Tribunal de Justiça. E acção proposta então pela ali A. e aqui demandante CC, antes da acção crime, o que sempre teria efeitos na actual condenação à luz da al.c) do nº 1 e do nº 2 do art. 72º do CPP, por valer como renúncia ao direito de queixa.

XXI. Porque como bem salientou a Relação no seu 1º Acórdão sem que a Instância, após reenvio, ou a mesma Relação no Acórdão ora recorrido se tenham pronunciado sobre esse facto, ou esclarecido a dúvida insanável que daí resulta, como condenar a BB e a AA, cuja participação na elaboração nas respectivas procurações foi indirecta ou mediata? Pois que tiveram elas que solicitar os serviços de quem tinha poderes legalmente conferidos para o efeito.

XXII. Ora, quer na 2º Decisão de 1ª Instância após reenvio, quer no Acórdão ora Recorrido, nada disto foi respondido nem sequer quanto às implicações que essa falta de ponderação tem no campo civil, naquilo que aqui nos importa; mas também na própria decisão penal, o que aqui se deixa dito nos termos do artigo 403.º, n.º 3 do CPP.

XXIII. Eis pois a questão relevante cuja apreciação é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito: saber se, não conseguindo provar-se que a advogada, a testemunha e o profissional notarial, que estiveram no acto da emissão das procurações com poderes para tal e as elaboraram sabiam do estado da vítima mas que afirmaram no âmbito das suas competências que essa capacidade de entender existia e foi verificada, poderão ser absolvidos; e ainda se em situação qual essa, para lá da absolvição, as procurações que estes emitiram no exercício das suas competências funcionais, poderiam ou não ser usadas pelos beneficiários dessas procurações.

XXIV. Ou seja, se é possível condenar, desde já em termos civis, as pessoas que sendo beneficiárias da procuração, não a obtiveram de forma directa ou imediata, tendo sempre que passar a emissão pelo crivo de um profissional, notário ou advogado, a intervirem dentro das suas capacidades legais na emissão dessa procuração. Mais:

XXV. O que justificou o reenvio foi não só a eventual possibilidade de condenar também o notário, a testemunha e a advogada, uma vez que se condenavam as arguidas; mas também a possibilidade de, existindo dúvidas quanto àquela absolvição/condenação, ser possível manter as absolvições do advogado, da testemunha e do notário, sem ter obtido qualquer prova que esclarecesse as dúvidas assinaladas pela Relação no seu Acórdão que determina o reenvio; e ainda assim não absolver as arguidas.

XXVI. Sem respostas às questões acima aludidas, mantiveram-se, todavia, a absolvição do notário, testemunha e advogada, absolvição aliás de que ninguém tinha recorrido. Mas, se as procurações usadas não foram emitidas e conferidas de forma criminosa pelo notário ou advogado, não poderia isso levar a outra conclusão que não a absolvição da recorrente, no cometimento do crime e por consequência, quanto ao PIC, porque para tal crime é essencial aquela procuração assim emitida.

XXVII. Deve na situação concreta a recorrente AA ser absolvida dos pedidos civis deduzidos, pois que era aos demandantes que cabia provarem, de forma indubitável, aquilo que a Relação mandou que fosse apurado exaustivamente quanto reenviou o processo: qual o âmbito dos poderes conferidos à Demandada BB, na terceira procuração; de modo a que se pudesse apurar, com essa prova que cabia aos demandantes, se a vontade do KK era permitir à Demandada BB transferir montantes para a sua conta.

XXVIII. Quando, em novo julgamento especificamente realizado para que se apurassem tais questões, entre as quais essa, a parte acusadora e demandante não consegue “alcançar de forma segura resposta a conferir a esta questão” não pode dessa sua incapacidade de fazer prova quanto a isto, extrair-se a prova contrária; e condenar naquele pedido civil a arguida/demandada AA, como se tal prova que o Tribunal não conseguiu alcançar de forma segura, tivesse afinal sido seguramente alcançada.

XXIX. Ou há uma condenação penal do notário, testemunha e advogada, com a consequente condenação destes em PIC solidariamente com a ora arguida; ou há uma condenação destes apenas na parte civil, sempre solidariamente; ou há uma absolvição também da arguida AA, porque a sua conduta e a da BB foi ao abrigo de uma procuração emitida e conferida por notário, que a validou dentro das suas competências profissionais, assim permitindo a conduta posterior que se afirma ser criminosa. Não podem conviver processual e materialmente a absolvição de uns e a condenação de outros. Esta é questão a esclarecer, pois que a mesma comporta decisiva relevância jurídica que reclama aquela apreciação como claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

XXX. E não se pode aceitar, tal como não aceitou a Relação no seu Acórdão de reenvio, que o notário ou o advogado praticaram os seus actos sem saber dos dois AVCs. Eles estiveram em contacto directo com o KK – e ou tinham dúvidas sobre o seu estado e capacidade, ou não tinham. Não tiveram; pois nem recorreram ao disposto no art. 11º, nº2, al. b), do Estatuto do Notariado

XXXI. São estas as razões que a recorrente entende, e por isso as indica, serem necessárias apreciar na questão concreta para uma melhor aplicação do direito, qual seja a de eventual responsabilidade civil dos 5 demandados e não apenas das 2 civilmente condenadas, entre as quais a AA, sempre a que a conduta desta foi ao abrigo de uma procuração emitida e confirmada por aqueles funcionários com competência para isso, que assim atribuíram a tal documento fé pública.

XXXII. E desta Conclusão decorre, com evidência, que a questão não é meramente do âmbito da recorrente, mas que transcende tal âmbito e se transforma numa questão de particular relevância social.

A questão dos interesses de particular relevância social aqui em causa, aqui alegada nos termos da al b) do n.º 1 do art. 672º. do CPC

XXXIII. A decisão recorrida deixa em aberto saber se o beneficiário de uma procuração emitida a seu favor da qual resultam poderes presencialmente conferidos e confirmados por notário, apondo-lhe como garantia de veracidade a confirmação de que verificou a capacidade de entendimento e expressão de vontade do outorgante, pode (o beneficiário ou terceiro) confiar em tal procuração e usá-la ou aceitá-la? Ou deve ter reservas quanto a isso e procurar sempre nova confirmação junto de outro profissional da mesma área ou em sede judicial?

XXXIV. Resulta do acórdão recorrido que a decisão, absolvendo civilmente os arguidos/demandados JJ, II e HH; mas condenado as arguidas demandadas BB e AA, põe flagrantemente em causa a fé pública de que gozam os documentos provindos de notário ou de advogado que no âmbito dos seus poderes e obrigações profissionais certificaram tais documentos, garantindo a capacidade de entendimento de expressão da vontade do outorgante.

XXXV. Assim, a conduta da arguida/Demandada AA, que necessariamente teve que ser feita com intervenção de advogada e/ou funcionário notarial a quem aquela não poderia determinar que garantissem ou certificassem diferentemente daquilo que estavam a constatar, significa que a AA não poderia praticar qualquer crime, designadamente e os imputados, nem sequer tentá-lo, nem praticar os actos que teriam conduzido ao prejuízo patrimonial e civil no .... Toda a conduta das arguidas/Demandadas é feita no resguardo de uma procuração que goza de geral fé pública que está conferida a este tipo de documentos.

XXXVI. Se tal documento, neste caso concreto, existe; e sem se ter conseguido apurarqual era a real vontade do KK quanto ao uso dela pela BB; não se pode condenar esta e a AA a devolver todo o dinheiro que com a procuração podiam movimentar, se o movimentaram ao abrigo de tal procuração; condenando apenas estas, sem condenação solidaria em sede civil dos demais demandados.

XXXVII. Pois assim se põe em causa, para o comum cidadão e para a sociedade, a imagem de fé pública e a segurança jurídica que este tipo de documentos, como a procuração, necessariamente revestem. Questão de particular relevância social, posto que dela pode resultar o absoluto descrédito dessa imagem de fé pública e de segurança jurídica, levando a que ninguém tenha qualquer certeza de poder praticar ou não, ainda que beneficiário de uma procuração que lhos atribua, os poderes que o notário confirma e garante, por esse documento. O que se deixa aqui dito nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 672.º do CPC.

A questão da contradição do Acórdão Recorrido com o Acórdão fundamento, alegada nos termos da al c) do n.º 1 do art. 672º. do CPC

XXVIII. Nestes autos existem dois Acórdãos da mesma Relação de Lisboa: um proferido em 6.7.2017, e que está nestes autos pelo que se nos afigura dispensável a junção de cópia desse Acórdão, que será o Acórdão fundamento; e outro, que é o Acórdão recorrido, também da Relação de Lisboa, proferido em 9.03.2023, produzidos no domínio da mesma legislação, e sobre a mesma questão fundamental de direito – até porque produzidos no âmbito do mesmo processo que é este – quanto à justeza da decisão de condenação/absolvição e da necessidade de apuramento exaustivo de mais prova que respondesse às questões elencadas, e que são contraditórios.

XXXIXO Acórdão-fundamento, de 6.7.2017, reenviou o processo para novo julgamento, por entender ser necessário saber se podem ser condenadas duas arguidas/demandadas quanto aos crimes que decorrem da obtenção das procurações em causa nestes autos, sendo absolvidos os demais arguidos/demandados notário, testemunha e advogada, que no exercício das suas funções e deveres profissionais confirmaram na outorga dessas procurações que o emitente estava capaz de entender e de expressar a sua vontade e confirmá-la ante aqueles profissionais e a testemunha.

XL. Quanto ao reenvio damos por reproduzido, por razões de economia de exposição e celeridade processual, o que se diz nas Conclusões V a XI supra.

XLI. Entendia o Acórdão fundamento ser essencial a dilucidação exaustiva das questões que indicava, para uma boa e justa apreciação da causa, e para uma decisão equilibrada e segura, que não violasse o princípio in dubio pro reo, o principio da relatividade da justiça entre os arguidos demandados, pois que tal se revelava de interesse para o apuramento da verdade dos factos., pois que sem o apuramento dessas questões ali indicadas, apuramento através da prova a produzir, não estaria alcançada a verdade dos factos

XLII. Porém, tais dúvidas invocadas pela Relação não foram de modo algum esclarecidas; nenhuma questão respondida; o que significa que, nos termos deste Acórdão-fundamento, não se poderia manter como justa a decisão de 1ª Instância, nomeadamente quanto à condenação na parte civil. E não obstante, sem qualquer novo apuramento de factos ou de respostas às questões suscitadas no Acórdão-fundamento (questões ali reputadas de absolutamente fundamentais para avaliar a responsabilidade dos arguidos HH, II e JJ; e para esclarecer qualquer dúvida sobre a contradição entre a absolvição destes e a condenação de BB e AA), a 1ª Instância manteve a condenação.

XLIII. E o Acórdão ora recorrido confirmou essa condenação; e bem assim a absolvição dos demais demandados sem qualquer prova no reenvio que se houvesse produzido quanto àquelas questões; questões também fundamentais para, mantendo-se a absolvição daqueles, perceber-se como poderia considerar-se a prática do crime pela AA e pela BB ao usar a procuração confirmada e garantida por aqueles profissionais no exercício dos seus poderes e obrigações. E com base nisso condená-las civilmente, do que aqui se recorre quanto à ArguidaAA, se esta por si não tinha a hipótese de obter essa procuração sem a participação decisiva dos profissionais que as emitem e lhes conferem a fé pública.

XLIV. Assim, quanto à mesma questão de direito em análise neste processo, os Acórdão-fundamento e Acórdão Recorrido são contraditórios porquanto um estipula a necessidade da produção de nova prova e resposta aquelas questões para apuramento da verdade dos factos e, em conformidade, para a prolação do respectivo Acórdão com base nelas; e o outro, no caso o recorrido, mantem a decisão condenatória no pedido civil quanto à ora recorrente sem que qualquer nova prova houvesse sido produzida; portanto, sem que houvesse sido viabilizada qualquer resposta quanto às questões elencadas no primeiro Acórdão.

XLV. Deste modo, e sendo esta questão proferida assim contraditoriamente em ambos os acórdãos, no domínio da mesma legislação; quanto à mesma questão fundamental de direito (absolvendo o notário e a advogada que confirmam e garantem que a procuração foi emitida pelo outorgante que entendia o que fazia e expressava a sua vontade; mas condenando quem depois usa essa procuração no âmbito dos poderes que ali lhe são outorgados); e ainda apor cima exactamente no âmbito do mesmo processo, eis as razões e os aspectos de identidade que determinam a contradição alegada.

XLVI. Existindo claramente duas teses no dois Acórdãos aludidos, ambos proferidos nestes autos pretende-se, através desta Revista, que o Supremo Tribunal de Justiça, defina qual das duas teses é a que melhor se enquadra na nossa legislação.

XLVII. Esta apreciação é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, para esclarecimento da questão de particular interesse social quanto à fé pública e confiança no trato e giro jurídico das procurações, e para definição de qual a tese a adoptar daquelas decisões contraditórias; afigurando-se à recorrente que é a tese proposta no Acórdão fundamento.

XLVIII. Colhendo provimento o presente recurso, deve o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que considere que em sede civil a demandada AA não pode ser condenada solidariamente com a arguida BB, desde que a sua conduta tenha ocorrido no resguardo de uma procuração que, ao ser emitida, o foi perante notário e/ou advogado, com poderes funcionais e obrigações para tanto, e que garantiram e confirmaram nesse documento, com fé pública, que o outorgante compreendeu o alcance e sentido dessa procuração e expressou a sua vontade; ou que, em alternativa, e a não alargar-se a condenação solidária aos demais demandados, se absolva a ora recorrente da condenação civil; ou ainda que, mantendo a referida condenação, alargando-a ou não em regime de solidariedade a outros demandados, seja a condição de suspensão da execução da pena retirada, uma vez que mudarão assim as condições fácticas e jurídicas que determinaram aquela condição.

XLIX. Até porque em momento nenhum, nem a decisão da 1ª Instância, nem a do Acórdão recorrido se pronunciaram sobre as condições pessoais actuais da recorrente, pronúncia absolutamente necessária para a fixação das condições da suspensão da execução da pena.

L. Tudo sem prejuízo de apesar da limitação à parte civil, em caso de procedência deverem ser retiradas dessa eventual procedência todas as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida, cf. o n.º 3 do artigo 403.º do CPP.

LI. Com a decisão de que ora se recorre, o Acórdão recorrido violou o princípio do in dubio pro reo com claro reflexo na decisão retirada em sede civil; ainda o princípio da igualdade, constitucionalmente previsto no artigo 13º da CRP; bem assim o artigo 11º, nº2, al. b), do Estatuto do Notariado; e o artigo 371.º do Código Civil.

Nestes termos se recorre excepcionalmente de Revista para o STJ, devendo a final julgar-se a presente Revista procedente e, em consequência, revogar-se a decisão recorrida e substituir-se por outra que considere a absolvição da recorrente quanto ao PIC, ou se assim se não entender, a condenação solidária dos demais demandados, com alteração das condições da suspensão da execução da pena relativamente à recorrente, e ainda retirando-se da procedência do recurso todas as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida, nos termos do n.º 3 do artigo 403.º do CPP. Assim se fazendo

JUSTIÇA!

Recorrente BB:

Tema 1 da motivação:

1. O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa enferma de nulidade insanável por preterição da regra de distribuição estabelecida no artigo 426º, n.º 4 CPP – artigo 119º, alínea a) CPP.

2. A referida nulidade não foi oficiosamente declarada como impõe o artigo 119º, alínea a) CPP, invocando-se, por isso, a nulidade da sentença nos termos e para os efeitos do n.º 1, c) do artigo 379º ex vi n.º 4 do artigo 425º ambos do CPP.

3. O n.º 4 do artigo 426º CPP impõe que “se da nova decisão a proferir no tribunal recorrido vier a ser interposto recurso, este é sempre distribuído ao mesmo relator, exceto em caso de impossibilidade.”

4. In casu, não foi distribuído ao mesmo relator, nem tão pouco, existe qualquer ata a confirmar o nome do relator na distribuição ou qualquer despacho e/ou justificação, por hipótese no corpo da decisão ora recorrida, a fundamentar a entrega do processo a relator diferente.

5. Não foi assim cumprido o comando do artigo 426.º n.º 4 CPP o que colocou em causa os mecanismos processuais e o princípio da plenitude da assistência do juiz.

6. Consequentemente, o tribunal recorrido, carecia, em absoluto, de jurisdição para proceder ao novo julgamento.

7. Por isso que o acórdão recorrido está ferido de nulidade insanável, por violação das regras de composição do tribunal – artigo 119.º, a) do CPP -, quando não mesmo do vício da inexistência jurídica, por proferido por quem, no caso, carecia de jurisdição.

8. De todo o modo, quer se encare o vício como inexistência, decorrente da falta de jurisdição, quer da sobredita nulidade insanável a consequência é idêntica – o da invalidade do julgamento e, logo, da sentença recorrida [cf. artigo 122.º, n.º 1 do CPP].

9. O novo Coletivo (Juiz Relator) não manteve a coerência de raciocínio jurídico, gerando deste modo, incongruência, contradição, conclusões díspares e incompatibilidades entre os dois acórdãos do mesmo Tribunal da Relação.

10.Existem dois acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, no mesmo processo, contraditórios e incompatíveis entre si no que à identificada contradição diz respeito, colocando grosseiramente em crise a segurança e paz jurídica, princípios constitucionalmente consagrados.

Tema 2 da motivação:

11.O Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, permitiu, com esta segunda decisão deste Tribunal, de que se recorre, que se mantenha uma nulidade insanável nos termos da alínea c) do Artigo 119.º com os efeitos previstos no Artigo 122.º ambos do Código de Processo Penal.

12.No âmbito da segunda decisão da primeira Instância, que em obediência ao primeiro Acórdão do Tribunal da Relação, proferiu despacho determinando a manutenção da prova produzida nos autos para novo julgamento restrito às questões elencadas pela TRL, concedendo ao Ministério Publico, Assistentes e Arguidos a possibilidade de se pronunciarem quanto às questões, sugerindo supressões ou aditamentos (sempre em face do decidido pelo TRL) e para restringir os requerimentos probatórios face às questões elencadas, veio a arguida, recorrente, obedecendo ao despacho e no exercício do seu direito de defesa, requerer no sentido de serem suprimidas e aditadas questões.

13.O Tribunal da Primeira Instância apenas se limitou a tomar conhecimento relegando para momento ulterior aferir sobre a necessidade de qualquer melhor concretização, o que nunca aconteceu.

14.No âmbito do recurso desta segunda decisão da 1ª Instância para o TRL, veio a Arguida invocar a nulidade da omissão de pronuncia quanto ao requerimento desta na medida em que considera ter sido violado o seu direito de defesa porquanto foi dada a oportunidade desta se pronunciar requerendo supressões e aditamentos que não só não foram levadas em consideração pelo tribunal como nem sequer foram objeto de despacho.

15.Por fim, veio uma 2ª decisão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa considerar que a invocada alegação de nulidade seria uma mera irregularidade.

16.Considera a arguida que em face do requerido não podia deixar de haver um despacho judicial nos termos da alínea b) do n.º 1 do Art.º 97 do CPP que pelo menos conhecesse verdadeiramente o por esta requerido.

17.Não tendo tal acontecido considera arguida que foi, assim, criada uma total impossibilidade de participação plena, num inteiro envolvimento sem quaisquer restrições no seu direito de defesa, no processo tendo, por conseguinte, sido violado o seu direito de efetiva participação e envolvimento processual.

18.Foi proferida, portanto, uma decisão, mantida nesta 2ª decisão da TRL de que se recorre, violadora do normativo constante na al. c) do Art.º 119.º do CPP bem como do n.º 5 do Art.º 32.º da CRP com os efeitos previstos no Art.º 122.º do CPP.

19.Devendo por isto não só ser declarada a nulidade insanável do ato omissivo como também ser declarado nulo todo o processado dele consequente.

20.Acresce que foi, sem ser dada uma verdadeira e efetiva oportunidade de participação à arguida, no âmbito da questão sobre a contradição insanável, nos termos da al. b) do n.º 2 do Art.º 410 do CPP, que esta 2ª decisão do TRL veio a decidir, em total oposição com a 1ª decisão da mesma 9.ª Secção desta 2ª instância, pela inexistência da referida contradição insanável de fundamentação, relativamente a constarem como provados os factos 52., 53 e 154 e como não provado o b).

21.Ora, sendo questão tão determinante, ao ponto de numa primeira decisão da TRL se ter reenviado o processo à 1ª instância para que esta se debruçasse essencialmente sobre as questões elencadas e especificamente relacionadas com a contradição insanável, não podia quer a 1ª Instância quer a 2ª Instância ignorado a essencialidade da participação da arguida tomando posição (decidindo) ao por esta requerido.

Tema 3 da motivação:

22.Quanto ao pedido de indemnização civil deduzido pela demandante GG, é evidente a ofensa de caso julgado.

23.Conforme consta do artigo 628º CPC, “a decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação.”

24.Consta dos autos – fls. 3348 a 3372 – certidão com nota de trânsito do processo 2000/12.9TVLSB que correu os seus termos na Comarca de Lisboa, Lisboa – Unidade Central Lisboa – Inst. Central, 1ª Secção Cível – J18.

25.No suprarreferido processo são RR/Recorrentes as aqui arguidas BB e AA e AA/Recorrida a aqui assistente/demandante GG e foi peticionado por esta a condenação daquelas a entregar a quantia de 2.611.881,66€.

26.As ali RR/Recorrentes e aqui arguidas BB e AA foram absolvidas do pedido.

27.O valor do pedido de indemnização cível deduzido pela supra identificada demandante e os factos que o sustentam são exatamente os mesmos do já identificado processo civil.

28.Há identidade de sujeitos, identidade de pedido e identidade de causa de pedir nas duas ações.

29.Resulta assim caso julgado em que foi decidido que não havia razões para anulação do ato disposição dos bens, com base numa procuração, por incapacidade do representado.

30.Os tribunais de primeira e segunda instância (na segunda decisão) ao condenar a aqui recorrente BB – bem como a arguida AA – pelo mesmo pedido e causa de pedir com que foram absolvidas no processo cível, contradizem e violam a anterior decisão no que concerne à capacidade de entender e querer do Sr. KK.

31.Tendo a R BB – aqui recorrente – sido absolvida da ação cível, não pode, por obediência ao caso julgado, voltar a discutir-se, em posterior pedido de indemnização civil, idêntico pedido indemnizatório.

32.Estamosassim perante uma evidente exceção dilatória de caso julgado referida na alínea i) do artigo 577º CPC.

Tema 4 da motivação:

33.O acórdão de que ora se recorre viola inequivocamente os princípios do Estado de Direito, na sua vertente da proteção da segurança jurídica e da proteção da confiança plasmado no artigo 2º da CRP e, bem assim, o princípio in dúbio pro reo e, por via dele, a presunção de inocência constitucionalmente consagrada no artigo 32.º, n.º 2 CRP.

34.Este princípio, “em necessária articulação com o princípio da presunção da inocência, dá resposta à questão processual da dúvida sobre o facto, impondo ao juiz que o non liquet da prova seja resolvido a favor do arguido.”

35.A dúvida relevante para este efeito é a dúvida que o julgador não logrou ultrapassar e fez constar da sentença ou que por esta é evidenciada.

36.Resulta evidente da sentença – facto provados 65., 70., 76. - que o julgador, não dissipou todas as dúvidas relativamente à autenticidade da impressão digital em causa – violando o artigo 340º CPP – porquanto refere-se sempre à impressão digital de LL como suposta.

37.“este facto não é de somenos importância (…)” uma vez que, se se provar que a impressão digital pertence efetivamente a LL, então “(…) há que apurar em que circunstâncias foi a mesma obtida (…) chegando mesmo a poder-se “(…) configurar aqui mais um outro tipo de crime, v.g. coação agravada (…) – Pág. 87 do acórdão do Tribunal da Relação de ... proferido a ...-...-2017.

38.Deve o Supremo Tribunal de Justiça sindicar a aplicação deste princípio, no âmbito da sua competência de tribunal de revista (artigo 434º CPP), enquanto questão de apreciação necessária sobre a observância ou desrespeito desse princípio geral de processo penal, ligado a uma concreta decisão de direito, quando naquele contexto de dúvida, esta não é declarada, em desfavor do arguido, ou ressalte evidente do texto da decisão por si só ou conjugada com as regras de experiência comum, ou seja, quando é visível que a dúvida só não é reconhecida em virtude de um erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410º, n.º 2 alínea c) e n.º 3 CPP.

39.Como se diz no CPP comentado de António Henrique Gaspar e outros, edição de 2014, em anotação ao artigo 410º, na nota 3, do comentário do Exmo. Sr. Conselheiro Pereira Madeira, pág. 1357, “(…) Conhecimento oficioso não é óbice à iniciativa processual dos interessados, ou seja, mesmo que o conhecimento da questão seja suscitado pelos interessados, o tribunal de recurso não deixa de proceder ex officio ao seu conhecimento, como sucede, aliás, sempre que em causa o conhecimento de direito (iura novit curia), independentemente da posição concordante ou discordante daqueles sobre a matéria”.

40.A não se admitir o presente recurso na parte criminal, deixa-se aqui expressamente invocada a inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 400º, n.º1 alínea f), 410º, n.º 2 e 3, 432º, n.º 1, alínea b) e 434º todos do CPP, segundo a qual o recurso interposto pelo arguido de acórdão condenatório proferido, em recurso, pela relação, que confirme decisão de 1.ª instância e aplique pena de prisão não superior a 8 anos, estando-lhe vedado invocar os vícios previstos nos n.º 2 e 3 do artigo 410º CPP, a nulidade pela preterição da regra de distribuição estabelecida no artigo 426º, n.º 4 CPP que não foi oficiosamente declarada como impõe o artigo 119º, a) CPP e a nulidade insanável da alínea c) do artigo 119º CPP; tudo por violação de fundamentais garantias de defesa, nomeadamente o efetivo direito a recurso ao menos uma única vez (artigo 32º, n.º 1 CRP),e por violação do princípio do Estado de Direito democrático (artigos 2º e 3º CRP), da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20º CRP), do procedimento justo e equitativo (artigo 20, n.º 4 CRP), dos princípios da segurança e da confiança jurídicas e do o princípio in dúbio pro reo e, por via dele, a presunção de inocência constitucionalmente consagrada no artigo 32º CPR.

41.Da mesma forma, a não ser admitido o recurso da parte cível deixa-se aqui expressamente invocada a inconstitucionalidade da norma do artigo 403º, n.º 1 e 3 do CPP, por violação de fundamentais garantias de defesa, nomeadamente por violação do princípio do Estado de Direito democrático (artigos 2º e 3º CRP), do procedimento justo e equitativo (artigo 20, n.º 4 CRP), do direito de acesso aos tribunais inscrito no artigo 20.º CRP, dos princípios da segurança e da confiança jurídicas, se interpretada no sentido de não admissibilidade do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça.

Assim se fazendo JUSTIÇA

3. Por despacho da Senhora Desembargadora relatora foram tais recursos admitidos, em 28/07/2023, limitados à matéria cível e com efeito suspensivo.

4. O Ministério Público, junto do tribunal recorrido, respondeu, em 11/09/2023, limitando-se a dizer que não vislumbrava, do ponto de vista de estrita legalidade, qualquer violação de normas ou princípios legais.

5. Por sua vez, neste Tribunal, o Senhor Procurador-Geral Adjunto, na sua vista de 17/01/2024, apôs visto, dado os recursos em causa serem restritos a matéria cível.

6. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

1. Começando pelo recurso da arguida/demandada civil AA, ao abrigo do disposto nos arts. 672.º e 673.º n.º 3, do C.P.C., ou seja, interposição de revista excecional, com o fundamento de não ser admissível, no caso, revista normal, atenta a dupla conformidade, temos a dizer o seguinte:

O regime de recursos em processo penal constitui um regime próprio e autónomo, definido no art. 399.º e ss., do C.P.P., só havendo lugar à aplicação de normas do processo civil, que se harmonizem com o processo penal, em casos omissos, nos termos do art. 4.º, do C.P.P., havendo que levar em conta o disposto no art. 400.º n.ºs 2 e 3, do mesmo diploma, nos recursos da parte da sentença relativa à indemnização civil.

Ora, constitui posição consolidada na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça1 que a revista excecional não tem aplicação nos processos penais, pois só em caso de lacuna do regime do processo penal poderia o intérprete socorrer-se das normas processuais civis, situação que não ocorre aqui.

Posição idêntica tem, aliás, a doutrina, conforme podemos constatar dos estudos dos Professores MM e NN, publicados em a Revista, Supremo Tribunal de Justiça, 02, a pgs 113 e ss. e 151 e ss.

Para a primeira autora2, também Juíza Conselheira deste Supremo Tribunal, tendo o legislador pretendido criar, no processo penal, um regime de recursos próprio para responder às especificidades do sistema penal, instituiu o que entendeu como sendo o mais adequado, abrindo uma exceção à irrecorribilidade quando verificada a dupla conforme no caso de o arguido ser punido em pena de prisão superior a 8 anos.

Não se trata, deste modo, de um caso omisso, mas de uma decisão pensada de inadmissibilidade de recurso, pelo que, em consequência, não há lugar à aplicação do regime processual civil.

Não muito diferentemente, o Professor Nuno Brandão3 entende que a extensão da revista excecional ao processo penal é manifestamente indevida, cobrando aqui aplicação a ideia da autonomia do regime dos recursos penais e a clara inexistência de lacuna que precise de ser suprida.

Nesta conformidade, este recurso, com tal fundamento, terá de ser rejeitado, por inadmissibilidade, sendo irrelevante a circunstância de ter sido admitido pelo tribunal a quo, por não vincular o tribunal superior (art. 414.º n.º 3, do C.P.P.).

2. Passando, de seguida, ao recurso da arguida/demandada civil BB, diremos que, não obstante o recurso ter sido apenas admitido em relação à matéria cível, a recorrente faz considerações sobre a parte criminal que são deslocadas e não podem ser objeto de apreciação.

Mas, mesmo no que diz respeito à parte cível, há que ter em consideração o disposto no art. 671.º n.º 3, do C.P.C., que estatui que não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância4.

Ora, na situação sub judice, é precisamente o que acontece, tendo o acórdão da 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09/03/2023, por unanimidade, confirmado o acórdão do Juízo Central Criminal de Lisboa -J1, de 07/06/2022, com fundamentação idêntica.

Nestes termos, o recurso desta demandada civil não pode ser também admitido, por se verificar a dupla conforme, sendo certo que não estamos perante um caso em que o recurso é sempre admissível.

Deixa-se consignado que, por despacho da Senhora Desembargadora relatora, de 28/07/2023, foram julgadas improcedentes as nulidades invocadas por esta recorrente.

Como também já tivemos oportunidade de referir, a admissão do recurso pelo tribunal recorrido não vincula o tribunal ad quem (art. 641.º n.º 5, do C.P.C.).

III. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em rejeitar, por inadmissibilidade legal, os recursos interpostos pelas demandadas civis AA e BB (arts. 414.º n.º 2, 420.º n.º 1 b) e 432.º n.º 1 b), do C.P.P., e 671.º n.º 3, do C.P.P.).

Custas pelas recorrentes.

Lisboa, 3 de abril de 2024

(Processado e revisto pelo Relator)

Pedro Branquinho Dias (Relator)

Maria Teresa Féria de Almeida (Adjunta)

Maria do Carmo Silva Dias (Adjunta)

__________________________

1. Cfr., entre outros, os acórdãos de 9/3/2023, relator o Senhor Conselheiro Orlando Gonçalves, Proc. n.º 2386/20.1T9OER.L1.S1, e de 12/1/2022, relatora a Senhora Conselheira Ana Barata de Brito, Proc. n.º 184/12.5TELSB-N.L1.S1, in www.dgsi.pt.

2. A autonomia dos recursos em processo penal (a revista excecional e outros institutos do processo civil), pg. 128 e ss.

3. Recursos penais para o STJ e processo civil, ob. cit., pg. 158 e ss.

4. No sentido da convocação das regras processuais civis para se verificar se a decisão é passível de recurso para o STJ, em matéria civil, veja-se o acórdão deste Supremo Tribunal, de 20/3/2024, do qual é relatora a Senhora Conselheira Maria do Carmo Silva Dias, no Proc. n.º 266/21.2JAVRL.C3.S1, no sítio indicado.