Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
21963/15.6T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
PERDA DE CHANCE
MANDATO FORENSE
INCUMPRIMENTO
ÓNUS DA PROVA
JUÍZO DE PROBABILIDADE
OBRIGAÇÃO DE MEIOS E DE RESULTADO
ADVOGADO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO DE PERDAS E DANOS
EQUIDADE
Data do Acordão: 03/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I – O dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade.

II – Considera-se provada a consistência do dano se o mandatário da autora, não entregando o pedido de indemnização cível na ação penal em que estava pendente o julgamento de homicídio do marido, fez precludir, num sistema de adesão obrigatória (artigo 71.º do CPP), o reconhecimento judicial do direito à indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes da morte violenta da vítima.

III – A alínea d) do n.º 1 do artigo 72.º do CPP, invocada pelo advogado para deduzir o pedido de indemnização cível separado, o que, de resto, também nunca fez, não tem fundamento legal, na medida em que os danos resultavam diretamente dos factos alegados na acusação e eram conhecidos em toda a sua extensão.

IV – O “julgamento dentro do julgamento” permitiu concluir que era altíssima a probabilidade de as autoras obterem no processo-crime, em que os arguidos foram condenados por homicídio qualificado, a condenação destes ao pagamento de uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados pela morte.

V – Provada a consistência do dano da perda de chance com base da probabilidade qualificada de obtenção de um resultado favorável na ação originária, tal não significa que na operação de quantificação do dano da perda de chance as autoras obtenham um resultado igual ao que obteriam no processo-crime.

VI – Há que ponderar, na fixação do quantum indemnizatório pela perda de chance, as dificuldades de execução da sentença contra indivíduos que se encontram a cumprir pena de prisão, devendo a indemnização determinar-se de acordo com a equidade, tendo em conta esta circunstância, na medida em que a seguradora não pode funcionar como garante da eventual insuficiência patrimonial dos devedores.

Decisão Texto Integral:

1. AA e BB intentaram no Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo Central Cível ... a presente ação sob a forma de processo comum contra CC e Mapfre Seguros Gerais, S.A., pedindo a condenação solidária dos réus a pagarem-lhes €575.000,00.

Para tanto, alegaram, em síntese, que na sequência do assassínio do marido e pai das autoras, respetivamente, constituíram o réu CC como seu advogado, tendo em vista a obtenção de uma indemnização no processo-crime. Findo o processo, decorridos vários anos, e após desculpas várias do referido advogado, consultaram o processo e verificaram que nenhum pedido de indemnização, por adesão ou autonomamente, foi deduzido. De igual forma, o mesmo advogado interveio como mandatário das autoras no âmbito de um processo cível, o qual veio a ser julgado deserto face à não dedução de habilitação de herdeiros.

Ou seja, o referido réu foi ludibriando as autoras com a falsa indicação de que os processos estavam a ser tratados quando, na realidade, haviam já findado sem que o referido réu praticasse os atos processuais tendentes ao deferimento da pretensão das autoras.

Com a morte do marido e pai das autoras, único sustento do agregado familiar, estas ficaram em precária situação económica, só conseguindo sobreviver com a ajuda da família. A não dedução do pedido de indemnização no âmbito do processo cível impediu o reconhecimento judicial da obtenção de uma indemnização de €540.000,00.

A segunda ré seguradora foi demandada face à circunstância de a mesma garantir o pagamento de indemnizações devidas pelo seu segurado advogado, conforme contrato de seguro de responsabilidade civil.

2. Pessoal e regularmente citado, o réu, CC, não apresentou contestação.

3. A ré Mapfre Seguros Gerais, S.A., veio contestar pedindo a improcedência da ação, todavia, caso se venha a fixar indemnização às autoras, se reconheça desde já o seu direito de regresso contra o co-réu.

Alegou para tanto que o contrato entre si celebrado e a Ordem dos Advogados teve data de início em 1 de janeiro de 2014, com um limite indemnizatório máximo de €150.000,00 e com uma franquia a cargo do segurado no valor de €5.000,00 por sinistro.

Alegou ainda que a conduta do réu, alegadamente geradora de responsabilidade, ocorreu pelo menos em 2010, tendo o réu conhecimento, pelo menos desde esta data, dos factos que poderiam conduzir à sua responsabilização. Tal facto determina que o presente sinistro se encontre excluído das coberturas da apólice.

Alegou ainda que não se encontra precludida a possibilidade de as autoras reclamarem judicialmente os pretensos danos e prejuízos contra os responsáveis pela prática dos actos descritos nos autos de processo-crime, nomeadamente quanto à autora BB.

4. Foi elaborado despacho saneador, fixado o objeto do processo e os temas da prova. Procedeu-se à realização de julgamento com observância do formalismo legal aplicável, após o que foi proferida sentença de onde consta:

“Pelo exposto, considero parcialmente procedente a presente acção e condeno o réu CC a pagar à autora AA a quantia de vinte cinco mil euros, condenando solidariamente a ré Mapfre Seguros Gerais, S.A., a pagar tal quantia até ao limite de vinte mil euros. (…)”.

5. Inconformadas com tal decisão, dela vieram as autoras recorrer de apelação pedindo a revogação da sentença e sua substituição por outra que condene os réus no pagamento de uma indemnização pela perda de chance.

Inconformados, o réu e a companhia de seguros interpõem também recurso de apelação.

6. O Tribunal da Relação decidiu julgar as apelações totalmente improcedentes, confirmando a decisão recorrida.

7. AA e BB, AA. nos presentes autos, vêm interpor recurso de revista excecional do Acórdão proferido em 27/10/2020, na parte em que se julgou totalmente improcedente o Recurso de Apelação interposto pelas AA., formulando, na sua alegação de recurso, as seguintes conclusões:

«Dos fundamentos específicos da recorribilidade:

1) O presente recurso é interposto como de Revista Excecional, nos termos previstos no art. 672º, n.º 1, do CPC.

2) O presente recurso é admissível porquanto estão em causa questões cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

3) Tais questões são a “perda de chance” e a aplicação do “princípio de adesão” consagrado no art. 71º, do CPP, e a aplicação da exceção a tal princípio prevista na al. d), do n.º 1, do art. 72º, do CPP.

4) É ainda admissível o presente recurso de Revista Excecional por estar em causa interesse de particular relevância social, como seja o direito a indemnização por perda de chance decorrente da não dedução, por mandatário advogado, de pedido de indemnização civil no processo penal respetivo, no qual estava em causa um homicídio.

5) Constituem estes, os fundamentos específicos da recorribilidade do Acórdão da Relação ..., sob impugnação.

Dos fundamentos do recurso:

6) O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime tem de ser deduzido no processo penal respetivo, em obediência ao princípio da adesão consagrado no art. 71º, do CPP, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.

7) Estando em causa um crime de homicídio, os danos resultantes desse crime produzem-se imediatamente no momento da sua prática e são desde logo conhecidos em toda a sua extensão.

8) Num crime de homicídio não existem danos que só posteriormente se venham a produzir, a conhecer, ou a conhecerem toda a sua extensão. Todos os danos, maxime a perda do direito à vida, ocorrem e cristalizam-se no momento do homicídio.

9) A possibilidade de dedução do pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime poder ser feita em separado, perante o tribunal civil, tem de ser aferida em concreto e não em abstrato.

10) Em concreto, nos presentes autos, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime de homicídio, não pode ser deduzido em separado, perante tribunal civil com fundamento no disposto na al. d), do n.º 1, do art. 72º do CPP, por não ser possível não haver ainda danos ao tempo da acusação, estes não serem conhecidos ou não serem conhecidos em toda a sua extensão.

11) Nem, em abstrato, é possível configurar que, estando em causa um crime de homicídio, possam existir danos que só se verifiquem, sejam conhecidos ou sejam conhecidos em toda a sua extensão após o crime.

12) Quando muito, o que pode acontecer é que não existam elementos bastantes para fixar a indemnização. Mas neste caso, não se está perante uma situação de desconhecimento dos danos mas de falta de elementos para a sua liquidação.

13) Nesta situação, em obediência ao princípio da adesão, o pedido de indemnização civil fundado na prática do crime é deduzido no processo penal respetivo (art. 71º, do CPP), devendo o tribunal condenar no que se liquidar em execução de sentença (art. 82º, n.º 1, do CPP).

14) Doutra forma, se a falta de elementos bastantes para fixar a indemnização fosse considerada como desconhecimento da extensão dos danos, em bom rigor, tal serviria para afastar o princípio da adesão, passando a ser opção, e esvaziava-se o preceituado no art. 82º, do CPP, que deixava de ter sentido e aplicação prática.

15) O Tribunal recorrido errou ao aferir, em abstrato, a possibilidade de dedução em separado do pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime, ao abrigo do disposto no art. 72º, n.º 1, al. d), do CPP, quando o deveria ter feito em termos concretos, tendo em consideração os factos provados nos presentes autos, designadamente o de estar em causa um crime de homicídio, interpretando erradamente e violando o disposto nos arts. 71º e 72º, n.º 1, al. d) do CPP.

16) Por outro lado, o facto de um mandatário advogado informar num processo penal onde se julga um crime de homicídio que iria deduzir pedido de indemnização civil em separado, perante o tribunal civil, alegando que os danos resultantes da prática do crime não são ainda conhecidos em toda a sua extensão, não faz, por si só, com que seja verdade tal desconhecimento, nem que seja legalmente possível a dedução do pedido em separado.

17) Não resultaram provados nos presentes autos a existência de quaisquer danos, resultantes do homicídio em causa, que não fossem conhecidos em toda a sua extensão ao tempo da acusação.

18) Ao não entender assim, o Tribunal recorrido violou as mesmas disposições legais.

19) Acresce ainda que, imputando as AA. ao R. CC, advogado, a não dedução do pedido de indemnização fundado na prática do crime de homicídio no processo penal respetivo, com a preclusão do seu direito, impendia sobre aquele R. a alegação e prova de qualquer das circunstâncias previstas no art. 72º, n.º 1, do CPP, mormente a prevista na al, d), que afastaria a referida preclusão.

20) É que as circunstâncias do art. 72º, n.º 1, do CPP, constituem verdadeiras exceções, na medida em que impedem o direito das AA. à indemnização que peticionam, recaindo sobre o advogado o ónus de alegação e prova da matéria correspondente.

21) Ao não entender assim, o Tribunal recorrido violou o disposto no art. 576º, n.º 3, do CPC e no art. 342º, n.º 2, do CC.

22) O Tribunal recorrido errou ao considerar que, tendo R. CC invocado no processo crime por homicídio do marido e pai das AA., que iria deduzir o pedido de indemnização civil em separado, perante o tribunal civil, por os danos resultantes da prática do crime não serem ainda conhecidos em toda a sua extensão, só por si, constitui razão válida e com fundamento legal.

23) O Tribunal recorrido errou ao não considerar que tendo decorrido o prazo para a dedução do pedido cível na ação penal, sem que o mesmo o tenha sido, precludiu o direito das autoras à indemnização dos danos consequência da prática do crime.

24) O Tribunal recorrido errou ao considerar que, mesmo no caso de efetivamente o pedido de indemnização cível ter de ser feito obrigatoriamente em sede de processo-crime, as probabilidades de as autoras serem efetivamente ressarcidas eram ínfimas, pelos factos de os homicidas do marido e pai das autoras serem emigrantes lituanos e terem sido condenados a penas pesadas de prisão, que ainda cumprem.

25) Tal matéria não consta dos factos provados, além de que a partir da mesma não se pode afirmar que os arguidos não tivessem património ou não viessem a adquirir património durante o decurso do prazo de prescrição da sentença condenatória, o qual seria de 20 anos.

26) O Tribunal recorrido, neste caso, violou o disposto no art.607º, n.º 3, do CPC, aplicando erradamente o direito aos factos.

27) Nos presentes autos o R. CC, enquanto advogado e mandatário das AA., estava obrigado a agir de forma a defender os interesses legítimos das AA., praticando os atos compreendidos no mandato – art. 92º, n.º 2, do EOA e art. 1161º, al. a), do CC. Estava, ainda, obrigado a estudar com cuidado e tratar com zelo a questão de que foi incumbido, utilizando para o efeito todos os recursos da sua experiência, saber e atividade – art. 95º, n.º 1, al. b), do EOA. Tinha também o dever de, em qualquer circunstância, atuar com diligência e lealdade na condução do processo – art. 103º, n.º 1, do EOA.

28) No âmbito dessas obrigações tinha o dever de deduzir pedido de indemnização civil fundado no homicídio de que foi vítima o marido e pai das AA., respetivamente, no respetivo processo penal.

29) O R. CC não deduziu tal pedido, sendo que o mesmo tinha de ali ser obrigatoriamente deduzido, por força do disposto no art. 71º, do CPP, não podendo ser em separado com fundamento na al. d), do n.º 1, do CPP.

30) Ao não ter deduzido tal pedido no processo penal, as AA. viram o seu direito à indemnização devida precludido, uma vez que, por força do mencionado art. 71º, os tribunais cíveis são incompetentes em razão da matéria para julgar tal pedido.

31) Se o R. CC tivesse deduzido o pedido de indemnização civil no processo penal, as chances ou probabilidades de as AA. obterem uma sentença que lhes fosse favorável, de obterem a procedência do pedido, eram altíssimas, como reconhecido no Acórdão recorrido.

32) As AA. perderam a chance, de modo irremediável, de verem reconhecidas judicialmente, numa sentença, os seus direitos à indemnização fundada no homicídio do seu marido e pai, respetivamente.

33) O R. CC incumpriu as obrigações a que se vinculou perante as AA., resultantes do contrato de mandato como advogado.

34) Tal incumprimento foi culposo, o que se presume por força do disposto no art. 799º, n.º 1, do CC.

35) O R. CC é responsável, civilmente, nos termos gerais, perante as AA., em virtude do incumprimento ou do seu cumprimento defeituoso, em termos de responsabilidade contratual, por força do disposto no artigo 798º, do CC.

36) Com o seu comportamento o R. CC causou às AA. danos que se objetivaram na impossibilidade de obter uma decisão judicial que lhes reconhecesse o direito a serem indemnizadas pelo valor de 540.000€.

37) A perda de chance das AA. de obter uma decisão judicial que lhes reconhecesse o direito a serem indemnizadas pelo valor de540.000€, constitui um dano em si mesmo.

38) Se o R. CC tivesse deduzido o pedido de indemnização civil no processo penal, as AA. obteriam uma decisão favorável, o que só não aconteceu, devido à omissão cometida por aquele R..

39) Existe, assim, um nexo de causalidade entre o facto omitido pelo R. CC e o dano das AA. consubstanciado na não obtenção de uma decisão judicial que lhes reconhecesse o direito à indemnização.

40) Não sendo possível averiguar o valor exato dos danos, o tribunal deverá julgar equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.

41) Verificam-se os pressupostos da responsabilidade civil decorrente da “perda de chance”, pelo que o Tribunal recorrido deveria ter condenado os RR. a indemnizar as AA., em valor que fixasse equitativamente.

42) O Tribunal recorrido, ao não entender assim, violou o disposto no art. 798º, no art. 799º, n.º 2, no art. 483º, no art. 562º e no art. 566º, n.º 3, todos do CC.».

7. A ré, MAPFRE SEGUROS GERAIS, S.A., tendo sido notificada das Alegações de Recurso de Revista Excecional apresentadas pelas autoras, apresentou contra-alegações nas quais, para além de defender a não admissibilidade do recurso de revista excecional, pugnou pela manutenção do decidido, formulando, para o efeito, as seguintes conclusões:

«5. No que concerne à aplicação do princípio da adesão previsto no artigo 71.º e das excepções previstas no artigo 72.º, n.º 2, designadamente na alínea d), é incontestável a possibilidade de dedução do pedido de indemnização cível em separado, quando, ao tempo da acusação, ainda não existam danos, não sejam estes ainda conhecidos ou não sejam conhecidos em toda a sua extensão.

6. Não vislumbra a aqui Recorrida em que medida é que a questão relativa à aplicação da excepção prevista na alínea d), n.º 2 do artigo 72.º do CPP se apresenta controversa na doutrina e/ou na jurisprudência ou se afigura de elevado grau de complexidade.

7. A opção tomada pelo Réu Advogado, no sentido de deduzir o pedido de indemnização civil em separado e decorrendo esta possibilidade da letra da lei, mais não é do que o reflexo do princípio da independência consagrado no EOA no exercício da actividade forense.

8. Ficou amplamente demonstrado nos presentes autos que, e no que concerne à questão da aplicação do princípio da adesão e da excepção prevista na alínea d), n.º 2 do artigo 72.º do CPP, a mesma não se afigura relevante para que o STJ sobre ela se debruce, aprecie e decida, levando a cabo a sua tarefa uniformizadora, atento o facto de ser unânime a possibilidade de dedução em separado do pedido de indemnização civil nos termos do artigo 72.º, n.º 2 alínea d) do CPP.

9. Parecem ter as AA. olvidado a missão do STJ e o objectivo do recurso excepcional de revista, porquanto o mesmo nunca poderá ter como fundamento o caso concreto e a sua apreciação, mas, antes, a repercussão do problema jurídico em causa e a respectiva solução na sociedade geral.

10. Convém salientar que, o recurso à revista excepcional não se coaduna com o mero inconformismo das Recorrentes com as decisões anteriormente proferidas.

11. Não sendo, por isso, admitida a revista excepcional nos casos em que estão apenas em causa interesses que apenas dizem respeito às partes.

12. Face a tudo quanto se encontra exposto e não tendo as Recorrentes, salvo melhor opinião, explicitado nas suas doutas alegações de recurso, em que medida poderá agora este Supremo Tribunal de Justiça ser submetido a reapreciar a questão relativa à alegada violação do princípio da adesão, - não deverá o presente recurso de revista excepcional ser admitido, o que desde logo se alega e requer para os devidos e legais efeitos.

13. Ademais, não explicitam as Recorrentes nas suas doutas alegações de recurso, em que medida poderá a reapreciação do seu caso concreto, ser “claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”, no que respeita à valoração da prova produzida nos autos, com vista à atribuição de um montante indemnizatório com recurso ao conceito de perda de chance e/ou oportunidade.

14. A opção por este instrumento que, na realidade cria mais um grau de jurisdição, não se pode conter com a mera insatisfação da recorrente quanto a resultado declarado no acórdão recorrido.

15. O que, no entendimento da aqui Recorrida, é o que se verifica nos presentes autos!

16. A questão jurídica em apreço já foi exemplar e exaustivamente apreciada pelas duas instâncias de jurisdição.

17. Sendo certo que, todas as decisões proferidas nos presentes autos tiveram o especial cuidado de atentar e salientar todas as possíveis linhas de entendimento doutrinário e jurisprudencial nessa matéria.

18. É, aliás, indiscutível que, a apreciação do caso concreto carreado aos presentes autos pelas AA., foi escrutinada ao pormenor, quer pelo Tribunal de Primeira Instância na douta sentença proferida, quer pelo Venerando Tribunal da Relação no Acórdão ora recorrido.

19. Ora, tendo em conta a minuciosa apreciação da invocada “perda de chance” pelas Instâncias recorridas, e não tendo as Recorrentes, explicitado nas suas doutas alegações de recurso, em que medida poderá agora este Supremo Tribunal de Justiça ser submetido a reapreciar todas essas questões já amplamente discutidas nos autos - inexistindo em bom rigor, a nosso ver, qualquer questão jurídica cuja especial complexidade justifique a excepcionalidade do recurso pretendido pelo Autor - não deverá o presente recurso de revista excepcional ser admitido.

20. Por outro lado, não se encontrará igualmente preenchido (salvo melhor opinião), o requisito constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.

21. De facto, prevê a citada norma legal que, poderá ser excepcionalmente admitida a revista (do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida em Primeira Instância), quando estejam em causa interesses de particular relevância social, devendo, nesse caso o requerente, sob pena de rejeição, indicar na sua alegação, as razões pelas quais os interesses são de particular relevância social.

22. Ora, no tocante ao requisito em apreço (relevância social), a jurisprudência vem sendo constante no sentido de os interesses só assumirem particular relevância social se conectados com valores sócio-culturais que ponham em causa a eficácia do direito, sua credibilidade, quer na formulação legal, quer na aplicação casuística.

23. Sendo certo que, e atendendo à forma como as aqui Recorrentes delimitam e configuram o objecto do presente recurso, não estarão em causa nos presentes autos quaisquer interesses de particular relevância social, que justifiquem a apreciação, por este Supremo Tribunal, a título excepcional, da presente revista apresentada nos autos pelas AA., não se encontrando igualmente preenchido o requisito previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC (interesses de particular relevância social).

24. As questões jurídicas suscitadas pelas AA. não revestem particular relevância social, nem a sua solução ultrapassam os limites do caso concreto por forma a gerar sentimentos de intranquilidade ou alarme ou colocar em causa a credibilidade do direito.

25. Não obstante tal entendimento, sempre caberá referir que, de facto, pretendem as Recorrentes, por via do presente recurso de revista excepcional, uma reapreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça relativamente ao âmbito de aplicação do princípio da adesão previsto no artigo 71.º do CPP, bem como das excepções àquele princípio conforme decorre do artigo 72.º, n.º 2 do CPP.

26. Na verdade, e conforme decorre do artigo 71.º do CPP, que se refere ao princípio de adesão, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime deverá, regra geral, ser deduzido no processo penal respectivo.

27. No entanto, prevê o artigo 72.º que, caso a extensão dos danos, à data da acusação, não sejam totalmente conhecidos, o pic poderá ser deduzido em separado, junto dos Tribunais comuns.

28. Assim, atento ao caso concreto em que era desconhecida a extensão dos danos sofridos pelas AA., a título de danos patrimoniais, à data da acusação, socorreu-se o Réu Advogado da possibilidade legalmente concedida pela alínea d) nº 1 do artigo 72º, do CPP, possibilidade essa, aliás, confirmada, na douta sentença recorrida.

29. Pelo que, e diferentemente do que sustentam as aqui Recorridas, sempre será legalmente admissível a dedução do pic em separado no caso concreto, porquanto tal decorre da letra da lei, não merecendo censura a opção levada a cabo pelo Réu Advogado.

30.  Desta forma, não se encontra o direito de acção das AA. precludido, pois que, ainda subsiste a possibilidade de pedirem e verem, consequentemente, reconhecidas as indemnizações alegadamente devidas e fundadas no crime que vitimizou o pai e marido das Recorrentes.

31. Em bom rigor, e atenta à conjugação dos normativos legais constantes dos artigos 118.º, n.º 1, alínea a) e 132º nº 1 a) do Código Penal e artigo 498.º do Código Civil, o prazo de prescrição aplicável ao caso concreto é incontestavelmente de 15 anos, como confirmado, aliás, pela douta sentença recorrida.

32. Pelo que, forçoso será concluir que, inexistirá, presentemente, a concreta concretização do dano nas esferas jurídicas das aqui Recorrentes, pelo que afastada está a responsabilidade civil do Réu advogado.

33. Ademais, no que concerne a qualquer eventual dano susceptível de ser indemnizado, ainda que sob o prisma da “perda de chance”, também se encontram as pretensões das Recorrentes condenadas ao insucesso.

34. Efectivamente, a aplicação do conceito/raciocínio de prognose futura visa precisamente possibilitar o estabelecimento de um nexo de causalidade entre a conduta lesiva e um dano mais próximo (como que “antecipado” face ao dano final), consubstanciado numa probabilidade séria e real da obtenção de determinado resultado favorável não fosse a conduta lesiva.

35. Sendo certo que, a aplicação de tal juízo de probabilidade não poderá deixar de exigir a demonstração séria e segura da possibilidade de obtenção de uma vantagem, entretanto denegada em resultado da ocorrência de determinada conduta omissiva, sob pena do presumível lesado alcançar – por via da responsabilização civil do advogado – um benefício superior ao que alcançaria se não fosse a conduta lesiva.

36. Continuando, assim, a impender sobre o Autor a demonstração dos factos que possam, a final, conduzir a apreciação positiva do juízo de prognose sobre a “chance perdida”.

37. De facto, mesmo quando somos chamados a aplicar a doutrina da perda de chance, pois a oportunidade perdida até pode ser portadora de um valor de per si, sendo a respectiva perda passível de indemnização, mas apenas se houvesse uma possibilidade real de êxito que se frustrou, a qual tem de ser provada pelo (pretenso) lesado, por se tratar de um facto constitutivo do seu direito (cfr. o artigo 342.º/1 do CC).

38. Ora, atenta a factualidade carreada para os autos, sempre se dirá que o facto do Réu Advogado não ter deduzido o pic, no âmbito do processo-crime, por si só, não constitui causa directa e adequada dos alegados danos sofridos pelas Recorrentes, porquanto, resulta, desde logo evidente para a aqui Recorrida que, jamais conseguiriam as recorrentes obter o montante global peticionado, a título de danos patrimoniais, dos ali arguidos, não obstante, pudessem, de facto, obter provimento no que diz respeito à procedência do pic.

39. Pelo que, forçoso será concluir que, ainda que o pedido de indemnização cível tivesse sido deduzido pelo Réu Advogado, no âmbito do processo-crime e o mesmo tivesse sido julgado procedente e, consequentemente, fossem os arguidos condenados a pagar as Recorrentes as quantias por estas reclamadas, em decorrência do crime de homicídio qualificado, certezas não existem de que as Recorrentes iriam efectivamente obter o recebimento das quantias reclamadas, entendimento, aliás, confirmado pela douta sentença recorrida.

40. De modo que, e face ao que antecede, não há lugar à verificação do dano de perda de chance.

41. Assim, e por tudo quanto se encontra exposto, deverão improceder todas as conclusões das ora Recorrentes, não merecendo o Douto Acórdão recorrido qualquer censura, devendo ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se, na íntegra, a douta decisão recorrida, só assim se fazendo JUSTIÇA!»

8. A Relatora remeteu o processo à Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, que admitiu o recurso de revista excecional, ao abrigo das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, por ter entendido que a indemnização pelo dano da perda de chance é uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é necessária para uma melhor aplicação do direito, bem como uma questão que convoca interesses de particular relevância social, concluindo que a presente questão do dano da perda de chance «(…) tem inegável impacto na credibilidade e salvaguarda do patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça assumido pelo artigo 208.º da Constituição da República. Nessa medida não pode deixar de se reconhecer a sua envolvência com o princípio estruturante do “Estado de direito democrático” e, por conseguinte, com a sua projeção na comunidade em relação quer aos cidadãos que demandam a Justiça, quer aos profissionais que intervêm na sua realização, no caso, os advogados.»

9. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões, a questão a decidir é a de saber se o advogado responde pelo dano da perda de chance processual e em que termos.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A – Os factos

A) O réu Dr. CC é advogado, inscrito na Ordem dos Advogados desde 15 de outubro de 1999, pelo Conselho Distrital ..., com a cédula profissional ..., e com a inscrição atualmente em vigor.

B) O réu Dr. CC, enquanto advogado, tinha por diversas vezes prestado aconselhamento jurídico ao DD e à autora AA e exercido o mandato forense em representação destes.

C) Algum tempo após o assassínio do marido da autora, DD, a autora AA solicitou os serviços profissionais do réu Dr. CC, para que este defendesse os interesses das aqui autoras, praticando os atos jurídicos que se mostrassem necessários para o efeito, exercendo o mandato forense, judicial, a representação, a assistência e prestando aconselhamento jurídico.

D) A autora AA entregou-lhe procurações forenses.

E) A partir de então, o réu Dr. CC passou a praticar em nome e representação das autoras, os atos jurídicos que entendeu ajustados e necessários à satisfação dos interesses e das pretensões das autoras…

F) Designadamente acompanhou a autora AA à Polícia Judiciária para levantar as chaves do estabelecimento, um saco com dinheiro, um telemóvel e um casaco, tudo bens pertencentes ao DD, recolhidos pela entidade policial no local do crime, tendo ficado na posse do réu Dr. CC os comprovativos do que havia sido entregue à autora AA.

G) A autora AA, de acordo com as indicações dadas pelo réu Dr. CC constituiu-se assistente no processo-crime, tendo este assumido a sua representação obrigatória.

H) O réu Dr. CC praticou no processo-crime os atos que entendeu, aderindo à acusação do Ministério Público, tendo estado presente e participado nas audiências de julgamento.

I) A data do acórdão proferido em 1.ª instância é de 30 de Março de 2009…

J) Deste acórdão foi interposto recurso para o Tribunal da Relação ..., o qual confirmou a decisão da 1.ª instância, tendo esta transitado em 9 de Novembro de 2009.

K) Logo após a decisão condenatória proferida em 1.ª instância, a autora AA questionou o réu Dr. CC sobre as indemnizações a que ela e a sua filha teriam direito…

L) A esta questão respondeu o réu que a decisão condenatória ainda não havia transitado em julgado pelo que teriam de aguardar pelo mesmo para tratar da indemnização.

M) Com a morte do seu marido, a autora AA, que estava desempregada, e a sua filha, ficaram sem qualquer fonte de sustento, passando a viver com muitas dificuldades económicas.

N) Na sequência de perguntas insistentes da autora AA, a resposta do réu era sempre a de que o processo estava na Relação, tendo-se a autora deslocado várias vezes ao escritório do réu e nunca o encontrava, nem este atendia o telemóvel.

O) Após algum tempo e inúmeros contactos feitos pela autora AA junto do réu, este solicitou-lhe que a autora lhe fornecesse o NIB para onde poderia ser feito o pagamento das indemnizações, o que a autora fez.

P) Para além do assunto relacionado com a morte do marido da autora, o réu Dr. CC interveio como advogado num outro processo.

Q) Em 23 de Janeiro de 2007, o agora falecido DD tinha intentado uma ação declarativa de condenação sob a forma ordinária contra diversos réus, na qual pedia que fosse declarado legítimo proprietário de diversos bens móveis; que os réus fossem condenados a reconhecerem o direito de propriedade do autor sobre esses bens, e bem assim a entregar-lhe os mesmos. Pedia ainda que os réus fossem condenados a indemnizá-lo pelos prejuízos causados com o empossamento alegadamente abusivo de um seu estabelecimento comercial…

R) Esta ação foi patrocinada inicialmente pela Dr.ª EE e pelo Dr. FF, com um escritório no ....

S) À data da morte do DD, esta ação encontrava-se pendente no Tribunal Judicial ..., no ... Juízo, como processo n.º 430/07….

T) Após a morte do seu marido, a autora AA, em nome das aqui autoras, deu instruções ao réu para que este assumisse o patrocínio da ação, o que este aceitou.

U) O tempo foi passando e o réu Dr. CC foi sempre assegurando à autora AA estar a dar andamento ao assunto, inclusivamente estar a negociar um acordo com a parte contrária.

V) Estranhando a ausência de notícias e as dificuldades em contactar o réu Dr. CC, a autora AA, em fins de 2014, tratou de pessoalmente ir consultar o processo cível…

W) Deslocou-se então ao Tribunal Judicial ... pedindo o processo para consulta, tendo sido informada que o processo estava já arquivado há anos…

X) Consultado o referido processo e acompanhada por advogado, seu mandatário nestes autos, verificou-se que:

a) Em 22 de julho de 2008, um dos réus na referida ação, requereu a junção aos autos da certidão de óbito do autor;

b) Em 1 de setembro de 2008 foi determinada pelo juiz do processo a suspensão da instância, em face do falecimento do ali autor DD;

c) Em 18 de setembro de 2008, a então mandatária do autor falecido requereu a junção aos autos de substabelecimento sem reserva, emitido a favor do réu Dr. CC, o qual, conforme data constante do mesmo e da declaração constante do requerimento, tinha sido entregue ao réu Dr. CC em 16 de julho de 2008;

d) Em 23 de setembro de 2008, o réu Dr. CC requereu a junção aos autos do mesmo substabelecimento;

e) Com data de 10 de novembro de 2009, o réu Dr. CC foi notificado, na qualidade de mandatário do autor, da conta do processo e para, querendo, no prazo de 10 dias reclamar da mesma;

f) Com data de 21 de setembro de 2010, o juiz titular daquele processo exarou despacho do seguinte teor: “Tendo já decorrido mais de 2 anos sobre a prolação do despacho de fls. 456 sem que tenha havido qualquer impulso processual dos presentes autos, a instância considera-se deserta, por força do disposto no artigo 291.º, do Código de Processo Civil.”.

g) Este despacho foi notificado ao réu Dr. CC por notificação datada de 22 de setembro de 2010.

Y) O réu Dr. CC não deduziu no referido processo qualquer habilitação de herdeiros nem informou as autoras de que o processo veio a findar por deserção.

Z) Ao tomar conhecimento destes factos relativos a este processo, a autora AA ficou apreensiva em relação ao assunto das indemnizações e deslocou-se, acompanhada de advogado, ao Tribunal da Relação ..., onde foi informada de que o processo-crime já lá não se encontrava, estando antes no Tribunal ...…

AA) Sempre acompanhada de advogado, a autora deslocou-se ali e, consultado o processo, ficou a saber nesse momento que do mesmo não constava qualquer pedido de indemnização cível e que a sentença ali proferida encontrava-se transitada em julgado desde 9 de novembro de 2009…

BB) A autora verificou ainda nesse momento que o réu Dr. CC tinha apresentado um requerimento no processo-crime, em 12 de agosto de 2008, ali informando que iria deduzir pedido de indemnização civil em separado, perante o tribunal civil, por os danos resultantes da prática do crime não serem ainda conhecidos em toda a sua extensão.

CC) O réu Dr. CC não interpôs qualquer ação cível em representação das autoras com vista ao ressarcimento dos danos decorrentes do assassínio do marido e pai das autoras.

DD) A autora AA viveu durante mais de 6 anos na expectativa de vir a receber indemnização decorrente das ações em que o réu a representava, juntamente com a sua filha, questionando amiúde o réu Dr. CC sobre as indemnizações ao que este respondia sempre que o processo-crime estava na Relação.

EE) A autora AA sentiu-se imensamente enganada, perdida, totalmente desamparada e vencida, tendo ficado gravemente afetada na sua estabilidade psíquica em consequência da conduta do réu Dr. CC.

FF) Perante o conhecimento dos factos, a autora AA enviou ao réu Dr. CC uma carta registada com aviso de receção, rececionada em 30 de outubro de 2014, procedendo à revogação do mandato que lhe havia conferido, e informando as diligências que efetuou e o resultado das mesmas, e solicitando que o réu Dr. CC informasse e entregasse toda a documentação relacionada com os assuntos referidos ao advogado GG, no prazo de 5 dias úteis.

GG) Em novembro de 2014, o réu Dr. CC reuniu no escritório do advogado Dr. GG, mandatário das autoras nesta ação…

HH) Nessa sequência, a autora AA endereçou ao réu Dr. CC nova carta registada com aviso de receção, recebida em 12 de novembro de 2014, na qual se expressou descansada face aos esclarecimentos que o réu havia prestado ao advogado GG, agradada com a disponibilidade manifestada para entregar toda a documentação na sua posse, e solicitou o envio da nota de despesas e honorários, relativa a estes assuntos.

II) Até à presente data, o réu Dr. CC apenas entregou ao agora advogado das autoras, alguns dos documentos na sua posse.

JJ) O marido da autora, na sequência das agressões que sofreu e que conduziram à sua morte, sofreu dores físicas muito intensas.

KK) À data da morte, o marido e pai das autoras tinha 35 anos.

LL) O marido e pai das autoras era pessoa trabalhadora, muito amigo da mulher e filha.

MM) A autora AA tinha uma excelente relação conjugal com o DD.

NN) A autora AA ficou muito deprimida ao tomar conhecimento da morte do seu marido, tendo ficado muito triste, sem vontade de viver, amargurada e revoltada.

OO) À data da morte do seu pai, a autora BB tinha 5 anos, tendo fortes laços afetivos com o seu pai, continuando a sofrer desgosto decorrente da morte do mesmo.

PP) O falecido DD era o único sustento da família, sendo ele quem obtinha o rendimento necessário para a satisfação dos encargos do agregado familiar, constituído por si e pelas autoras.

QQ) A autora AA estava desempregada e não tinha qualquer fonte de rendimento.

RR) Era com o rendimento mensal do DD que eram pagas todas as despesas com habitação, alimentação, vestuário, saúde e demais relativas ao agregado familiar.

SS) A Ordem dos Advogados, na qualidade de tomador do seguro, contratou com a seguradora Mapfre Seguros Gerais, SA, através da corretora de seguros AON Portugal – Corretores de Seguros, SA, um Seguro de Grupo de Responsabilidade Civil Profissional dos Advogados, titulado pela apólice n.º ...58/1, nos termos e com as cláusulas constantes de fls. 195 a 216.

TT) Com data de início a 1 de janeiro de 2014 foi celebrado o primeiro contrato de seguro.

UU) Por efeito desse seguro, a ré Mapfre garante os pagamentos de indemnizações que possam ser exigidas aos segurados (advogados com inscrição na Ordem dos Advogados), a título de responsabilidade civil profissional, nomeadamente com base em erro, omissão ou negligência, no exercício da atividade profissional de advogado.

VV) À data da citação da ré seguradora, o referido contrato encontrava-se em vigor, sendo o limite indemnizatório máximo contratado para o seu período de vigência as 0 horas de 1 de janeiro de 2015 e as 0 horas de 1 de janeiro de 2016.

WW) No referido contrato prevê-se a aplicação de uma franquia contratual a cargo do segurado, cujo valor ascenderá a €5.000,00 por sinistro.

XX) Nos termos previstos na alínea a) do artigo 3.º das condições particulares da apólice, “Ficam expressamente excluídas da cobertura da presente apólice, as reclamações: a) Por qualquer facto ou circunstância conhecidos do segurado, à data de início do período de seguro, e que já tenha gerado, ou possa razoavelmente vir a gerar, reclamação”.

YY) Nos termos do artigo 8.º das cláusulas anexas das condições particulares da apólice, que “Como condição precedente às obrigações do segurador sob esta apólice, deverá o segurado, tão cedo quanto seja possível, comunicar ao segurador:

a) Qualquer reclamação contra qualquer segurado, baseada nas coberturas desta apólice;

b) qualquer intenção de exigir responsabilidade a qualquer segurado, baseada nas coberturas desta apólice;

c) qualquer circunstância ou incidente concreto conhecido pelo segurado e que razoavelmente possa esperar-se que venha a resultar em eventual responsabilidade abrangida pela apólice, ou determinar a ulterior formulação de uma petição de ressarcimento ou acionar as coberturas da apólice”.

ZZ) Nos termos do artigo 8.º, n.º 3, das cláusulas anexas das condições particulares da apólice, “O segurado deverá facultar ao segurador todas as informações sobre as circunstâncias da reclamação. O não cumprimento desta obrigação, com dolo ou culpa grave, permitirá ao segurador declinar o sinistro”.

AAA) Nos termos da cláusula 7.ª das condições particulares da apólice, “O segurador assume a cobertura da responsabilidade do segurado por todos os sinistros reclamados pela primeira vez contra o segurado ou contra o tomador do seguro ocorridos na vigência das apólices anteriores, desde que participados após o início da vigência da presente apólice, sempre e quando as reclamações tenham fundamento em dolo, erro, omissão ou negligência profissional coberta pela presente apólice, e mesmo ainda que tenham sido cometidos pelo segurado antes da data de efeito da entrada em vigor da presente apólice, e sem qualquer limitação temporal da retroactividade”.

BBB) No processo n.º 104/08.... foi prolatada sentença, transitada em julgado em 9 de novembro de 2009, nos termos e com o conteúdo constante de fls. 40 a 63.



B – O Direito

1. Por via da presente ação de responsabilidade civil, as autoras pretendem obter uma indemnização, em consequência do alegado incumprimento do contrato de mandato forense, pelo advogado que representava a autora AA no processo-crime onde se julgou o homicídio de que foi vítima o seu marido. Invocam as autoras que o advogado violou a obrigação de executar os atos compreendidos no mandato, de acordo com as suas instruções, estando em causa na revista o dano patrimonial causado pela não apresentação de pedido de indemnização cível no processo-crime. Nesta ação, as autoras demandaram, simultaneamente, o advogado e a ré/seguradora, com a qual a Ordem dos Advogados contratualizou seguro de responsabilidade civil de advogado.

As questões suscitadas na revista excecional prendem-se com os pressupostos do direito de indemnização por perda de chance decorrente da não dedução, pelo mandatário das autoras, de pedido de indemnização civil no processo penal, em que estava em causa o julgamento do homicídio do marido da primeira autora e pai da segunda, menor de idade.

A Formação que admitiu o recurso de revista excecional entendeu estarem em causa duas questões fundamentais de direito para avaliar a consistência do dano da perda de chance: 1) saber se os danos existentes à data da acusação eram de molde a determinar a dedução obrigatória do pedido de indemnização cível no processo penal nos termos do artigo 71.º do CPP ou se estamos perante uma situação excecional de dedução separada em ação cível autónoma, à luz do disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 72.º do CPP; 2) saber se a consistência do dano da perda de chance se encontra afetada pela alegada probabilidade ínfima de obtenção da indemnização devido à condição dos arguidos de emigrantes lituanos, o que indiciaria, na perspetiva das instâncias, falta de meios para suportar o pagamento.

As instâncias decidiram reconhecer o direito da primeira autora a uma indemnização no valor de 25.000 euros, pelos danos não patrimoniais sofridos com o comportamento negligente do réu, questão não incluída no objeto deste recurso, mas entenderam que não havia lugar à indemnização dos danos patrimoniais causados pela perda de chance.

A fundamentação das instâncias baseou-se em três argumentos: 

1) – O advogado réu, em agosto de 2008, declarou, por escrito, no processo crime, que iria apresentar pedido de indemnização cível em separado, perante o tribunal civil, em virtude de os danos resultantes da prática do crime não serem ainda conhecidos em toda a sua extensão (Facto provado BB), o que sendo uma estratégia questionável e pouco vulgar, estaria, ainda, suportada pela lei ao abrigo do artigo 72.º, n.º 2, al. d), do CPP, tendo em conta que o Código de Processo Penal não obriga a que o pedido de indemnização cível seja sempre requerido no processo crime.

2) Apesar de ser altamente provável que o pedido da indemnização cível fosse procedente, caso tivesse sido enxertado no processo-crime, a probabilidade de efetivamente as autoras receberem a indemnização era muito baixa, pois que os homicidas eram emigrantes lituanos e foram condenados em penas pesadas de prisão.   

3) Dado tratar-se de um caso de responsabilidade civil gerada pela prática de um crime de homicídio, o prazo de prescrição para intentar um processo cível autónomo ainda não decorrera (nos termos da aplicação conjugada dos artigos 118.º, n.º 1, al. a), e 132.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, e 498.º, n.º 3, do Código Civil, bem como, em relação à menor, do artigo 320.º, n.º 1, do Código Civil), pelo que existiria, ainda, uma via alternativa para que as autoras pudessem obter a indemnização dos danos sofridos.

3. As recorrentes, nas conclusões da revista, defendem a tese segundo a qual a lei processual penal obriga a que o pedido de indemnização cível seja deduzido no processo-crime, pelo que, por ser altamente provável que tivessem obtido ganho de causa no processo-crime, devem ser ressarcidas, pelos réus, do dano da perda de chance.


4. O direito à indemnização pelo dano da perda de chance processual desdobra-se em dois problemas jurídicos que têm sido controversos na doutrina e na jurisprudência: a questão do nexo de causalidade entre o facto e o dano, bem como a consistência do dano, questões distintas da sua quantificação (o quantum da indemnização). Aferir da existência de dano é um momento anterior ao momento da sua quantificação. O problema da quantificação do dano apenas surge depois de comprovada a verificação de um dano, pressuposto imprescindível e central da responsabilidade civil.

Sobre o tema do dano da perda de chance processual foi proferido um Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 2/2022 (DR, 1.ª série, 26-01-2022), no processo n.º 34545/15.3T8LSB.L1.S2-A, onde se definiu a seguinte orientação:

«O dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade».

O AUJ aceitou como princípio a ressarcibilidade do dano de perda de chance processual, não obstante a incerteza quer do nexo causal quer do dano. O dano da perda de chance será assim a perda de oportunidade de obter uma vantagem ou evitar um prejuízo e é suscetível de ser indemnizado, seja como elemento patrimonial pré-existente no património do lesado (dano emergente), distinto do dano final, seja como antecipação do dano final e por isso um lucro cessante. Entende-se, portanto, nas palavras do AUJ que «(…) o modo abrangente como o artigo 564.º do Código Civil apresenta os danos que são suscetíveis de ser indemnizados não afasta a possibilidade da perda de chance poder ser qualificada como um dano, seja um dano em si (distinto do dano final) ou seja uma “fração” do dano final», mas tal não significa que toda a qualquer perda de chance deva ser reconhecida como um dano indemnizável, propugnando-se que só uma perda de chance consistente e séria configura um dano por perda de chance indemnizável. No mesmo sentido, a doutrina nele citada (cfr. Paulo Mota Pinto, in “Perda de Chance Processual”, Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 15, ano 5, abr.-jun.2018, p. 373), afirma que «Além da verificação dos pressupostos gerais da responsabilidade civil, incluindo a existência do dano e de um nexo de causalidade entre o facto lesivo e o dano exige-se, designadamente, que a chance a indemnizar seja real e séria. Não basta, assim, a constatação da prévia existência, numa qualquer medida, de uma oportunidade ou possibilidade de obtenção de um resultado favorável de uma vantagem pelo lesado, que tenham sido destruídas. É ainda necessário que a concretização da “chance” se apresente com um grau de probabilidade ou verosimilhança razoável e não com carácter meramente hipotético.»

Sendo o dano caraterizado por uma incerteza, pois, em rigor, não é possível saber, com absoluta segurança, se o lesado obteria ganho de causa, no processo cujo resultado lhe foi desfavorável, os tribunais quando julgam estes casos aceitam, tal como também entendeu o AUJ n.º 2/2022, que basta uma probabilidade qualificada (consistente e séria) de perda de uma vantagem para que o lesado tenha direito à indemnização.

Constata o AUJ n.º 2/2022 que “(…) à luz das regras e princípios vigentes de responsabilidade civil, só uma “chance” com um mínimo de consistência pode aspirar a exprimir a certeza (“relativa”) do resultado comprometido (pelo ato lesivo) ser considerado provável.

Não há indemnização civil sem dano e este tem que ser certo, sendo que a certeza do dano de chance (que, por isso, merece a tutela do direito e ser indemnizado) está exatamente na probabilidade suficiente, em função da consistência da chance, do resultado favorável da ação comprometida ou, para quem entenda que é o dano final que está a ser indemnizado, na probabilidade suficiente, em função da consistência da chance, da materialização do dano final (do resultado final desfavorável do processo).

Uma “chance” puramente abstrata e especulativa – isto é, independente da prova de qualquer concreta probabilidade – não é, de modo algum, um dano certo; assim como não atingirão a certeza exigível, não sendo indemnizáveis, as “perdas de chance” que correspondam a uma pequena probabilidade de sucesso da ação comprometida».

Mas não pode exigir-se, como também reconhece o AUJ, que o dano decorrente do comportamento ilícito e culposo do advogado seja objeto de uma certeza absoluta. Neste sentido, “(…) a certeza sobre a realidade hipotética do que não chegou a verificar-se tem sempre que se situar no domínio das probabilidades (das certezas relativas). A aferição dum tal dano exigirá sempre a comparação entre uma situação real, atual, e uma situação hipotética, igualmente atual, sendo a prognose sobre a evolução hipotética do processo comprometido que irá permitir determinar a certeza relativa do dano».

A jurisprudência tem ainda entendido que, para aferir se o dano da perda de chance processual tem consistência suficiente para ser indemnizado, importa proceder a um “julgamento dentro do julgamento” no tribunal em que é pedida a indemnização, onde se indagará qual seria a decisão hipotética do processo em que foi cometido o facto lesivo (a falta do mandatário), a fim de determinar o grau de probabilidade que o lesado teria de obter um resultado favorável no processo em que se produziu o dano. A doutrina tem entendido que caso a probabilidade de um resultado favorável seja contabilizada em mais de 50% produziu-se um dano da perda de chance com consistência suficiente para ser indemnizável (cfr. Paulo Mota Pinto, ob. cit., p. 362).

A metodologia para aferir este grau de probabilidade é necessariamente casuística, como entendeu o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 09-07-2015 (proc. n.º 5105/12.2TBXL.L1.S1). Prossegue este Acórdão, entendendo que «Assim, no campo da responsabilidade civil contratual por perda de chances processuais, em vez de se partir do princípio de que o sucesso de cada ação é, à partida, indemonstrável, mostra-se mais adequado questionar, perante cada hipótese concreta, qual o grau de probabilidade segura desse sucesso, pois pode muito bem acontecer que o sucesso de determinada ação, à luz de um desenvolvimento normal e típico, possa ser perspetivado como uma ocorrência altamente demonstrável, à face da doutrina e jurisprudência então existentes; o ónus de prova de tal probabilidade impende sobre o lesado».


A existência de um dano consistente e sério afere-se pela probabilidade de sucesso do pedido no processo em que o mandatário incumpriu as suas obrigações, caso ele as tivesse observado, de acordo com a solução provável (probabilidade consistente e séria), à luz das orientações jurisprudenciais e doutrinais dominantes.

Este critério de probabilidade é estritamente jurídico, e reporta-se apenas ao processo declarativo, não atendendo às chances económicas de sucesso da execução da sentença de condenação, apenas relevantes na quantificação do dano.

A quantificação do dano é autónoma e subsequente à demonstração da consistência da perda de chance processual, não interferindo, pois, com esta consistência, que se mede pela probabilidade de ganho de causa na ação originária.

Como se afirma no AUJ n.º 2/2020, «Questão diferente e a jusante da prova da existência de dano (da prova da consistência e seriedade da concreta chance processual comprometida), é a já referida questão da avaliação e fixação do quantum indemnizatório devido em caso de perda de chance consistente e séria». Em sede de quantificação do dano patrimonial, tem-se entendido que não é adequado recorrer à teoria da diferença, mas a critérios de equidade.

Nesta operação, para além de se ter em conta que o dano da perda de chance não coincide com o valor total do pedido do autor, pode, ainda, no cômputo dos danos, adquirir relevo fatores económicos relacionados com a probabilidade de a indemnização devida, no plano jurídico, se tornar efetiva no plano fáctico, na medida em que o advogado e a seguradora não assumem aqui a função de garante da eventual insuficiência económica dos devedores.

O dano que se indemniza não é o dano final, nem o dano futuro, mas o dano “avançado”, constituído pela “perda de chance processual”, que não é igual à vantagem que se procurava com o processo como se tem entendido na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça (cfr., por todos, Acórdão de 11-01-2017, proc. n.º 540/13).

O montante da indemnização a arbitrar não tem de ser igual, e em regra não será, à totalidade do pedido do autor ou ao prejuízo que o réu deixaria de suportar, se a exceção invocada no processo tivesse sido procedente. Não se pode cair num excesso de responsabilização, com o correspondente “enriquecimento do lesado”, nem na transformação do lesante em verdadeiro garante da concretização da chance (cfr. Paulo Mota Pinto, ob. cit., p. 363).

           

5. Trata-se, pois, de saber se estão provados os pressupostos da responsabilidade civil contratual: facto ilícito; culpa presumida do devedor (artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil); o dano e o nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano.

Está em causa a ressarcibilidade de danos patrimoniais produzidos, por alegado incumprimento de mandato forense pelo advogado, que assumiu a representação obrigatória da autora AA no processo-crime em que esta se constituiu assistente, nele praticando os atos que entendeu (Facto provado G e H). Nesse processo-crime, foram julgados e condenados, por sentença transitada em julgado, os autores do homicídio do marido da primeira autora e pai da segunda (Factos provados I), J), JJ) e BBB).

Entendem as autoras que a não dedução do pedido de indemnização civil no processo-crime, por parte do advogado, fez precludir a possibilidade de reconhecimento judicial do direito a uma indemnização pelos danos resultantes do crime de homicídio que vitimou o seu marido e pai e que avaliam num montante global de € 540.000,00.  

           

6. As instâncias deram como provados a ilicitude e a culpa, questionando apenas o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, que entenderam não demonstrados no caso sub judice.

Os factos integradores da ilicitude são os seguintes, conforme resulta da factualidade dada como provada no acórdão recorrido: 

- Algum tempo após o assassínio do marido da autora, DD, a autora AA solicitou os serviços profissionais do réu Dr. CC, para que este defendesse os interesses das aqui autoras, praticando os actos jurídicos que se mostrassem necessários para o efeito, exercendo o mandato forense, judicial, a representação, a assistência e prestando aconselhamento jurídico.

- A autora AA entregou-lhe procurações forenses.

- A autora AA, de acordo com as indicações dadas pelo réu Dr. CC constituiu-se assistente no processo-crime, tendo este assumido a sua representação obrigatória.

- O réu Dr. CC praticou no processo-crime os actos que entendeu, aderindo à acusação do Ministério Público, tendo estado presente e participado nas audiências de julgamento.

- A data do acórdão proferido em 1.ª instância é de 30 de março de 2009 e deste acórdão foi interposto recurso para o Tribunal da Relação ..., o qual confirmou a decisão da 1.ª instância, tendo esta transitado em 9 de novembro de 2009.

- Logo após a decisão condenatória proferida em 1.ª instância, a autora AA questionou o réu Dr. CC sobre as indemnizações a que ela e a sua filha teriam direito e, a esta questão respondeu o réu que a decisão condenatória ainda não havia transitado em julgado pelo que teriam de aguardar pelo mesmo para tratar da indemnização.

- Após algum tempo e inúmeros contactos feitos pela autora AA junto do réu, este solicitou-lhe que a autora lhe fornecesse o NIB para onde poderia ser feito o pagamento das indemnizações, o que a autora fez.

- Em fins de 2014, a autora verificou que o réu Dr. CC tinha apresentado um requerimento no processo-crime, em 12 de agosto de 2008, ali informando que iria deduzir pedido de indemnização civil em separado, perante o tribunal civil, por os danos resultantes da prática do crime não serem ainda conhecidos em toda a sua extensão.

- O réu Dr. CC não interpôs qualquer ação cível em representação das autoras com vista ao ressarcimento dos danos decorrentes do assassínio do marido e pai das autoras.

- A autora AA viveu durante mais de 6 anos na expetativa de vir a receber indemnização decorrente das ações em que o réu a representava, juntamente com a sua filha, questionando amiúde o réu Dr. CC sobre as indemnizações ao que este respondia sempre que o processo-crime estava na Relação.

- Em 23 de Janeiro de 2007, o agora falecido DD tinha intentado uma acção declarativa de condenação sob a forma ordinária contra diversos réus, na qual pedia que fosse declarado legítimo proprietário de diversos bens móveis; que os réus fossem condenados a reconhecerem o direito de propriedade do autor sobre esses bens, e bem assim a entregar-lhe os mesmos. Pedia ainda que os réus fossem condenados a indemnizá-lo pelos prejuízos causados com o empossamento alegadamente abusivo de um seu estabelecimento comercial. Tal acção encontrava-se pendente no Tribunal Judicial ..., no ... Juízo, como processo nº 430/07.... e após a morte do seu marido, a autora AA, em nome das aqui autoras, deu instruções ao réu para que este assumisse o patrocínio da ação, o que este aceitou.

- O tempo foi passando e o réu Dr. CC foi sempre assegurando à autora AA estar a dar andamento ao assunto, inclusivamente estar a negociar um acordo com a parte contrária.

- Estranhando a ausência de notícias e as dificuldades em contactar o réu Dr. CC, a autora AA, em fins de 2014, tratou de pessoalmente ir consultar o processo cível e verificou que o réu Dr. CC não deduziu no referido processo qualquer habilitação de herdeiros nem informou as autoras de que o processo veio a findar por deserção.


Acerca da ilicitude da atuação do advogado-réu e do grau de culpa que lhe é imputado, o acórdão recorrido afirmou o seguinte:

«Ora, o contrato de mandato não contém regras específicas para as consequências do incumprimento das obrigações do mandatário, apenas as definindo no art.º 1161.º do C.Civil. Assim, no domínio da execução do mandato, há que aplicar os princípios gerais, devendo o cumprimento ou incumprimento das obrigações do mandatário ser apreciado em face das normas que regulam o cumprimento ou incumprimento das obrigações em geral previstas nos art.ºs 762.º e segs do C.Civil.

O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelos prejuízos que causa ao credor, cfr. art.º 798.º do C.Civil, cabendo ao devedor provar que a falta de cumprimento não precede de culpa sua, uma vez que estamos no domínio responsabilidade contratual, cfr. art.º 799.º do C.Civil. Se cabe ao devedor ilidir a presunção de culpa prevista naquele normativo, cabe no entanto ao credor provar que houve incumprimento.

O mandatário é obrigado, além do mais, a praticar os actos compreendidos no mandato segundo as instruções do mandante, a prestar as informações que este lhe peça, relativas ao estado da gestão e a comunicar ao mandante, com prontidão, a execução do mandato ou, se não o tiver executado, a razão por que assim procedeu, cfr. art.º 1161.º, als. a), b) e c), do C.Civil. E relacionadas com aquelas obrigações do mandatário em geral, existem as obrigações específicas do advogado para com o seu cliente previstas no Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 9.09, ou seja, além do mais, “o advogado exercita a defesa dos direitos e interesses que lhe sejam confiados sempre com plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável”, cfr. art.º 81.º n.º 1; “o advogado é indispensável à administração da justiça e, como tal, deve ter um comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidades da função que exerce, cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres consignados no Estatuto e todos aqueles que a lei, os usos, costumes e tradições profissionais lhe impõem”, cfr. art.º 88.º n.º 1; “a honestidade, probidade, rectidão, lealdade, cortesia e sinceridade são obrigações profissionais”, n.º 2 do referido preceito; “a relação entre o advogado e o cliente deve fundar-se na confiança recíproca e “o advogado tem o dever de agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente, sem prejuízo do cumprimento das normas legais e deontológicas”, cfr. art.º 97.º n.ºs 1 e 2; “o advogado não deve aceitar o patrocínio de uma questão se souber, ou dever saber, que não tem competência ou disponibilidade para dela se ocupar prontamente, a menos que actue conjuntamente com outro advogado com competência e disponibilidade para o efeito”, cfr. art.º 98.º n.º 2; e finalmente, “nas relações com o cliente, são ainda deveres do advogado: não cessar, sem motivo justificado, o patrocínio das questões que lhe estão cometidas”; “ainda que exista motivo justificado para a cessação do patrocínio, o advogado não deve fazê-lo por forma a impossibilitar o cliente de obter, em tempo útil, a assistência de outro advogado”, cfr. art.º 100.º n.º 1 al. e) e n.º 2.

Está provado que o réu advogado não formulou pedido de indemnização cível a favor das autoras em sede de processo-crime, manifestou nesses autos intenção de o fazer em separado, (sendo que quanto à não dedução do pedido de indemnização em processo-crime fazemos aqui transcrito o que acima já deixámos consignado) mas mais se provou que, logo após a decisão condenatória proferida em 1.ª instância, a autora AA questionou-o sobre as indemnizações a que ela e a sua filha teriam direito e, a esta questão respondeu o réu advogado que a decisão condenatória ainda não havia transitado em julgado pelo que teriam de aguardar pelo mesmo para tratar da indemnização, também como se provou, a decisão proferida no processo-crime transitou em julgado em 9.11.2009, e o réu advogado, até hoje, nunca veio a intentar qualquer acção cível em separado, sendo ainda relevante que, após algum tempo e inúmeros contactos feitos pela autora AA junto do mesmo, este solicitou-lhe que a autora lhe fornecesse o NIB para onde poderia ser feito o pagamento das indemnizações, o que a autora fez, após o que a autora AA viveu durante mais de 6 anos na expectativa de vir a receber indemnização decorrente das acções em que o réu a representava, juntamente com a sua filha, questionando amiúde o réu Dr. CC sobre as indemnizações ao que este respondia sempre que o processo-crime estava na Relação e só em fins de 2014, a autora verificou que o réu advogado não havia interposto qualquer acção cível em representação das autoras com vista ao ressarcimento dos danos decorrentes do assassínio do marido e pai das autoras, em consequência da conduta do réu advogado, a autora AA sentiu-se imensamente enganada, perdida, totalmente desamparada e vencida, tendo ficado gravemente afectada na sua estabilidade psíquica.

Dúvidas não podem restar de que a supra referida actuação do réu advogado, traduzida na não dedução tempestiva de pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado nos tribunais cíveis, aliada à manifesta falta de honestidade, lealdade e sinceridade para com a sua cliente – a autora AA - consistentes nas inqualificáveis e sucessivas desculpas dilatórias que ia dando, consubstancia incumprimento culposo do mandato que lhe havia sido conferido pelas autoras, mormente as obrigações contratuais decorrentes do contrato de mandato, consignadas nas als. a) e c) do art.º 1161.º, do C.Civil, uma vez “que no mandato judicial, o dever de agir no interesse do mandante traduz-se, nomeadamente, em o advogado estudar com cuidado e tratar com zelo a questão de que seja incumbido, utilizando, para o efeito, todos os recursos da sua experiência, saber e actividade” e o réu/apelante não podia desconhecer que uma das importantes pretensões das autores era a obtenção de uma decisão judicial que lhes atribuísse uma indemnização cível pela perda do seu marido e pai, respectivamente, e nada fez, nem comunicou prontamente às autoras porque o não fez, sendo certo que, nos termos do art.º 1162.º do C.Civil “O mandatário pode deixar de executar o mandato ou afastar-se das instruções recebidas, quando seja razoável supor que o mandante aprovaria a sua conduta, se conhecesse certas circunstâncias que não foi possível comunicar-lhe em tempo útil”, mas também nenhuma destas hipóteses se verifica.

Destarte a conduta do réu apelante constitui ilícito contratual, assim como violação de normas deontológicas estatutárias do EOA.

Por outro, tendo em consideração que no âmbito da responsabilidade contratual a culpa do devedor presume-se incumbindo, por isso, ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua, atenta a factologia provada nos autos, manifesto é de concluir que o réu advogado não logrou efectuar a prova, conforme lhe competia, ou seja, de que actuou com a diligência que o caso exigia e lhe permitiam os seus conhecimentos e experiência, e presumindo-se a sua culpa, ele é, naturalmente, responsável pelos prejuízos sofridos pelas autoras em consequência de incumprimento por sua parte daquele do contrato de mandato entre ambos celebrado».


Assim sendo, ficou provado nas instâncias, sem necessidade de qualquer fundamentação adicional, que estão verificados, no caso concreto, os requisitos da responsabilidade civil atinentes ao facto ilícito e à culpa, e que o grau de culpa do advogado é elevado.  

Para aferir do nexo causal entre o facto e o dano, bem como da consistência e seriedade desse dano, importa averiguar o que resultou do “julgamento dentro do julgamento” feito pelo tribunal a quem a indemnização pelo dano da perda de chance é requerida. Esta questão, que tem sido qualificada como uma questão de facto pela jurisprudência deste Supremo Tribunal (cfr. Acórdão de 11-01-2017, proc. n.º 540/13, e Acórdão de 09-07-2015, proc. n.º 5105/12), deve resultar da factualidade alegada pela parte e provada no acórdão recorrido.

           

A propósito do apuramento do dano e do nexo causal, afirma-se no AUJ n.º 2/2022, com pertinência para o que cabe apreciar, que a verificação destes pressupostos da responsabilidade civil depende da consistência da probabilidade de o lesado ter obtido ganho de causa na ação originária, não fora a falta do advogado.

«Apuramento este que terá assim que ser feito na apreciação incidental — o já chamado “julgamento dentro do julgamento” — a realizar no processo onde é pedida a indemnização pelo dano de perda de chance, em que se indagará qual seria a decisão hipotética do processo em que foi cometido o ato lesivo (a falta do mandatário), indagação que no fundo irá permitir estabelecer, caso se apure que a ação comprometida tinha uma suficiente probabilidade de sucesso (ou seja, no mínimo, uma probabilidade de sucesso superior à probabilidade de insucesso), que há dano certo (a tal chance “consistente e séria”) e ao mesmo tempo o nexo causal entre o facto ilícito do mandatário e tal dano certo.

Apreciação/decisão hipotética em que, sendo assim, se procurará, num juízo de prognose póstuma, reconstituir, para efeitos da possível indemnização do dano da perda de chance, o desenrolar e a decisão que o processo (onde foi cometida a falta do mandatário) teria tido — na perspetiva do tribunal que o teria que decidir — sem tal falta do mandatário, com o que, concluindo -se que o processo teria tido uma suficiente (no referido limiar mínimo) probabilidade de sucesso, se estará também a concluir ter sido o evento lesivo conditio sine qua non (requisito mínimo da causalidade jurídica) do dano». (sublinhado nosso)

           

O acórdão recorrido entendeu que era “altíssima” a probabilidade de sucesso do pedido de indemnização cível no processo-crime, mas ainda assim considerou que “(…) não é possível estabelecer um nexo de causalidade entre a conduta do réu e os invocados danos, já que, em tese, a não obtenção da indemnização pela morte do seu marido e pai em que fundam esses danos, pode ainda ser peticionada”, remetendo para os fundamentos do tribunal de 1.ª instância:

«Quanto ao processo-crime n.º 104/08...., do Círculo Judicial ... (…) se é certo que o art.º 72.º, do mesmo diploma, estabelece na alínea d), do seu nº1, parte final que o pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal cível, quando “(…) os danos não forem conhecidos em toda a sua extensão” e que, salvo o devido respeito, não vislumbro a razão de não terem sido deduzidos no processo-crime, não é menos certo que o réu neste último processo tinha apresentado um requerimento, em 12 de agosto de 2008 (se ainda em tempo de deduzir o pedido civil ou não, nada foi alegado e nada se apurou), ali informando que iria deduzir pedido de indemnização civil em separado, perante o tribunal civil, por os danos resultantes da prática do crime não serem ainda conhecidos em toda a sua extensão.

É uma opção seguramente discutível, mas que em abstracto, o citado art.º 72.º, alínea d), do CPP, permite.

Saber se, em concreto, tal possibilidade se verifica depende daquilo que concretamente for alegado, de modo a poder fazer juízos de valor sobre a tempestividade da reclamação do alegado dano anteriormente desconhecido.

Como decorre do acórdão que condenou os homicidas do marido e pai das autoras, os mesmos eram emigrantes lituanos, que foram condenados a penas pesadas de prisão, que ainda cumprem.

Daí que se possa afirmar, e não estando provados quaisquer factos que infirmem tal presunção, que caso o pedido de indemnização civil houvesse sido deduzido, as probabilidades de as autoras serem efectivamente ressarcidas eram ínfimas (coisa diferente da procedência do pedido, cujas probabilidades de obter vencimento eram altíssimas)».

A este fundamento aditou, também, citando os fundamentos da sentença de 1.ª instância, o seguinte: “(…) com base no regime imposto pelas disposições conjugadas dos art.ºs 118.º, n.º 1, a), e 132.º, n.º 1, a), ambos do Código Penal, e 498.º, n.º 3, do Código Civil, se terá de considerar que haverá possibilidade, em tese, nos sobreditos termos, de deduzir o pedido de indemnização civil, sendo certo que quanto à menor BB, tal faculdade é conferida pelo art.º 320.º, n.º 1, do Código Civil. Decorre daqui que, a despeito das significativas omissões do réu advogado, não é possível estabelecer um nexo de causalidade entre aquelas e os alegados danos patrimoniais sofridos pelas autoras, na medida em que, em tese, tal indemnização pode ainda ser pedida, pelo que na estrita vertente do dano patrimonial faleceriam os pressupostos constitutivos de responsabilidade civil em consequência da não dedução do pedido de indemnização civil no processo-crime».

 

 Quid iuris?

7. A este propósito não pode deixar de se ter como ponto de partida, para equacionar qual o resultado do “julgamento dentro do julgamento”, a fim de aferir acerca da consistência do dano e do nexo causal, que as instâncias quando se referem à probabilidade de procedência do pedido de indemnização cível na ação penal, consideram, conforme acima transcrito, que as “(…) probabilidades de obter vencimento eram altíssimas”. Tem, pois, à luz dos critérios acima expostos, que se considerar apurada a consistência da oportunidade processual que foi comprometida. As considerações feitas no acórdão recorrido acerca da eventual incapacidade de pagar dos sujeitos, pela circunstância de terem sido condenados a penas de prisão pesadas, não enfraquecem o nexo de causalidade nem a consistência do dano, que devem ser aferidos numa perspetiva estritamente técnico-jurídica e cingida à probabilidade de obtenção de ganho de causa no processo em que foi cometida a falta pelo advogado.

Ou, seja, no caso vertente, tem que se considerar provada a decisão hipotética que o processo teria tido sem a falta do mandatário, na perspetiva do tribunal que decidiu o processo-crime e que teria de decidir também, não fosse a falta do advogado, o pedido de indemnização cível. Em face dos factos provados na decisão proferida nesse processo crime (processo n.º 104/08....), para cuja factualidade remete o ponto BBB) da matéria de facto do presente processo onde foi pedida a indemnização, não há dúvida de que a decisão do “julgamento dentro do julgamento” é favorável às aqui autoras, podendo proceder-se, com grande segurança, a um juízo de prognose positivo acerca do resultado que teria o pedido de indemnização cível enxertado no processo-crime de homicídio, que terminou com a sentença de condenação transitada em julgado referida no ponto BBB) da decisão de facto das instâncias. Aliás, o juízo das instâncias acerca da consistência da probabilidade, expresso através do adjetivo superlativo “altíssima”, permite valorar a probabilidade de sucesso do pedido, pelo menos em 90%. Segundo a doutrina da especialidade bastaria uma probabilidade de 50% de sucesso na ação originária, para que o dano da perda de chance tenha consistência suficiente para ser indemnizável (cfr. Paulo Mota Pinto, ob. cit., p. 362). No mesmo sentido no AUJ n.º 2/2022, entendeu-se que “(…) para estarmos perante uma chance com probabilidade de sucesso suficiente terá, em princípio e no mínimo, o sucesso da chance (o sucesso da provável ação comprometida) que ser considerado como superior ao seu insucesso, uma vez que só a partir de tal limiar mínimo se poderá dizer que a não ocorrência do dano, sem o ato lesivo, seria mais provável que a sua ocorrência”.

Ora, no caso dos autos, estes critérios estão preenchidos.

Com altíssima probabilidade, as autoras obteriam no processo-crime uma sentença de condenação ao pagamento de uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados pelo homicídio, respetivamente, do marido da primeira autora e pai da segunda. Pode, pois, afirmar-se que o dano de perda de chance é um dano em si mesmo, de natureza autónoma, com as caraterísticas do dano emergente, e que representa um determinado valor económico no património das autoras, no sentido em que nele entraria um crédito, que, ainda que não fosse concedido na sua totalidade pela sentença crime, ascenderia, presumivelmente, a um valor elevado, dadas as circunstâncias da morte, os laços afetivos entre as autoras e a vítima, a situação patrimonial das autoras, a existência de uma filha com 5 anos de idade à data do crime e toda a segurança afetiva e económica que lhe foi retirada, em fases cruciais de crescimento e formação, pelo crime que vitimou o pai.

Considerar que a chance de obter a indemnização era ínfima por falta de solvabilidade dos devedores (que nem sequer está comprovada no processo), como fizeram as instâncias, e entender que esta constatação quebra o nexo de causalidade é confundir o plano jurídico, em que nos devemos situar quando tratamos dos pressupostos da responsabilidade civil, com o plano económico, que só pode ser chamado para o momento da quantificação do dano, mas não para a sua concetualização jurídica, nem para a sua consistência. A perda de chance a que se reporta o conceito de dano é uma perda de chance jurídica, situada no plano da lei e dos conceitos lógico-jurídicos, não é uma chance económica de obter a execução de uma sentença que reconhece um direito. Ademais, sempre as autoras teriam desde 2009, na sua esfera jurídica, um crédito que só prescreve em 20 anos, sendo ainda possível que os autores do homicídio, após a saída da prisão, ou até antes, caso recebessem, p. ex., uma herança ou tivessem bens, pudessem pagar pelo menos uma parte da indemnização. O que não se pode é presumir, sem base factual, a indigência dos indivíduos, como fizeram as instâncias.

           

8. Resta averiguar se a circunstância de a indemnização, em tese, ainda poder ser obtida num processo cível autónomo, como defenderam as instâncias, quebra o nexo de causalidade e esvazia o dano da perda de chance. De acordo com este entendimento, o dano causado pela conduta do advogado no processo-crime não seria um dano definitivo, porque as autoras podiam ainda ser ressarcidas através da instauração de um processo cível autónomo contra os indivíduos condenados no processo-crime. Ora, nesta sede, quando se analisam as vias alternativas para obter o reconhecimento do direito, não reconhecido no processo em que ocorreu a violação dos deveres do mandatário, há que considerar que estamos perante um incumprimento do mandato especialmente gravoso no grau de ilicitude e de culpa, conforme ilustrado pela postura do advogado descrita na matéria de facto. Se realmente tivesse decidido, de acordo com a sua autonomia técnica, que interpor ação cível era a melhor solução, como explicar que tenha faltado à verdade sucessivas vezes à autora, dizendo, muito depois do trânsito em julgado, que o processo estava na Relação e não tinha qualquer decisão? Como se explica, se a sua opinião técnica fosse de facto a de interpor uma ação cível autónoma, que o advogado nunca tenha sequer feito qualquer diligência para interpor a referida ação? E como se explica, a não ser por uma despudorada má fé, que o advogado tenha pedido o NIB à autora AA porque o tribunal a qualquer momento podia fazer a transferência do dinheiro?

O caso dos autos é também gravoso nas consequências. Conforme resulta da matéria de facto, a autora AA estava desempregada, não tinha fonte de rendimentos para além dos que eram auferidos pela vítima, que sustentava a família com o seu trabalho e era pessoa trabalhadora (Factos provados LL, PP, QQ e RR). Tinham, pois, neste contexto, urgência na obtenção da indemnização, cujo reconhecimento teria sido decretado, com “altíssima probabilidade”, na sentença crime de condenação, transitada em novembro de 2009, se o advogado ali tivesse feito o pedido como seria mais lógico e habitual. Estamos no ano de 2022. Estão, portanto, as autoras à espera da indemnização por um crime gravíssimo, que vitimou o marido da autora, AA, e pai da filha de ambos, há cerca de 12/13 anos. Optaram, em 2015, após terem conhecimento que o réu nunca tinha feito qualquer diligência para obter a indemnização, pelo caminho de pedir uma indemnização pelo dano da perda de chance ao advogado. Remeter as autoras para uma ação cível diretamente contra os sujeitos condenados no processo-crime, seria sujeitar as autoras a uma ação votada ao insucesso, pois os danos causados pelo homicídio eram já conhecidos à data da instauração do processo-crime, não havendo qualquer dúvida sobre a sua extensão que justificasse a ação cível em separado.

           

9. Ademais, a tese da instauração de processo cível autónomo não tem aceitação na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, que defende o princípio da adesão obrigatória, como se constata no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 22 de novembro de 2018 (processo n.º 199/17.7T8TCS.C1.S1), em cujo sumário se estipulou o seguinte:

“I. O nosso ordenamento jurídico, concretamente o direito adjectivo penal, consagra a regra geral de adesão obrigatória, ou, usando outra terminologia, apelidada de enxerto, da demanda cível de indemnização, baseada na prática de factos que constituam crime, à acção penal respectiva.

II. A adesão obrigatória tem vantagens, permitindo a apreciação, num só Tribunal dos

mesmos factos, na sua essencialidade, importando uma análise global do acontecimento, quer na perspectiva penal, quer na perspectiva civil, afastando-se a possibilidade de contradição de julgados entre as duas Jurisdições, importando, pois, que o pedido de indemnização civil, tenha de ser deduzido no processo penal, tendo como factos jurídicos donde emergem a pretensão do lesado, os mesmos factos que são pressuposto da responsabilidade criminal do arguido

III. O direito adjectivo civil permite a dedução de pedidos genéricos quando não seja ainda possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto ilícito, sendo o pedido, nestes casos, concretizado através de liquidação em execução de sentença.

IV. Reconhecendo-se que o lesado, ao tempo da acusação, conhecia os danos sofridos, em toda a sua dimensão, conquanto não soubesse o seu valor exacto, tal situação não é subsumível à excepção do princípio de adesão, importando, isso, sim, o respectivo exercício, de modo obrigatório, submetendo o direito ao ressarcimento por factos qualificados como ilícito criminal, ao regime processual penal.

V. Não se pode confundir a eventual persistência dos danos ao longo do tempo e o seu

agravamento com o desconhecimento dos danos ou da sua extensão, estas sim, razões que sustentam a excepção à regra da adesão obrigatória.”


10. No âmbito do direito processual penal, encontra-se consagrado o princípio da adesão (artigo 71.º do CPP), nos termos do qual o pedido de indemnização cível fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos excecionais previstos na lei. O princípio da adesão justifica-se pelos fins penais, por razões de economia processual e para prosseguir a desejável uniformização de julgados. São manifestas as vantagens de num único processo se resolverem todas as questões atinentes ao facto criminoso, sem necessidade de fazer correr ações distintas e autónomas, poupando aos interessados despesas e garantindo, em simultâneo, o prestígio das instituições judiciárias, pois assim se evitam contradições de julgados. Este sistema de adesão é obrigatório. O direito adjetivo penal estabelece o princípio regra da adesão obrigatória do exercício do direito ao ressarcimento por factos qualificados como ilícito criminal, ao regime processual penal. Ou seja, o lesado está obrigado a deduzir a sua pretensão na ação penal, sob pena de ver precludida a arrogada indemnização.

O pedido de indemnização civil separado só possa ser exigido em situações excecionais previstas na lei (artigo 72.º, n.º 1, do CPP).

Nos termos deste preceito, «1 - O pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, quando:

a) O processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime, ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo;

b) O processo penal tiver sido arquivado ou suspenso provisoriamente, ou o procedimento se tiver extinguido antes do julgamento;

c) O procedimento depender de queixa ou de acusação particular;

d) Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem conhecidos em toda a sua extensão;

e) A sentença penal não se tiver pronunciado sobre o pedido de indemnização civil, nos termos do n.º 3 do artigo 82.º;

f) For deduzido contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade meramente civil, ou somente contra estas haja sido provocada, nessa acção, a intervenção principal do arguido;

g) O valor do pedido permitir a intervenção civil do tribunal colectivo, devendo o processo penal correr perante tribunal singular;

h) O processo penal correr sob a forma sumária ou sumaríssima;

i) O lesado não tiver sido informado da possibilidade de deduzir o pedido civil no processo penal ou notificado para o fazer, nos termos do n.º 1 do artigo 75.º e do n.º 2 do artigo 77.º».


Ora, no caso vertente, para além de ser de todo inusitado o pedido cível em separado, é também desprovido de qualquer fundamento legal, pois a situação dos autos não se encontra abrangida pelas exceções previstas no artigo 72.º do CPP.   

Note-se que, no pedido de indemnização civil deduzido ao abrigo da previsão normativa do artigo 71.º do CPP, a causa de pedir é constituída pelos factos constitutivos da prática do crime, os quais constavam da acusação e vieram a ser provados, dando lugar à condenação dos arguidos. Assim, os factos geradores da responsabilidade civil e os que justificam a responsabilidade criminal são necessariamente coincidentes.

No que diz respeito à alínea d) do citado preceito, invocado pelo advogado, é manifesto que não é aplicável. No contexto vivido pelas autoras, de carência económica por falta de rendimentos e de dor extrema pela morte do pai e marido, em circunstâncias altamente sofredoras e duras – vítima de um crime de homicídio antecedido de elementos de tortura como resulta da sentença crime – os danos eram conhecidos em toda a sua extensão no momento do crime.

Para se aceitar o argumento das instâncias, a tese do processo cível autónomo para pedir a indemnização tinha de ter um mínimo de consistência, o que não tem.


Como se afirma no acórdão supra citado (STJ 22-11-2018) “(…) é importante destrinçar o desconhecimento e extensão dos danos da persistência e/ou atenuação ou agravamento dos mesmos, sob pena de transformar o aludido princípio da adesão obrigatória do pedido cível à acção penal em mera opção de foro, em face do desconhecimento da quantificação dos danos, o que iria conduzir, necessariamente, ao esvaziamento do preceituado no artigo 82.° do CPP. Assim, perante os factos alegados, mesmo que viessem a ser considerados todos como provados (...), constatamos que os pedidos vertidos na petição inicial não dizem respeito à extensão dos danos desconhecida no momento da prolação do despacho de encerramento do inquérito, na medida em que não consubstanciam mais danos provenientes de factos constantes da acusação pública e sim prolongamento e/ou persistência dos mesmos danos, cuja previsibilidade era possível quando foi deduzida a acusação pública, não sendo possível a sua quantificação, tal como não o é no presente”.


No mesmo sentido entendeu o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 23-05-2019 (proc. n.º 9918/15.5T8LRS.L1.S1), que, constando da acusação os danos e o seu conhecimento em toda a sua extensão, não pode o lesado invocar a exceção prevista no nº 1 al. d) do artigo 72º do CPP para deduzir em separado o pedido de indemnização cível.

Prossegue o mesmo acórdão, afirmando que:

 «Só nos casos expressamente previstos na lei, que representem um verdadeiro entrave ou um obstáculo sério que inviabilizem uma decisão rigorosa da matéria cível (designadamente, por haver escassez de elementos para a determinação da responsabilidade) ou quando correspondam a incidentes que retardem intoleravelmente o julgamento da matéria penal, é que as partes civis devem ser remetidas para o tribunal cível (artº 82º nº 3 do CPP). Fora desses casos, o pedido cível deve ser julgado em conjunto com a matéria penal.

Este poder do tribunal remeter as partes para os meios comuns não significa a atribuição de um poder arbitrário, livre ou discricionário. Antes impõe que o juiz avalie as questões suscitadas pela dedução do pedido cível, reenviando-o para os meios comuns apenas se concluir que ocorre grande desvantagem na manutenção da adesão, tendo sempre presente que constituindo a referida norma uma excepção, a sua aplicação deve limitar-se aos casos nela expressamente previstos e ser objecto de particular fundamentação.»

 Esta tese foi também aceite pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30-04-2019 (proc. n.º 1286/18.0T8VCT-A.G1.S1), onde se decidiu que «Por efeito do princípio de adesão e não sendo caso de pedido em separado, a indemnização civil tinha de ser deduzida no respetivo processo penal, não gozando, neste caso, o tribunal civil de competência material para conhecer de tal pedido, por estar atribuída ao tribunal criminal. Nesta situação, a ação de indemnização ora proposta no tribunal civil infringe as regras de competência em razão da matéria, constituindo uma exceção dilatória e, como tal, implica a abstenção do conhecimento do pedido e a absolvição do réu da instância – artigos 96.º, alínea a), 577.º, alínea a), e 278.º, n.º 1, alínea a), todos do CPC».

A possibilidade de deduzir em separado, perante um tribunal civil, pedido de indemnização fundado na prática de um crime, não pode ser apreciada em abstrato, como fizeram as instâncias.

No caso dos presentes autos, atenta a natureza do crime em causa, homicídio consumado, não estamos perante qualquer exceção ao princípio da adesão obrigatória: os factos constantes da acusação permitiam a determinação do dano em toda a sua extensão.  Os danos patrimoniais e não patrimoniais causados pela morte, decorrente de um homicídio, não são danos desconhecidos. Pelo contrário, produzem-se imediatamente no momento da morte e são logo conhecidos em toda a sua extensão. O momento da morte como que cristaliza a totalidade dos danos.

Os danos causados por um homicídio são conhecidos de imediato: a dor vivida pela família da vítima e as perdas financeiras provocadas pela falta do ente querido, pessoa trabalhadora e que sustentava a família. O caráter de algum modo aleatório e subjetivo da fixação dos montantes indemnizatórios, ou a falta de elementos probatórios quanto ao rendimento da vítima, são caraterísticas inerentes a qualquer fixação de um quantum indemnizatório e que sempre estariam presentes num processo cível a instaurar mais tarde, não sendo suscetíveis de integrar a exceção prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 72.º do CPP. Tanto mais que a lei admite que, se o valor exato do dano não está ainda determinado, o lesado formule um pedido genérico, pedindo a liquidação do valor já conhecido, e relegando para liquidação em execução de sentença o valor ainda desconhecido. A circunstância de não se saber a exata quantificação do dano, como se entendeu no Acórdão de 22-11-2018, não sustenta uma exceção à regra da adesão obrigatória. Por outro lado, como também se afirma no citado acórdão, não podemos confundir a eventual persistência dos danos ao longo do tempo e o seu agravamento, com o desconhecimento dos danos ou da sua extensão. A mera falta de elementos para a sua liquidação ou o seu agravamento no futuro não é subsumível na hipótese da norma constando da al. d) do n.º 2 do artigo 72.º do CPP.

O que é relevante é que, no caso concreto, nada mais havia a apurar que não fosse conhecido já à data da instauração de processo-crime: havia conhecimento das circunstâncias do crime e do sofrimento da vítima, tudo factos constantes da acusação e que vieram e ficar provados no processo-crime (processo n.º 104/08…), bem como havia conhecimento da dor vivida pela mulher e pela filha, agora autoras, e das suas carências económicas. Não havia que aguardar por qualquer evolução futura da vida para apurar a extensão dos danos e determinar o seu valor. Pelo contrário, o dano verificou-se imediatamente após a morte: o choque e o desespero pela perda do ente querida e a falta de rendimentos das autoras para fazer face às suas despesas quotidianas, uma vez que a mulher da vítima, e mãe da segunda autora, se encontrava desempregada, conforme resulta da matéria de facto provada.

Fica, assim, claro que a estratégia do advogado não tem qualquer apoio legal, não podendo, por isso, estar legitimada pela sua independência técnica, constituindo antes um caso de erro grosseiro de interpretação das normas jurídicas aplicáveis. Tanto mais que, de facto, nunca o advogado fez qualquer diligência para instaurar a dita ação cível. Esta conduta omissiva denota que a sua intenção de o fazer já não era séria à data da apresentação do requerimento no processo cível, em que informa o tribunal que irá pedir em separado a indemnização, sem fundamentar de forma credível, como lhe competia, esta sua posição e omitindo à autora este procedimento.

Concluímos, pois, que não era possível, à data do processo-crime ou em momento posterior, deduzir pedido de indemnização separado, em processo cível, por não verificação das hipóteses em que a lei o permite.

Pelo que, têm razão as autoras quando sustentam que viram ser precludido o reconhecimento do seu direito a obter uma indemnização pelos danos sofridos.

Conforme jurisprudência deste Supremo Tribunal, nos casos em que, obrigatoriamente, o pedido de indemnização cível deve ser deduzido no processo penal, como o caso dos autos, os lesados estão impedidos de deduzir pedido de indemnização cível, perante o tribunal civil, que é incompetente em razão da matéria para julgar tal pedido.


11. Cálculo da indemnização do dano da perda de chance

Desconhecem-se os rendimentos da vítima, tal como assumiu a autora da ação na petição inicial, mas ficou provado que ele era o sustento da família (Facto provado PP), que ambos têm uma filha menor, com 5 anos à data do crime (Facto provado OO), que a autora estava desempregada e não tinha outra fonte de rendimento para além dos rendimentos que o marido auferia (Factos provados QQ e RR).

Assim, para calcular a indemnização por danos patrimoniais causados pela morte, pode usar-se a presunção de que este auferia, pelo menos, o salário mínimo nacional. Uma vez que tinha 35 anos à data da morte (facto provado KK), que era pessoa trabalhadora (facto provado LL), que seria ativo profissionalmente até aos 70 anos, que era o único sustento da família (facto provado PP), a indemnização de 300 mil euros requerida pelas autoras não é excessiva, ficando até aquém do montante que provavelmente seria arbitrado.

Os valores peticionados pelo dano da morte, 100.000,00 euros para a autora e para a filha, também não estão acima do que normalmente é arbitrado nestas situações. Os danos morais causados às autoras com a morte do pai e marido, que estas avaliam em 90.000,00 euros, também não se podem considerar exagerados em face dos factos provados (LL, MM, NN e OO). O mesmo se diga acerca do valor de 50.000,00 para os danos morais sofridos pela vítima antes de falecer, dados os factos que estão provados no processo-crime e que envolvem vários golpes com instrumentos cortantes no corpo da vítima, tendo-se também ali provado que a forma como o homicídio foi praticado demonstra a intenção de causar sofrimento à vítima (factos provados JJ) e BBB) que remete para a sentença proferida no processo-crime). Tanto mais que os autores do crime foram condenados por homicídio qualificado, ao abrigo alínea d) do n.º 1 do artigo 132.º do Código Penal, que afirma o seguinte: «d) Empregar tortura ou ato de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima».

Assim, as autoras perderam uma oportunidade de obter uma decisão judicial que lhes reconhecesse um crédito sobre os indivíduos condenados por homicídio do seu pai e marido, que rondaria os 540.000,00 euros que foram peticionados.

Todavia, o dano da perda de chance, uma vez que implica um juízo de prognose, não pode ter como consequência a obtenção de um resultado igual ou superior ao que teria sido alcançado no processo. Sabe-se que o montante indemnizatório efetivamente decretado não costuma corresponder ao valor integral solicitado pelos lesados, pelo que pode prever-se que o montante da indemnização decretado seria alto, mas não tão elevado como peticionado pelas autoras, podendo estimar-se ainda assim, no contexto dos autos, um valor acima da média, e nunca inferior a 400.000,00 euros.

 Em sede de quantificação do dano, não podendo ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará, equitativamente, dentro dos limites que tiver por provados, de acordo com o disposto pelo artigo 566º, nº 3, do Código Civil. Segundo a jurisprudência,  «a noção de equidade tem, pois, essencialmente que ver com a “vertente individualizadora da justiça”, a equidade traduz um juízo de valor que significa, na determinação «equitativamente» quantificada, que os montantes não poderão ser tão escassos que sejam objectivamente irrelevantes, nem tão elevados que ultrapassem as disponibilidades razoáveis do obrigado ou possam significar objectivamente um enriquecimento injustificado (cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 29-04-98, Proc. n.º 55/98 e de  10-09-2009, proc. n.º 341/04.8GTTVD.S1).

Assim, o quantum indemnizatório não será determinado de acordo com critérios matemáticos, mas segundo a equidade, uma vez que a teoria da diferença não é adaptável ao dano “avançado” da perda de chance. Aqui, pode ter-se em conta, porque estamos no domínio da equidade, a circunstância de os lesantes, autores do crime, serem emigrantes e terem sido condenados a penas de 17 anos de prisão, o que pode, em abstrato, provocar dificuldades na execução imediata da sentença. Todavia, não existem dados que suportem a conclusão das instâncias de que seria ínfima a probabilidade de as autoras receberem efetivamente o dinheiro da indemnização, a ponto de ficar quebrado o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Os créditos demoram 20 anos a prescrever e, na falta de informação sobre os bens presentes e futuros dos devedores, sempre teria de ser atribuída uma determinada probabilidade de sucesso à execução da sentença, a rondar os 25%. Assim, de acordo com a equidade, que se baseia em critérios normativos de razoabilidade, igualdade e proporcionalidade (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-12-2019, proc. n.º 480/12.1TBMMV.C1.S2), deve computar-se a indemnização pelo dano patrimonial da perda de chance em 100.000,00 euros.

Não foram requeridos juros na petição inicial nem em posterior ampliação do pedido, pelo que, nos termos do AUJ n.º 9/2015, não serão arbitrados juros de mora.


12. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o artigo 663.º, n.º 7, do CPC:

I – O dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade.

II – Considera-se provada a consistência do dano se o mandatário da autora, não entregando o pedido de indemnização cível na ação penal em que estava pendente o julgamento de homicídio do marido, fez precludir, num sistema de adesão obrigatória (artigo 71.º do CPP), o reconhecimento judicial do direito à indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes da morte violenta da vítima.

III – A alínea d) do n.º 1 do artigo 72.º do CPP, invocada pelo advogado para deduzir o pedido de indemnização cível separado, o que, de resto, também nunca fez, não tem fundamento legal, na medida em que os danos resultavam diretamente dos factos alegados na acusação e eram conhecidos em toda a sua extensão.

IV – O “julgamento dentro do julgamento” permitiu concluir que era altíssima a probabilidade de as autoras obterem no processo-crime, em que os arguidos foram condenados por homicídio qualificado, a condenação destes ao pagamento de uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados pela morte.

V – Provada a consistência do dano da perda de chance com base da probabilidade qualificada de obtenção de um resultado favorável na ação originária, tal não significa que na operação de quantificação do dano da perda de chance as autoras obtenham um resultado igual ao que obteriam no processo-crime.

VI – Há que ponderar, na fixação do quantum indemnizatório pela perda de chance, as dificuldades de execução da sentença contra indivíduos que se encontram a cumprir pena de prisão, devendo a indemnização determinar-se de acordo com a equidade, tendo em conta esta circunstância, na medida em que a seguradora não pode funcionar como garante da eventual insuficiência patrimonial dos devedores.


III – Decisão

Pelo exposto, decide-se, na 1.ª Secção deste Supremo Tribunal de Justiça, conceder a revista e revogar parcialmente o acórdão recorrido, condenando a ré Seguradora e o advogado, solidariamente, nos termos previstos no contrato de seguro, a pagar às autoras a quantia 100.000,00 euros, a título de indemnização.

No mais mantém-se o acórdão recorrido.


Custas pelas recorrentes e pela recorrida, na proporção do decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam as recorrentes.



Lisboa, 9 de março de 2022


Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto)

Maria João Vaz Tomé (2.ª Adjunta)