Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B3934
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS BERNARDINO
Descritores: EXPLORAÇÃO DE PEDREIRAS
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PROVA TESTEMUNHAL
INADMISSIBILIDADE
CONTRATO DE EXPLORAÇÃO
LICENÇA DE ESTABELECIMENTO
CADUCIDADE
ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Nº do Documento: SJ20080207039342
Data do Acordão: 02/07/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
1. Quando uma norma expressa exige certa espécie de prova para a existência de um facto e essa norma não foi observada pelas instâncias, pode o STJ, nos termos do n.º 2 do art. 722º do CPC, reapreciar, nessa parte, a decisão das instâncias quanto à existência desse facto.
2. A regra do art. 394º do Cód. Civil, que estabelece a inadmissibilidade da prova por testemunhas, se tiver por objecto convenção contrária ou adicional ao conteúdo de documento particular mencionado nos arts. 373º a 379º, não tem um valor absoluto, sendo admitida a prova testemunhal quando houver um começo ou princípio de prova por escrito, ou mesmo quando as circunstâncias do caso concreto tornam verosímil a convenção.
3. No âmbito de aplicação do Dec-lei 89/90, de 16 de Março, o contrato de exploração de pedreira só produz efeitos com a atribuição da licença de estabelecimento, e caduca se esta licença não for requerida no prazo de seis meses a contar da data da celebração do contrato, se for negada ou se se verificar a cessação dos seus efeitos jurídicos.
4. Os efeitos jurídicos da licença de estabelecimento podem cessar por caducidade ou por revogação.
5. Um dos factos que pode determinar a caducidade da licença de estabelecimento é o abandono da pedreira, a que se reportam os arts. 39º e 40º do indicado Dec-lei.
6.A situação de abandono da pedreira pode verificar-se quando a sua exploração se ache interrompida por tempo superior a seis meses consecutivos e para tanto não exista motivo justificado.
7. O reconhecimento da situação de abandono tem um processo administrativo próprio, previsto naquele diploma, no qual, não sendo considerada justificada a interrupção verificada ou não for demonstrado, pelo explorador, que a interrupção perdurou por tempo inferior a seis meses consecutivos, será proferida declaração de caducidade da respectiva licença de estabelecimento, cessando então os efeitos jurídicos desta e ocorrendo a caducidade do contrato de exploração.
8. A figura do abuso do direito surge como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo com válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam, por forma considerada justa pela consciência social, em determinado momento histórico, ou obstando a que, observada a estrutura formal do poder conferido por lei, se excedam os limites que devem ser observados, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.
9. O abuso do direito tem um carácter polimórfico, sendo a proibição do venire contra factum proprium uma das suas manifestações, correspondendo à primeira parte da fórmula do art. 334º do Cód. Civil e sendo uma aplicação do princípio da responsabilidade pela confiança, uma concretização do princípio ético-jurídico da boa fé.
10. Uma modalidade especial da proibição do venire – se não mesmo uma figura autónoma na fisionomia polimórfica do abuso do direito – é a chamada «verwirkung», que se caracteriza da seguinte forma: o titular de um direito deixa passar longo tempo sem o exercer; com base neste decurso de tempo e numa particular conduta do dito titular ou noutras circunstâncias, a contraparte chega à convicção justificada de que o direito já não será exercido; movida por esta confiança, essa contraparte orientou em conformidade a sua vida, tomou medidas ou adoptou programas de acção na base daquela confiança, pelo que o exercício tardio e inesperado do direito em causa lhe acarretaria agora uma desvantagem maior do que o seu exercício atempado.
11. Aquele que tendo celebrado, em 1988, um contrato de arrendamento para exploração de uma pedreira de granito, sita num baldio, e que, dois anos depois, deixou de a explorar em virtude de ameaças de um vizinho confinante, contra o qual nunca usou dos meios legais ao seu dispor, deixando igualmente de pagar a renda, contra o estipulado no contrato, e não mais retomando a exploração da pedreira, criando, com tal comportamento, na entidade administradora do baldio, a convicção e a confiança de que se desinteressara da exploração e havia abandonado a pedreira, e levando esta, fundada nessa confiança, a celebrar, em 02.01.1999, outro contrato com diferente arrendatário, actua em abuso de direito se, em finais de 1999, após depositar a renda correspondente a dez anos, alega pretender fazer valer o contrato e retomar a exploração da pedreira.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1.

AA instaurou, no Tribunal da comarca de Vila Pouca de Aguiar, acção com processo ordinário, contra Conselho Directivo dos Terrenos BB e “CC - Exploração de Granitos, L.da”, pedindo a condenação dos réus a:
- reconhecerem o seu direito de posse, gozo, fruição e exploração de uma parcela de terreno, que identifica no art. 2º da petição, e que esse direito resulta de título válido, decorrente de contrato celebrado entre ele e o primeiro réu;

- a devolverem-lhe a referida parcela de terreno, abstendo-se de praticar quaisquer actos que lhe impeçam a posse, gozo, fruição e exploração, e a retirar tudo o que aí depositaram, nomeadamente lixos, entulhos e outros bens; e

- a indemnizarem-no de todos os prejuízos que lhe vêm causando, a liquidar em execução de sentença.

Alega, para tanto, em resumo, que, tendo-lhe sido concedida licença camarária para exploração de uma pedreira de granito, celebrou com a Junta de Freguesia de ...., que nessa data administrava os baldios dessa freguesia, em 1988, pelo prazo de três anos, imperativamente mantido por, pelo menos, seis renovações, mediante o pagamento da renda acordada, um contrato escrito, que se mantém em vigor, através do qual lhe foi transferida a posse e fruição do solo da pedreira denominada Cantão do Fojo, no lugar de Capelinho, baldio da freguesia de ..., aí tendo instalado, com largo investimento, a respectiva indústria; decorridos cerca de dois anos, por oposição de um vizinho confinante, que reivindicava a propriedade do terreno, foi impedido de continuar a explorar a pedreira e, por acordo com a Junta de Freguesia, que se comprometeu a resolvê-lo, suspendeu os trabalhos e o pagamento da renda, até que o diferendo fosse resolvido; em 1991 decorriam negociações, mas, na sequência da eleição do conselho directivo dos baldios, o impasse foi-se mantendo sem que o dissenso fosse solucionado, apesar das suas insistências; há cerca de um ano, o primeiro réu, sem consentimento do autor, autorizou a ré sociedade a depositar lixos e entulhos e a captar águas na parcela de terreno em causa, o que esta vem fazendo, negando o primeiro réu qualquer responsabilidade, e mantendo-se, por omissão deste, a interrupção e impossibilidade de o autor explorar a pedreira, o que lhe vem causando prejuízos, que indica.

Contestaram os réus, impugnando a matéria de facto alegada na petição, mais aduzindo, também em resumo, que, com base em contrato escrito de cedência de terreno baldio, celebrado entre ambos em 02.01.1999, a 2ª ré ocupa cerca de 30.000 m2 de terreno baldio, no lugar dos Fojos; desde 1991, ano em que o 1º réu assumiu a gerência dos baldios BB, nunca o autor aí exerceu qualquer actividade nem pagou qualquer renda, nem sequer se dirigiu a qualquer dos réus, pedindo o reconhecimento do seu alegado direito de exploração, apenas o tendo feito, por carta dirigida ao 1º réu, em Dezembro de 1999, na sequência da recusa, em 24.08.1999, por parte da Câmara Municipal de Vila Pouca de Aguiar, do pedido de transmissão de licença de que o autor alegava ser titular, e porque, na respectiva deliberação camarária, fora decidido averiguar a situação de abandono da pedreira por parte do autor; este nunca explorou qualquer pedreira na área dos Fojos, não tem licença de estabelecimento de pedreira em vigor, e nada investiu no local; nunca pagou qualquer renda ao réu nem lhe ofereceu o seu pagamento, e em Agosto de 1999, sabendo que o local estava já ocupado pela 2ª ré, e que era pretendido por uma empresa espanhola, que o pretendia comprar, resolveu, de sua livre e espontânea vontade, depositar à ordem do 1º réu a quantia de Esc. 600.000$00, que dizia ser relativa a rendas. Concluindo pela improcedência da acção, deduziram ainda os réus reconvenção, na qual formulam os pedidos de declaração de nulidade do contrato de arrendamento invocado pelo autor, ou a declaração de caducidade do mesmo, pela existência de uma situação de abandono da pedreira.
Na réplica, o autor impugnou os factos alegados na contestação/reconvenção e, mantendo a posição assumida na petição inicial, ampliou o pedido, impetrando a declaração de nulidade do contrato celebrado entre os réus e, caso assim se não entenda, a redução da área dele constante, por forma a não envolver o terreno objecto do contrato que outorgou com a Junta de Freguesia de ....
Seguindo o processo a sua normal tramitação, veio a efectuar-se o julgamento e a ser proferida sentença que, julgando totalmente improcedentes a acção e a reconvenção, absolveu os réus e a autora dos pedidos contra uns e outra deduzidos.

Inconformados, apelaram o autor e o 1º réu, mas sem êxito, pois a Relação do Porto julgou improcedentes ambos os recursos e, embora com fundamentação não coincidente com a da sentença apelada, confirmou-a.

Não convencidos, os apelantes reagiram de novo, interpondo um e outro, do acórdão da Relação, recurso de revista para este Supremo Tribunal
Nas suas alegações de recurso, o autor apresentou um alargado leque de conclusões, nas quais, todavia, apenas suscita uma única questão: a do abuso de direito, que entende não se configurar no caso concreto e não poder, por isso, ser-lhe imputado.
Por seu turno, o réu Conselho Directivo dos BB também se espraiou num extenso rol conclusivo, no qual apenas uma questão vem equacionada: a da indevida utilização de prova testemunhal na resposta ao quesito 15º da base instrutória, em violação do disposto no art. 394º do Código Civil.
Apenas este réu apresentou contra-alegações, pugnando pela negação da revista, no tocante ao recurso do autor, e defendendo a condenação deste como litigante de má fé.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

2.

A Relação considerou provados os factos seguintes:
1) Por requerimento datado de 23 de Junho de 1986, o autor requereu ao Presidente da Câmara Municipal de Vila Pouca de Aguiar a concessão de licença de estabelecimento para exploração de uma pedreira de granito, denominada “Fojo”, situada no cantão do Fojo, freguesia de ..., concelho de Vila Pouca de Aguiar, sendo que a parcela de terreno onde se encontra a pedreira confronta de norte com AFL & Filhos, de nascente com ZAM e de poente e sul com os Serviços Florestais;
2) Na descrição dos trabalhos a realizar, que acompanhava o aludido requerimento constavam a abertura e posterior exploração de uma pedreira de granito com a finalidade da produção de material para exportação, cubos, alvenarias, etc., sendo os meios mecânicos a utilizar um compressor equipado com dois martelos, uma pá carregadora para utilização nos carregamentos dos transportes (camiões) e limpeza da pedreira e os explosivos a utilizar seriam, de inicio (para a abertura) dinamite e, posteriormente, pólvora bombardeira;
3) O autor pagou a respectiva taxa nos termos do Decreto Regulamentar n.º 71/82 de 26/10;
4) A tal pedreira foi atribuído o n.º 5097, no lugar denominado “Fojo”, freguesia BB, concelho de Vila Pouca de Aguiar e por reunião da Câmara Municipal de Vila Pouca de Aguiar de 08.09.1986 foi aprovado o seu licenciamento desde 04.08.1988, figurando o autor como proprietário da mesma;
5) Em declaração do Presidente da Câmara Municipal de Vila Pouca de Aguiar, datada de 08.02.1989 consta que: “AA, com sede em ...., Pedras Salgadas, freguesia de Bornes, concelho de Vila Pouca de Aguiar, se encontra a explorar uma pedreira denominada “Fojo n.º 11”, sita no lugar do Fojo, freguesia BB, concelho de Vila Pouca de Aguiar e para a dita exploração necessita de empregar explosivos (...)”;
6) Em 08.05.1988 a Junta de Freguesia BB, representada por JAMS, JRM e AMDC, respectivamente, Presidente, Secretário e Tesoureiro da referida Junta de Freguesia, celebraram com o autor, um contrato de arrendamento de uma pedreira, no qual, a primeira outorgante, na qualidade de administradora dos baldios da freguesia BB, cede de arrendamento ao segundo outorgante (o autor), a exploração de uma pedreira no local de Campelinho do cantão do Fojo, daquela freguesia, para extracção de granitos, sendo a área de exploração de um raio de 100 metros, raio que terá o seu ponto de partida no centro da pedreira que por acordo entre ambos os outorgantes, será adequadamente sinalizado.
Na cláusula 4ª do aludido contrato, refere-se que o mesmo tem um período inicial de três anos, renováveis automática e sucessivamente, não podendo a primeira outorgante usar de direito de denúncia em relação às primeiras seis renovações.
Na cláusula 5ª do referido contrato, estabelece-se que o segundo outorgante pagará de renda anual a quantia de 60.000$00, renda esta que será actualizada sucessivamente no final de cada três anos de vigência do presente contrato e nos termos da lei vigente.
Mais se estabeleceu que o contrato teria inicio a partir da data da concessão das licenças de estabelecimento, que o segundo outorgante teria de requerer no prazo máximo de três meses (cláusula 6ª) e o segundo outorgante comprometeu-se a ter em permanente laboração a referida pedreira e em caso negativo, ao pagamento da renda estabelecida mesmo que, por qualquer motivo, deixe de laborar (cláusula 7ª), sendo que, nos casos omissos seriam aplicadas as disposições legais em vigor para exploração de pedreiras (cláusula 8ª);
7) Em 02.01.1999, o Conselho Directivo BB, representado por ACP (1º outorgante) e a aqui ré, “CC, Exploração de Granitos, L.da”, representada por CALG (2ª outorgante), celebraram um contrato de cedência de terreno baldio, no qual o 1º outorgante (aqui réu), na qualidade de administrador dos baldios da freguesia BB, concedeu à 2ª outorgante, por arrendamento, uma área de terreno baldio que se destina a estaleiro e depósito de entulho da pedreira que a 2ª outorgante actualmente explora, sita no lugar do Fojo, limite de Bragado.
Mais acordaram que a área do terreno é de 30.000 m2 e encontra-se delimitada através de marcos implantados no local, por ambas as partes e, de acordo com a planta anexa a este contrato (cláusula 2ª), sendo que, o presente contrato tem a duração inicial de três anos e, findo este prazo, renovar-se-á sucessiva e automaticamente, por iguais períodos, enquanto não for denunciado por qualquer das partes nos termos da lei (cláusula 3ª).
Em tal contrato ficou ainda estipulado que “a segunda outorgante pagará de renda anual a quantia de 250.000$00 (...)” e que “este contrato só produzirá efeitos para o destino referido, ficando expressamente consignado que a segunda outorgante ali não poderá explorar granitos”, tudo conforme documento de fls. 49 e 50, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
8) Na sequência do referido em 7), a ré CC ocupa, desde há cerca de três anos (com referência a 07.02.2001 – data da entrada da contestação), uma parcela de terreno baldio com área de 30.000 m2, que lhe foi cedida pelo Conselho Directivo dos Baldios BB do Fojo;
9) O teor da carta dirigida pelo autor ao Presidente do Conselho Directivo dos BB, expedida a 22.12.1999 e por aquele recebida, a qual se mostra junta de fls. 51 a 54 e se fez acompanhar pelos documentos de fls. 55 e 56 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
10) Por carta que deu entrada nos serviços da Câmara Municipal de Vila Pouca de Aguiar em 20.08.1999, o Conselho Directivo dos BB veio informar o Presidente da Câmara Municipal de Vila Pouca de Aguiar que não autorizou a transmissão da posição contratual do autor no contrato de arrendamento da pedreira, e declarar nela não consentir, acrescentando que “a pedreira está desactivada há mais de dez anos, por inoperância injustificada do explorador”, e que este “também há dez anos que não paga a respectiva renda, considerando-se, por todos, o local abandonado”, requerendo assim que não fosse concedida a transmissão de licença e ainda que fosse declarado, nos termos do art. 39º do Dec-lei 89/90, o abandono da pedreira (documento de fls. 59);
11) Na reunião ordinária da Câmara Municipal de Vila Pouca de Aguiar de 24.08.1999 foi deliberado, por unanimidade, em face da comunicação referida em 10), anular a deliberação de 10.08.1999, relativa a este assunto (pedido de transferência de licenciamento da pedreira) e mandar averiguar da interrupção dos trabalhos da exploração da pedreira por período superior a seis meses, tudo conforme acta cuja cópia se mostra junta a fls. 62 a 64 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, tendo sido tal deliberação comunicada ao autor por oficio expedido em 30/08/1999 (documentos de fls. 60 a 65 dos autos);
12) Em 02.08.1999 o autor, para crédito na conta n.º 0900016213030, pertencente ao Conselho Directivo dos Baldios da Freguesia de Bragado, depositou, em numerário, 600.000$00, relativo a rendas vencidas durante o período de dez anos (documentos de fls. 51 a 54, 56);
13) À data do pedido de licenciamento referido em 1), a parcela de terreno ali constante encontrava-se sob a administração da Junta de Freguesia de Bragado;
14) Só em 1991 a Assembleia de Compartes de Bragado elegeu os seus órgãos gestores;
15) Após o licenciamento mencionado em 4) o autor instalou a sua indústria de exploração da pedreira;
16) Contratando operários;
17) Decorridos cerca de dois anos o autor foi impedido de continuar a exploração da pedreira,
18) Por oposição de um vizinho confinante, o qual sob ameaça expulsou os operários que ali trabalhavam;
19) O referido vizinho afirmava que o terreno lhe pertencia;
20) O mesmo vizinho ameaçava fisicamente quem se encontrasse na pedreira, tendo ameaçado o autor e membros da junta de freguesia que, nessa altura, administravam o baldio;
21) Por via do referido supra, o autor suspendeu os trabalhos na pedreira,
22) E o pagamento da renda,
23) O que fez com o acordo da referida Junta de Freguesia,
24) Até que o diferendo com o vizinho confinante ficasse resolvido;
25) AMDC foi um dos elementos eleitos para o novo órgão gestor do baldio (Conselho Directivo dos BB),
26) Sabendo da existência do contrato referido em 6);
27) Há cerca de um ano (com referência a 12.12.2000 – data da entrada da petição inicial) o Conselho Directivo dos BB autorizou a ré, CC a depositar lixos, detritos, entulhos e a captar águas na parcela de terreno objecto do contrato referido em 6),
28) Actos estes que a ré CC tem vindo a praticar,
29) Prejudicando a fruição e exploração do aludido solo por parte do autor;
30) O autor não consentiu na prática dos actos referidos nos n.os 26) e 27);
31) Existe procura de granitos no âmbito das actividades económica e industrial;
32) Na altura da interrupção da laboração da pedreira estavam criadas as condições para a mesma laborar;
33) A ré Conselho Directivo, antes da celebração do contrato referido em 7), tinha conhecimento do contrato mencionado em 6) e do licenciamento referido em 4);
34) A parcela de terreno referida em 1) e 6) encontra-se incluída na área cedida pelo Conselho Directivo dos BB à ré CC, por via do contrato referendado em 7);

35) É boa a qualidade da pedra na pedreira referida nos n.os 1) e 4) e existe em bastante quantidade e com bons afloramentos.


3.


Porque relacionado com a fixação da matéria de facto, e com a própria subsistência do contrato invocado pelo autor, impõe-se que se comece por apreciar o recurso do réu.

É sabido que a função própria e normal do Supremo consiste em aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, razão por que, em regra, não conhece de questões de facto. É o que decorre do n.º 1 do art. 729º do CPC.

A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode mesmo ser alterada pelo Supremo, como refere o n.º 2 do mesmo normativo – e resulta também do n.º 6 do art. 712º – a não ser no caso excepcional previsto no n.º 2 do art. 722º.

De acordo com este último preceito, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixa a força de determinado meio de prova.

É precisamente na primeira das duas aludidas excepções – ofensa de uma disposição expressa de lei que exige certa espécie de prova para a existência do facto – que o réu funda o seu recurso, concretamente, na violação do disposto no art. 394º do Cód. Civil.

Segundo o recorrente, este preceito não foi tido em conta, pelas instâncias, na resposta de provado ao quesito 15º da base instrutória. Se a doutrina do aludido normativo tivesse sido observada – diz o recorrente – tal quesito teria de ter a resposta de não provado, com a consequência de ser declarada a caducidade do contrato invocado pelo autor e, nessa parte, julgada procedente a reconvenção.

Vejamos se é de se lhe reconhecer razão.

A matéria do quesito 15º está relacionada com a constante dos quesitos anteriores, designadamente dos 6º a 14º.

Trata-se da matéria alegada pelo autor, na qual se sustenta que, decorridos dois anos após ter instalado a sua indústria de exploração da pedreira, na sequência do contrato de arrendamento que celebrou com a Junta de Freguesia BB (cfr. n.º 6 dos factos assentes), foi impedido de a continuar, em consequência da oposição, com ameaças de morte e de procedimento judicial, por parte de um vizinho confinante, que reclamava a propriedade do terreno da dita pedreira.

E, no seguimento desta alegação – cuja matéria integrou os quesitos 6º a 11º – foram elaborados os quesitos 13º, 14º, 15º e 16º, contendo também factos alegados pelo autor, e do teor seguinte:

13º - Por via do referido nos n.os 7º a 11º supra, o autor suspendeu os trabalhos na pedreira?

14º - E o pagamento da renda?

15º - O que fez (n.os 13º e 14º) com o acordo da referida Junta de Freguesia (de Bragado)?

16º - Até que o diferendo com o vizinho confinante ficasse resolvido?

Estes quesitos mereceram, todos eles, a resposta de provado.

O réu, como vimos já, defende que o quesito 15º deveria ter obtido a resposta de não provado. E isto porque a resposta positiva se fundou no depoimento de testemunhas, sendo que, no entender do recorrente, estando o contrato de arrendamento da pedreira sujeito à forma escrita, e constando dele uma cláusula, a 7ª, que estipulava que o autor se comprometia “a ter em permanente laboração a referida pedreira e em caso negativo ao pagamento da renda estabelecida, mesmo que por qualquer motivo deixe de laborar”, o acordo invocado pelo autor, e levado, para prova, ao quesito 15º, porque representava uma convenção contrária ao conteúdo do documento particular que titulava o aludido documento – é dizer, contrária à transcrita cláusula 7ª – não podia ser provado por testemunhas, face ao disposto no art. 394º/1 do CC.

Tal convenção deveria ter sido reduzida a escrito – e não foi. Como tal, só por documento podendo ser provada, e não tendo sido feita essa prova documental, a resposta ao quesito só poderia ser a de não provado.

E, improvada a matéria desse quesito, não poderia, no entender do recorrente, deixar de ser declarada a caducidade do contrato invocado pelo autor, tal como aquele peticionou por via reconvencional. Caducidade que decorreria não só do estipulado na já aludida cláusula 7ª do contrato de arrendamento da pedreira, mas também da própria Lei de Instalação das Pedreiras – Dec-lei 89/90, de 16 de Março – que proíbe a suspensão da exploração de pedreiras por períodos superiores a seis meses, sendo que, no caso, a pedreira esteve sem ser explorada durante quase dez anos.

Será assim?

Ao tempo da celebração do contrato de exploração da pedreira e da concessão da licença de estabelecimento ao autor o regime legal da exploração de pedreiras estava contido no Dec-lei 227/82, de 14 de Junho, e no diploma regulamentar, o Decreto Regulamentar 71/82, de 26 de Outubro (1).

Nos termos do n.º 2 do art. 3º e da alínea b) do n.º 1 do art. 4º do Dec-lei 227/82, a exploração de pedreiras só pode ter lugar depois de obtida a licença de estabelecimento respectiva, e esta só pode ser concedida a terceiro, se tiver celebrado «contrato de exploração» com o proprietário.

As relações entre o proprietário e o explorador da pedreira – textua o n.º 2 do art. 4º – regem-se pelo «contrato de exploração», “segundo regras especiais a fixar e pelos preceitos legais do contrato de locação, com as necessárias adaptações”.

Por seu turno, do art. 7º do indicado diploma regulamentar decorre expressamente que o «contrato de exploração» que regula as relações entre o proprietário e o explorador da pedreira “deverá constar de documento escrito” (2).

.
O que está em causa, no quesito 15º, é a prova da alegada suspensão do «contrato de exploração» da pedreira celebrado entre a Junta de Freguesia de Bragado, na qualidade de administradora dos baldios da dita freguesia e o autor, por acordo entre os outorgantes do contrato. Trata-se, no fundo, de saber se foi entre ambos acordada uma cláusula adicional e/ou contrária ao conteúdo de um documento particular – mais concretamente, ao conteúdo da já acima transcrita cláusula 7ª daquele «contrato de exploração».

Ora, a tal respeito, o n.º 1 do art. 394º do CC estabelece a inadmissibilidade da prova testemunhal, quando tiver por objecto uma tal cláusula – quando, nas palavras da lei, “tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo (...) dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores”.

Parece, pois, que a resposta de provado ao quesito 15º só poderia assentar em prova documental, como sustenta o recorrente; e como tal prova não foi produzida, parece igualmente que se imporia a resposta de sinal contrário – a de não provado.

A Relação entendeu de modo diferente, considerando que a regra do art. 394º não tem um valor absoluto, sendo admitida a prova testemunhal “nos casos em que seja complementar à prova decorrente de circunstâncias que tornem verosímil uma convenção”, e afirmando que “os autos contêm elementos objectivos que apontam para a verosimilhança da convenção – as ameaças físicas do vizinho confinante a quem se encontrasse na pedreira e também aos membros da Junta de Freguesia”.

Concordando-se com o princípio afirmado pela Relação, já não temos por irrecusável a sua verificação no caso em apreço.

Aceita-se que a regra do n.º 1 do art. 394º do CC, se aplicada sem restrições, poderá dar lugar a situações iníquas, havendo, por isso, que ressalvar certas hipóteses em que a prova testemunhal deverá ter-se por admissível mesmo tendo por objecto uma convenção contrária ou adicional ao conteúdo do documento.

Como assinala o Prof. VAZ SERRA(3), regra idêntica à do art. 394º existe nos Códigos francês e italiano, e estes formulam-lhe algumas excepções, que devem ter-se por válidas também no nosso direito, apesar do silêncio do Código acerca delas.

A primeira dessas excepções é a de haver um começo ou princípio de prova por escrito, entendido, como nos direitos francês e italiano, como qualquer escrito, proveniente daquele contra quem a acção é dirigida ou do seu representante, que torne verosímil o facto alegado (4).

Na verdade, se o facto a provar está já tornado verosímil por um começo de prova por escrito, a prova testemunhal é de admitir, pois não oferece os perigos que teria se desacompanhada de tal começo de prova: em tal caso, a convicção do tribunal acha-se já formada parcialmente com base num documento, não sendo a prova testemunhal o único meio de prova do facto.

Indo mais longe, poderá igualmente afirmar-se – ainda em sintonia com o ensinamento de VAZ SERRA – que, se um começo de prova por escrito que torne verosímil o facto alegado permite a prova testemunhal, o mesmo parece dever acontecer com qualquer outra circunstância que o torne verosímil. “Efectivamente, se as circunstâncias do caso concreto tornam verosímil a convenção, a prova testemunhal desta não tem já os mesmos perigos que a regra dos artigos 394º e 395º se destina a conjurar, dado que o tribunal se não apoiará, para considerar provada a convenção, apenas nos depoimentos das testemunhas, mas também nas circunstâncias objectivas que tornam verosímil a convenção: nesta hipótese, a convicção do tribunal está já parcialmente formada com base nessas circunstâncias, e a prova testemunhal limita-se a completar essa convicção, ou antes, a esclarecer o significado de tais circunstâncias”.

Não cremos, porém, que tal seja o que acontece no caso em apreço. Se certas circunstâncias do caso concreto – as ameaças físicas, ao autor e aos membros da Junta de Freguesia, por parte de um vizinho confinante – poderão sugerir a verosimilhança do acordo, entre o autor e a Junta de Freguesia, de suspensão do contrato, até que fosse resolvido o conflito com o dito vizinho, já outras – designadamente o depósito, por parte do autor, das rendas respeitantes ao período da alegada suspensão – apontam em sentido contrário, pois que o acordo de suspensão do contrato, a ter existido, implicaria a suspensão do pagamento da renda enquanto o contrato não retomasse a sua plena vigência, não se justificando nem se entendendo, por isso, o depósito efectuado pelo autor.

Não resulta, pois, das circunstâncias do caso em análise, de modo inequívoco, a verosimilhança do acordo invocado pelo autor, o que vale dizer que deverá haver-se como não provada a matéria do quesito 15º, com a consequência de se haver como eliminado dos factos assentes o que consta do seu n.º 23).

Mas decorrerá daqui a consequência jurídica afirmada e querida pelo recorrente? Será de decretar a caducidade do «contrato de exploração» celebrado entre o autor e a Junta de Freguesia de Bragado?
No dizer do recorrente, não tendo o autor executado trabalhos de exploração da pedreira por período muito superior a seis meses, colocou-a na situação de abandono, atento o disposto no art. 39º do Dec-lei 89/90, já citado.
E tal significa que caducou, há muito, a licença de estabelecimento, e, consequentemente, também o contrato celebrado, nos termos do art. 11º do mesmo Dec-lei.
Vejamos.
A questão da caducidade deve, na verdade, ser analisada à luz dos preceitos do Dec-lei 89/90, que substituiu o já citado e revogado Dec-lei 227/82, na vigência do qual foi celebrado o «contrato de exploração» aqui em causa e concedida ao autor a correspondente licença de estabelecimento (art. 12º/2 do CC).
Dispõe o art. 10º do Dec-lei 89/90 que o contrato de exploração só produz efeitos com a atribuição da licença de estabelecimento.
E, de acordo com o n.º 1 do art. 11º, o contrato de exploração caduca se não for requerida a correspondente licença de estabelecimento no prazo de seis meses a contar da data da sua celebração, se esta for negada ou se se verificar cessação dos seus efeitos jurídicos.
Há, pois, uma íntima conexão entre o contrato de exploração e a licença de estabelecimento: sem esta, ou cessando os seus efeitos jurídicos, o contrato de exploração caduca.
Não estando, seguramente, em causa nenhuma das suas duas primeiras causas – falta de requerimento da licença ou denegação desta – a caducidade do contrato só poderá afirmar-se, no caso em apreço, se tiver havido cessação dos efeitos jurídicos da licença de estabelecimento.
Ora, de harmonia com o estatuído no art. 27º do mesmo Dec-lei, os efeitos jurídicos da licença de estabelecimento podem cessar:
a) Por caducidade;
b) Por revogação.
À cessação por caducidade(5). refere-se o art. 28º, do teor seguinte:
A caducidade da licença de estabelecimento depende da verificação de qualquer dos factos seguintes:
a) Morte da pessoa singular ou extinção da pessoa colectiva titular da licença, (...);
b) Extinção do contrato de exploração;
c) Abandono da pedreira;
d) Esgotamento da pedreira.
Importa considerar, aqui e agora, a causa de caducidade referida na alínea c), porque é aquela a que o recorrente faz apelo.
Vem ela prevista nos arts. 39º e 40º, importando, do primeiro, reter as regras seguintes:
1 – Considera-se haver abandono da pedreira sempre que o explorador assim o declare à entidade licenciadora ou a sua exploração se encontre interrompida, salvo:
a) Quando para tanto exista motivo justificado e, como tal, reconhecido pela Direcção-Geral;
b) Quando o explorador provar que o período de interrupção dos trabalhos é inferior a seis meses consecutivos.
2 – (...).
3 – Verificada a interrupção dos trabalhos, deverá a Direcção-Geral notificar o explorador para que no prazo de 30 dias justifique tal interrupção ou prove que a mesma não atingiu a duração de seis meses consecutivos.
4 – Se a Direcção-Geral não considerar a interrupção verificada como justificada ou não aceitar a prova de que a mesma teve duração inferior a seis meses consecutivos, caducará a respectiva licença de estabelecimento, comunicando tal facto ao explorador e à câmara municipal da circunscrição territorial em que se situe a pedreira.
Por seu turno, o art. 40º, sob a epígrafe «Processo de abandono», textua:
1 – Quando o explorador de um pedreira pretender abandonar a sua exploração, deverá comunicá-lo, por escrito, à entidade licenciadora e devolver a esta entidade os documentos comprovativos da licença de estabelecimento na data em que se dê o abandono.
2 – Quando a fiscalização reconheça a existência de uma pedreira abandonada de facto sem que haja sido dado cumprimento ao disposto no número anterior, deverá informar a entidade licenciadora, a qual notificará o respectivo explorador para executar as medidas de segurança e de recuperação paisagística adequadas, fixando-lhe um prazo razoável para o efeito.
Flui dos normativos transcritos que a situação de abandono da pedreira pode verificar-se quando a sua exploração se ache interrompida por tempo superior a seis meses consecutivos, e para tanto não exista motivo justificado.
Deles decorre igualmente que o reconhecimento da situação de abandono tem um processo próprio, da competência da Direcção-Geral de Geologia e Minas, no âmbito do qual esta tem, designadamente, de proceder à notificação a que alude o n.º 3 do art. 39º, acima transcrito, para os fins aí prevenidos.
Se, depois de cumprido o ritual da lei, não for considerada justificada a interrupção verificada, ou não for demonstrado, pelo explorador, que a interrupção perdurou por tempo inferior a seis meses consecutivos, então a Direcção-Geral, nos termos do n.º 4 do mesmo preceito, caducará recte, emitirá a declaração de caducidade – a respectiva licença de estabelecimento, comunicando tal facto ao explorador e à câmara municipal respectiva.
Só então, com tal declaração de caducidade, cessarão os efeitos jurídicos da licença de estabelecimento, e só então se verificará a caducidade do contrato de exploração.
Ora, no caso dos presentes autos, não resulta da matéria de facto que vem dada como assente, que tenha tido lugar o aludido processo, tendente ao reconhecimento da situação de abandono da pedreira, nem que a Direcção-Geral de Geologia e Minas (ou mesmo a Câmara Municipal de Vila Pouca de Aguiar, na sequência da averiguação, aludida em 11) dos factos assentes, a que mandou proceder) tenha declarado a caducidade da licença de estabelecimento, pelo que não se verificou a caducidade do contrato de exploração.
Tal conclusão importará a improcedência do recurso do réu Conselho Directivo dos BB.

4.

Cabe agora apreciar o recurso interposto pelo autor.
Reage ele contra o acórdão da Relação na parte em que, para julgar improcedente a apelação, neste aresto se entendeu que, podendo ter usado dos meios possessórios legais para evitar ser perturbado no exercício do seu direito de explorar a pedreira, o que não fez, tendo permanecido em silêncio mais de nove anos, a conduta do autor, traduzida em vir agora, decorrido esse lapso de tempo, formular os pedidos que deduziu na acção, integra a figura do abuso do direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”.
Entende o recorrente que o acórdão recorrido fez incorrecta aplicação do disposto no art. 334º do CC, não configurando a sua actuação o imputado abuso de direito, devendo, por isso, proceder o recurso e serem os réus condenados nos pedidos contra eles formulados.

A doutrina do abuso de direito tem, para o Prof. MANUEL DE ANDRADE, a função de obstar a “injustiças clamorosas”, a que poderia conduzir, em concreto, a aplicação dos comandos abstractos da lei. E assim, para este insigne Mestre, haverá abuso de direito quando um certo direito, admitido como válido em tese geral, surge, num determinado caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, entendida segundo o critério social dominante.
Nas mesmas águas navega o Prof. VAZ SERRA, para quem “de um modo geral, há abuso de direito quando o direito, legítimo (razoável) em princípio, é exercido em determinado caso de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante”.
O abuso de direito é, como refere CASTANHEIRA NEVES, um princípio normativo, um postulado axiológico-normativo do direito positivo.
Não precisaria sequer de ser afirmado em lei para se aceitar a sua vigência.
Mas o princípio tem consagração legal, repousando no seio do citado art. 334º do CC.
De acordo com este preceito,
É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Representa, pois, o instituto do abuso do direito o controlo institucional da ordem jurídica no que tange ao exercício dos direitos subjectivos privados.
Os direitos subjectivos e o seu exercício não são garantidos sem limites: eles devem manter-se dentro da sua função útil, prevista pelo direito objectivo.
A figura do abuso do direito surge como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam, por forma considerada justa pela consciência social, em determinado momento histórico, ou obstando a que, observada a estrutura formal do poder conferido por lei, se excedam manifestamente os limites que devem ser observados, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.
Na configuração da figura do abuso de direito o art. 334º consagra uma concepção objectiva ou objectivista: não só tem o excesso cometido no exercício do direito de ser manifesto – o que significa o acolhimento do entendimento de MANUEL DE ANDRADE e de VAZ SERRA – como não é necessária a consciência do abuso, isto é, a consciência, por parte do agente, da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico do direito exercido, bastando que o seja na realidade.
Pode dizer-se que o abuso do direito tem um carácter polimórfico, sendo a proibição do venire contra factum proprium uma das suas manifestações.
A proibição do venire corresponde à primeira parte da formulação legal: é ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda manifestamente os limites da boa fé.
Trata-se de uma aplicação do princípio da responsabilidade pela confiança, de uma concretização do princípio ético-jurídico da boa fé.
Como refere BAPTISTA MACHADO (6), o princípio da confiança é um princípio ético-jurídico fundamental, e a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem. Poder confiar é uma condição básica de toda a convivência pacífica e da cooperação entre os homens; e assegurar expectativas é uma das funções primárias do direito.
Nos casos em que é aplicável a proibição do venire, “a «responsabilidade pela confiança» funciona em regra em termos preventivos, paralisando o exercício de um direito ou tornando ineficaz aquela conduta declarativa que, se não fosse contraditória com a conduta anterior do mesmo agente, produziria determinados efeitos jurídicos”.
Uma modalidade especial da proibição do venire – se não mesmo uma figura autónoma na fisionomia polimórfica do abuso do direito – é a chamada «verwirkung», que, ainda segundo BAPTISTA MACHADO, se pode assim caracterizar:
a) o titular de um direito deixa passar longo tempo sem o exercer;
b) com base neste decurso de tempo e com base ainda numa particular conduta do dito titular ou noutras circunstâncias, a contraparte chega à convicção justificada de que o direito já não será exercido;
c) movida por esta confiança, essa contraparte orientou em conformidade a sua vida, tomou medidas ou adoptou programas de acção na base daquela confiança, pelo que o exercício tardio e inesperado do direito em causa lhe acarretaria agora uma desvantagem maior do que o seu exercício atempado.

Os factos provados – os que importam à dilucidação da questão agora em apreço, e que o Supremo tem de aceitar – revelam que
O autor celebrou, em 08.05.88, com a Junta de Freguesia de.., um contrato de arrendamento para exploração de uma pedreira de granito, existente numa parcela de terreno baldio, que se encontrava sob a administração da dita Junta de Freguesia.
Acordou-se que o contrato teria um período inicial de três anos, renováveis automática e sucessivamente, não podendo a Junta denunciá-lo antes das seis primeiras renovações.
Foi ainda clausulado que
- o autor pagaria, de renda anual, o montante de 60.000$00, e que esta renda seria actualizada sucessivamente no final de cada três anos de vigência do contrato, nos termos da lei em vigor;
- este contrato teria início a partir da data da concessão da licença de estabelecimento, que o autor teria de requerer no prazo máximo de três meses;
- o autor teria em permanente laboração a pedreira, continuando obrigado ao pagamento da renda estabelecida mesmo que, por qualquer motivo, deixasse de laborar.
O autor instalou a sua indústria de exploração da pedreira, contratando, para o efeito, operários.
Decorridos cerca de dois anos – ou seja, no ano de 1990 – o autor foi impedido de continuar a exploração da pedreira, por oposição de um vizinho confinante, que afirmava que o terreno lhe pertencia e que expulsou os trabalhadores que laboravam na pedreira, com ameaças físicas, também dirigidas ao autor e a membros da Junta de Freguesia.
Por via dessa actuação do vizinho, o autor suspendeu os trabalhos na pedreira e o pagamento da renda, não estando provado que o haja feito com o acordo da Junta de Freguesia (cfr. n.º 3. supra).
E, desde então, não mais retomou a exploração da pedreira.
Em 02.01.99, o Conselho Directivo dos Baldios BB, que desde 1991 substitui a Junta de Freguesia na administração dos baldios da freguesia de ..., celebrou com a ré “CC, Exploração de Granitos, L.da” um contrato de cedência de terreno baldio, destinado a estaleiro e depósito de entulho proveniente de uma pedreira que esta explora, no mesmo lugar do Fojo, e autorizou-a a nele depositar lixos, detritos, entulhos e a captar águas, sendo que esse terreno baldio inclui a parcela de terreno onde existe a pedreira objecto do contrato de arrendamento entre a Junta de Freguesia e o autor.
Só em 22.12.99 – nove anos após a suspensão da exploração da pedreira – é que o autor remeteu ao Presidente do Conselho Directivo dos BB a carta aludida em 9) dos factos assentes, em que, além do mais, imputa àquele Conselho Directivo a responsabilidade pela manutenção da situação de inexploração da pedreira, e refere que, por excesso de cumprimento, lhe ofereceu as rendas vencidas e, porque o recebimento foi recusado, procedeu, em 02.08.99, ao depósito da respectiva quantia, referente a dez anos, no valor de 600.000$00, na conta à ordem do mesmo Conselho Directivo. Acrescenta ainda que o Conselho Directivo, para além de nada fazer no sentido de lhe assegurar a posse e fruição da pedreira, se mantém ainda inerte perante os actos de depósito de detritos, lixos e entulhos e captação de águas, praticados no mesmo solo pela “CC, L.da”.
E remata a dita missiva, pedindo que o Conselho Directivo “lhe faça imediatamente entrega formal e material da área da pedreira (...) definindo-lhe com demarcação as estremas, em confronto com eventuais vizinhos contíguos” e que “essa entrega seja formalizada em acta”, reclamando ainda a emissão de recibo das rendas depositadas.

De salientar, porém, que já antes, em 20.08.1999, o Conselho Directivo havia informado o Presidente da Câmara Municipal de Vila Pouca de Aguiar que não autorizava a transmissão, pelo autor, da sua posição contratual no contrato de arrendamento da pedreira, referindo que esta estava desactivada há mais de dez anos, por ineficiência do autor, que, ademais, também há dez anos que não pagava a respectiva renda, “considerando-se, por todos, o local abandonado”; e também havia pedido que não fosse concedida a transmissão da licença de exploração e ainda que fosse declarado, nos termos da lei, o abandono da pedreira, tendo a Câmara deliberado, por unanimidade, em 24 do mesmo mês, anular deliberação tomada em 10.08.1999, relativa a este assunto (pedido de transferência de licenciamento da pedreira) e mandar averiguar da interrupção dos trabalhos da exploração da pedreira por período superior a seis meses, tendo sido tal deliberação comunicada ao autor por oficio expedido em 30/08/1999.

Perante este quadro factual, não custa reconhecer razão à Relação, ao considerar que o autor actua em abuso de direito.
Já vimos que as relações entre o proprietário e o explorador da pedreira se regem (art. 4º/2 do Dec-lei 227/82) pelos termos do contrato de exploração e pelas regras legais do contrato de locação, com as necessárias adaptações.
Ora, de acordo com as regras da locação, o locador tem a obrigação de assegurar ao locatário o gozo da coisa locada para os fins a que esta se destina (art. 1031º, al. b) do CC), mas não tem a obrigação de assegurar esse gozo contra actos de terceiro (art. 1037º/1).
O locatário que for privado da coisa ou perturbado no exercício dos seus direitos pode usar dos meios facultados ao possuidor nos arts. 1276º e seguintes (art. 1037º/2), podendo, designadamente, recorrer ao tribunal para que este lhe mantenha ou restitua a posse (art. 1277º).
Não o fez o ora recorrente, que se quedou conformado, sem reacção, contra a actuação do vizinho, perturbadora do seu direito a explorar a pedreira.
E nessa atitude de passividade se manteve, ao longo de vários anos – cerca de nove – período durante o qual a pedreira deixou de ser explorada.
Mais: deixou de pagar a renda, em contrário ao estipulado no contrato de exploração, que, como vimos, lhe impunha o pagamento mesmo que, por qualquer motivo, a pedreira deixasse de laborar(7).
Este comportamento do autor, ora recorrente, objectivamente considerado, é de molde a fazer suscitar na ré Conselho Directivo dos BB a convicção – é dizer, a confiança – de que aquele se desinteressara da exploração, abandonando a pedreira, e deixando assim, como expressivamente refere a Relação, “cair o contrato” que com a antecessora da ré havia celebrado. A ré acreditou “na mensagem irradiada pelo significado objectivo da conduta” do autor, e, fundada nessa confiança, celebrou outro contrato, em 02.01.99, com a também ré CC, L.da – o contrato a que se alude no n.º 7. dos factos assentes.
E tanto é assim que, quando, alguns meses após a celebração deste contrato, e nove anos após ter interrompido a exploração, o autor pretendeu transmitir a licença de exploração da pedreira a um terceiro, logo a ré recorrente reagiu, informando a Câmara Municipal de Vila Pouca de Aguiar que não autorizara a transmissão do arrendamento, e pedindo que não fosse concedida, pela Câmara, a transmissão da licença, e que esta declarasse o abandono da pedreira.
Vale, pois, concluir que ao pretender fazer valer o contrato e retomar a exploração da pedreira – tenha ou não sido tal pretensão despertada da modorra em que jazia há largos anos pela perspectiva de um lucrativo negócio de transmissão da licença de exploração para um terceiro – o autor assumiu, face à sua prolongada e contraditória postura anterior, uma conduta manifestamente desleal e intolerável, a que o direito, em nome da tutela da confiança e da boa fé, não pode dar cobertura, não sendo exigível à ré conformar-se com tal pretensão e suportar as consequências danosas a que o exercício tardio do direito conduziria.
O que tudo significa que o autor actuou por forma ilegítima, abusando do seu direito.
E, por isso, as pretensões deduzidas não podiam lograr acolhimento, como bem decidiu a Relação, e o recurso que do respectivo acórdão interpôs não pode deixar de ser desatendido.

A improcedência do recurso não significa, porém, que haja de ter-se por verificada a litigância de má fé, como sustenta a recorrida.
Não se vê, na verdade, que a actuação processual do autor recorrente se possa reconduzir à previsão do art. 456º/2 do CPC – e, desde logo, porque tal actuação não se configura como dolosa ou gravemente negligente.

5.

Face a tudo quanto se deixa exposto, negam-se ambas as revistas, condenando-se ambos os recorrentes nas custas respectivas.

Lisboa, 07 de Fevereiro de 2008

Santos Bernardino (relator)
Bettencourt de Faria
Pereira da Silva


_____________________________________
(1) Estes diplomas vieram a ser revogados pelo Dec-lei 90/90, de 16 de Março, que estabeleceu o novo regime jurídico do exercício das actividades de prospecção, pesquisa e exploração dos recursos geológicos, e remeteu (art. 51º) para legislação própria a fixação da disciplina específica aplicável a cada tipo de recurso. No que concerne às pedreiras, os princípios orientadores das aludidas actividades ficaram estabelecidos no Dec-lei 89/90, da mesma data.
(2) Tal contrato deverá mesmo, de acordo com o mesmo preceito, revestir obrigatoriamente a forma de escritura pública nos casos referidos nas alíneas b) e c) do n.º 2 do art. 14º do Dec-lei 227/82, que, porém, não têm que ver com a situação concreta de quo agitur.

(3) Na Rev. Leg. Jur., ano 103º, pág. 13 e ano 107º, págs. 311/314.

(4) Duas outras excepções, contempladas nos direitos francês e italiano, são referidas por Vaz Serra como admissíveis no nosso direito: a de ter sido impossível, moral ou materialmente, ao contraente obter uma prova escrita, e a de a parte ter perdido, sem culpa, o documento que fornecia a prova. É bem certo, porém, que estas excepções não têm qualquer ligação com o caso que é aqui objecto de apreciação.
(5) Os casos de revogação, que vêm enunciados no art. 29º, não têm de ser aqui referidos e analisados, porque estranhos ao objecto do recurso.
(6)Cfr. o estudo Tutela da confiança e “venire contra factum proprium”, in Obra Dispersa, vol. I, pág. 345 e ss
(7) Refira-se ainda que, quando, apressadamente, em 02.08.99, foi depositar o montante correspondente a dez anos de rendas (!), o autor nem sequer observou o que constava do contrato celebrado com a Junta de Freguesia de Bragado, que previa a actualização da renda de três em três anos.