Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
97P588
Nº Convencional: JSTJ00032477
Relator: BESSA PACHECO
Descritores: ROUBO
ARMA DE FOGO
ARMA SUPOSTA
CONVOLAÇÃO
CONSUMPÇÃO
TOXICOMANIA
ATENUAÇÃO DA PENA
Nº do Documento: SJ199710230005883
Data do Acordão: 10/23/1997
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N470 ANO1997 PAG228
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: RUI CASTANHEIRA E EUCLIDES DAMASO MONTEIRO IN LEGISLAÇÃO ANOTADA SOBRE ARMAS PAG2.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PATRIMÓNIO / CRIM C/PESSOAS.
DIR PROC PENAL.
Legislação Nacional: CP82 ARTIGO 306 N1 N2 A N3 A.
CP95 ARTIGO 204 N2 F ARTIGO 210 N1 N2 B.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1996/06/27 IN CJSTJ ANOIV TII PAG201.
ACÓRDÃO STJ PROC44995 DE 1993/10/06.
ACÓRDÃO STJ DE 1993/01/27 IN DR IS-A DE 1993/03/10.
ACÓRDÃO STJ DE 1995/06/07 IN DR IS-A DE 1995/07/06.
ACÓRDÃO TC 445/97 DE 1997/06/25 IN DR IS-A DE 1997/08/05.
ACÓRDÃO TC DE 1997/04/17 IN DR IS-A DE 1997/07/03.
ACÓRDÃO STJ PROC43779 DE 1993/10/21.
ACÓRDÃO STJ PROC384/96 DE 1996/06/04.
Sumário : I - Uma pistola de alarme não se insere na definição de arma de fogo, já que só se pode considerar como tal o objecto que, através de um dispositivo de deflagração próprio, é susceptível de lançar à distância um projéctil, geralmente perfurante.
II - Porém, tal pistola tem de ser considerada arma para o efeito do crime de roubo cometido mediante a sua utilização poder ser punido nos termos do artigo 306 do Código Penal de 1982 ou do artigo 210 ns. 1 e 2, alínea b), com referência ao artigo 204 n. 2, alínea f), ambos do
CP de 1995.
III - Nada obsta à convolação do crime de roubo qualificado previsto e punido pelo artigo 306 ns. 1 e 3, alínea a) do
CP de 1982 para o definido nos ns. 1 e 2, alínea c), do mesmo artigo, porque, para além de o tribunal ser livre no enquadramento jurídico dos factos não se põe,
"in casu", qualquer problema de inconstitucionalidade, uma vez que a diferente qualificação jurídica dos factos não conduz à condenação dos arguidos em pena mais grave.
IV - A qualificação jurídica operada através da dita convolação, está numa relação de consumpção com a que foi objecto da acusação, já que entre as normas do n. 3 e do n. 2, alínea a) do dito artigo 306, quanto à arma, se verificar uma relação de mais e menos, consumindo a primeira a protecção que a outra visa.
V - O facto de os arguidos serem toxicodependentes, mesmo que se considere que eles agiram com o fim de obterem meios para fazer face ao consumo de estupefacientes, não é motivo para a atenuação da sua responsabilidade criminal.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I.
No Tribunal de Círculo de Braga, responderam os arguidos:
- A, e
- B, ambos devidamente identificados nos autos, sob a acusação do Ministério Público de terem cometido, em co-autoria material um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 306, ns. 1 e 3, alínea a), do Código
Penal de 1982, e actualmente previsto e punido pelo artigo 210, ns. 1 e 2, alínea b), com referência ao artigo 204, n. 2, alínea f) ambos do Código Penal de
1995.
Por acórdão do Tribunal Colectivo de folhas 308 e seguintes, foi cada um desses arguidos condenado, como co-autor de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210, n. 1, do Código Penal de 1995, na pena de 2 (dois) anos de prisão.
Desse acórdão interpôs recurso o Ministério Público, que, na respectiva motivação, formula as conclusões que assim resumimos:
1. - Os factos provados integram os elementos típicos de crime de roubo previsto e punido pelo n. 2, alínea a), do citado artigo 306 do Código Penal de 1982, e, actualmente, pelo n. 2, alínea b), do mencionado artigo
210 do Código Penal de 1995;
2. - Com efeito, a palavra "arma" que consta nessas alínea a) do n. 2 do artigo 306 e alínea b) do n. 2 do artigo 210 e (conjugado com o artigo 204, n. 2, alínea f)), abrange as armas de alarme;
3. - A pistola de alarme, no caso dos autos, foi o instrumento e o meio usado para a prática da subtracção em causa, que, sem ela, muito provavelmente não teria sido consumada;
4. - Não obsta à subsunção da conduta dos arguidos na previsão dos citados artigos 306, n. 2, alínea a), e
210, n. 2, alínea b), o facto de os mesmos terem sido acusados da prática de um crime de roubo previsto e punido pelo artigo 306, ns. 1 e 3, alínea a), do Código
Penal de 1982, uma vez que essa subsunção não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação
(cf. artigo 1, n. 1, alínea f), do Código de Processo
Penal);
5. - Face ao referido no n. 1, a moldura penal a ter em conta para a determinação da medida da pena é a de 2 a
10 anos de prisão (cf. o artigo 306, n. 2, do Código de
1982) ou de 3 a 15 anos de prisão (cf. o artigo 210, n.
2, do Código de 1995), não devendo a pena concreta, a aplicar a cada um dos arguidos segundo, respectivamente, os regimes resultantes do Código de
1982 e do Código de 1995, ser inferior a 5 anos de prisão ou 6 anos de prisão.
6. - A pena aplicada no acórdão Recorrido a cada um dos arguidos peca pela benevolência usada, tendo sido violado na determinação da medida da pena o disposto no artigo 72 do Código Penal de 1982 ou no artigo 71 do
Código Penal de 1995.
Os arguidos não responderam à motivação do recurso.
O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto que subscreve o douto parecer de folha 306 nada opôs ao prosseguimento dos termos do recurso para a audiência oral.
Colhidos os vistos devidos, e realizada que foi a audiência oral com observância do formalismo legalmente prescrito, cumpre apreciar e decidir.
II.
O tribunal colectivo deu como provados os seguintes factos:
1 - No dia 23 de Março de 1994, pelas 21 horas e 30 minutos, os arguidos A e B dirigiram-se ao posto de abastecimento de combustível da "Galp", sito em Amares, fazendo-se transportar no veículo automóvel BMW, de matrícula H-..., à qual sobrepuseram a matrícula SQ-...., veículo que os arguidos subtraíram em Espanha ao seu proprietário e que, na ocasião, era conduzido pelo arguido César;
2 - Aí chegados, os arguidos aguardaram que se aproximasse do veículo o gasolineiro desse posto, C;
3 - ... e logo o arguido A aponta a esse gasolineiro uma pistola de alarme, sua propriedade, através da janela do lado do condutor, ao mesmo tempo que, como previamente confirmara com o arguido B, ordenou àquele, C, que lhe entregasse a bolsa que trazia à cintura;
4 - O C tentou, então, afastar-se do veículo automóvel, tendo-lhe o arguido César nessa altura gritado "passa para cá essa merda ou estouro-te os miolos;
5 - Nesse momento, com receio de que os arguidos consumassem tal ameaça e efectivamente disparassem a pistola, temendo pela sua vida e integridade física, o C entregou ao arguido A a dita bolsa, que continha 40000 escudos em cheques entregues por clientes para pagamento de combustíveis e cerca de 70000 escudos em requisições de combustíveis e cerca de 30000 escudos em numerário, bens que os arguidos logo fizeram seus e posteriormente dividiram entre si;
6 - Com a descrita conduta dos arguidos o proprietário das bombas desse posto, D, encontra-se lesado em parte desses montantes, já que apenas foi possível recuperar a quantia de 57924 escudos;
7 - Ao praticar os factos descritos agiram os arguidos com o intuito de, através de violência contra o referido C e, utilizando a mencionada pistola, intimidá-lo, fazendo-o recear pela sua vida e colocando-o na impossibilidade de resistir, a fim de fazer seus os descritos bens, que sabiam não lhes pertencer;
8 - Agiram sempre os arguidos em conjugação de esforços e vontades, e determinados por vontade livre e consciente, bem sabendo que toda a sua descrita conduta era proibida por lei;
9 - À data dos factos, os arguidos eram fortemente toxicodependente, mas encontravam-se socialmente inseridos, trabalhando o arguido A como vendedor de produtos alimentares e o arguido B como pedreiro;
10 - Ambos os arguidos viviam com os respectivos progenitores.
O tribunal colectivo deu como não provado que o arguido A haja utilizado uma pistola de calibre 6,35 milímetros.
III.
Temos como certo que a utilização da pistola de alarme não pode enquadrar-se no conceito de "utilização de arma de fogo" para o efeito de preenchimento da circunstância qualificativa do crime de roubo prevista no n. 3, alínea a), do artigo 306 do Código Penal de
1982, vigente à data dos factos a que se referem os presentes autos (neste sentido, v. o Acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça de 6 de Outubro de 1993, processo n. 44955).
Com efeito, uma pistola de alarme não se insere na definição de arma de fogo, já que só se pode considerar como tal o objecto que, através de um dispositivo de deflagração próprio, é susceptível de lançar à distância, de forma mais ou menos dirigida, um projéctil, geralmente perfurante (como dizem António Rui Castanheira e Euclides Dâmaso Simões, in
"Legislação Anotada sobre Armas", página 21. De acordo com esta noção está a definição mais pormenorizada de arma de fogo que consta do Anexo I, A), de "Convenção Europeia sobre o Controlo da Aquisição e da Detenção de Armas de Fogo por Particulares", aprovada para ratificação pelo Decreto do Governo n. 56/84, de 28 de
Setembro).
Entendemos, porém, que tal pistola tem de ser considerada como arma para o efeito de o crime de roubo cometido mediante a sua utilização poder ser punido nos termos da alínea a) do n. 2 do artigo 306 do Código
Penal de 1982 ou do artigo 210, ns. 1 e 2, alínea b), com referência ao artigo 204, n. 2, alínea f), ambos do Código Penal de 1995.
Efectivamente, parafraseando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Junho de 1996, "Colectânea de Jurisprudência - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça", IV, tomo 2, páginas 201 e seguintes, entendemos que, para os fins dos referidos artigos, arma "é todo (o ins, digo,) o objecto que tenha a virtualidade de provocar nas pessoas ofendidas ou nos circunstantes um justo receio de virem a ser lesadas, através da respectiva utilização, na sua integridade física, mesmo que, de facto, e sem que elas o saibam, não possa cumprir cabalmente tal função, designadamente por falta das partes componentes que, nas armas de fogo ou suas imitações, sejam susceptíveis de provocar o disparo".
O que resulta de matéria de facto provada nestes autos
é que os arguidos, em conjugação de esforços e de vontades, subtraíram ao dito C os valores discriminados em supra II, n. 5, utilizando, para o obrigar a entregar-lhes a bolsa em que esses valores se continham, uma pistola de alarme, sem que aquele ofendido, soubesse ou devesse saber disso, já que a pistola aparentava ser uma arma de fogo, causando, por isso, no mesmo o justo receio de que a pistola fosse contra ele disparada e, assim, o matasse, se não lhes entregasse essa bolsa.
Quer isto dizer que a pistola dessa maneira utilizada tem de ser considerada como arma, para o efeito do disposto no dito artigo 306, n. 1, alínea a), do Código
Penal de 1982, ou como arma aparente (ou visível) para o efeito de que dispõe o artigo 204, n. 2, alínea f), do Código Penal de 1995.
Sendo assim, configura-se aqui um crime de roubo qualificado previsto e punido pelo referido artigo 306, ns. 1 e 2, alínea a), a que corresponde a moldura penal abstracta de 2 a 10 anos de prisão, ou pelos mencionados artigos 210, ns. 1 e 2, alínea b), e 204, n. 2, alínea f), do Código de 1995, a que corresponde a moldura penal abstracta de 3 a 15 anos de prisão.
Nada obsta à convolação do crime de roubo qualificado de que os arguidos vinham acusados para o que acima se indicou, porque, para além de o tribunal ser livre nessa alteração de enquadramento jurídico penal dos factos (cf. jurisprudência obrigatória fixada pelos
Acórdãos do Plenário da Secção Criminal do Supremo
Tribunal de Justiça de 27 de Janeiro de 1993 e 7 de
Junho de 1995, in D. da Rep., IS-A, respectivamente de
10 de Março de 1993 e 6 de Julho de 1995), não se põe in casu o problema de inconstitucionalidade declarada, como força obrigatória geral, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional, n. 445/97, de 25 de Junho de 1997
(publicado no Diário da República, IS-A, de 5 de Agosto de 1997), uma vez que a diferente qualificação jurídica dos factos não conduz à condenação dos arguidos em pena mais grave.
Mais é assim no caso dos autos porquanto a qualificação jurídica considerada na presente decisão, relativamente ao Código de 1982, está numa relação de consumpção com a que foi objecto da acusação (por entre as normas do n. 3, alínea a) e do n. 2, alínea a), do artigo 306 desse Código, quanto à arma, se verificar uma relação de mais e menos, consumindo a primeira a protecção que a outra visa) tendo sido, portanto, assegurado plenamente o princípio do contraditório a respeito da qualificação jurídica em causa (assim, Acórdão do
Tribunal Constitucional n. 330/97, de 17 de Abril de
1997, Diário da República, II., de 3 de Julho de 1997).
Posto isto, há que determinar a medida concreta da pena a aplicar a cada um dos arguidos, recorrendo aos critérios e factores a que mandam atender o artigo 72 do Código Penal de 1982 e, de modo aqui semelhante, o artigo 71 do Código Penal de 1995.
Não se pode considerar elevado, dentro do tipo de crime em causa, o grau de ilicitude de facto, atento o valor das coisas subtraídas.
Agiram os arguidos com dolo directo, ou seja, na modalidade de dolo mais intensa.
Sendo o crime cometido por dois agentes, mostra-se potenciada a perigosidade social das suas condutas (v.
Professor Eduardo Correia, "Direito Criminal", 1995,
II, página 370).
O facto de os arguidos serem toxicodependentes, mesmo que se considere (embora tal facto não tenha sido dado como expressamente provado) que eles agiram com o fim de obterem meios para fazer face ao consumo de estupefacientes, não é motivo para a atenuação da sua responsabilidade, como é jurisprudência corrente do
Supremo Tribunal de Justiça (v., entre outros, os
Acórdãos de 21 de Outubro de 1993, processo n. 43779; de 4 de Junho de 1996, processo n. 384/96, 3., de 19 de
Junho de 1996, processo n. 433/96, 3., e 10 de Julho de
1996, processo n. 475/96, 3. V. ainda nesse sentido o
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Janeiro de 1996, "Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do
Supremo Tribunal de Justiça", IV, tomo 1, páginas 174 e seguintes).
Ambos os arguidos têm um longo cadastro, como mostram os certificados de registo criminal de folhas 317 a 329 e 342 a 364, onde consta que cada um deles praticou 33 crimes de roubo, cometidos quase todos no 1. semestre de 1994 (posteriormente àquele a que se referem os presentes autos, com excepção de um) e alguns em 1995.
Encontram-se eles presos em cumprimento da pena à ordem de outros processos.
São prementes as exigências de prevenção especial de socialização dos arguidos, bem como de prevenção geral, quer negativa (de intimidação de outros potenciais criminosos), quer - principalmente, positiva ou de integração, que leva à chamada "moldura de prevenção", como quantum de pena indispensável para que se não ponham em causa os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais
(v. Professor Figueiredo Dias, "Direito Penal Português
- As consequências Jurídicas do Crime", páginas 242 e
243).
Conforme se refere no mencionado Acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça de 11 de Janeiro de 1996, trata-se de crime muito grave pela facilidade e frequência com que é cometido, trazendo a comunidade alarmada e intranquila, razão por que os tribunais, em obediência
à justiça e ao dever de protecção das populações, devem puni-lo com alguma severidade.
Ponderando tudo o que acaba de se dizer, julgamos que se ajusta à culpa dos arguidos e às exigências de prevenção que acima se destacaram uma pena concreta que se situe 2 anos acima do mínimo legalmente aplicável.
Assim:
- pelo regime do Código de 1982 (artigo 306, ns. 1 e 2, alínea a)), a pena deve ser fixada em 4 anos de prisão;
- pelo regime do Código de 1995 (artigo 210, ns. 1 e 2, alínea b), a pena deve ser fixada em 5 anos de prisão.
Por força do disposto no artigo 2, n. 4, do Código
Penal, em qualquer das suas versões, ter-se-á de optar pela pena que resulte da aplicação do Código de 1982.
IV.
Pelo exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso, pelo que, alterando-se correspondentemente o acórdão recorrido, se condena cada um dos arguidos,
A e B, como co-autores de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 306, ns. 1 e 2, alínea a), do Código Penal de 1982, na pena de 4 (quatro) anos de prisão.
Sem tributação.
Honorários para a defensora oficiosa nomeada em audiência: 7500 escudos, a suportar pelos Cofres.
Lisboa, 23 de Outubro de 1997.
Bessa Pacheco,
Hugo Lopes,
Dias Girão,
Carlindo Costa.
Decisão impugnada:
2. Juízo do Tribunal Judicial de Braga - 15/97.