Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
043204
Nº Convencional: JSTJ00018631
Relator: LOPES DE MELO
Descritores: FALSIFICAÇÃO PRATICADA POR FUNCIONÁRIO PÚBLICO
BURLA
FUNCIONÁRIO
Nº do Documento: SJ199304220432043
Data do Acordão: 04/22/1993
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N426 ANO1993 PAG244
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/SOCIEDADE.
Legislação Nacional: CP82 ARTIGO 228 N3 ARTIGO 314 C ARTIGO 437 N1 C.
Sumário : É punido pelo artigo 228 n. 3 do Código Penal -
- falsificação cometida por funcionário - a que é feita por trabalhador de empresas públicas ou de empresas concessionárias de serviços públicos, como sucede com funcionários dos TLP.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1. Relatório.
O Tribunal da Relação do Porto, em acórdão de 8 de Julho de 1992 (folhas 378 a 380), proferido no recurso interposto no processo de querela do 2 Juízo Criminal do Porto do acórdão de 12 de Maio de 1992 (folhas 344 a 348), condenou o réu A na pena única de quatro (4) anos e nove (9) meses de prisão, reduzida a 3 anos e 9 meses de prisão com o perdão de 1 ano, concedido pela Lei n. 23/91, e trinta (30) dias de multa a 500 escudos diários (na alternativa de 20 dias de prisão) reduzida, pela mesma Lei, a metade, e na indemnização de 8000000 escudos aos T.L.P..
A essa pena única correspondem as seguintes penas parcelares: a) -18 meses de prisão e 30 dias de multa, a 500 escudos diários, na alternativa de 20 dias de prisão, pela autoria de um crime continuado de falsificação de documentos, previsto e punido no artigo 228, n. 3, do Código Penal; e b) -4 anos e 6 meses de prisão, pela autoria de um crime continuado de burla, previsto e punido no artigo 314, alínea c), do citado Código, por a pena ser mais grave do que a do peculato (ver artigo 424, n. 1, do mesmo Código).
Do referido acórdão da Relação do Porto, recorreu, para este Supremo Tribunal, o Ministério Público e o réu.
O Ministério Público apresentou as alegações de folhas 387 a 389 com as seguintes conclusões:
- Um "funcionário" dos T.L.P. não cabe na previsão do artigo 437 do Código Penal.
- O Decreto-Lei n. 371/83, de 6 de Outubro, não estabeleceu a equiparação ao conceito penal de funcionário, dos trabalhadores de institutos públicos e empresas concessionárias de serviços públicos, no crime de falsificação de documentos.
- Assim, o crime de falsificação de documentos praticado por um funcionário dos T.L.P. deve ser jurídico - penalmente subsumido ao artigo 228, n. 1, do Código Penal.
Este crime praticado antes de 25 de Abril de 1991 foi objecto de amnistia, estando o respectivo procedimento criminal extinto.
- Deste modo, deve ser revogado parcialmente o douto acórdão recorrido, na parte em que condenou o réu, pelo crime de falsificação de documentos previsto no artigo 228, n. 1 e 3, do Código Penal, por considerá-lo abrangido pelo artigo 437, n. 1, alínea c), deste diploma legal.
- E, na sequência, revogado também o cúmulo jurídico efectuado.
- Dizendo, pois, permanecer a condenação apenas pelo crime de peculato, cuja medida da pena se nos afigura estabelecida de harmonia com o disposto no artigo 72 do Código Penal.
Nas alegações de folhas 390 a 410, o réu pretende que o Supremo Tribunal de Justiça revogue o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto e o substitua por outro que:
- Considere amnistiado o crime de falsificação cometido pelo réu, face à sua não qualidade de funcionário;
- Mantenha a condenação, em primeira instância, pelo crime de peculato;
- Diminua a pena aplicada, tendo em consideração a diminuição da culpa do réu nos termos da parte final do n. 2 do artigo 30 do Código Penal;
- Atenue especialmente a pena, nos termos da alínea d) do n. 2 do artigo 73 do Código Penal;
- E, em consequência, suspenda a execução da mesma nos termos do artigo 48 do Código Penal.
O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal afirma no seu parecer de folhas 430 nada ter a acrescentar ao alegado pelo Ministério Público na 2 instância.
2. Fundamentos e decisão:
2.1 .Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Vem provada a seguinte matéria de facto:
O réu A exerceu funções nos "T.L.P." desde 1954 a Setembro de 1987, altura em que foi demitido.
Prestou serviço no Porto, nas dependências da Boavista e Picaria, e, a partir de meados de 1983, na Central de Vila Nova de Gaia.
Junto dos departamentos onde o réu trabalhou existiram serviços designados "Caixas Pequenas" que se destinavam a liquidar despesas de transportes e abonos devidos a trabalhadores que se encontravam deslocados do local de trabalho.
Essas caixas eram para tal dotadas de um fundo de maneio regularmente suprido pelos serviços financeiros daquela empresa mediante a apresentação de talões de despesa assinados pelos respectivos trabalhadores.
O serviço da "Caixa Pequena" incumbia ao réu, que tinha por funções recolher e verificar diariamente os talões de despesa de deslocações e abonos dos trabalhadores do seu sector e apresentá-los ao respectivo chefe de serviço que sancionava o seu pagamento aponto-lhe a sua assinatura.
O réu, posteriormente, processava os pagamentos aos trabalhadores com dinheiro existente na "Caixa Pequena" ou não sendo este suficiente, com dinheiro que, para o efeito, havia recebido da Secção, Caixa ou Bancos mediante a apresentação dos talões.
Em data indeterminada, mas próxima dos finais de 1979, o réu decidiu apoderar-se de várias quantias em dinheiro da "Caixa Pequena".
Para o efeito, preencheu pelo seu punho, mas em nome de diversos trabalhadores do seu sector, escolhidos ao acaso, talões de despesa de transportes e abonos, apondo-lhes a assinatura dos respectivos trabalhadores.
No final do dia, introduzia os talões assim forjados entre os outros que recolhia dos trabalhadores, apresentando-os, em grandes quantidades, aos chefes de serviços, a fim de serem assinados e autorizado o respectivo pagamento, o que sempre acontecia, dada a confiança que estes depositavam no réu.
Deste modo o réu apoderou-se, ao longo dos anos e até finais de 1986, de 7556368 escudos, pertencentes aos "T.L.P.", que utilizou como se fossem seus e em seu próprio proveito (beneficio).
Agiu deliberada, livre e conscientemente, no propósito consumado de integrar no seu património aquela importância que sabia não lhe pertencer.
Tinha perfeito conhecimento de que, ao preencher documentos com declarações não correspondentes à realidade colocava em crise a confiança que nos mesmos é depositada.
O réu não repôs qualquer quantia.
Confessou, colaborando na descoberta da verdade.
Tem bom comportamento anterior e posterior.
Vive com os pais, a mulher e duas filhas.
Trabalha, pelo menos, por conta própria, em pequenos serviços de arranjos de electrodomésticos, no que aufere não menos de 20000 escudos mensais.
2.2. Os factos provados encontram-se bem qualificados jurídico-penalmente no acórdão recorrido, como integrando a autoria material de dois crimes reiterados dolosos, em concurso real, um de falsificação de documentos e outro de burla, previsto e punido nas disposições legais já-indicadas no relatório do presente acórdão.
Na verdade, o referido crime de falsificação é o previsto no n. 3 do artigo 228 do Código Penal (e não o do n. 1 do mesmo preceito legal).
Como "funcionário", no conceito amplo definido no artigo 437, n. 1, alínea c), do Código Penal, para efeitos penais ("o conceito válido para o Código Penal não tem de decalcar ou sequer assentar noutros conceitos estabelecidos para outros domínios de direito" - confere "Actas", in Boletim do Ministério da Justiça, n. 290, páginas 96 a 97), o réu A cometeu, nessa qualidade, não só o crime de peculato e de burla, mas também o crime de falsificação de documentos.
"Achou-se melhor técnica legislativa estabelecer num artigo final tal conceito", "em vez de a respeito de cada tipo de crime se acrescentar uma definição conceitual de funcionário público" (ver "Actas na página 96 do n. 290 do citado Código).
Seria incompreensível, por falta de toda a lógica e até de política criminal, que na mesma conduta (embora num concurso real) fosse o aludido réu umas vezes "funcionário" (só para efeitos penais) e noutras já não o fosse.
Os T.L.P. constituem uma empresa pública, com personalidade jurídica de direito público e para efeitos penais, os seus trabalhadores desempenham funções ou nelas participam num organismo de utilidade pública.
A circunstância de o estatuto dos mesmos trabalhadores, para outros efeitos (os não penais), ser diferente não constituam obstáculo a que, à semelhança dos funcionários dos Correios e Telecomunicações, se encontrem os aludidos trabalhadores dos T.L.P. também abrangidos pelo citado artigo 437.
Nem os trabalhos preparatórios do Código Penal de 1982 são incompatíveis com tal conclusão, a qual respeita "a solução mais especifica e limitada" da fórmula ampla do género "função em pessoa colectiva pública".
Portanto, mantendo-se a incriminação do artigo 228, n. 3, do Código Penal, não se encontra amnistiado (pela Lei n. 23/91) o crime de falsificação de documentos praticado pelo réu.
2.3. Pretende o réu-recorrente que praticou o crime de peculato (e não o de burla).
Mas sem razão, pois a sua conduta foi bem qualificada como abrangida pelo artigo 314, alínea c), do Código Penal (burla agravada).
Com efeito, ela enquadra-se perfeitamente no disposto no n. 1 do artigo 313 do mesmo Código, já que o aludido réu, com intenção de obter para si um enriquecimento ilegítimo através de erro ou engano sobre factos, que astuciosamente provocou, determinou ontrem à prática de actos que lhe causam, ou causem a outra pessoa, prejuízos patrimoniais.
Prejuízos patrimoniais esses manifestamente de valor consideravelmente elevado (7556368 escudos) e que ainda não se mostram reparados.
Preenchendo dolosamente documentos com declarações não correspondentes à realidade, apresentando-os em grandes quantidades aos chefes de serviços dos T.L.P., a fim de serem assinados e autorizado o respectivo pagamento (o que sempre acontecia dada a confiança que estes depositam no réu), apoderou-se, ao longo dos anos, sempre dolosamente, dos referidos 7556368 escudos, pertencentes aos T.L.P., que utilizou como se fossem seus e em seu próprio benefício.
Ao mencionado crime reiterado de burla agravada corresponde a pena abstracta de prisão de 1 a 10 anos.
Não obstante o tempo já decorrido desde que cessou a prática da aludida burla, não consideramos justificada a pretendida atenuação especial prevista na alínea d) do n. 2 do artigo 73 do Código Penal, pois o mesmo, no caso destes autos, não diminui por forma acentuada a ilicitude do facto ou a culpa do agente.
É elevado o grau da ilícitude da sua conduta e intenso o dolo da mesma, a qual resultou mais da proporção do réu para a prática de crime do que da verificação de circunstâncias exteriores que o facilitassem.
Confessou, mas sem se provar o seu arrependimento, e não ficou demonstrado que tivesse sido decisiva a colaboração que prestou para a descoberta da verdade.
Tem bom comportamento anterior e posterior, mas não se provou que até agora tivesse indemnizado os T.L.P. - nem sequer parcialmente e nem que manifestasse vontade de o fazer.
Mantemos, por adequadas, as penas parcelares e única (artigos 72 a 78, ambos do Código Penal), assim como o montante da respectiva indemnização, já indicadas no relatório do presente acórdão.
Quanto à pretendida suspensão da execução da pena, encontra-se a mesma proibida no n. 1 do artigo 48 do Código Penal visto a respectiva prisão ser superior a 3 anos.
3. Conclusão.
Pelo exposto, negou-se provimento aos recursos e confirmam o douto acórdão recorrido.
O réu pagará 40000 escudos de imposto de justiça e 1/4 de procuradoria.
Lisboa, 22 de Abril de 1993
Lopes de Melo;
Coelho Ventura;
Costa Pereira.
Decisões impugnadas:
I- Sentença de 12 de Maio de 1992 do 2 Juízo Criminal do Porto;
II- Acórdão de 8 de Julho de 1992 da Relação do Porto.