Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2104/16.9T8TVD.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
SERVIDÃO DE PASSAGEM
USUCAPIÃO
SERVIDÃO LEGAL
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGAR A REVISTA
Sumário :
I - A violação do princípio do contraditório do art. 3.º, n.º 3, do CPC dá origem a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronúncia, nos termos dos arts. 615.º, n.º 1, al. d), 666.º, n.º 1, e 685.º, do CPC.

II - Se a lei prevê expressamente a hipótese de extinção, por desnecessidade, da servidão constituída por usucapião, no n.º 2 do art. 1569.º do CC, por maioria de razão verificados os requisitos do art. 1568.º do CC. Trata-se do argumento lógico em que se baseia a interpretação enunciativa, segundo o qual, a lei que permite o mais, também permitirá o menos.

III - A mudança da servidão está subordinada a dois requisitos: i) que se mostre conveniente ao dono do prédio serviente; ii) que não se prejudiquem os interesses do proprietário do prédio dominante.

IV - Provado que o novo caminho, para onde se requer a mudança da servidão, apresenta maiores dificuldades quanto à circulação automóvel e quanto ao trânsito de veículos com reboque e de transporte de cargas elevadas, para além de necessitar de obras que agravarão as condições de escoamento das águas pluviais no prédio dominante, tem de se concluir que a mudança da servidão não permite o gozo das mesmas utilidades fornecidas pela servidão originária e causa prejuízos ao titular do prédio dominante.

Decisão Texto Integral:
               

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I - Relatório

1. AA veio intentar a presente ação de condenação, em processo declarativo comum, contra BB e esposa, CC, pedindo a condenação dos Réus nos seguintes termos:

(i) a reconhecer que o Autor é dono e legítimo possuidor do prédio rústico com o artigo matricial 136-secção T, que melhor identifica;

(ii) a reconhecer a servidão de passagem constituída por usucapião, a favor do seu prédio, correspondente a uma faixa de terreno com a largura de cerca de 3,5 metros e 45 metros de comprimento, que atravessa o prédio dos réus com o artigo matricial 137-secção T;

(iii) a reporem o leito da identificada servidão de passagem no estado em que se encontrava em momento anterior à terraplanagem que realizaram em toda a extensão e largura do seu (dos Réus) prédio;

(iv) a absterem-se de modificar, por qualquer meio, o leito da mesma servidão de passagem;

(v) a absterem-se de praticar quaisquer atos que perturbem ou impeçam o livre acesso por parte do autor ao seu prédio;

(vi) a colocarem, a expensas suas, muro de suporte na confrontação Norte do seu (dos Réus) prédio com o prédio do autor, que sustente as terras da sua (dos Réus) propriedade;

(vii) a colocarem a expensas suas na estrema Norte do seu (dos Réus) prédio, que confina com o prédio do Autor, quer em toda a área que vedaram, quer na área que deixaram sem qualquer vedação, sistema para escoamento das águas pluviais; e

(viii) a indemnizarem o Autor por todos os prejuízos, já previsíveis mas ainda não determináveis nem passíveis de contabilização, que resultaram e venham a resultar da dificuldade de acesso ao seu prédio, assim como do assolamento do mesmo provocado pela conduta dos réus, sendo esta a liquidar em execução de sentença.

Para tanto, alega ser proprietário do prédio rústico com o artigo matricial 136, que confina a Sul com o prédio dos Réus, com o artigo matricial 137, sendo que o primeiro se encontra encravado.

Especificou que adquiriu tal prédio por partilha por óbito dos seus pais, que por seu turno o haviam adquirido por partilha por óbito dos seus avós, sendo que o acesso à sua propriedade sempre se fez através de uma serventia que atravessa o prédio dos Réus.

Sucede que, desde há 5 ou 6 anos, os Réus têm utilizado o prédio que lhes pertence para depositar entulhos e terras e, em outubro de 2016, realizaram obras de movimentação de terras no mesmo, com isso destruindo a aludida servidão de passagem e fazendo com que o prédio do Autor ficasse a uma cota inferior de 3 metros na estrema onde confinam os dois prédios, além de terem colocado postes em cimento ao redor do prédio dos Réus.

Após o Autor ter derrubado dois postes colocados no acesso à servidão, os Réus vedaram o seu prédio, deixando, contudo, abertura para acesso à mesma servidão e também para uma nova servidão que criaram.

Com efeito, os Réus criaram um novo caminho para ligação do prédio do Autor à via pública, na estrema poente do prédio dos Réus, por onde passaram a correr em enxurrada as águas pluviais em direção ao prédio do Autor.

Conclui o Autor, por um lado, ter direito ao reconhecimento da constituição de uma servidão de passagem por usucapião e, por outro, que os Réus, por via das referidas condutas, violaram o seu direito de propriedade.

         

2. Citados, os Réus contestaram e deduziram reconvenção, alegando que nunca existiu qualquer servidão de passagem, constituída por usucapião sobre o seu prédio, a favor do prédio do Autor, mas existe, sim, a possibilidade da constituição de uma servidão legal por força do encravamento deste último. Porém, tal servidão legal deverá ser constituída no lugar onde cause menos inconveniente ao prédio onerado, que é o dos Réus. Ora, existindo dois caminhos ou acessos, o que causa menor prejuízo ao prédio dos Réus é aquele que criaram em outubro de 2016, na estrema poente do mesmo, uma vez que a servidão, no lugar pretendido pelo Autor, ocupa mais área, divide o seu prédio ao meio e impossibilita-os de o afetarem à construção de uma clínica veterinária como desejam.

Em sede de reconvenção, pedem os Réus que, caso venha a ser reconhecida a necessidade de uma servidão legal de passagem que onere o seu prédio, seja a mesma constituída através do referido acesso existente na estrema poente, por ser a solução que lhes causa menor prejuízo. Subsidiariamente, caso improceda tal pedido, deverá o Autor ser condenado no pagamento de uma indemnização no valor de €2.362,50, em contrapartida da criação de uma servidão de passagem, correspondente ao valor da área ocupada por tal servidão (cerca de 157,50 m2).

3. O Autor replicou, impugnando de facto e de direito a contestação, mantendo a sua posição vertida na petição inicial e pugnando pela improcedência da reconvenção.

         

4. Findos os articulados, foi designada audiência prévia, na qual foi determinada a realização de prova pericial com vista à fixação do valor da causa. Realizada essa perícia, veio então a ser fixado o valor da causa e admitida a reconvenção, fixando-se o objeto do litígio e os temas de prova e, no final, admitida a prova requerida pelas partes, que passou pela produção de prova pericial.

         

5. Realizadas as diligências instrutórias prévias, veio então a ser designada audiência final e, após a produção de prova e discussão da causa, veio a ser proferida sentença que julgou a ação nos seguintes termos:

 

«Com os fundamentos de facto e de Direito acima expostos, decide-se:

a) JULGAR a acção parcialmente procedente e, em consequência:

(i) CONDENAR os réus a reconhecerem que o autor é proprietário do prédio rústico denominado “...”, sito em ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo 136 da secção T, da União das Freguesias ... e ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...62 da Freguesia ...;

(ii) CONDENAR os réus a reconhecerem a servidão de passagem   constituída por usucapião, a favor do prédio do autor referido na alínea anterior (prédio dominante), sobre o prédio dos réus sito na ..., Lugar ..., na Freguesia ..., no concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo 137 da secção T e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...95 (prédio serviente), servidão essa, constituída por caminho, em terra batida, com a largura de 3,5 metros e 45 metros de comprimento, que atravessa o prédio dos réus no sentido Sul/Norte, com início na Rua ..., e que é destinada ao trânsito de pessoas, de animais e veículos, incluindo máquinas agrícolas;

(iii) CONDENAR os réus a absterem-se de praticar quaisquer actos que perturbem ou impeçam o livre acesso por parte do autor ao seu prédio;

(iv) CONDENAR os réus, solidariamente, a colocarem a expensas suas, muro de suporte na confrontação Norte do seu (dos réus) prédio, que confina com o prédio do autor, apta a sustentar as terras e os entulhos provenientes do seu (dos réus) prédio;

(v) CONDENAR os réus, solidariamente, a colocarem a expensas suas na estrema Norte do seu (dos réus) prédio, que confina com o prédio do autor, um sistema adequado ao escoamento ordenado das águas pluviais;

(vi) CONDENAR os réus, solidariamente, a indemnizarem o autor por todos os danos sofridos e que venha a sofrer em consequência do escoamento desordenado e descontrolado de águas pluviais no seu prédio e da invasão de terras e entulhos no seu prédio, provenientes do prédio dos réus, e que são resultado das obras efectuadas pelos réus no seu (deles) prédio, quer de movimentação de terras, quer de criação de um caminho a poente [em conformidade com os factos provados das alíneas 12), 15), 16), 17) e 24)], sendo estes danos a liquidar em incidente de liquidação;

(vii) ABSOLVER os réus de tudo o mais peticionado pelo autor;

b)  JULGAR a reconvenção totalmente improcedente, absolvendo o autor de todos os pedidos dos réus;

c) CONDENAR o  autor  e  os  réus  a  pagar  as  custas  da  acção,  fixando-se  em  80%  a parte que cabe solidariamente aos réus, e em 20% a parte que cabe ao autor; e

d) CONDENAR o réu[1] a pagar as custas da reconvenção na totalidade.”

6. O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa decidiu julgar a apelação dos Recorrentes improcedente por não provada, sem prejuízo de se procederem às seguintes alterações na sentença recorrida:

«a) Quanto à matéria de facto é a mesma alterada nos termos estabelecidos no ponto 2.6. do presente acórdão, nos seguintes termos:

1- O ponto 7) dos factos provados da sentença recorrida passará a ter a seguinte redação:

«7) Pelo menos desde o tempo dos avós do A., o acesso ao prédio identificado em 1) é feito através de um caminho, em terra batida, com a largura que varia entre os 2,10m e os 3,60m, tendo 55 metros de comprimento, o qual atravessa o prédio identificado em 4), com início na Rua ..., onde faz inicialmente uma curva, seguindo depois a direito, no sentido Sul/Norte, conforme se mostra desenhado no levantamento topográfico de fls. 171».

2- É aditado aos factos provados o ponto 22-A com a seguinte redação:

«22-A) O caminho referido em 15) permite o trânsito de veículos do tipo trator agrícola ou florestal, com ou sem reboque, e máquinas destinadas a utilização agrícola ou florestal».

3- O ponto 23) dos factos provados passa a ter a seguinte redação:

«23) O caminho referido em 15) permite a circulação de pessoas e animais, carecendo de obras de pavimentação com tout venant, com 0,2 de espessura, para o tornar viável para a circulação adequada a outros tipos de veículos automóveis, sendo que a terraplanagem necessária para a sua construção agravará as condições de escoamento das águas pluviais no prédio identificado em 1).

4- É eliminado o facto constante da alínea f) dos factos não provados da sentença recorrida.

b)  Quanto à parte dispositiva da sentença, é a mesma alterada no ponto (ii) alínea a) da sentença, que passa a ter a seguinte redação:

«(ii) Condenar os R.R. a reconhecerem a servidão de passagem constituída por usucapião, a favor do prédio do autor referido na alínea anterior (prédio dominante), sobre o prédio dos réus sito na ..., Lugar ..., na Freguesia ..., no concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo 137 da secção T e descrito na Conservatória do Registo   Predial sob o nº ...95 (prédio serviente),   servidão   essa constituída por caminho, em terra batida, com largura que varia entre os 2,10m e os 3,60m, tendo 55 metros de comprimento, o qual atravessa o prédio dos réus identificado em 4), com início na Rua ..., onde faz inicialmente uma curva, seguindo depois a direito, no sentido Sul/Norte, conforme se mostra desenhado no levantamento topográfico de fls. 171, e que é destinada ao trânsito de pessoas, de animais e veículos, incluindo máquinas agrícolas».

c) No mais é mantida a sentença recorrida.”

           

3. Inconformados com a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, por entenderem que a mesma padece de nulidades e viola a lei, vieram os autores interpor o presente recurso de revista, no qual formularam as seguintes conclusões:

«A) O Douto Acórdão recorrido julgou improcedente a apelação dos recorrentes, contudo procedeu a diversas alterações na sentença recorrida, e por entenderem que o ponto 3.3 do Douto Acórdão em crise proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, padece, naquela parte de nulidade prevista na alínea d), do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil e concomitantemente viola a lei substantiva e de processo, nomeadamente, os artigos 1550.º e 1568.º do Código Civil e artigos 3.º e 36.º do Código de Processo Civil, vêm os recorrentes apresentar o presente recurso.

B) O Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, embora declarando a improcedência do recurso de apelação apresentado pelos aqui recorrentes, a verdade é que altera a fundamentação de direito da sentença recorrida e altera matéria de facto, e em especial, com interesse para o presente recurso, “da possibilidade de constituição de uma servidão legal alternativa e da indemnização devida pela sua constituição”, explanada no ponto 3.3 do Douto Acórdão recorrido e que foi objeto de sumarização nos pontos 5, 6, 7 e 8.

C) Em suma o Venerando Tribunal recorrido, e com relevância para o presente recurso, entendeu que:

5. Uma servidão de passagem, independentemente de ter sido constituída por usucapião, que corresponda à satisfação do direito potestativo previsto no Art. 1550.º n.º 1 do C.C., é objetivamente uma “servidão legal”, porque se essa serventia não existisse de facto, sempre teria de ser constituída de forma coerciva por decisão judicial.

6. Permitindo a lei a possibilidade de extinção da servidão de passagem constituída por usucapião, por desnecessidade (Art. 1569.º n.º 2 do C.C.), também não existem motivos relevantes para afastar a possibilidade de alteração dessa servidão, tendo em conta o caráter injuntivo do Art. 1568.º do C.C., por força do n.º 4 desse preceito.

7. No caso, o caminho existente servia pelo menos 3 prédios dominantes encravados, sendo que a alteração da servidão de passagem proposta pelo titular do prédio serviente, causava-lhe menor prejuízo, porquanto o novo caminho ocuparia uma área inferior e situava-se numa estrema do seu prédio, deixando consequentemente a serventia de passar pelo meio da sua propriedade.

8. No entanto, constatando-se que esse novo caminho proposto não permitiria assegurar a acessibilidade à via pública a 2 dos prédios dominantes, falha o requisito para a possibilidade mudança de servidão, tal como pretendida, relativo a verificar-se que essa alteração não viria a prejudicar os interesses dos proprietários dos prédios dominantes (Art. 1568.º n.º 1 do C.C.).»

D) O Venerando Acórdão recorrido considera que a servidão existente e que onera o prédio serviente, propriedade dos recorrentes, apesar de constituída por usucapião, por força do encravamento do prédio dominante é uma servidão legal, sendo possível a mudança da servidão, nos termos do artigo 1568.º do Código Civil, entendimento que é partilhado e defendido pelos recorrentes desde o início do processo, e que agora obteve acolhimento e que não merece qualquer censura.

F) Os recorrentes não concordam com as conclusões finais refletida no Douto Acórdão recorrido e que se encontram resumidas nos pontos 7 e 8 do sumário.

G) O caminho referido em 15) da matéria de facto provada constante da sentença de 1.º Instância, por força do aditamento do ponto 22-A) e alteração do ponto 23) dos factos provados, tem conforme consta do Venerando Acórdão recorrido tem (…)“uma implantação que poderia causar menor prejuízo aos titulares do prédio onerado, por fazer um percurso mais curto e mais direto, ocupando portanto uma área menor” (...) e permite servir o dono do prédio dominante do recorrido sem prejudicar os seus interesses.

H) Sucede que o Douto Acórdão recorrido afasta a pretensão reconvencional dos recorrentes por entender que o seu prédio (artigo 137) dá acesso não só ao prédio do recorrido (artigo 136) como também a outros dois prédios (artigos 135 e 134), pertença de terceiros estranhos à lide, sem que tal facto tenha sido considerado provado ou não.

I) A ação foi proposta, única e exclusivamente e no seu próprio interesse pelo recorrido AA, a fim de ser constituída uma servidão de passagem por usucapião a favor do seu prédio (artigo 136) onerando o prédio dos recorrentes (artigo 137) e foi dessa petição que os recorrentes se defenderam e deduziram uma reconvenção para efetuar a mudança da servidão.

J) O Tribunal foi chamado a resolver um conflito de interesses, tendo o recorrido formulado o seu pedido e os recorrentes exercido o competente contraditório, como dispõe o artigo 3.º do Código de Processo Civil, inexistindo quaisquer outras partes ou intervenientes principais ou acessórios, nem qualquer coligação de autores ou réus.

K) Os recorrentes, não tiveram qualquer possibilidade de apresentar defesa quanto à obrigação ou não de os prédios inscritos na matriz predial rústica sob os artigos 134 e 135 se tornarem prédios dominantes em relação ao seu prédio e não tinham que o fazer, uma vez que o processo intentado e a reconvenção apresentada limitavam o pedido à constituição de uma servidão sobre o prédio dos recorrentes a favor do prédio do recorrido, e a mudança de tal servidão.

L) O Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, sem que os proprietários destes tenham vindo demonstrar o seu encravamento e peticionar ao tribunal, isoladamente ou em coligação entre si ou com o recorrido, e sem dar direito ao contraditório aos recorrentes, considerou que prédios 134 e 135 também eram dominantes, violando assim os artigos 3.º e 36.º do Código de Processo Civil e o artigo 1550.º do Código Civil.

M) E tal decisão, além de violar os normativos acima mencionados, é ela própria nula, nos termos da alínea d) do n.º 1, do artigo 615.º do Código de Processo Civil, pois o Douto Acórdão recorrido conhece questões de que não podia tomar conhecimento, vide a este propósito o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12.01.2015 inserto na Coletânea de Jurisprudência, 215, Tomo I, pag. 162.

N) A decisão do Venerando Tribunal recorrido ao considerar que o prédio do artigo 134, estranho à lide, também tem acesso à via pública através do prédio dos recorrentes, impõe sobre o prédio 136 (que é o prédio do recorrido) ou pelo prédio 135, também estranho à lide, ou por ambos, idêntico ónus de servidão, o que manifestamente não foi pedido por nenhuma das partes da lide, impondo deste modo uma servidão sobre prédios estranhos à lide, a favor de prédios igualmente estranhos aos presentes autos, sem que existisse qualquer pedido ou defesa por parte dos proprietários envolvidos.

O) Apenas existe coligação quando é legalmente permitida e as partes o entendam fazer, não sendo iniciativa do Tribunal, constituir uma coligação ad hoc, para decidir da existência de três prédios dominantes dois deles de pessoas estranhas à lide.

P) Nenhuma prova foi efetuada quanto à titularidade dos prédios inscritos na matriz predial rústica sob os artigos 134 e 135, sendo que os presumíveis proprietários, depuseram como testemunhas, dando a entender que é admissível, ao arrepio da lei, que quem pudesse depor como parte fosse testemunha do processo.

Q) No caso sub judice, não existiu qualquer coligação de autores, sendo que os proprietários dos prédios com os artigos 134 e 135 depuseram no Tribunal como testemunhas dos autos e saíram beneficiados com a decisão tomada pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, o que impediu que os recorrentes exercessem qualquer tipo de defesa por forma a afastar mais ónus sobre o seu prédio.

R) Deste modo, a decisão tomada pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa ao considerar, nos termos do artigo 1568.º do Código Civil, que, não obstante a mudança da servidão de local ser benéfica para o prédio serviente e não prejudica o prédio dominante do recorrido, e só não pode ocorrer porque existem mais dois prédios dominantes está errada, uma vez que não poderia o Venerando Tribunal “a quo” tomar partido de quem é alheio à lide, prejudicando gravemente os recorrentes.

S) Assim, e com o devido respeito, que é muito, o Acórdão recorrido, na parte em que não procede à mudança da servidão padece de nulidade, nos termos alínea d), do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, violando os artigos 1550.º e 1568.º do Código Civil e artigos 3.º e 36.º do Código de Processo Civil, devendo a mesma ser revogada nessa parte e em consequência ser dada procedência à reconvenção deduzida pelos Recorrentes de forma a proceder à alteração da servidão a favor do prédio dominante, propriedade do recorrido, para a estrema poente do seu prédio serviente.

T) Também deve ser alterada a decisão tomada quanto à responsabilidade por custas decidida pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa uma vez que não obstante ter sido mantida a decisão tomada pelo Douto Tribunal de 1.ª Instância, por força do recurso interposto pelos aqui recorrentes e alegações por estes deduzidas foi profundamente alterada a fundamentação de direito e a matéria de facto, constante da decisão de 1.ª instância, o que é demonstrativo da pertinência e razão dos recorrentes.

Nestes termos e nos melhores de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deverá o Venerando Acórdão recorrido ser parcialmente revogado, dando procedência apresentadas à reconvenção pelos recorrentes, efetuando-se a mudança de servidão nos termos e para os efeitos do artigo 1568.º, tudo, com as legais consequências».

         

4. Em sede de contra-alegações, veio o Recorrido requerer a ampliação do objeto do recurso, através da qual pretende, em síntese, colocar em causa a qualificação jurídica da servidão de passagem em causa nos autos – constituída por usucapião – como uma servidão legal e a aplicabilidade do regime das servidões legais à servidão constituída por usucapião.

5. Os recorrentes responderam à ampliação do objeto do recurso requerida pelo recorrido, solicitando que esta seja improcedente, reconhecendo-se que a servidão constituída sobre o prédio serviente propriedade dos recorrentes tem a natureza de “servidão legal”, ainda que constituída por usucapião.

6. Sabido que é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se delimita o objeto do recurso, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4, 639.º, n.º 1, 608.º, n.º 2, e 679., todos do CPC), as questões que se nos impõe apreciar e decidir são as seguintes:

Recurso de revista

I – Da nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia;

II – Da aplicabilidade do artigo 1568.º do Código Civil à servidão dos autos e  da alteração da servidão para local mais benéfico para o prédio serviente;

III – Da responsabilidade pelo pagamento da das custas processuais por parte dos recorrentes.

Ampliação do objeto do recurso:

I – Da natureza da servidão de passagem constituída por usucapião e da aplicabilidade a esta do regime jurídico das servidões legais.


7. Da admissibilidade do recurso de revista:  o recurso é admissível, verificados que estão os requisitos gerais de recorribilidade, valor da causa, legitimidade dos recorrentes e tempestividade. Apesar da aparente dupla conformidade, o acórdão recorrido modificou a matéria de facto em ordem a alterar a dimensão da servidão, e para considerar improcedente a apelação recorreu a uma fundamentação de direito essencialmente diversa daquela que o tribunal de 1.ª instância utilizou.

Por se mostrarem preenchidos os pressupostos formais do recurso de revista, entende-se ser admissível, também, o pedido subsidiário de ampliação do objeto do recurso, ao abrigo do disposto no artigo 636.º, n.º 2 do CPC.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A – Os factos

O Tribunal da Relação após o exercício dos seus poderes de modificação da matéria de facto, considerou provados os seguintes factos:

1) Sob a Ap. nº 690 de 2012/05/29 da respetiva matrícula predial, mostra-se registada a aquisição a favor do A., por partilha por óbito de seus pais DD e EE, falecidos em .../.../1992 e .../.../2011, do prédio rústico denominado “...”, sito em ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo 136 da secção T, da União das Freguesias ... e ... e, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...62 da Freguesia ....

2) Os pais do A. haviam adquirido tal prédio por partilha por óbito dos avós do A., DD e FF, outorgada por escritura pública em 30/07/1977, no Cartório Notarial ....

3) De acordo com a matrícula predial referida em 1), o prédio que lhe corresponde tem a área de 3.200 m2.

4) Sob a Ap. ...1/18 da respetiva matrícula predial, mostra-se registada a aquisição, por compra, a favor do 1.º R., no estado de casado com a 2.ª R. no regime da comunhão de adquiridos, do prédio rústico sito na ..., Lugar ..., na Freguesia ..., no concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo 137 da secção T e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...95.

5) O prédio referido em 4) confronta a Norte com o prédio identificado em 1) e a Sul com a via pública, denominada Rua ....

6) Por seu turno, o prédio identificado em 1) confronta a Sul com o prédio identificado em 4) e encontra-se em situação de encrave, só tendo acesso à via pública através de passagem pelo último.

7) Pelo menos desde o tempo dos avós do A., o acesso ao prédio identificado em 1) é feito através de um caminho, em terra batida, com a largura que varia entre os 2,10m e os 3,60m, tendo 55 metros de comprimento, o qual atravessa o prédio identificado em 4), com início na Rua ..., onde faz inicialmente uma curva, seguindo depois a direito, no sentido Sul/Norte, conforme se mostra desenhado no levantamento topográfico de fls. 171 (Facto modificado pelo Tribunal da Relação).

8) Tal caminho apresenta sinais visíveis e permanentes que evidenciam o seu uso consolidado no tempo, e

9) Tem sido destinado ao trânsito de pessoas, de animais e veículos, incluindo máquinas agrícolas.

10) Os avós e os pais do A., e depois da morte destes o próprio A., sempre utilizaram o caminho referido em 7), 8) e 9) para acederem ao prédio referido em 1), a pé e de carro, ou com máquinas agrícolas, o que fizeram ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem a oposição de ninguém, incluindo dos R.R., na convicção de lhes assistir o direito a fazê-lo.

11) Até Outubro de 2016, terceiros utilizaram o prédio referido em 4) para depositar entulhos, lixo e desperdícios.

12) Em Outubro de 2016, os R.R. realizaram obras de movimentação de terras no prédio referido em 4), em toda a sua extensão, com isso tendo alterado a orografia e as cotas naturais desse prédio, designadamente fazendo com que o prédio confinante identificado em 1) ficasse a uma cota inferior de pelo menos 1,5 metros.

13) Pela mesma altura, os R.R. ergueram postes em cimento em torno do seu prédio e, em seguida, ergueram uma vedação.

14) Os R.R. deixaram a vedação referida em 13) aberta no espaço de acesso ao caminho a que se alude em 7), 8) e 9), assim como na estrema poente do seu prédio.

15) Ainda por altura de Outubro de 2016, os R.R. criaram um caminho para permitir o acesso do prédio identificado em 1) à via pública, situado na estrema poente do prédio identificado em 4), no sentido Sul/Norte, com início na Rua ... e com um comprimento de 24,50 metros e uma largura que varia entre 3,94 metros e 3,44 metros.

16) Após o facto referido em 15), as águas pluviais passaram a correr descontrolada e desordenadamente em direção ao prédio identificado em 1).

17) Por força das obras referidas em 12), o prédio referido em 1), na estrema Sul que confina com o prédio identificado em 4), passou a ser invadido por entulhos e terras provenientes deste último.

18) Os R.R. edificaram a vedação referida em 13) para evitar que terceiros utilizassem o prédio referido em 4) para depositar entulhos, lixo e desperdícios e por ser sua intenção ali construir uma clínica veterinária com capacidade para albergar animais de grande porte.

19) O caminho referido em 7), 8) e 9), por se situar sensivelmente a meio do prédio identificado em 4), divide-o materialmente em duas parcelas.

20) O caminho referido em 15), à saída para a Rua ..., não tem tanta visibilidade para a circulação automóvel para poente quanto o caminho referido em 7), 8) e 9), mas permite executar essa manobra para ambas as direções.

21) O caminho referido em 7), 8) e 9), à saída para a Rua ..., é mais difícil para a circulação rodoviária no sentido nascente, devido a ser formado por uma curva, seguida de contracurva.

22) O caminho referido em 15), tem uma inclinação mais acentuada que o caminho referido em 7), 8) e 9), sendo menos adequado para o trânsito de veículos com reboque e de transporte de cargas elevadas.

22-A) O caminho referido em 15) permite o trânsito de veículos do tipo trator agrícola ou florestal, com ou sem reboque, e máquinas destinadas a utilização agrícola ou florestal (Facto aditado pelo Tribunal da Relação).

23) O caminho referido em 15) permite a circulação de pessoas e animais, carecendo de obras de pavimentação com tout venant, com 0,2 de espessura, para o tornar viável para a circulação adequada a outros tipos de veículos automóveis, sendo que a terraplanagem necessária para a sua construção agravará as condições de escoamento das águas pluviais no prédio identificado em 1) (Facto alterado pelo Tribunal da Relação)

24) O caminho referido em 15) tem ligação com uma rua da povoação situada a poente, que é de acentuado declive e deficiente drenagem, o que facilita que as águas pluviais provenientes do escoamento dessa rua se concentram no caminho e corram em direção ao prédio identificado em 1).


*

Foram julgados por não provados os seguintes factos:

a) Que desde há cerca de 5 ou 6 anos, os R.R. têm utilizado o prédio identificado em 1) para depósito de entulhos e terras;

b) Que em consequência do facto provado da alínea 12), os R.R. alteraram e destruíram o caminho referido em 7), 8) e 9);

c) Que o A., ao pretender deslocar-se ao prédio identificado em 1) no dia 14-10-2016, verificou a impossibilidade de o fazer perante o impedimento provocado pelos R.R. com os trabalhos de movimentação das terras e de estreitamento da largura do caminho e colocação de postes em cimento;

d) Que para alcançar a via pública, a partir do prédio identificado em 1), o A. atravessa o prédio dos R.R. a nascente, a sul e ainda a poente;

e) Que o prédio identificado em 1) esteve durante mais de 15 anos votado ao abandono, sendo que só há cerca de 4 ou 5 anos o A. começou a deslocar-se ali esporadicamente;

f) Eliminado pelo Tribunal da Relação

g) Que a passagem do A. pelo caminho referido em 7), 8) e 9), impossibilita que os R.R. destinem o prédio identificado em 4) à sua urbanização, para o qual o mesmo tem aptidão.

h) Que o valor médio do metro quadrado de terreno para construção na localidade de ... ascende a 15 Euros.

B – O Direito

I - Da nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia

1. Os recorrentes vêm arguir a nulidade do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, alegando que o mesmo padece do vício de excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, d), 2.ª parte, do Código de Processo Civil.

Para fundamentar a nulidade assim arguida, os recorrentes alegam, conforme se transcreve, que:

“(…) o douto acórdão recorrido afasta a pretensão reconvencional dos recorrentes por entender que o seu prédio (artigo 137) dá acesso não só ao prédio do recorrido (artigo 136) como também a outros dois prédios (artigos 134 e 135), pertença de terceiros estranhos à lide, sem que tal facto tenha sido considerado provado ou não. (…)

E é este entendimento e conclusão com que os recorrentes não se conformam.

A ação foi proposta, única e exclusivamente e no seu próprio interesse pelo recorrido AA, a fim de ser reconhecida a constituição uma servidão de passagem por usucapião a favor do seu prédio (artigo 136), onerando o prédio dos recorrentes (artigo 137).

E foi dessa petição que os recorrentes se defenderam e foi contra o recorrido que foi deduzida uma reconvenção para efetuar a mudança da servidão.

Contudo, o Tribunal de Lisboa considerou que estes últimos prédios também eram dominantes, sem que os proprietários destes tenham vindo demonstrar o seu encravamento e peticionar ao tribunal a constituição de um direito de passagem como estatui o artigo 1550.º do Código Civil.”.

Para se compreender o pedido de nulidade por excesso de pronúncia, importa primeiro descrever a decisão do acórdão recorrido em relação à servidão legal de passagem constituída por usucapião pelo autor e seus familiares, avós e pais. O Tribunal da Relação tendo reconhecido a existência desta servidão, tal como a sentença do tribunal de 1.ª instância, entendeu, todavia, que, por equiparação da mesma a uma servidão legal de passagem a favor de prédio encravado, o local desta podia ser alterado para outro caminho que menos onerasse os proprietários do prédio serviente, assim criando a possibilidade de declarar a procedência da reconvenção dos réus, que, apesar de terem contestado a existência da servidão constituída por usucapião, pediram, em reconvenção, a constituição de uma servidão legal de passagem a favor do prédio do autor noutro caminho do seu prédio.


Todavia, o acórdão recorrido entendeu não atribuir nenhum efeito prático ao regime jurídico do artigo 1568.º, apesar de o considerar, em abstrato, aplicável ao caso dos autos e concluiu que a posição dos próprios Réus ficava prejudicada porque a servidão de passagem dos autores, cuja modificação os réus pretendem, serve também outros prédios dominantes, seguindo a seguinte orientação, conforme o seu sumário:

«7. No caso, o caminho existente servia pelo menos 3 prédios dominantes encravados, sendo que a alteração da servidão de passagem proposta pelo titular do prédio serviente, causava-lhe menor prejuízo, porquanto o novo caminho ocuparia uma área inferior e situava-se numa estrema do seu prédio, deixando consequentemente a serventia de passar pelo meio da sua propriedade.

8. No entanto, constatando-se que esse novo caminho proposto não permitiria assegurar a acessibilidade à via pública a 2 dos prédios dominantes, falha o requisito para a possibilidade mudança de servidão, tal como pretendida, relativo a verificar-se que essa alteração não viria a prejudicar os interesses dos proprietários dos prédios dominantes (Art. 1568.º n.º 1 do C.C.)».

                

O acórdão recorrido acaba por declarar a improcedência da reconvenção e não decretar a modificação do local da servidão, por entender que havia outros dois prédios, que estavam encravados e que beneficiavam também de servidão legal de passagem sobre o terreno referido nos pontos 7, 8 e 9 dos factos provados, pelo que, atendendo aos interesses destes sujeitos, não ordenou a modificação da servidão do autor para outro local.

3. Entendem os recorrentes que tal tese não pode ser admitida por violação do princípio do contraditório (artigo 3.º do CPC), pois não foi invocada pelo autor na petição inicial.

4. Dispõe o artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC que “É nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”.

A nulidade assim prevista está diretamente relacionada com o artigo 608.º, n.º 2, do CPC, segundo o qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”

Como é, de modo reiterado, afirmado pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, a nulidade por excesso de pronúncia apenas se verifica quando o juiz extravase o conhecimento das «questões» submetidas pelas partes ao seu escrutínio, isto é, quando decide para além dos pontos essenciais de facto ou direito em que as partes fundamentam as suas pretensões.  

Como se afirma no Acórdão de 13-10-2020 (proc. n.º 92/14.4.T8CHV-A.G1.S1), «1. A violação do princípio do contraditório do art. 3º, nº 3 do CPC dá origem não a uma nulidade processual nos termos do art. 195º do CPC, que origina a anulação do acórdão, mas a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronúncia, nos termos arts. 615º, nº 1, al. d), 666º, n.º 1, e 685º do mesmo diploma».

         

5. Tendo em conta as considerações expostas, e analisando a fundamentação expendida no acórdão recorrido a propósito da pretensão de mudança da servidão de passagem constituída a favor do autor, ora recorrido, constata-se que o acórdão recorrido baseou a sua decisão em elementos que não encontram respaldo no elenco da matéria de facto provada e não provada.

Com efeito, ao apreciar a problemática suscitada pelos recorrentes, o tribunal recorrido tomou posição sobre a impossibilidade de operar a mudança da servidão com base nos seguintes factos:

- “no caso dos autos, a serventia em causa não serve apenas o prédio do A. – cf. consta da cópia do levantamento topográfico de fls. 18, o caminho atravessa o prédio dos RR. e dá acesso aos prédios encravados a que correspondem os artigos 136 (que é o prédio do A.) e 135, que pertence a um terceiro;

- O caminho continua até ao prédio 134, que está igualmente encravado e pertence a outras pessoas – ... e GG (que foram ouvidos como testemunhas).

6. Atendendo a tais factos o acórdão recorrido escreve o seguinte:

Portanto, este caminho serve pelo menos 3 prédios dominantes, sendo que a serventia proposta pelos RR. que ficaria na estrema poente do seu prédio, apesar de ter uma implantação que poderia causar menor prejuízo aos titulares do prédio onerado, por fazer um percurso mais curto e mais a direito, ocupando, portanto, uma área menor, não lograria garantir que os proprietários dos prédios a que correspondem os artigos 135 e 134 pudessem continuar a ter acesso à via pública. Logo, falha o requisito da mudança pretendida “não prejudicar os interesses do(s) proprietário(s) do(s) prédio(s) dominante(s)” (artigo 1568.º, n.º 1 do CC). E isso é quanto basta para se concluir que a reconvenção deve improceder, quer quanto ao pedido de constituição de uma servidão legal diferente da existente, quer quanto ao pedido de indemnização pelo valor do prejuízo decorrente da constituição dessa nova servidão.

Na verdade, mesmo que se estabelecesse a nova serventia a favor do A., tal como sugerido pelos RR., daí não resultaria a conclusão necessária de que a servidão antiga devesse ser extinta, na medida em que beneficia os prédios inscritos na matriz predial rústica sob os artigos 134 e 135. Ou seja, haveria sempre de considerar o risco do prédio dos RR. ficar onerado com 2 servidões e, portanto, nem sequer era seguro a conclusão de que essa alteração se traduzisse num benefício efetivo para os titulares do prédio serviente.”

7. Neste contexto, consideramos que esta questão não integra o objeto do processo tal como delimitado pelas partes e, por isso, não pode relevar para o efeito de saber se é ou não procedente a pretensão dos Réus de mudança de local da servidão.

Os titulares dos outros prédios confinantes (dominantes) não são parte nem intervenientes nesta ação (nem têm de ser, uma vez que não existe, quanto a eles, qualquer situação de litisconsórcio). Por outro lado, não houve contraditório em relação a esta questão, que não foi alegada pelos autores na petição inicial, nem foi incluída nos temas de prova, não se tendo produzido prova sobre tais factos que, por isso, nem integram a matéria de facto provada.

O que se discute na presente ação é apenas a servidão que opõe o Autor aos Réus, não sendo suscetível de ponderação, nesta sede, outros interesses que não os das partes oponentes no presente litígio. Aliás, nada impediria que os Réus na hipótese de virem a lograr, na presente ação, alterar o local da servidão que serve o prédio do Autor, pudessem, em ação própria para o efeito, instaurada contra os demais titulares dos prédios dominantes que dela continuam a beneficiar, peticionar a modificação dessa servidão ou até a sua extinção. Tais questões, porém, não são suscetíveis de conhecimento por este tribunal, uma vez que extravasam manifestamente o objeto do presente litígio.

         

Assim, não estando a factualidade assim considerada pelo tribunal recorrido elencada na matéria de facto, nem tendo sido alegada pelas partes, nem sobre ela incidido   prévio contraditório, estamos perante uma nulidade por excesso de pronúncia.

 

Verifica-se, pois, um excesso de pronúncia quanto aos factos suscetíveis de serem conhecidos para efeito de tomada de decisão quanto a esta matéria, sendo que o tribunal atende, para além disso, a interesses de terceiros que não são intervenientes na ação (os proprietários dos prédios identificados sob os números 134 e 135) e que não serão, por isso, afetados pela decisão a proferir nesta sede (o que significa que a servidão que eventualmente exista a favor dos seus prédios não sofre qualquer modificação por força do que vier a ser decidido no presente processo).

8. Pelo exposto, entendemos ser de proceder a arguição de nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia, nesta parte, com fundamento no artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do CPC.

9. Ao abrigo do disposto no artigo 684.º, n.º 1, do CPC, que consagra o sistema de substituição face ao tribunal recorrido, para a nulidade por excesso de pronúncia, importa suprir essa nulidade e declarar em que sentido a decisão deve considerar-se modificada. Em consequência, tendo em conta a nulidade da parte do acórdão recorrido em que se considerou a existência de outras servidões de passagem sobre o mesmo terreno, não será considerada na decisão a tomar o impacto da mudança de local invocada para outros prédios encravados com servidões sobre o prédio dos réus.

10. Suprida a nulidade, importa, pois, decidir a questão da suscetibilidade de aplicação do artigo 1568.º do Código Civil à servidão destes autos e no caso de a resposta ser afirmativa, saber se procede ou não a modificação da servidão de passagem constituída por usucapião para outro local, de acordo com os requisitos fixados no citado preceito. Se tal modificação da servidão for possível, pode proceder a reconvenção dos réus porque a existência de outras servidões de passagem a favor de outros prédios, por não constar da matéria de facto provada, nem ter integrado a causa de pedir, não pode ser um critério usado para fundamentar a manutenção da servidão de passagem dos autores tal como constituída pela posse usucapiente destes e seus antecessores. 

II - Da aplicabilidade do artigo 1568.º do Código Civil às servidões de passagem constituídas por usucapião e dos requisitos da mudança de local da servidão

         

11. A questão crucial destes autos traduz-se em saber se o prédio do autor beneficia de uma servidão de passagem constituída por usucapião sobre o caminho referido em 7), 8) e 9) dos factos provados – a pretensão do autor –, ou se, pelo contrário, deve ser constituída uma servidão legal de passagem sobre o caminho referido em 15) dos factos provados – a pretensão dos réus deduzida na reconvenção. Estes, reconhecendo que o prédio do autor se encontra na situação de encravado (facto provado n.º 6), sem acesso à via pública a não ser através de prédio alheio, defendem que se deve constituir uma servidão legal de passagem sobre outro caminho do prédio dos réus, solução menos onerosa para estes, de forma a que o terreno sobre o qual o autor invoca uma servidão por usucapião possa ficar livre de ónus para o seu projeto de construção de uma clínica veterinária (facto provado n.º 18).

         

12. Em consequência da declaração de nulidade da decisão, por excesso de pronúncia, a questão essencial sob análise é, pois, a de saber se estão verificados os pressupostos legais para alterar a localização da servidão de passagem reconhecida nos autos para local mais conveniente para os ora recorrentes.

A apreciação desta problemática pressupõe, por sua vez, que se analise a questão de saber se é legalmente admissível proceder à modificação de uma servidão de passagem constituída por usucapião (como é o caso da servidão de passagem em causa nos autos), i.e. se a esta servidão é aplicável o regime previsto no artigo 1568.º, n.º 1, do Código Civil. Esta questão é suscitada pelos recorridos em sede de pedido de ampliação do recurso de revista e seria de conhecer a título subsidiário. Sucede, porém, que se torna necessário conhecer desta questão prévia para que possamos decidir o pedido formulado pelos recorrentes de alteração da servidão.

         

13. Dispõe o artigo 1568.º, n.º 1, do Código Civil que “O proprietário do prédio dominante não pode estorvar o uso da servidão, mas pode, a todo o tempo, exigir a mudança para sítio diferente do primitivamente assinado, ou para outro prédio, se a mudança lhes for conveniente e não prejudicar os interesses do prédio dominante, contando que o faça à sua custa; com o consentimento de terceiro pode a servidão ser mudada para o prédio deste.”.

         

14. Ambas as instâncias reconheceram que o autor beneficia de uma servidão de passagem constituída por usucapião em relação ao prédio do réu.

O Tribunal da Relação apenas diferiu do tribunal de 1.ª instância na dimensão da servidão, largura e comprimento, bem como na natureza jurídica dessa servidão constituída por usucapião, que, dada a situação de encravado do prédio dominante (dos autores), entende tratar-se de uma servidão legal e sujeita ao regime das servidões legais constituídas a favor de prédio encravado, portanto, modificáveis para outros locais do prédio serviente de forma a onerar menos os proprietários do prédio serviente.

A abordagem doutrinária a que procedeu foi distinta, o que é suscetível de conduzir a resultados distintos quanto à possibilidade de modificação da servidão para outro local que onerasse menos o prédio serviente, ao abrigo do artigo 1568.º do Código Civil.

É que o tribunal de 1.ª instância entendeu que, provada a existência da servidão de passagem por usucapião a favor de um prédio encravado, como era o caso do prédio do autor, esta servidão não segue o regime jurídico das servidões legais constituídas por direito potestativo (artigo 1550.º, n.º 1, do Código Civil). Ou seja, no caso vertente não haveria lugar à constituição de uma servidão legal de passagem a favor de prédio encravado noutro local, que causasse menos prejuízo aos réus, titulares do prédio serviente, nos termos do artigo 1553.º do Código Civil, nem à aplicabilidade do regime do artigo 1568.º, n.º 1, do Código Civil, à servidão de passagem constituída por usucapião, limitando-se a sentença a declarar judicialmente a sua pré-existência.

 

Veja-se o seguinte excerto da sentença recorrida:

«A peculiaridade do caso é que já existe uma servidão de passagem, constituída por usucapião, conforme se concluiu acima.

Ou seja, ao passo que a servidão legal de passagem só se poderia ter por constituída com a decisão judicial que viesse a ser proferida nestes autos, a servidão de passagem com fundamento na usucapião já existe e apenas merece ser reconhecida, porquanto, a aquisição do direito por usucapião retroage os seus efeitos à data do início da posse, cfr. artigo 1288º do Cód. Civil.

Perfilhando a fundamentação expendida no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24-02-2015, proferido no processo nº 357/13.3TBTND.C1 e relatado por Henrique Antunes (disponível in www.dgsi.pt), «Quer dizer, o regime da servidão legal de passagem não é aplicável por ausência de encrave, sempre que se constitua uma servidão por destinação do pai de família ou sempre que, posteriormente, seja invocada a servidão bastante, com fundamento numa posse anterior. Seja como for, a constituição da servidão por usucapião, não pode ser considerada voluntária, em paralelo com a constituição por negócio jurídico: na usucapião, a servidão é imposta por uma parte à outra. Esta forma de constituição da servidão não origina, pois, servidões legais. Assim, por exemplo, o regime próprio das servidões legais de passagem – v.g. o relativo ao encrave do prédio – não se aplica, em nenhum dos seus pontos, às servidões constituídas por usucapião ou por destinação do pai de família. Estas servidões, não gozando do regime das servidões legais, não são elas próprias servidões legais. A existência de encrave, absoluto ou relativo, é requisito da servidão legal de passagem. Todavia, se a servidão se dever ter por constituída por usucapião, não estamos face a uma servidão legal. (…) quando esteja constituída uma servidão por usucapião não há nada que permita operar distinções, consoante haja ou não prédio encravado. A usucapião tanto pode ser invocada pelo beneficiário encravado como pelos restantes: em ambos os casos tem exactamente os mesmos efeitos.».

(…)

 

Diferentemente o acórdão recorrido entendeu que o regime das servidões legais se aplica às servidões constituídas por usucapião, bem como a extinção das mesmas por desnecessidade (artigo 1569.º do Código Civil), e por maioria de razão, a sua modificação, ao abrigo do artigo 1568.º do Código Civil, norma que considera imperativa e de aplicabilidade geral a todas as servidões.

         

Veja-se o seguinte excerto do acórdão recorrido:

«Nós já tivemos oportunidade de expressar a nossa posição sobre a conclusão de que a servidão de passagem existente no local desde os tempos dos avós do A. tinha por finalidade a satisfação da necessidade de acesso desse seu prédio à via pública e, portanto, correspondia integralmente ao cumprimento do propósito legal estabelecido no Art. 1550.º n.º 1 do C.C., considerando que a propriedade do A. se encontrava objetivamente encravada.

Portanto, estamos perante uma servidão que, independentemente de ter sido constituída por usucapião, sempre corresponderia à satisfação do direito potestativo do A. previsto no Art. 1550.º n.º 1 do C.C. e, por isso, é objetivamente uma “servidão legal” no sentido já supra esclarecido. Isto porque, se esse caminho não existisse de facto, como de facto existe, sempre teria de ser constituída uma serventia semelhante, de forma coerciva por decisão judicial.

É certo que a aquisição por usucapião do direito de passagem não é automática, mas sim potestativa, dependendo da iniciativa do possuidor, pois o Art. 1287.º do C.C. define-a como uma “faculdade”. No entanto, uma vez exercida essa faculdade, a usucapião tem efeitos retroativos à data do início da posse (cfr. Art. 1288.º do C.C.), pelo que tudo funciona como se o direito de passagem sempre tivesse existido desde essa data, nos termos reconhecidos pela sentença judicial. Em consequência, existe uma servidão de passagem desde o tempo em que os avós do A. utilizavam esse caminho e o prédio deste deixou de estar encravado em função da existência dessa concreta acessibilidade.

O problema que agora se coloca é o de saber se, tendo a servidão legal sido constituída por usucapião, não pode a mesma ser alterada, nos termos do Art. 1568.º, porque às mesmas não pode ser aplicável o regime geral das “servidões legais”».

(…)

«Quanto a este último aspeto, diremos apenas que, as servidões prediais que respeitem os pressupostos do Art. 1550.º n.º 1 do C.C., mesmo que objetivamente constituídas por usucapião, são sempre “servidões legais” no sentido supra exposto, mesmo que se possa discutir se estão integralmente subordinadas ao seu regime jurídico típico. Assim é, porque sobre a sua constituição paira sempre a possibilidade de, de todo o modo, serem coativamente imposta por força do exercício do direito potestativo previsto nesse normativo legal. (…)

Por outro lado, no caso concreto dos autos, não se pode dizer que não existisse um prédio encravado, não fora a circunstância de se ter constituído uma servidão (por usucapião), portanto a questão da possibilidade de aplicação do Art. 1550.º n.º 1 do C.C. nunca estaria excluída.

Finalmente, uma servidão constituída por usucapião pode ser declara extinta por decisão judicial, desde que se demonstre ser desnecessária ao prédio dominante (cfr. Art. 1569.º n.º 2 do C.C.), sendo que o que está em causa nesta ação é a possibilidade de mudança dessa servidão, nos termos previstos no Art. 1568.º do C.C. (…). Ora, este Art. 1568.º parece assumir um caráter imperativo, pois o n.º 4 do mesmo estabelece que: «As faculdades conferidas neste artigo não são renunciáveis nem podem ser limitadas por negócio jurídico».

  

A sentença seguiu a tese que defende que às servidões constituídas por usucapião não é aplicável o regime geral das servidões legais, e que os titulares do prédio serviente não podem exigir a mudança da servidão para outro local, ao abrigo do artigo 1568.º, n.º 1, do Código Civil.

Já o acórdão recorrido considerou que, uma vez que a servidão em causa nos autos respeita os pressupostos de facto previstos no artigo 1550.º do Código Civil – o encrave do prédio (facto provado n.º 6) – mesmo que tenha sido objetivamente constituída por usucapião, não deixará de ser uma servidão “legal”.  Assim, pode ser aplicado às servidões constituídas por usucapião o regime geral das servidões legais, inclusive o artigo 1568.º do Código Civil.

Quid iuris?

15. Servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente. Diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia (artigo 1543º do Código Civil).

A servidão pressupõe necessariamente dois imóveis, pertencentes a sujeitos distintos, entre os quais se estabelece uma relação que beneficia um deles. Os prédios dominante e serviente devem, por isso, pertencer a pessoas diferentes, regra que já vigorava no Direito Romano com o princípio nemini res sua servit.

As servidões apresentam-se como um elemento essencial da organização jurídica da propriedade imobiliária. Constituem um instrumento técnico para facilitar a exploração das terras e o uso dos prédios, aumentando a utilidade económica dos bens, através da afetação de um bem ao serviço de outros.

Nas palavras de Menezes Cordeiro (Direitos Reais, Lex, Lisboa, 1979, p. 724), a servidão amplia as qualidades naturais do prédio dominante.  Diz-se, pois, que é uma relação imobiliária, de base real, e reforçada pelo princípio da inseparabilidade previsto no artigo 1545.º do Código (cfr. Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, Coimbra Editora, 1993, p.  488).

A circunstância de a definição legal – quase ipsis verbis a que constava do artigo 2267.º do Código de Seabra – acentuar o caráter real e não pessoal da relação jurídica em causa, explica-se por uma razão histórica que foi a de afastar qualquer analogia com as servidões pessoais do Antigo Regime (cfr. Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 2.ª edição, revista e aumentada, pp. 189-190). Mas não significa, como é evidente, que se trate de uma relação jurídica entre coisas, o que seria absurdo, estabelecendo-se a relação de servidão predial entre os titulares dos prédios em causa, sendo essa relação mediada pela utilização do prédio. O que a legislador pretendeu com esta formulação legal foi, como salientou Pires de Lima (“Servidões Prediais”, in BMJ, n.º 64, março 1957, p. 6), atribuir o devido relevo ao estado de inerência ou sujeição económica dum prédio em relação a outro.

Nos termos do artigo 1544.º do Código Civil, que consagra o princípio do numerus apertus das servidões, podem ser objeto de uma servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, suscetíveis de serem gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor. O prédio que beneficia de uma servidão – por exemplo, de passagem, do direito do aproveitamento de certas águas ou da faculdade de utilização de matérias-primas produzidas no prédio vizinho – valerá, em princípio, mais do que o prédio desprovido destes atributos. Mas não é essencial ao conceito de servidão que a utilidade por ela proporcionada se traduza num acréscimo de valor para o prédio dominante.

A servidão, qualquer que seja a sua fonte constitutiva (contrato, testamento, usucapião, destinação do pai de família, sentença ou decisão administrativa – artigo 1547.º do Código Civil), exprime uma limitação ao direito de propriedade do prédio que com ela é onerado (prédio serviente) em favor do prédio que dela beneficie (prédio dominante).

Com a proteção do direito real de gozo de servidão, a lei pretende satisfazer interesses vários, que justificam a admissibilidade de restrições ao direito de propriedade plena, o qual assume, através dos direitos reais limitados, uma função social ou comunitária relevante, sobretudo nas situações de vizinhança, desde que verificados os requisitos específicos previstos na lei.

As servidões podem ser legais (artigos 1550.º a 1556.º do Código Civil), aquelas que podem ser coativamente impostas também designadas por servidões coativas ou judiciais, ou voluntárias, constituídas no âmbito da autonomia da vontade, por contrato ou por testamento (artigo 1547.º, n.º 2, do Código Civil).

As servidões constituídas por destinação do pai de família constituem-se no preciso momento em que os prédios ou as frações de determinado prédio passam a pertencer a proprietários diferentes, o que não equivale a dizer que a servidão resulta de uma declaração negocial. Estas servidões assentam num facto voluntário (a colocação do sinal ou sinais aparentes ou permanentes) e por isso a doutrina considera-as servidões voluntárias (cfr. Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, ob. cit., p. 635). 

A aquisição das servidões por usucapião (válida para todas as servidões com exceção das não aparentes) dá-se nos termos do artigo 1287.º e seguintes do Código Civil e estas servidões são também consideradas servidões voluntárias.

Há que precisar que as servidões legais (ou coativas) podem ser constituídas por acordo e têm, neste caso, fonte contratual, não deixando, contudo, de ser servidões legais. Verificando-se os pressupostos que permitem impor uma servidão legal, a servidão que se constituir deve ser considerada legal, mesmo que não tenha sido coativamente imposta. Isto mesmo resulta do n.º 2 do artigo 1547.º do Código Civil, quando afirma «As servidões legais, na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa, conforme os casos». Idêntica posição decorre do artigo 1569.º, n.º 3, do Código Civil, que prevê a extinção por desnecessidade das servidões legais, «qualquer que tenha sido o título da sua constituição». Por outro lado, as servidões constituídas por facto voluntário sempre terão os efeitos jurídicos desses factos determinados pela lei.

Estas categorias de servidões – legais e voluntárias – não são, pois, categorias opostas. 

A marca distintiva da servidão legal ou coativa em relação às restantes servidões reside apenas na sua suscetibilidade de imposição através do exercício de um direito potestativo constitutivo que se impõe à contraparte. Depois de exercido o poder potestativo constitui-se, então, uma verdadeira servidão enquanto direito real de gozo.

         

 

16. No caso vertente, provada a existência de uma servidão de passagem constituída por usucapião (factos provados 7 a 10), importa determinar se esta servidão pode ou não mudar para outro caminho, de molde a permitir, por um lado, resolver a situação de encrave do prédio dominante, e, por outro, causar menores danos ao prédio serviente.

A propósito desta controvérsia, na doutrina, destaca-se a posição Menezes Cordeiro, que, embora não afaste expressamente a aplicabilidade do artigo 1568.º, n.º 1,  do Código Civil às servidões constituídas por usucapião, parece secundar uma tal posição, concluindo no seu “Parecer sobre servidões legais e direito de preferência” (in CJ, ano XVII – 1992, Tomo I, págs. 65-80.) que «As servidões constituídas por usucapião e por destinação do pai de família, dada a natureza não voluntária destas figuras, não podem originar, nos termos do art. 1547.º, n.º 2, do C. Civil, a constituição de servidões legais» (…) as servidões constituídas por usucapião ou por destinação do pai de família não são, nem genericamente, nem pelo seu regime, servidões legais” e  “o regime próprio das servidões legais de passagem firmado nos artigos 1550.º (prédio encravado), 1551.º (possibilidade de constituição), 1552.º (encrave voluntário), 1553.º (lugar da constituição), 1554.º (indemnização) e 1569.º, n.º 3 (extinção), não se aplica, em nenhum dos seus pontos, e por razões várias e confluentes, às servidões constituídas por usucapião ou destinação do pai de família”.

Depreende-se da posição do autor que este defende a proteção da manutenção da servidão de passagem constituída por usucapião tal como decorre dos sinais visíveis e permanentes que a revelam, sem possibilidade de extinção por desnecessidade ou de modificação para atender aos interesses do titular do prédio serviente.

Com efeito, entende o autor que a servidão de passagem constituída por usucapião (tal como a servidão por destinação do pai de família) retroage à data do início da posse e seguirá pelo lugar pré-determinado pela posse ou pelos sinais visíveis e permanentes, não se podendo falar de prédio encravado. Assim, não se lhes aplica o regime das servidões legais, por falta de encrave.

As formas de extinção próprias das servidões legais aplicam-se às servidões constituídas por usucapião apenas por existir uma norma própria e autónoma que as equipara às servidões legais para o efeito de extinção por desnecessidade – o artigo 1569.º, n.º 2, do Código Civil. Deduz-se, pois, da posição assumida por Menezes Cordeiro que as servidões de passagem constituídas por usucapião não podem ser objeto de mudança para outro local, nos termos do artigo 1568.º, n.º 1, do Código Civil.

Já Oliveira Ascensão (ob. cit., p. 498) entende que o artigo 1568.º se aplica a todas as servidões e que a norma tem natureza imperativa.

No mesmo sentido, Pires de Lima/Antunes Varela (Código Civil Anotado, Volume II (Artigos 762.º a 1250.º), 4.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, pp. 672-673), entendem que o artigo 1568.º do Código Civil se aplica a toda e qualquer servidão, seja qual for o título da sua constituição, quer se trate de servidões voluntárias, quer de servidões legais na esteira do que foi defendido por Guilherme Moreira (cfr. Pires de Lima/Antunes Varela, ob. cit., p. 672). Acrescentando ainda estes últimos autores que: «(…) tratando-se de um poder legal, não se extingue com o seu exercício, podendo qualquer dos proprietários formular novos pedidos de mudança de servidão, sempre que, em consequência de alteração de circunstancialismos objetivos, se verifiquem os pressupostos indicados nos n.ºs 1 e 2 do artigo 1568.º (vide as atas da Comissão Revisora. Bol. Cit., págs. 139 e 140)». Aderindo a esta posição, v. também Isabel Meneres Campos (in Comentário ao Código Civil, Direito das Coisas, Anotação ao artigo 1568.º do Código Civil, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2021, p. 737).

17. No artigo 1568.º, n.º 1, do Código Civil, a lei permite ao proprietário serviente exigir a mudança da servidão para local diferente, à sua custa, se o proprietário do prédio dominante não for prejudicado. Trata-se de uma solução legal, cujo fundamento assenta em razões de equidade, e que constitui uma forma de obter uma justa composição de interesses ou uma concordância prática entre interesses e direitos opostos. O recurso a esta solução legislativa, na falta de indicação do legislador, não deve ser limitado pelo intérprete, pois prossegue objetivos de proporcionalidade e equilíbrio sempre importantes para as decisões judiciais e para a paz social.

O princípio geral em matéria de servidões, constante do artigo 1565.º, n.º 2, do Código Civil, é o do melhor aproveitamento económico possível, quer do prédio dominante, quer do prédio dominado (cfr. Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Lex, Lisboa, 1979, p. 730). Como corolário deste princípio o titular do prédio serviente pode exigir a mudança da servidão para local diferente desde que não prejudique o dominante (artigo 1568.º, n.º 1, do Código Civil). De igual modo, pode também o titular do prédio dominante promover essa mudança se daí lhe advierem vantagens e não se prejudicar o titular do prédio serviente (artigo 1568.º, n.º 2, do Código Civil). Estas faculdades são irrenunciáveis (cfr. Menezes Cordeiro, Direitos Reais, ob.cit, p. 730).

         

18. Tudo ponderado, julgamos que bem andou o acórdão recorrido admitindo a aplicabilidade do artigo 1568.º do Código Civil à servidão dos autos e sumariando a seguinte orientação:

«5. Uma servidão de passagem, independentemente de ter sido constituída por usucapião, que corresponda à satisfação do direito potestativo previsto no Art. 1550.º n.º 1 do C.C., é objetivamente uma “servidão legal”, porque se essa serventia não existisse de facto, sempre teria de ser constituída de forma coerciva por decisão judicial.

6. Permitindo a lei a possibilidade de extinção da servidão de passagem constituída por usucapião, por desnecessidade (Art. 1569.º n.º 2 do C.C.), também não existem motivos relevantes para afastar a possibilidade de alteração dessa servidão, tendo em conta o caráter injuntivo do Art. 1568.º do C.C., por força do n.º 4 desse preceito».

Assim, subscrevemos a tese, segundo a qual, se a lei prevê expressamente a hipótese de extinção, por desnecessidade, da servidão constituída por usucapião, no n.º 2 do artigo 1569.º do Código Civil, nos termos do qual «As servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante», por maioria de razão permitirá a sua modificação para outro local. Trata-se do argumento lógico em que se baseia a interpretação enunciativa, segundo o qual, a lei que permite o mais, também permitirá o menos.  

A desnecessidade é uma causa de extinção privativa das servidões adquiridas por usucapião e das servidões legais, qualquer que seja, quanto a estas, o seu título de aquisição (cfr. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Iuris, Lisboa, 2009, p. 474).  

Como se afirma  no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05-05-2015 (Proc. n.º 237/07.8TBENT.E1.S1), «O objectivo da lei é o de reunir numa mesma pessoa as faculdades que, contidas no direito de propriedade plena, se encontravam repartidas entre diversos titulares, pois a situação de divisão comporta, com frequência, um aumento dos conflitos. Contudo, a lei também admite uma função social da propriedade nas relações de vizinhança, pelo que há que proceder a uma ponderação de valores no juízo de desnecessidade, que só opera quando o dono do prédio serviente demonstre a perda de qualquer utilidade, não bastando a diminuição das utilidades proporcionadas pela servidão».        

Mesmo em relação à servidão por destinação do pai de família, não contemplada expressamente no artigo 1569.º, n.º 2, do Código Civil, a doutrina tem defendido que a extinção da servidão por desnecessidade também lhe é aplicável   (cfr. Rita Valente Ribeiro e Castro Teixeira, Da extinção por desnecessidade das servidões  por destinação do pai de família, Dissertação de mestrado, Orientação de Maria Clara Sottomayor, Universidade Católica Portuguesa, 2012, Porto, disponível para consulta in https://repositorio.ucp.pt/handle/10400.14/15794).

Há que considerar, na interpretação das normas relativas à extinção por desnecessidade das servidões, que estas constituem um encargo excecional sobre o prédio serviente e que não é justo nem equitativo, comprovada a desnecessidade da servidão, manter onerado o prédio serviente. O mesmo raciocínio deve ser aplicado à modificação da servidão. Se há outro caminho no prédio serviente que onera menos o titular deste e que permite ao titular do prédio dominante executar a passagem que lhe confere acesso à via pública, sem prejuízos, não se descortinam razões que justifiquem a inaplicabilidade do artigo 1568.º do Código Civil à servidão de passagem constituída por usucapião.

Com efeito, deve entender-se como mais adequado à realidade social e económica a aplicabilidade do regime jurídico da alteração da servidão a toda e qualquer servidão de passagem, independentemente do respetivo modo de constituição, para além de que o n.º 4 do artigo 1568.º do Código Civil aponta, de forma inequívoca, para a natureza imperativa deste preceito legal ao afirmar que «As faculdades conferidas neste artigo não são renunciáveis nem podem ser limitadas por negócio jurídico».

         

19. Seguindo esta posição, cumpre, pois, decidir do pedido de alteração da servidão tal como formulado pelos recorrentes em sede reconvencional.

A mudança da servidão está subordinada a dois requisitos: i) que se mostre conveniente ao dono do prédio serviente; ii) que não se prejudiquem os interesses do proprietário do prédio dominante.  

Não há dúvida que a mudança da servidão para o caminho referido em 15 dos factos provados mostra-se como mais conveniente para os titulares do prédio serviente, por se tratar de um caminho mais curto e mais a direito, que ocupa uma área menor, como reconheceu o acórdão recorrido. Já também a sua intenção de construírem uma clínica veterinária (facto provado n.º 18) no terreno referido nos pontos 7), 8) e 9) dos factos provados constitui um motivo de peso e de utilidade social, que deve ser ponderado.

Todavia, o aspeto decisivo é o de saber se a mudança da localização da servidão para o caminho referido em 15) prejudica os interesses dos autores, titulares do prédio dominante referido em 1) dos factos provados. O que conta para este efeito, como esclarecem Pires de Lima/Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 671), são os interesses dignos de ponderação, não a mera comodidade do titular da servidão.

Para decidir esta questão são aplicáveis critérios de proporcionalidade entre o grau de necessidade da diminuição do encargo sobre o prédio serviente, que deve corresponder a uma vantagem relevante para o titular deste prédio, e o prejuízo que a mudança da servidão acarreta para o prédio dominante. Frisa Isabel Meneres Campos (ob. cit., p. 738), “(…) que o interesse dos proprietários dos prédios não se encontram numa situação de paridade, nem se exige que haja prejuízos sérios e graves para o proprietário do prédio dominante para justificar a ilicitude da mudança de servidão”.

20. Para o efeito, importa analisar os factos provados seguintes:

«20) O caminho referido em 15), à saída para a Rua ..., não tem tanta visibilidade para a circulação automóvel para poente quanto o caminho referido em 7), 8) e 9), mas permite executar essa manobra para ambas as direções.

21) O caminho referido em 7), 8) e 9), à saída para a Rua ..., é mais difícil para a circulação rodoviária no sentido nascente, devido a ser formado por uma curva, seguida de contracurva.

22) O caminho referido em 15), tem uma inclinação mais acentuada que o caminho referido em 7), 8) e 9), sendo menos adequado para o trânsito de veículos com reboque e de transporte de cargas elevadas.

22-A) O caminho referido em 15) permite o trânsito de veículos do tipo trator agrícola ou florestal, com ou sem reboque, e máquinas destinadas a utilização agrícola ou florestal (Facto aditado pelo Tribunal da Relação).

23) O caminho referido em 15) permite a circulação de pessoas e animais, carecendo de obras de pavimentação com tout venant, com 0,2 de espessura, para o tornar viável para a circulação adequada a outros tipos de veículos automóveis, sendo que a terraplanagem necessária para a sua construção agravará as condições de escoamento das águas pluviais no prédio identificado em 1) (Facto alterado pelo Tribunal da Relação)

24) O caminho referido em 15) tem ligação com uma rua da povoação situada a poente, que é de acentuado declive e deficiente drenagem, o que facilita que as águas pluviais provenientes do escoamento dessa rua se concentram no caminho e corram em direção ao prédio identificado em 1)».

         

21. Ora, desta enunciação de factos decorre que o caminho referido em 15 não permite o gozo das mesmas utilidades permitidas pelo caminho referido em 7, 8 e 9 dos factos provados, pois nele a circulação automóvel é mais difícil e é menos adequado para o trânsito de veículos com reboque e de transporte de cargas elevadas. Por outro lado, as obras no terreno referido em 15 para o efeito de tornar viável a circulação de automóveis, agravarão as condições de escoamento das águas pluviais no prédio identificado em 1), conforme consta dos factos provados n.º 16 e 23. Ademais, as vantagens que decorrem para os réus da desoneração do terreno referido em 7, 8 e 9 da servidão que atravessa o seu prédio e o divide a meio (facto provado n.º 19), não são tão relevantes como invocam, uma vez que não se demonstrou que a passagem do autor pelo caminho referido em 7), 8) e 9) impossibilitasse que os Réus destinassem o prédio identificado em 4) à sua urbanização (v. al. g) dos factos não provados : «Que a passagem do A. pelo caminho referido em 7), 8) e 9), impossibilita que os R.R. destinem o prédio identificado em 4) à sua urbanização, para o qual o mesmo tem aptidão».

22. Assim sendo, tudo ponderado, sobrelevam os prejuízos sofridos pelo autor com a mudança, em relação às alegadas vantagens decorrentes da mudança da servidão para os titulares do prédio serviente. 

Declara-se, pois, a manutenção da servidão de passagem do autor no terreno referido em 7), 8) e 9) dos factos provados, por falta de observância dos requisitos previstos no artigo 1568.º, n.º 1, do Código Civil, assim se atingindo o ponto de equilíbrio entre os titulares do prédio serviente e do prédio dominante.

 

IV - Da responsabilidade pelo pagamento das custas processuais por parte dos recorrentes

23. A sentença condenou o autor e os réus a pagar as custas da ação, fixando-se em 80% a parte que cabe solidariamente aos réus, e em 20% a parte que cabe ao autor; e os réus a pagar as custas da reconvenção na totalidade.  

O Tribunal da Relação determinou que, no recurso de apelação, as custas ficam a cargo dos apelantes. 

Pugnam estes, no recurso de revista, para que seja alterada a decisão tomada quanto à responsabilidade por custas uma vez que não obstante ter sido mantida a decisão tomada pelo tribunal de 1.ª instância, foi profundamente alterada a fundamentação de direito e a matéria de facto constante da decisão de 1.ª instância, o que é demonstrativo da pertinência e razão dos recorrentes.

           

24. Vejamos:

O princípio geral, em matéria de custas, é o de que o pagamento das custas judiciais cabe a quem ficou vencido, na proporção em que o for.

De acordo com o estatuído no n.° 2 do artigo 527.º do CPC, o critério de distribuição da responsabilidade pelas custas assenta no princípio da causalidade e, apenas subsidiariamente, no da vantagem ou proveito processual. Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. “Vencidos" são todos os que não obtenham na causa satisfação total ou parcial dos seus interesses.

Ora, os apelantes apesar de terem visto alguns dos seus argumentos serem procedentes no recurso de apelação, deram causa às custas do processo porque são a parte vencida na apelação, porque o tribunal recorrido veio a confirmar a sentença, não tendo os apelantes vistos os seus interesses satisfeitos, total ou parcialmente.

           

25. Assim, a circunstância de os apelantes terem tido sucesso na invocação de alguns argumentos/fundamentos nas suas alegações de recurso não releva para o efeito de determinar o vencimento e a distribuição de custas, se não houve repercussão desses fundamentos na decisão final, que acabou por confirmar, por outras razões, a sentença recorrida.  

26. Anexa-se sumário elaborado nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC:

I – A violação do princípio do contraditório do artigo 3º, nº 3 do CPC dá origem a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronúncia, nos termos artigos 615º, nº 1, al. d), 666º, n.º 1, e 685º do CPC.

II – Se a lei prevê expressamente a hipótese de extinção, por desnecessidade, da servidão constituída por usucapião, no n.º 2 do artigo 1569.º do Código Civil, por maioria de razão permitirá a sua modificação para outro local, verificados os requisitos do artigo 1568.º do Código Civil. Trata-se do argumento lógico em que se baseia a interpretação enunciativa, segundo o qual, a lei que permite o mais, também permitirá o menos.

III – A mudança da servidão está subordinada a dois requisitos: i) que se mostre conveniente ao dono do prédio serviente; ii) que não se prejudiquem os interesses do proprietário do prédio dominante.   

IV – Provado que o novo caminho, para onde se requer a mudança da servidão, apresenta maiores dificuldades quanto à circulação automóvel e quanto ao trânsito de veículos com reboque e de transporte de cargas elevadas, para além de necessitar de obras que agravarão as condições de escoamento das águas pluviais no prédio dominante, tem de se concluir que a mudança da servidão não permite o gozo das mesmas utilidades fornecidas pela servidão originária e causa prejuízos ao titular do prédio dominante.

 

       

III – Decisão

Pelo exposto, decide-se negar a revista e confirmar o acórdão recorrido, ainda que com outros fundamentos.

Custas da revista pelos recorrentes.


Supremo Tribunal de Justiça, 28 de fevereiro de 2023


Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto)

Maria João Vaz Tomé (2.º Adjunto)


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[1] No original constava “autor”, o que se atribui a lapso.