Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
085014
Nº Convencional: JSTJ00024383
Relator: COSTA RAPOSO
Descritores: SIMULAÇÃO DE CONTRATO
SIMULAÇÃO DE TRANSACÇÃO
NULIDADE DO CONTRATO
ILAÇÕES
Nº do Documento: SJ199406010850142
Data do Acordão: 06/01/1994
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N438 ANO1994 PAG456
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - TEORIA GERAL.
DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 240 ARTIGO 877 N1.
Sumário : I - Provado que, ao outorgarem numa escritura de doação, as partes não quiseram efectivamente realizar o negócio jurídico declarado, mas antes uma compra e venda,usando de tal artifício para enganar o autor que teria de dar o seu consentimento à compra e venda, ficando assim frustrado o seu direito, está-se perante um negócio simulado e, consequentemente, nulo.
II - Para que a Relação possa tirar ilações de facto, é necessário que não altere os factos provados e que aquelas traduzam a consequência lógica desses mesmos factos
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal da Justiça:
O autor A demandou, em acção com processo ordinário que interpos no Tribunal da Comarca de Ponta Delgada, os réus B e mulher C (pais do autor), D e mulher E (respectivamente irmão e cunhada do autor) e
F e G (sobrinhos do autor e filhos menores dos réus D e E e pediu que fosse julgada nula a doação a que respeita a escritura de 27 de Março de
1981 e a da sua rectificação feita por escritura de 18 de Novembro de 1982 e que, na Conservatória, se ordenasse o cancelamento dos registos relativos quer á doação, quer a rectificação; mais pediu se declarasse nula a doação que, em 20 de Fevereiro de 1984, os réus D e mulher fizeram a seus filhos F e G também demandados na acção.
Como causa pedir referiu que a doação de 27 de Novembro de 1981 foi simulada pois que se destinou a encobrir uma compra e venda que, efectivamente os réus A e C fizeram ao filho D, referindo que eles procederam assim porque, recorrendo ao negócio jurídico da doação, obviaram a que, na transferência do imóvel, interviesse o autor pois que ele teria de dar o seu consentimento (artigo 877 n.1 do Código Civil) se a alineação do terreno se operasse pela via do contracto de compra e venda.
E, quanto á segunda doação (do D aos filhos), articulou que ela foi efectuada com o objectivo de dificultar a posição do autor.
Só contestaram os réus D e mulher.
Após audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que julgou a acção procedente, tendo-se declarado nula e de nenhum efeito a doação de 27 de Novembro de 1981 e a sua rectificação de 18 de Março de 1982; foi anulada a compra e venda (negócio dissimulado e também foi declarada nula e de nenhum efeito a doação que, em 20 de Fevereiro de 1980 os réus D e mulher fizeram aos filhos F e G.
A ré E apelou e, na 2. instância, foi revogada a decisão recorrida.
O autor pediu revista do Acórdão e, em sua alegação apresentou as conclusões seguintes:
A - O negócio simulado - que é nulo - supõe a verificação cumulativa dos requisitos seguintes: Acordo simulatório; divergência intencional entre a vontade real e a vontade declarada e o intuito de enganar; na doação que os réus A e C fizeram ao filho D concorrem os três requisitos apontados e, por isso, esse negócio jurídico pode ser declarado nulo.
B - O negócio dissimulado (a escritura de compra e venda) feita entre os réus A e C como vendedores e o D, como comprador, e anulável e deve ser anulado porque o Autor pediu essa anulabilidade e tem legitimidade para isso dado que não deu o seu consentimento para tal venda, nem a falta do seu consentimento foi judicialmente suprida.
C - Os efeitos da anulação quer relativamente á compra e venda quer relativamente à doação retroagem à data da celebração de cada um desses negócios jurídicos e, por isso, afectam a validade da doação que os réus D e mulher fizeram aos seus filhos.
D - O Acórdão recorrido violou o disposto nos artigos
240 289 e 877 do Código Civil.
Não foram apresentadas contra alegações.
Corridos os vistos cumpre decidir.
As instâncias consideraram assente.
1 - O autor é filho dos réus A e C; ele é irmão do réu D (que, em 18 de Novembro de 1975, casou com a ré E); estes são pais dos réus F (nascido em 24 de Agosto de 1976 e G (nascido em 20 de Fevereiro de 1981).
2 - Por escritura de 27 de Novembro de 1981 os réus
A e C, por conta da quota disponível de seus bens, doaram ao réu D o prédio rústico com a área de 3125,65 metros quadrados, sito na freguesia da Relva, do Concelho de Ponta Delgada, e descrito na Conservatória respectiva sob o n. 49904; foi atribuído ao prédio o valor de 1300 contos.
3 - No dia 18 de Março de 1982 foi rectificada a escritura de doação referida no número anterior; os autorgantes desta escritura de rectificação declararam que a doação não tinha por objecto o prédio 49904, mas parte dele, parte essa constituída por 909,60 metros quadrados, metragem essa que era formada por uma parte da parcela um com a área de 64 metros quadrados; pela parcela dois com área de 9 metros quadrados e já parte da parcela três com a área de 836 metros quadrados.
4 - Em 20 de Fevereiro de 1984, os réus D e mulher, outorgando na escritura de folhas 16 e 17, doaram a seus filhos menores F e G, o prédio com 909,60 metros quadrados, que lhes havia sido doado pelos réus A e C; à doação foi atribuído o valor de 500 contos.
5 - No ano de 1981 e por 4000 contos os réus A e C venderam ao filho D 25 vacas e 909,60 metros quadrados, de terreno de pastagem do prédio descrito na Conservatória de Ponta Delgada sob o n. 49904; aquela área era constituída por 64 metros quadrados da parcela um, por 9,60 metros quadrados, da parcela dois por 836 metros quadrados da parcela três.
6 - Os réus A e C entregaram ao réu D as 25 vacas e os 909,60 metros quadrados de terreno e este pagou os 4000 contos ajustados pois fez debitar na sua conta, no Banco Comercial dos Açores, o valor de uma livrança daquele mesmo valor, subscrita pelos pais
(os réus A e C).
7 - Na sequência destes factos, o réu A e o réu D foram ao cartório Notarial de Ponta Delgada para se fazer a escritura relativa á compra e venda dos
909,60 metros quadrados mas, aí, foi-lhes dito que havendo irmãos ainda menores, do réu D, a escritura só poderia fazer-se desde que fosse suprido, judicialmente, o consentimento deles.
8 - Como os réus A e D, mostrassem urgência na formalização do negócio já efectuado, fora esclarecido que a dificuldade poderia ser superada se, daquele terreno, se fizesse uma doação; eles aceitaram essa sugestão e foi assim que foi feita a escritura de doação de 27 de Novembro de 1981.
9 - O autor não deu o seu consentimento no negócio da compra e venda já referida, nem o seu consentimento foi suprido judicialmente.
10 - O réu A tinha uma dívida de 4000 contos no
Banco Comercial dos Açores, dívida reclamada com a subscrição de uma livrança; essa livrança foi reformada mediante uma livrança de 2900 contos que o réu D subscreveu e que os réus A e C avalizaram.
11 - Porque o réu D não podia pagar a livrança que subscreveu, foi acordado entre ele e o pai desfazer-se a compra e venda já efectuada; para isso o D devolveria aos pais os 909,60 metros quadrados de terreno e algum gado, ele ficaria com 14 vacas e com a autorização do réu A (seu pai) para apascentar esses animais num terreno pertencente ao Eng. Aires de
Aguiar, de qual o réu A era arrendatário, e isto para o compensar das quantias que, por causa da livrança dos 4000 contos, pagara ao Banco Comercial dos
Açores; o réu A pagaria a referida livrança de
2900 contos.
12 - Na sequência do acordado com o pai, D passou a pagar ao Eng. Aires de Aguiar a renda da pastagem e isso aconteceu até ao ano de 1983.
13 - Na sequência de resolução de desfazerem o negócio, os réus A e D diligenciaram anular a escritura de doação de 27 de Novembro de 1981, e a escritura que a rectificou; essa escritura de anulação não foi celebrada porque a ré E recusou comparecer, para esse efeito, no Cartório Notarial.
Na petição, o autor articulou:
"É evidente que o A. tem interesse nesta declaração de nulidade, pois a forma escolhida pelos 1. e 2. réus para a transmissão da propriedade - a doação - evitava que o A. pudesse exercer o seu direito legalmente consignado de dar o seu consentimento, ou não, na transmissão de propriedade operada por compra e venda n. 18.
"No contrato referido, ou melhor, na referida doação, houve, como já ficou explanado, divergência intencional entre a vontade real e a vontade declarada dos 1. e 2.
RR, por acordo deles, para defraudarem os direitos do A impossibilitando-o de dar ou não o seu consentimento na transmissão da propriedade que, na realidade, se operou por compra e venda" n. 26. Esta matéria deu origem ao quesito 7 que foi assim redigido:
"Com o objectivo (a doação foi feita...), por parte dos
1. e 2. RR, de impedir que o A. pudesse exercer o seu direito de dar ou não consentimento a que alude o artigo 877 do Código Civil".
E o colectivo respondeu:
"Provado apenas que, na sequência dos factos referidos nas respostas aos quesitos 1 e 3 (o réu A vendeu e entregou ao réu D o terreno e as vacas e, por isso o réu D pagou 4 mil contos) o réu A e o réu
D que compareceram no Cartório Notarial desta cidade para celebrarem a escritura de compra e venda dos 909,60 ares de terra de pastagem, mas, ali, foram esclarecidos de que, havendo irmãos menores do réu
D, também filhos do réu A, se tornava necessário autorização judicial para suprir o consentimento destes, a fim de poder realizar-se a escritura; e, mostrando os referidos RR urgência em finalizar o negócio já realizado, foram esclarecidos de que a dificuldade poderia superar-se fazendo doação da mesma terra, e ambos aderiram a tal solução, marcando logo a data da escritura a que se refere a alínea d) da especificação (é a escritura de doação de 27 de
Novembro de 1981, decumentada de folhas 11 a 13)".
Desta matéria concluíu a 1. instância a existência dos requisitos da simulação nomeadamente o intuito de enganar - e, por isso, julgou-se a acção procedente.
Mas, na segunda instância, embora aceitando que, proveniente de acordo dos contraentes, existia divergência intencional entre a vontade real e a vontade declarada, entendeu-se que, na transcrita resposta dada ao quesito 7, "nada (se) referia quanto ao objectivo dos 1. e 2 RR ao outorgarem a doação de folhas 14, expressamente invocado pelo A"; concluiu-se portanto, não estar demonstrado o intuito de enganar terceiros e que, por isso, a acção tinha de improceder e foi isso que se decidiu.
A determinação da intenção dos contraentes nomeadamente o intuito de enganar terceiros é matéria de facto, cujo apuramento é da exclusiva competência das instâncias, e constitui ónus de prova para o demandante.
Por outro lado: o Supremo Tribunal da Justiça tem de acatar as ilações ou conclusões que a Relação tire dos factos que aprecia, nas essa vinculação do Supremo pressupõe que se acham verificadas duas condições: primeira: é preciso que a conclusão ou ilação não altere os factos apurados; segunda: é preciso que a conclusão (ou ilação) seja a consequência lógica dos factos apurados.
Vejamos então se estas duas condições ocorrem no caso em apreço.
Pensamos que não, pois entendemos que a conclusão da relação não é a consequência lógica dos factos apurados; a relação faz daqueles factos uma leitura redutora e que hostiliza aqueles mesmos factos.
A conclusão estaria correcta se os réus A e
C tivessem, real e efectivamente, feito uma liberalidade, uma doação ao réu D; ora o que se esclareceu foi precisamente o contrário: eles não quiseram fazer nenhuma doação; o que eles quiseram fazer (e fizeram) conforme ficou demonstrado foi uma compra e venda. E porque?
Porque entenderam que recorrendo ao ardil, ao embuste da doação lograriam criar uma aparência de legalidade que, naquele negócio, os libertaria e protegeria dos obstáculos, desvantagens e incómodos que teriam de superar se se apresentassem a formalizar a compra e venda que dissimularam.
Mas perguntar-se-a: enganar quem?
Desde logo o Estado, que disponibiliza os seus agentes e serviços para servir a comunidade mas que confia e exige que, desses serviços, se faça um uso honesto, isto é, um uso que respeite a razão de ser dos meios disponibilizados e os objectivos que presidiram á respectiva criação, que, em suma, eles não sejam utilizados para fazer passar, disfarces, embustes, aparências.
Embora se saiba que, pelo facto de, em uma escritura de doação se dissimular uma compra e venda se não legitimarão nem o Notário nem o Ministério Público para requererem a anulação do negócio formalizado, o certo é que o recurso ao expediente vai afectar o capital de boa fé e de segurança que os cidadãos depositam nos produtos da actividade dos serviços que o Estado lhes faculta, acrescendo que "a certeza e a segurança das transacções não podem estar á mercê dos caprichos ou da fraude do declarante que diga aquilo que não é sua vontade e faça acreditar aos outros no que, em sua intenção é apenas uma aparência", Prof. Beleza dos
Santos - simulação I, 35:
Embora seja certo que "a simulação é incolor e que se qualifica segundo os fins daqueles que dela usam"
Ferrora Della Simulazione, 553 - entendemos que, procedendo como agiram, os simuladores visaram enganar os titulares dos direitos cujo exercício bloquearam por terem recorrido ao expediente da doação; se uma superfície é branca e como tal deve manter-se mas se alguém, voluntariamente, a pinta de vermelho, não lhe adiantara, depois, dizer que lhe não quis mudar a cor.
Quem for prejudicado pela simulação, dando á palavra prejudicado a mais ampla significação, pode fazer declarar judicialmente a nulidade dos actos simulados, e nem é necessário que prove um dano actual e efectivo; basta provar que esse dano pode produzir-se e afectar direitos seus, até porque " todos temos direito à conservação do nosso próprio direito" - Prof. Beleza dos Santos, simulação II, 30 e 31.
Ora o Autor está nesta situação, que foi sua, de resto, os réus nem sequer puseram em dúvida.
É evidente que, face á doação e enquanto ela se mantiver, o Autor ficará impedido do exercício do direito que refere e que a Lei lhe confere (artigo 877, n. 1 do Código Civil) e que ele bem poderia exercer se a transmissão do prédio que se efectuou mediante uma venda - tivesse, como tal, sido assumida pelos contraentes. E de resto, para efeitos de legitimimação do demandante na causa, a Lei basta-se com o intuito de enganar artigo 240, n. 1 do Código Civil.
Em nosso entender procedem as conclusões da alegação do recorrente e, por isso se acorda em revogar o acórdão recorrido, mantendo-se a decisão da 1. instância.
Custas, aqui e na 2. instância, pelos réus, que já as suportaram na 1. instância.
Lisboa, 1 de Junho de 1994.
Mário Cancela,
Figueiredo de Sousa,
Costa Raposo.