Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
117/13.1TBMLG.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: DIREITO DO AMBIENTE
TUTELA DA PERSONALIDADE
DIREITO AO REPOUSO
PROTECÇÃO DA SAÚDE
ACTIVIDADES RUIDOSAS
ACÇÃO INIBITÓRIA
COLISÃO DE DIREITOS
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
CONCAUSALIDADE
Data do Acordão: 06/29/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / PESSOAS SINGULARES / DIREITOS DE PERSONALIDADE / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL.
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS / DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS / DIREITOS E DEVERES ECONÓMICOS E SOCIAIS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 70.º, 335.º, 1346.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 25.º, 26.º, N.º1, 66.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 8/4/2010, PROCESSO N.º 1715/03.7TBEPS.G1.S1.
-DE 29/11/2012, PROCESSO N.º 1116/05.2TBEPS.G1.S1.
-DE 29/11/2016, PROCESSO N.º 7613/09.3TBCSC.L1.S1.
Sumário :
I. O facto de um estabelecimento de diversão nocturna se encontrar licenciado não dispensa o cumprimento pelos respectivos administradores /gerentes de deveres relacionados com o ruído que do mesmo irradia para o exterior, com reflexos negativos no direito ao descanso e ao sossego de quem habita nas proximidades.

II. É ilícita a actividade, geradora de excesso de ruido nocturno, ocorrida em espaço controlado pelos titulares do estabelecimento de diversão e lesiva do direito fundamental de personalidade dos autores, impedidos de descansar no interior do seu próprio domicílio, por tal comportamento traduzir violação de um direito de personalidade que, pela sua natureza e relevância, não pode deixar de se ter, em princípio, por prevalecente sobre os interesses empresariais dos RR. em explorarem, no local, uma actividade de discoteca/estabelecimento de dança durante largos períodos nocturnos.

III. Ao ajuizar sobre o modo de compatibilização dos direitos em confronto, tutelando de forma efectiva o direito de personalidade dos residentes nas imediações de estabelecimento de diversão nocturna, gerador de ruido para o exterior, - fixando nomeadamente o período possível de funcionamento - pode e deve o tribunal ter em consideração o impacto ambiental negativo global que está necessariamente associado ao tipo de actividades nele exercidas, incluindo comportamentos incívicos ocorridos no exterior do estabelecimento, desde que quem o explora com eles pudesse razoavelmente contar, por serem indissociáveis da natureza da actividade exercida, sem que tal traduza uma imputação de responsabilidade civil por facto de terceiro.

IV. Existindo uma relação de concausalidade, sendo a lesão do direito de personalidade e os consequentes danos resultado, quer de um facto imputável ao próprio réu, por ocorrido em espaço por ele controlado, quer do impacto ambiental negativo global, associado a comportamentos no exterior de terceiros/utentes, pode o lesante ser chamado a responder - na medida dessa concausalidade - pela indemnização devida aos lesados, a título de ressarcimento dos danos não patrimoniais.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



1. AA e mulher, BB, intentaram acção declarativa de condenação contra CC e mulher, DD, e EE e mulher, FF, pedindo que os réus sejam condenados a:

I.A) fazer cessar a utilização do espaço destinado a dança existente no estabelecimento de discoteca e pub que gira no comércio sob o nome “GG”;

I.B) ou, subsidiariamente, fazer cessar a utilização do espaço destinado a dança, entre as 22h00 e as 07h00 ou outra que resulte do período de silêncio/repouso estabelecidos nas disposições legais e regulamentares aplicáveis;

II. A) absterem-se de produzir ruídos que sejam audíveis a partir do prédio dos autores, designadamente música, vozes altas, gritos, mesas de matrecos e ventilação, provenientes de qualquer uma das componentes do estabelecimento (espaço destinado a dança, café e esplanada);

II. B) ou, subsidiariamente, absterem-se de produzir quaisquer ruídos que atinjam o prédio dos autores, designadamente música, vozes altas, gritos, mesas de matraquilhos e ventilação, provenientes de qualquer uma das componentes do estabelecimento (espaço destinado a dança, café e esplanada) e que gerem incomodidade e/ou excedam os valores-limite definidos nas disposições legais e regulamentares aplicáveis;

III) pagar sanção pecuniária compulsória, nos termos do artigo 829-A do CC, de € 250 por cada infração diária;

IV) pagar, solidariamente, a quantia de € 1.476 a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos;

V) pagar, solidariamente, a quantia de € 7.500 ao autor marido e € 5.000 à autora mulher, a título de compensação por danos não patrimoniais;

VI) pagar, solidariamente, aos autores compensação pelos danos não patrimoniais que se produzam na pendência da ação, a liquidar em incidente de liquidação;

VII) tudo com juros de mora vencidos desde a citação até efetivo e integral pagamento, custas de parte e demais encargos.

Os Réus contestaram, pugnando pela improcedência dos pedidos formulados.

A final, foi proferida sentença na qual a acção foi julgada parcialmente procedente, determinando-se que o estabelecimento (espaço de dança e café-snack bar), durante o mês de Agosto, encerre pelas 24h00, excepto aos sábados, em que o funcionamento poderá estender-se até às 02h00; nas noites de Natal, Passagem de Ano, Páscoa e Carnaval, o estabelecimento poderá prolongar o horário de funcionamento até às 04h00; no resto do ano, deverá o estabelecimento encerrar até às 22h00, salvo ao sábado, em que poderá funcionar até às 24h00.

Os 2.ºs Réus foram condenados a pagar sanção pecuniária compulsória de € 200 por cada dia em que se verifique o incumprimento do decidido quanto ao horário de funcionamento do estabelecimento comercial; bem como a pagar aos Autores a quantia de € 9.476, correspondente aos danos patrimoniais pedidos, acrescidos de € 3.000 de indemnização por danos não patrimoniais à Autora mulher, e de € 5.000 de indemnização por danos morais ao Autor marido, sem prejuízo de outros danos produzidos no decurso do processo, a liquidar em incidente.

No mais foram os Réus absolvidos dos pedidos.


2. Desta sentença apelaram os Autores e os 2.ºs Réus, impugnando-se a decisão proferida acerca da matéria de facto; tal impugnação procedeu em parte, o que conduziu à estabilização do seguinte quadro factual:

a) Os autores são donos e possuidores de um prédio urbano composto por casa de habitação de rés-do-chão, primeiro andar e rossios, destinado a habitação, sito no Lugar …, freguesia de …, M…, inscrito na matriz sob o art.º 4…8.º urbano, e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 1…0, estando o direito de propriedade definitivamente registado a seu favor através da apresentação 1693 de 02/05/2011 (cfr. documento de fls. 29-30 do procedimento cautelar).

b) O direito de propriedade sobre o prédio foi adquirido pelos autores através da celebração de contrato de compra e venda com HH e II (cfr. documento de fls. 29-30 do procedimento cautelar).

c) Atualmente, o prédio dos autores corresponde ao número de polícia … da Rua ….

d) Os 1.ºs Réus são donos e possuidores do prédio urbano composto por casa de morada com dois pavimentos, com salão anexo e rossios, sito no Lugar …, Freguesia de …, em M…, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 3…3 e inscrito na matriz urbana sob o artigo 4…7º. (cfr. documentos de fls. 31-32 e 121 do procedimento cautelar)

e) Atualmente o prédio dos 1.ºs Réus corresponde aos números de polícia 9… a 10… da denominada Rua ….

f) Os prédios dos Autores e dos 1.ºs Réus confrontam entre si, encontrando-se o prédio dos Autores a nascente do prédio dos 1.ºs Réus.

g) No prédio dos 1.ºs Réus encontra-se instalado um estabelecimento de bebidas com espaço para dança, que gira sob o nome “GG”, funcionando como discoteca e pub, e usando também o nome “JJ”. (cfr. auto de inspeção judicial de fls. 307v.-308 e autos de ocorrência de fls. 275 a 279 e fls. 81 a 83 do procedimento cautelar)

h) O estabelecimento comercial é propriedade dos 2.ºs Réus, que o exploram.

i) O estabelecimento comercial tem o alvará de licença de utilização n.º …/20…, emitido pela Câmara de M… em …/01/2010, com horário de funcionamento entre as 07h00 e as 04h00, sem período de almoço e sem encerramento semanais, tendo sido aprovado, em …/07/2012, o alargamento do horário até às 06h00, entre 15 de Julho e 31 de Agosto. (cfr. documento de fls. 131-143)

j) O estabelecimento está inserido em zona habitacional, existindo no seu raio de 100, 200 e 300 metros diversos fogos e edifícios habitacionais, para além de uma carpintaria e uma serralharia, ambas empresas familiares. (cfr. documento de fls. 198-243 e esclarecimentos de fls. 252-259)

k) O referido estabelecimento é integrado por um espaço destinado a café, que funciona no seu interior, por um espaço para dança que funciona num pavilhão anexo nas suas traseiras (lado sul) e ainda por uma esplanada exterior (lado norte), a qual funciona sempre que as condições meteorológicas são mais favoráveis, em especial na primavera e verão.

l) Todos os espaços podem laborar de forma funcionalmente integrada, já que a disposição dos espaços permite a fácil circulação interior dos clientes entre a sala do café e a discoteca, através da porta que os separa. (cfr. auto de inspeção judicial de fls. 307 v.-308 e relatório pericial de fls. 198-243 com esclarecimentos de fls. 252-259)

m) O estabelecimento comercial, incluindo o seu espaço para dança, encontra-se a cerca de 6 metros do edifício habitacional que integra o prédio dos autores. (cfr. auto de inspeção judicial de fls. 307v.-308)

n) Os 2.ºs Réus utilizam o espaço destinado para dança, que funciona em horas e dias específicos, sem um padrão regular, sendo que nos últimos anos funciona nas épocas festivas (Natal, Passagem de Ano e Páscoa) e/ou estivais (mormente na segunda quinzena de Julho e durante o mês de agosto).

o) Durante o final do ano de 2014 e o ano de 2015, o espaço destinado a dança funcionou, pelo menos, nas noites de Natal e passagem de Ano, algumas vezes na segunda quinzena de julho e diariamente durante todo o mês de agosto.

p) O funcionamento do espaço de dança costuma iniciar-se cerca das 22h00 e as 23h00, iniciando mais tarde sempre que o afluxo de público é menor ou mais retardado, e prolonga-se, já após o encerramento do café cerca das 02h00, sobretudo nas épocas estivais, até às 06h00 da madrugada, prolongando-se, não raras vezes, para além daquela hora, até às 06h30 e 07h00 horas da madrugada.

q) No espaço destinado a dança, os 2.ºs Réus fazem reproduzir música pré-gravada, maioritariamente do tipo pop e rock, com as batidas fortes de ritmos de baterias, sintetizadores ou caixas de ritmos, características destes tipos de música, que se traduzem em sons muito vincados e persistentes.

r) O som atravessa as paredes do imóvel onde se encontra instalado o estabelecimento e, ainda, as suas janelas e portas, sendo que os equipamentos instalados no estabelecimento tem potenciómetros que permitem variar o som de forma a ser percetível no interior da habitação, e até no quarto dos autores, ainda que com as janelas fechadas.

s) No local onde está instalado o estabelecimento, foi observada, em janeiro de 2015, a implementação, em data não concretamente apurada, de várias “melhorias” tendentes a isolar acusticamente, designadamente:

i) Colocação de teto falso, com efeito de reforço do isolamento sonoro;

ii) Aplicação de paredes duplas com lã mineral, com efeito de reforço do isolamento sonoro;

iii) Revestimento das condutas de exaustão e retirada da parede de fachada dos equipamentos referentes aos sistema de exaustão/ventilação, com a subsequente colocação no interior do estabelecimento, permanecendo no local onde estavam anteriormente os equipamentos de exaustão/ventilação três condutas de extração de ar, assinalando-se que os equipamentos de exaustão/ventilação não permitem regulação do modo de funcionamento, havendo apenas a possibilidade de ligar ou desligar;

iv) Entre a porta de acesso no exterior (com a espessura de cerca de 10 cm) e o interior da sala de dança existe um hall com uma porta intermédia (com a espessura de cerca de 10 cm) e uma antecâmara com porta dupla que dá acesso à pista de dança, com a espessura de cerca de 8 cm e que tem instalada, e em funcionamento, uma mola de fecho automático, para garantir que a porta da sala de dança fica sempre completamente fechada;

v) A sala de dança tem duas portas de saída de emergência que estão sempre fechadas e que têm uma espessura aproximada de 18 cm; e

t) Existe no local um equipamento programado pelo instalador/fornecedor e que funciona como limitador de som, que, desconhecendo-se se é estanque, se constatou ser de fácil acesso para desligar. (cfr. auto de inspeção judicial de fls. 307 v.-308 e relatório de fls. 198-243 e esclarecimentos de fls. 252-259)

u) Aquando da realização da perícia determinada nos presentes autos, constatou-se que três colunas existentes na sala de dança não estavam a funcionar.

v) Aquando da realização da perícia, constatou-se que o ruído atualmente emitido pelos equipamentos e exaustão/ventilação não era representativo, pelo que foi decidido pelo autor e seu mandatário não fazer a avaliação.

w) Na sequência da realização da perícia, concluiu o senhor perito que “à data das medições e face ao valor da diferença [Δ= LAr(ra)-LAeq(rr)] obtida no local analisado, verificou-se que o funcionamento «em situação simulada» dos equipamentos de som instalados no estabelecimento, provocavam durante o período de referência de entardecer entre 2 e 10 dB(A) e durante o período de referência noturno um acréscimo entre 3 e 4 dB(A), face ao ruído de fundo (residual) existente no local sem o funcionamento desses equipamentos”.

x) O nível de avaliação LAr (dB) no exterior, junto à saída do espaço de dança, variava entre 38,4 e 43,5, também no exterior, nos rossios dos autores, variava entre 34,7 e 33,8, e no quarto dos autores na sua habitação, variava entre 25,8 e 24,7, consoante as portas do estabelecimento estivessem fechadas ou abertas.

y) Apesar de haver no mercado sistemas de limitação de som com alguma complexidade e especificações próprias, não é seguro afirmar que sejam perfeitamente estanques. (cfr. relatório de fls. 198-243 e esclarecimentos de fls. 252-259)

z) A frequência do estabelecimento pelo público varia entre algumas dezenas e um número máximo de 100 a 150 pessoas, predominantemente até aos 35 anos de idade.

aa) A lotação do estabelecimento, de acordo com o alvará a que se alude supra i), é de 100 pessoas (cfr. cópia do alvará de fls. 133).

bb) Os utentes do estabelecimento fazem-se transportar, maioritariamente, em veículos automóveis, cujo movimento de chegada e partida produz ruídos permanentes de motores, incluindo buzinas e acelerações, movimentos esses geralmente acompanhados de vozes em tom muito alto, risos, gargalhadas e, frequentemente, gritos.

cc) Os utentes do estabelecimento praticam alguns atos de vandalismo, como seja o partir de garrafas e até de uma caixa de correio, chegando a urinar na via pública e contra as edificações envolventes, onde por vezes deixam detritos (latas e garrafas vazias e copos de plástico).

dd) A frequência do espaço destinado a dança acarreta um estacionamento massivo, com dezenas de veículos e motociclos em todos os espaços que circundam o estabelecimento, incluindo junto ao prédio dos autores, com a frequente obstrução dos seus acessos automóveis.

ee) O funcionamento da esplanada e do café geram, ainda, ruídos provenientes de vozes altas e berros.

ff) Em tempos, existia no café uma mesa de matrecos, que já ali não se encontra há cerca de 2 anos.

gg) Os sons supra descritos em bb), cc) e dd) são audíveis a partir do prédio dos autores, não só do seu exterior, como do interior do edifício habitacional que o integra.

hh) Do interior da habitação dos Autores é audível a música, podendo-se, por vezes, distinguir os seus detalhes acústicos, assim como as vozes, risos, gritos e garrafas a partir produzidos pelos utentes do estabelecimento a partir do exterior e da via pública, e ainda o ruído emitido pelos respetivos veículos automóveis e motociclos, nomeadamente pelo trabalhar dos seus motores, verificando-se, sistematicamente, arranques fortes com a produção de ruídos provocados pelo patinar das rodas motrizes e por um barulho mais intenso dos motores.

ii) Das vozes e gritos dos utentes no exterior são, por vezes, percetíveis certas conversas e palavras no interior da habitação dos autores.

jj) É habitual os utentes do espaço destinado a dança permanecerem no exterior do estabelecimento durante o seu período de funcionamento e mesmo para além do mesmo, conversando em voz alta, berrando e gritando.

kk) O afluxo de utentes e a frequência do estabelecimento tem vindo a diminuir ao longo dos anos, sendo que, presentemente, a época de maior afluxo é na época estival.

ll) Os autores utilizam o seu prédio para habitação própria e permanente, acolhendo, por vezes, os seus filhos e netos, menores de idade.

mm) A utilização do prédio dos 1.ºs Réus – efetuada através do funcionamento do estabelecimento dos 2.ºs Réus – produz emissões de ruído.

nn) Com efeito, sempre que o espaço destinado a dança se encontra em funcionamento, os Autores, assim como os familiares e visitas pontuais que lá pernoitem, apenas com muita dificuldade conseguem adormecer, sendo que não conseguem dormir de forma repousada, tranquila e contínua, com um constante despertar, principalmente por força dos sons produzidos pelos utentes e respetivos veículos no exterior e zonas limítrofes envolventes, vendo o seu sono espalhado, com, pelo menos, dificuldade em voltar a adormecer.

oo) Os Autores vêem-se impedidos de arejar a sua habitação durante o funcionamento do espaço destinado a dança, altura em que mantêm as portas e janelas, em PVC e vidro duplo, totalmente fechadas por as mesmas funcionarem como barreiras sonoras.

pp) As emissões sonoras associadas ao funcionamento do estabelecimento dos 2.ºs Réus, particularmente no que concerne ao supra descrito ocorrido no exterior, perturbam, não só os Autores mas alguns outros moradores do perímetro envolvente.

qq) Os Autores promoveram um ensaio pericial, tendente a medir os níveis emitidos pelo funcionamento do estabelecimento instalado no prédio dos 1.ºs Réus pelos 2.ºs Réus, ensaio efetuado pela KK, Lda., tendo sido realizado entre 02/01/2011 e 05/03/2011, entre as 00h39 e as 02h34, com o estabelecimento em funcionamento, e entre 27/01/2011 e 03/02/2011, entre as 00h22 e as 02h06 sem o estabelecimento em funcionamento, no quarto situado no extremo poente do prédio do autor, com as janelas fechadas.

rr) Tal ensaio concluiu que no período noturno compreendido nos horários em que o ensaio foi efetuado, é ultrapassado o valor limite de 4 dB (A) no local de medição, considerando-se um nível de avaliação médio LAr [dB(a)] – Ruído ambiente de 27,9 e um Nível Sonoro Médio LAeq [dB(A)] – ruído residual de 20,0. (cfr. relatório de fls. 33-44 do procedimento cautelar)

ss) Com a realização do ensaio a que vem de aludir-se, os autores despenderam a quantia de € 1.476,00. (cfr. documento de fls. 34)

tt) A factualidade supra descrita tem prejudicado, como consequência direta e necessária, fortemente, de forma reiterada e duradoura, o ânimo, disposição, qualidade de vida e alegria de viver dos autores, o que se está a repercutir gradualmente na sua saúde, condição física e mental, andando, durante os períodos de funcionamento intensivo do espaço de dança do estabelecimento, permanentemente mal dormidos, cansados, com sono e dor de cabeça, irritáveis, melancólicos, nervosos, sob stress, angustiados e revoltados.

uu) Durante os períodos em que o espaço para dança está em funcionamento, os netos dos autores, menores de idade, reduzem as pernoitas na sua casa ao absolutamente necessário e essencial, o que desgosta os autores.

vv) O Autor marido é uma pessoa doente, a quem foi extraído um … na sequência de doença oncológica, sofrendo, ainda, de problemas cardíacos que, determinaram a aplicação de um pacemaker definitivo DDDR em data não apurada mas, pelo menos, em novembro de 2012 (cfr. documento de fls. 514 do procedimento cautelar), padecendo ainda de insónias, crises de ansiedade e hipertensivas, com repercussões negativas no seu coração e cérebro. (cfr. documento de fls. 514 do procedimento cautelar)

ww) Os Autores encaram o seu prédio como um símbolo da sua família e do esforço que implicou a sua aquisição e construção.

xx) Os Autores tentaram, entre 23/07/2008 e 29/04/2009, atuar junto das autoridades policiais (GNR), CM de M…, Governo Civil, ASAE, Direção Geral das Atividades Económicas e até para a imprensa. (cfr. documentos de fls. 45-71)

yy) O Autor marido esteve emigrado na … cerca de 30 anos e a Autora mulher é professora do ensino … aposentada.

zz) A factualidade supra descrita está a prejudicar a tranquilidade, sossego e paz que os Autores aspiravam vir a ter depois de anos de sacrifício e provações.

aaa) O autor marido nasceu em 27/11/1940 e tem presentemente 75 anos. (cfr. documento de fls. 80 do procedimento cautelar)

bbb) A autora mulher nasceu em 01/08/1945 e tem presentemente 70 anos. (cfr. documento de fls. 36-38)

ccc) O estabelecimento a que se alude supra g) encontra-se instalado no prédio dos 1.ºs Réus há mais de 40 anos, com as mesmas dimensões que contém atualmente, sendo que anteriormente ali funcionou um Salão de Dança.

ddd) Os 1.ºs Réus estão emigrados em …, onde vivem, só vindo a Portugal para gozo de férias, uma a duas vezes por ano e por nunca superiores a 15 dias.

eee) Aquando da celebração da escritura de compra e venda através da qual adquiriram o direito de propriedade sobre o prédio a que se alude supra d), em 29/12/2006, o estabelecimento comercial tinha alvará de licença sanitária, para funcionar como discoteca e bar, emitido pela CM de M… em 22/02/1984, alvará que foi averbado em nome do 2.º réu marido em 19/12/2002. (cfr. documentos de fls. 314-316 e 317)

fff) Existia, igualmente, contrato de arrendamento em vigor entre os 2.ºs Réus e os anteriores proprietários do prédio identificado em d) e o estabelecimento funcionava.

ggg) Para os 1.ºs Réus a aquisição do prédio foi encarada como investimento.

hhh) Os 1.ºs Réus tiveram conhecimento da existência de litígio, pelo menos, em dezembro de 2011, altura em que foram citados no âmbito do procedimento cautelar.

iii) Em data não concretamente apurada, o 2.º Réu marido procedeu a alterações na estrutura do edifício tendentes ao reforço das condições de insonorização do estabelecimento, tendo-se verificado melhorias ao nível do isolamento do edifício onde está instalado o espaço de dança.

jjj) Nomeadamente, na parte exterior do edifício, deslocou e rebaixou os sistemas de ventilação e extração de fumos e implementação das melhorias acústicas referidas supra em s).

kkk) Em 28/07/2007, a LL, Lda.., empresa contratada pelos 2.ºs Réus, elaborou ensaio acústico nos termos do qual concluía que “a atividade desenvolvida no estabelecimento, nos dias e com as condições de amostragem, junto do recetor sensível mais próximo, cumpre o Regulamento Geral do Ruído, não ultrapassando os limites estabelecidos no artigo 13º, n.º1, tendo em consideração a situação apresentada para o ponto 2 em estudo. Assim, como estão a ser cumpridos, os valores limites estabelecidos no art. 11º do referido Regulamento, não ultrapassando os níveis definidos para a Zona Mista. No entanto, aconselha-se o cumprimento das recomendações expressas no ponto seguinte, para diminuir a possibilidade de os níveis de incomodidade poderem vir a aumentar.” (cfr. documentos de fls. 185-210 e 245 do procedimento cautelar)

lll) No decurso das décadas de 1980 e 1990 o estabelecimento em causa possuía uma afluência de clientes muitíssimo superior à verificada atualmente, coexistindo com mais três discotecas no concelho de M… (P…, R…e M…).

mmm) O decréscimo da afluência (e que explica também o encerramento das três discotecas então existentes) deve-se à crescente desertificação demográfica registada no concelho de M… nos últimos 20 anos.

ooo) Por sentença datada de 27/06/2013, proferida no âmbito do procedimento cautelar apenso aos presentes autos, foi determinado que os ali requeridos, ora Réus, se abstivessem de produzir qualquer ruído provindo do estabelecimento comercial que sejam audíveis no prédio do ora Autor marido a partir das 22h00 (designadamente, provocados pela música, mesa de matrecos, barulhos provocados por clientes), cabendo-lhes implementar as medidas tidas por necessárias para o efeito. (cfr. sentença de fls. 528-546 do procedimento cautelar)

Factos não provados:

1) O estabelecimento comercial em causa nos presentes autos esteja inserido numa zona exclusivamente habitacional;

2) Os 2.ºs Réus utilizem o espaço destinado para dança vários dias por semana, sem um padrão regular, espaço que funciona ao longo de todo o ano, com especial incidência nas vésperas de feriados e de fins de semana e, ainda, aos sábados à noite, prolongando-se pelas respetivas madrugadas, a par de outros dias da semana, de forma intermitente e aleatória, no Carnaval, o que, a título de exemplo, sucedeu na segunda quinzena de Julho;

3) Sempre que funciona o espaço destinado a dança, o espaço destinado a café funciona em simultâneo, servindo como apoio ao referido espaço e circulando os seus utentes de forma indistinta entre o conjunto desses espaços;

4) Os 2.ºs Réus pontualmente promovam atuações de música ao vivo;

5) As vibrações a que se alude supra ll) se propaguem num perímetro de várias dezenas de metros;

6) As portas do estabelecimento estejam sistematicamente abertas por força, designadamente, da entrada e saída desordenada e aleatória de utentes;

7) A afluência ao estabelecimento oscile entre várias dezenas e algumas centenas de pessoas;

8) A lotação do estabelecimento não seja inferior a 300 pessoas;

9) Os utentes deixem vómitos e guardanapos nas edificações envolventes;

10) Existam presentemente mesas de matrecos no interior do estabelecimento que acrescentem um barulho constante do bater de bolas com força e explosões de excitação dos jogadores, mesas que, por vezes, são colocadas no exterior, mesmo com o espaço destinado a dança sem funcionar;

11) Existam presentemente, pelo lado sul, sistemas de exaustão de fumos dotados de ventiladores que geram ruído provocado pelos respetivos elementos mecânicos e que este ruído seja audível, com muita intensidade, a partir do prédio dos autores;

12) Os sons decorrentes do funcionamento do estabelecimento comercial se propaguem num raio de várias dezenas e centenas de metros, com pequenas variações que dependem, designadamente, da frequência de cada sessão em que funciona o espaço de dança, do volume implementado pelo disco jockey, da direção e intensidade do vento e da pressão atmosférica e que o mesmo suceda com as vibrações de origem sonora;

13) Do interior da habitação dos autores seja totalmente audível a música que aí soe muito alta, podendo distinguir-se, por vezes, a sua letra;

14) Em Julho de 2013 se tenha verificado um crescendo de número de festas e utentes, comparativamente com os meses anteriores;

15) Os autores tenham dificuldade em ouvir o som da própria televisão e, até, em manter uma conversa no interior da sua própria casa, sendo forçados a elevar o som daquela ou o seu próprio tom de voz, para suplantar o volume a que lhes chegam os ruídos supra descritos;

16) O funcionamento do estabelecimento em causa nos presentes autos tenha compelido certos vizinhos a vender as suas habitações e a mudar de local;

17) Os autores se vejam impedidos de receber a visita de familiares e amigos sempre que o espaço destinado a dança está em funcionamento;

18) Os autores estejam à beira do total descontrolo e colapso emocional e que a sua saúde física e mental se esteja a deteriorar de forma galopante;

19) Nenhum dos réus tenha efetuado ou promovido, de forma efetiva, para eliminar os efeitos negativos da atividade do estabelecimento sobre a envolvente e sobre o prédio dos autores, mormente contendo-os em limites não lícitos;

20) O estabelecimento em causa nos autos constitua o único meio de sustento do agregado familiar dos 2.ºs Réus (antiga alínea nnn)).


   3. Passando a apreciar as questões jurídicas suscitadas pelos recorrentes, considerou a Relação no acórdão recorrido:

Em 1.ª instância foi entendido que os 2.ºs Réus tinham violado o direito ao repouso dos Autores. Quer os Autores quer os 2.ºs Réus discordaram da sentença e dela interpuseram recursos principais. Os Autores porque entendem que o horário imposto na sentença é demasiado alargado para acautelar o seu direito ao repouso. Os 2.ºs Réus por entenderem que o mesmo horário é insuficiente para que o seu estabelecimento seja economicamente viável e que, de todo o modo, os eventuais prejuízos dos Autores não lhes são imputáveis. Pedem os 2.ºs Réus que, para além do já comtemplado na sentença, lhes seja autorizada a abertura do estabelecimento durante a segunda quinzena de julho e todo o mês de agosto, até às quatro horas da manhã, e que seja revogada a indemnização por danos não patrimoniais.

(…)

Compulsados os factos não se provou que os 2.ºs Réus tenham exercido de forma ilícita o seu direito de exploração da atividade económica de discoteca e bar. Nomeadamente, não se provou que o nível de ruído por eles produzido no desenvolvimento dessa atividade tenha lesado o direito ao repouso dos Autores, impedindo-os de adormecer ou acordando-os durante a noite. Não lograram os Autores provar factos de que resulte a prática de ato ilícito gerador de responsabilidade civil por via do art. 483 do CC.

Igualmente não se provou que os 2.ºs Réus tenham infringido regras legais destinadas a proteger interesses alheios (como as previstas no Regulamento Geral do Ruído) e que, por via dessa infração, tenham causado danos aos Autores, o que também os faria incorrer no dever de indemnizar por via do mesmo art. 483 do CC.

Também não decorre dos factos que o ruído produzido pela atividade dos 2.ºs Réus tenha importado prejuízo substancial para o uso do imóvel dos Autores, prejudicando o seu regular uso como local de pernoita, pelo que fica afastado o cenário do art. 1346 do CC, ex vi do art. 1071 do mesmo Código.

O que se provou (factos bb) a jj)) foi que os utentes do estabelecimento fazem-se transportar, maioritariamente, em veículos automóveis, cujo movimento de chegada e partida produz ruídos permanentes de motores, incluindo buzinas e acelerações, movimentos esses geralmente acompanhados de vozes em tom muito alto, risos, gargalhadas e, frequentemente, gritos; além disso, os utentes do estabelecimento praticam alguns atos de vandalismo, como seja o partir de garrafas; por vezes, os utentes do estabelecimento permanecem no exterior para lá do período de funcionamento, conversando em voz alta, berrando e gritando. E são estes sons que entram pela habitação dos Autores e lhes causa o despertar ou a dificuldade de conciliar o sono.

Sucede que estes sons não são imputáveis aos Réus, a título de ação ou omissão, constituindo sim conduta ilícita e culposa de terceiros. Os ditos sons e comportamentos são praticados fora do estabelecimento dos 2.ºs Réus, em locais públicos sobre os quais os 2.ºs Réus não têm nem podem ter qualquer domínio ou influência.

Claro que aos Autores assiste o direito de não serem acordados pelos maus comportamentos de terceiros na via pública, nas imediações da sua habitação, mas caso aconteça, só lhes resta chamar as autoridades. Estas, sendo a situação recorrente durante finais de julho e agosto, deviam estar em permanência a patrulhar o local, mas isso nem é objeto deste processo, nem pode ser imposto aos Réus.

Mesmo que os 2.ºs Réus contratassem segurança privada, esta nada poderia fazer contra desacatos, acelerações e buzinas no exterior do estabelecimento. Só as autoridades públicas podem e devem atuar nestas situações.

Os danos causados aos Autores não resultam de atos ou omissões ilícitos dos Réus, mas de atos ilícitos de terceiros. Ainda que se possa dizer que os atos ilícitos desses terceiros são frequentes, habituais ou mais ou menos recorrentes à entrada ou saída de certos estabelecimentos de diversão noturna, o facto ilícito não reside na atividade do estabelecimento dos Réus, mas nos comportamentos de pessoas distintas deles, logo não se pode falar de um nexo causal, para efeitos de responsabilidade civil, entre a atividade do estabelecimento (facto lícito e não gerador de dano) e os prejuízos decorrentes de comportamentos de terceiros mais ou menos comuns quando se preparam para frequentar ou acabaram de frequentar estabelecimento de diversão noturna.

Se os 2.ºs Réus, no exercício da sua atividade, pelo nível de ruído produzido e por não conseguirem contê-lo, violassem direito dos Autores (nomeadamente, impedindo ou dificultando o seu sono), não haveria que compatibilizar o exercício dos 2.ºs Réus e o direito dos Autores, com aplicação do art. 335 do CC. Haveria, sim, que proibir a violação futura dos 2.ºs Réus e condená-los a indemnizar pela violação pretérita, em conformidade com os arts. 483 e ss. do CC.

Só se compatibilizam direitos quando estamos perante exercícios lícitos de direitos. Se estamos perante um direito e um exercício ilícito, aplicamos as regras da responsabilidade civil.

A sentença do tribunal a quo, depois de concluir que havia uma violação ilícita pelos 2.ºs Réus de direitos dos Autores (conclusão que não partilhamos), aplicou, mal, o art. 335 do CC, tentando harmonizar o que não é suscetível de harmonização: um direito e um ato ilícito.

Se houvesse exercício ilícito pelos 2.ºs Réus (e não se provou que tenha havido), a solução não passaria por continuar a permitir esse exercício ilícito em determinados dias e horas e em proibi-lo noutros. A solução estaria em proibir o ilícito futuro tout court, e em reparar os ilícitos pretéritos.

Sucede que, no que à fixação de um horário de funcionamento respeita, a sentença da 1.ª instância não foi posta em crise pelos 2.ºs Réus a não ser no sentido de, além do determinado nessa sentença, poderem também funcionar até às 04:00 horas na 2.ª quinzena de julho e durante agosto.

Estando o âmbito da presente apelação limitado pelas conclusões da alegação de recurso (arts. 635, 637, n.º 2, e 639, n.ºs 1 e 2, do CPC), a procedência da apelação dos 2.ºs Réus apenas nos conduzirá, neste tocante, a revogar a sentença na parte em que determinou que o estabelecimento encerrasse antes das 04:00 horas em agosto e na 2.ª quinzena de julho.

Por tudo quanto se disse, a apelação dos Autores na medida em que impetra pela redução do período de funcionamento do estabelecimento dos 2.ºs Réus, improcede.

E, em consonância com tal entendimento, foi proferida a seguinte decisão

Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação dos Autores parcialmente procedente, condenando os 2.ºs Réus a pagarem aos Autores juros de mora desde a citação sobre a quantia de € 1.496, correspondente aos danos patrimoniais em que foram condenados; e em julgar a apelação dos 2.ºs Réus parcialmente procedente, revogando a sentença recorrida nas partes em que: a) determinou que o estabelecimento (espaço de dança e café-snack bar) encerrasse durante a 2.ª quinzena de julho e o mês de agosto antes das 04:00 horas; e b) condenou os 2.ºs Réus a pagar aos Autores a quantia de € 8.000, a título de indemnização por danos não patrimoniais (€ 3.000 para a Autora mulher e € 5.000 para o Autor marido), e noutros eventuais danos produzidos no decurso do processo a liquidar em incidente.

   Na sequência de requerimento dos AA., tal decisão foi aclarada mediante acórdão de fls. 546, esclarecendo-se que se pretendeu decidir que no período em causa (segunda quinzena de Julho e Agosto) o estabelecimento ficasse aberto até às 4 horas.


    4. É desta decisão que vem interposta pelos AA. a presente revista, que encerram com as seguintes conclusões:

I - O douto Acórdão proferido não é totalmente percetível, já que incorreu em aparente desfasamento entre a sua parte dispositiva e a contida na douta sentença da 1ª instância.

II - Depois de uma análise mais atenta, e com algum risco interpretativo, parece que o sentido útil do douto Acórdão proferido foi o alterar a sentença proferida pela 1ª instância apenas quanto à segunda quinzena de julho e mês de agosto, alargando o horário de funcionamento do estabelecimento (espaço de dança e café snack bar), nesse período, todos os dias até às quatro horas da madrugada mantendo, quando remanescente do ano, o programa de funcionamento fixado por aquela sentença.

III – As dificuldades interpretativas acarretam a nulidade do douto Acórdão recorrido, nos termos do art. 615º n.º al. c) do CPC, aplicável ex vi art. 666º n.º 1 do mesmo diploma, o que expressamente se invoca (por mera cautela e na eventualidade de não terem os Recorrentes interpretado convenientemente o seu sentido e alcance).

 (DAS QUESTÕES DE DIREITO OBJETO DA REVISTA)

A – DA ARTICULAÇÃO ENTRE A ILICITUDE E A COLISÃO DE DIREITOS:

IV – Entende o douto Acórdão recorrido que não ocorre ilicitude, mais entendendo não ser aplicável o instituto da colisão de direitos quando um deles é exercido de forma ilícita (cfr. pág. 42, in fine, e 43º do douto Acórdão recorrido). Segundo esta perspetiva, entende o douto Acórdão que “só se compatibilizam direitos quando estamos perante exercícios lícitos de direitos. Se estamos perante um direito e um exercício ilícito, aplicamos as regras da responsabilidade civil”.

V – Com o devido respeito, a questão assim tão linear. Com efeito, do art. 335º do CC decorre um verdadeiro dever de cedência, por parte do titular de um determinado direito, na medida necessária a acomodar outro, com ele conflituante. Pelo que a violação desse dever de cedência – que não carece de sentença constitutiva para operar – é, em si mesma, uma ato ilício, por ofensa direta a tal instituto. Pois, na medida em que o titular do direito o exerce, invadindo a esfera de tutela de outro direito contraposto, passa a atuar de forma ilícita.

VI - Além disso, a realidade plasmada nos factos provados é passível de comportar manifestações lícitas e ilícitas concomitantes, podendo aplicar-se ambos os regimes de forma diferenciada, mesmo na construção doutrinária preconizada pelo douto Acórdão recorrido.

B - DA ILICITUDE DA ATUAÇÃO DOS 2ºS RÉUS:

VII - Entende-se que da matéria de facto provada decorre, de forma direta e imediata, a ilicitude do funcionamento do estabelecimento. Ainda que não resultasse provada a violação objetiva dos valores-limite do Regulamento Geral do Ruído, do conjunto da prova produzida, em articulação com as regras normais da experiência quotidiana, a atividade em si lesou os direitos de personalidade e propriedade dos Recorrentes, maxime o direito à tranquilidade e ao repouso. Matéria amplamente emergente dos factos provados nn), oo), tt), uu), vv) e zz).

VIII - Matéria essa da qual também decorre – já numa perspetiva de direito de propriedade – um “prejuízo substancial” para o uso do imóvel dos Recorrentes, o qual se vê comprimido numa das suas afetações fundamentais: a natureza de um bastião de repouso, tranquilidade e convívio familiar.

IX - Acresce que, ainda que contidas nos valores-limite do Regulamento Geral do Ruído, as emissões sonoras são ilícitas “quando é posto em causa o direito ao sono, ao sossego e à tranquilidade em período noturno”, o que se verifica no caso vertente – cfr. o douto Acórdão do STJ de 29/11/20112 (processo 1116/05.2TBEPS.G1.S1).

X - Mais a mais, discorda-se rotundamente da inaceitável perspetiva do douto Acórdão recorrido, o qual desliga do estabelecimento a realidade exterior que se verifica – sempre e apenas – quando o mesmo labora como discoteca.

XI - Sobre o pandemónio que ocorre no exterior do estabelecimento, sempre que o espaço reservado a dança funciona em paralelo, basta revisitar os factos provados, em especial nos pontos bb), cc), dd), ee), gg), hh), ii), jj) e ll), para cuja leitura se remete, porque eloquente e ilustrativa.

XII - Devendo ainda valorar-se a desobediência crónica aos horários fixados administrativamente e a desobediência à providência cautelar decretada [facto provado i), p) e ooo)], a sua sobrelotação [facto provado z) e aa)], a inércia das autoridades administrativas [facto provado xx)]. Não sendo demais relembrar que o estabelecimento se situa inserido numa zona predominantemente habitacional [facto provado j)] e que a habitação dos Recorrentes dista 6 metros do ponto mais próximo do estabelecimento [facto provado m)].

XIII - Uma atividade daquele cariz não pode ignorar todas as emissões direta e inelutavelmente associadas, como o impacto dessa atividade no exterior da envolvente o qual – por vezes – pode sobrepor-se ao estabelecimento em sentido restrito, o que – aliás – correspondia ao sentimento de outros moradores que viviam mais afastados do estabelecimento do que os Recorrentes.

XIV - Os Recorridos não possuem, efetivamente, uma possibilidade de controlo efetivo e eficaz sobre todas as ocorrências no exterior do estabelecimento sempre que o mesmo labora. No entanto, poderiam reforçar a disciplina do exterior, quer por meios próprios, quer com a colaboração das autoridades policiais, o que sempre negligenciaram. Porém, não é menos certo que esses efeitos são uma decorrência diretamente causada pela atividade do estabelecimento, sendo uma dimensão incindível do seu funcionamento que constitui causalidade objetivamente adequada do seu funcionamento e que, no caso concreto, apenas deixa lugar à solução de ser cortado o mal pela raiz mediante o encerramento total e definitivo.

XV - Essa dimensão, correspondente às vicissitudes exteriores da discoteca e sua relevância jurídica, encontra consagração jurisprudencial direta, muito oportunamente citada pela douta sentença recorrida, onde se escreveu:

XV – Este tipo de estabelecimentos demanda a avaliação do impacto ambiental negativo global que decorre, em termos inelutáveis, do funcionamento do estabelecimento de diversão noturna em causa, o que terá de ser analisado no seu todo e não apenas parcialmente; todo este movimento de pessoas, chegada e no seu regresso faz parte do funcionamento do estabelecimento em causa.

XVI - Não se trata de responsabilizar os proprietários do estabelecimento por específicos atos lesivos, concretamente praticados no exterior por clientes mas de ter em consideração condições e circunstâncias envolventes e que são manifestamente indissociáveis do tipo de atividade exercida, podendo e devendo quem explora tais atividades contar, num juízo de normal prognose, que a exploração de uma indústria de diversão noturna, numa zona habitacional, é naturalmente suscetível de lesar ilicitamente direitos de terceiros – tudo cfr. Acórdão do STJ. 24/10/1995, BMJ. 450/403, Acórdão do STJ de 29//11/2012 mencionado daquela e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/04/2010 (Proc. 1715/03.7TBEPS.G1.S1)

XVII - A tutela dessa dimensão exterior tem, ainda, cobertura numa perspetiva de violação de bens jurídicos ambientais, “enquanto causa de evidente poluição ambiental, com assento primacial no próprio texto constitucional, no plano dos direitos e deveres sociais, de natureza análoga aos direitos fundamentais, em que se insere o direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado (art. 66º) [da CRP], complementado e densificado pelas normas constantes da Lei de Bases do Ambiente, fundamentalmente orientada, imediatamente e em primeira linha, para a proteção de interesses coletivos ou difusos” – cfr. Acórdão do STJ de 07/04/2011 – proc. 419/06.3 TCFUN.LI.SI).

XVIII - Essa perspetiva ambiental consubstancia um conjunto de normas legais destinadas a proteger interesses alheios, mormente o art. 66º da Constituição da República Portuguesa, normas essas que o douto Acórdão recorrido entendeu não estarem presentes, desconsiderando tal enfoque.

XIX - Tal dimensão exterior (in casu caracterizada nos factos provados bb) a jj) constantes da douta sentença) bastaria para que tivesse sido decretado o encerramento do estabelecimento, por muito que as soluções de isolamento interior fossem aperfeiçoadas.

XX - Os Recorridos bem conheciam o objeto do litígio desde 2011 abstendo-se de promover medidas adicionais de insonorização, o que impunha uma atitude proactiva e empenhada em minimizar os incómodos das emissões sobre o prédio dos Recorrentes, a qual negligenciaram e – até – afrontaram (como resulta do conjunto dos factos provados). Conduta essa que teve como pano de fundo, nos últimos 5 anos, uma providência cautelar decretada e uma ação pendente (!) e que não pode deixar de se reputar como ilícita, quer por ação, quer por omissão.

XXI – Conduta que afronta – de forma duradoura, repetida e reiterada - os direitos de personalidade dos Recorrentes, maxime o direito ao repouso e sossego, assim como o seu direito de propriedade, conforme emerge dos factos provados n), o), p), q), r), z), aa) e rr), para além do já aduzido supra quanto ao impacto da atividade na envolvente.

XXII - O que, como causalidade direta e adequada, provocou danos que devem ser ressarcidos, conforme resulta à saciedade dos factos provados nn), oo), pp), tt), uu), vv) e zz), estando amplamente demonstrados os pressupostos da obrigação de indemnizar constantes do art. 483º n.º 1 do CC, que o Douto Acórdão recorrido violou, a par do disposto nos arts. arts. 70º n.º 1 e 1346º do mesmo diploma, assim como o disposto nos arts. 9º n.º 1 al. d), 25º n.º 1, 26º n.º 1, 65º n.º 1, 66º n.º 1 e 72º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

C – (SUBSIDIARIAMENTE) DA COLISÃO DE DIREITOS:

XXIII - No entanto – e sem prescindir – entende-se que mesmo que não haja ilicitude há, ainda assim, uma colisão de direitos cuja compatibilização deveria determinar o encerramento total e definitivo do estabelecimento. É de assinalar que o douto Acórdão recorrido se limitou a julgar improcedente a apelação dos Autores, ora Recorrentes, sem se ter detido na perspetiva da colisão de direitos que constituía uma das pedras angulares da sua alegação, a qual parece ter sido ignorada, de forma total e absoluta (pese embora se afigure implícita na sua decisão).

XXIV - Sempre estaríamos, pois, em presença de uma colisão de direitos, na aceção do art. 335º do Código Civil, ditando o seu n.º 1 uma compressão bilateral que assegure uma concordância prática, entre direitos iguais ou da mesma espécie, ao contrário do n.º 2 que dita a prevalência do direito superior, ainda que postergando o direito inferior contraposto ou com ele conflituante.

XXV – Nessa valoração, para além da relevância, da esfera da personalidade atingida, da gravidade da ofensa, do comportamento do próprio lesado e do motivo e fim da lesão, importa considerar o comportamento do lesante que, em concreto, merece especial censura, sobretudo pela violação reiterada da providência cautelar que havia sido decretada nos autos numa expressão de afronta e indiferença às instituições jurídicas e, ainda, pela não demonstração – de forma minimamente concretizada - de que efetuou todas as diligencias possíveis, num real e empenhado esforço para minimizar o impacto da emissão de ruídos associada à sua atividade, com uma sustentação técnica, por mínima que fosse.

XXVI - Por outro lado, a circunstância de existir licenciamento da atividade não invalida uma especial cautela (e mesmo que contidas as emissões nos valores-limite do Regulamento Geral do Ruído) “quando é posto em causa o direito ao sono, ao sossego e à tranquilidade em período noturno” – cfr. Acórdão do STJ de 29/11/20112, (processo 1116/05.2TBEPS.G1.S1).

XXVII - De resto, é de sublinhar que os Recorridos violaram ostensivamente o próprio (e absurdo) horário fixado administrativamente, como resulta à saciedade dos factos provados p) e i).

XXVIII - O douto Acórdão recorrido assume (apenas implicitamente) como pressuposto que é possível acomodar, em jeito de concordância prática, os direitos contrapostos quando – na verdade – tal não é expectável, em face dos antecedentes, nem se afigura possível com um mínimo de realismo.

XXIX - Na verdade, não se fez qualquer prova sobre medidas que, de forma efetiva, minimizassem todo o impacto do funcionamento do estabelecimento na envolvente, com uma concretização minimamente consistente e respetiva localização no tempo, que fossem suficientes e tecnicamente adequadas face às exigências concretas daquela atividade e da sua proximidade aos edifícios habitacionais. Ónus de alegação e prova que os Recorridos não cumpriram, de todo em todo.

XXX - A alternativa ao encerramento do estabelecimento decidida pelo Tribunal a quo - surpreendentemente agravada pelo Acórdão recorrido - degenerou num inaceitável sacrifício e compressão dos direitos de personalidade dos Recorrentes, maxime o seu direito ao repouso, em limites que se afiguram excessivos e inexigíveis.

XXXI - Em matéria de tutela de direitos de personalidade - no caso, direito ao sossego e ao descanso - não se pode considerar excessivo, antes se tem por adequada e equilibrada, a condenação do réu a abster-se de imediato de prosseguir a exploração de um estabelecimento comercial no qual se organizam festas e eventos enquanto não dotar o espaço em causa das condições necessárias ao desenvolvimento de tal atividade sem a emissão de ruídos causadores de danos na saúde e bem estar do autor, o qual reside num prédio vizinho – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/05/2009 (Revista n.º 167/09.2YFLSB - 7.ª Secção).

XXXII - Acresce que, em face dos sinais de incumprimento pretérito e do supra aduzido, não é crível que seja respeitado um horário mais restritivo, sendo que a tutela emergente da sanção pecuniária compulsória não se afigura suficiente. Assim, entende-se que o pedido principal formulado (de encerramento do estabelecimento) deveria ter sido julgado procedente, atenta a manifesta desadequação da tentativa das instâncias em conciliar o inconciliável

XXXIII - Em regra – e sem prejuízo de uma concreta e casuística ponderação judicial, a realizar em função do princípio da proporcionalidade acerca da intensidade e relevância da invocada lesão da personalidade – se imponha a conclusão de que, em caso de conflito, efetivo e relevante, entre o direito de personalidade e o direito ao lazer ou à exploração económica de indústrias de diversão, se imponha a preservação dos direitos básicos de personalidade, por serem de hierarquia superior à dos segundos, nos termos do art. 335º do CC - cfr. Acórdão do STJ de 07/04/2011 (proc. 419/06.3 TCFUN.LI.SI).

XXXIV - A habitação é o local privilegiado para o repouso, sossego e tranquilidade necessários à preservação da saúde e, assim, da integridade material e espiritual que o art.º 25, n.º 1, da CRP tutela; nesta perspetiva, as emissões dos prédios vizinhos, designadamente de ruídos elevados e constantes, vibrações, odores e cheiros nauseabundos, que prejudicam substancialmente o uso do andar destinado à habitação das AA., transcendem as meras relações pessoais de vizinhança, envolvendo a tutela dos direitos de personalidade; nos termos do art.º 335, n.º 2, do CC, o direito ao repouso é superior ao direito de propriedade (art.º 62, n.º 1, da CRP) e ao direito de exercício de atividade comercial (art.º 61, da CRP) – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-10-2003 (Revista n.º 2782/03 - 6.ª Secção).

XXXV - E não se diga que se trata de uma discoteca com afluência em declínio. Na verdade, os direitos fundamentais dos Recorrentes não podem ser abandonados ao sabor da demanda do público por uma determinada discoteca, o que depende de parâmetros virtualmente incontroláveis. Ninguém pode garantir aos Recorrentes que não haja um recrudescimento da sua frequência, o que só depende da dinâmica, capacidade e investimento dos promotores, havendo numerosos exemplos de empreendimentos bem sucedidos em zonas recônditas que são, em si mesmos, um chamariz.

XXXVI - Em face do exposto, não resta, senão, a via do encerramento do estabelecimento, ainda que tal acarrete o total sacrifício dos direitos contrapostos dos Recorridos, em obediência ao disposto no art. 335º n.º 2 do Código Civil, sendo os direitos dos Recorrentes violados [arts. 70º n.º 1 e 335º n.º 2 do Código Civil e arts. 9º n.º 1 al. d), 25º n.º 1, 26º n.º 1, 65º n.º 1, 66º n.º 1 e 72º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa] de dignidade e valor superior, em confronto com os direitos dos Recorridos, que deverão ceder. Normativos esses violados pelo douto Acórdão recorrido.

XXXVII - Mesmo que não se entenda ser de encerrar totalmente o estabelecimento – o que não se concede e apenas por dever de patrocínio e elementar cautela se pondera - deveria o seu horário sofrer restrições mais acentuadas. Com efeito, de acordo com o aparente sentido do douto Acórdão recorrido, os Recorrentes terão de suportar a atividade dos Recorridos MÊS E MEIO, TODOS OS DIAS, até às 04 horas da matina, assim como nas noites de Natal, passagem de Ano, Páscoa e carnaval até às 04:00 horas e todos os sábados do ano até às 24:00 horas. Isto no pressuposto de bom cumprimento dos Recorridos, em total dissonância com a sua conduta pretérita.

XXXVIII - O horário fixado pelo douto Acórdão, longe de assegurar a concordância prática dos direitos, agravou a lesão do núcleo essencial dos direitos de personalidade dos Recorrentes, maxime o direito ao descanso: sujeita aos Recorrentes a suportarem o funcionamento do estabelecimento durante a última quinzena de julho e todo o mês de agosto o funcionamento do espaço até às 04:00 horas. Paralelamente, a douta sentença, sujeita os Recorrentes a suportar o funcionamento do estabelecimento até às 04:00 horas da madrugada nas noites de Natal, Passagem de Ano, Páscoa e Carnaval, justamente em alturas de maior significado da vivência familiar e pessoal dos Autores, aniquilando, além do essencial das férias estivais, essas quadras festivas (!).

XXXVIII - Finalmente, o horário fixado nada refere quanto à hora de abertura, criando o risco de os Recorridos abrirem prematuramente de madrugada, em prejuízo do descanso dos Réus, o que sempre aconselharia à fixação de uma hora de abertura e não apenas de encerramento.

D - DOS DANOS MORAIS:

XXXIX - Por se entender existirem todos os pressupostos da obrigação de indemnizar, entende-se dever ser atribuída compensação pelos danos não patrimoniais peticionados  pelos Recorrentes,, i.e., 7.500,00 € a favor do Recorrente marido e 5.000,00 € a favor da Recorrente mulher, tendo em conta, sobretudo, que estes estiveram expostos, de forma duradoura e continuada, ao longo de décadas, às emissões ruidosas, à erosão continuada das mesmas, à falta de uma prova de empenho e diligencia dos Recorridos em obstar ou minimizar essas emissões e que – mais do que isso – afrontaram a providência cautelar decretada e os direitos de personalidade daqueles Recorrentes, numa absoluta desconsideração e desprezo pelos mesmos. Pelo que, nessa parte, o douto Acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 496º n.º 4 do Código Civil.

TERMOS EM QUE

deve o presente recurso de revista ser julgado procedente e, consequentemente:

I - serem os Recorridos condenados a fazer cessar, de imediato, a utilização do espaço destinado a dança existente no estabelecimento em alusão ou, subsidiariamente, serem os mesmos condenados a fazer cessar a utilização do espaço destinado a dança entre as 22:00 horas e as 07:00 horas ou outro período que se repute adequado;

II – serem os Recorridos condenados a absterem-se de produzir ruídos que sejam audíveis a partir do prédio dos Recorrentes, designadamente música, vozes altas, gritos, mesas de matrecos e ventilação, provenientes de qualquer uma das componentes do estabelecimento (espaço destinado a dança, café e esplanada), ou, subsidiariamente, serem condenados a absterem-se de produzir quaisquer ruídos que atinjam o prédio dos Recorrentes, designadamente música, vozes altas, gritos, mesas de matrecos e ventilação, provenientes de qualquer uma das componentes do estabelecimento (espaço destinado a dança, café e esplanada) e que gerem incomodidade e/ou que excedam os valores-limite definidos nas disposições legais e regulamentares aplicáveis;

III - serem os 2ºs Réus condenados a pagar a quantia de 7.500,00 € a favor do Recorrente marido e 5.000,00 € a favor da Recorrente mulher, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos e outros que venham a sofrer até ao cumprimento da decisão final a proferir, a liquidar em fase de execução de sentença;

IV - serem os 2ºS Réus condenados nos demais acréscimos legais, nomeadamente juros de mora contados da data da citação, custas de parte e demais encargos com o processo que hajam de recair sobre a parte vencida, nos termos do CPC e do RCP.

Com o que se fará JUSTIÇA.


    5. A questão fulcral a decidir – sobre a qual divergiram as instâncias – consiste em saber se – na concreta situação retratada pela matéria de facto apurada – se pode considerar ter ocorrido uma violação ilícita dos direito dos AA. – maxime do seu direito de personalidade – em consequência do ruido gerado pela actividade realizada no estabelecimento explorado pelos 2ºs RR.

   Na verdade, concluiu o acórdão recorrido que :

- o ruido produzido directamente pela actividade de discoteca e bar, exercitada no local pelos 2ºs RR. não importou prejuízo substancial para o uso do imóvel dos AA.;

 - a verdadeira causa dos incómodos sentidos pelos AA. não seria directamente a actividade exercida no espaço pertencente ao estabelecimento dos RR., mas antes comportamentos dos respectivos utentes, posteriores à saída desse local, em espaços públicos, pelos quais não poderiam ser responsabilizados os RR;

- e, perante a inexistência de lesão ilícita e culposa, não teria cabimento o arbitramento de indemnização pelos danos não patrimoniais invocados.

   Será assim, perante a matéria factual globalmente apurada?

   Como se escreveu no Ac. de 8/4/10, proferido pelo STJ no P. 1715/03.7TBEPS.G1.S1,

Como vem sendo jurisprudencialmente decidido, de forma reiterada, a produção ou emissão de ruídos, geradora de poluição sonora, lesiva de direitos individuais e colectivos, obviamente carecidos de protecção e tutela, pode ser encarada por três ópticas distintas, embora, em muitos casos, conexionadas e interligadas:

 - a do direito do ambiente, enquanto causa de evidente poluição ambiental, com assento primacial no próprio texto constitucional, no plano dos direitos e deveres sociais, de natureza análoga aos direitos fundamentais, em que se insere o direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado ( art. 66º),complementado e densificado pelas normas constantes da Lei de Bases do Ambiente, fundamentalmente orientada, imediatamente e em primeira linha, para a protecção de interesses colectivos ou difusos;

- a clássica visão da tutela do direito de propriedade, no domínio das relações jurídicas reais de vizinhança, permitindo ao proprietário de um prédio opor-se às emissões, provenientes de prédios vizinhos, que importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam ( art. 1346º do CC);

- finalmente, a dos direitos fundamentais de personalidade, consagrados, desde logo, no texto constitucional – direito à integridade física e moral e ao livre desenvolvimento da personalidade ( arts. 25º e 26º, nº1) e reiterados naturalmente no CC, ao contemplar, no art. 70º, a tutela geral da personalidade dos indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral – sendo óbvio e inquestionável que o direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade de vida na sua própria casa se configuram manifestamente como requisitos indispensáveis à realização do direito à saúde e à qualidade de vida, constituindo emanação do referido direito fundamental de personalidade.

    Daí que, em regra – e sem prejuízo de uma concreta e casuística ponderação judicial, a realizar em função do princípio da proporcionalidade acerca da intensidade e relevância da invocada lesão da personalidade – se imponha a conclusão de que, em caso de conflito, efectivo e relevante, entre o direito de personalidade e o direito ao lazer ou `a exploração económica de indústrias de diversão, se imponha a preservação dos direitos básicos de personalidade, por serem de hierarquia superior à dos segundos, nos termos do art. 335º do CC.

    Impõe-se, por outro lado, distinguir claramente os planos de uma possível ilegalidade administrativa no exercício das actividades que geram a poluição ambiental, decorrente do desrespeito das normas regulamentares ou atinentes ao licenciamento e à polícia administrativa, e da ilicitude, consubstanciada na lesão inadmissível do direito fundamental de personalidade. Tal diferenciação de planos tem justificadamente conduzido à conclusão de que os tribunais constituem a última linha de defesa daquele direito fundamental de personalidade, sempre que o mesmo não tenha sido devidamente acautelado pela actividade regulamentar ou de polícia da Administração, em nada obstando à tutela prioritária do direito fundamental lesado a mera circunstância de ter ocorrido licenciamento administrativo da actividade lesiva ou os níveis de ruído pericialmente verificados não ultrapassarem os padrões técnicos regulamentarmente definidos (vejam-se, por exemplo, os acs. do STJ de 22/10/98- p. 97B1024-de 13/3/97 – p.96B557- e de 17/1/02 – p. 01B4140).

   Merece particular realce a conclusão de que as normas, constitucionais e legais, que tutelam a preservação do direito básico de personalidade não podem ser vistas como contendo uma mera proclamação retórica ou platónica, sendo essencial que lhes seja conferido o necessário relevo e efectividade na vida em sociedade – não sendo obviamente tolerável que o interesse no exercício ou exploração lucrativa de actividades lúdicas ou de diversão se faça com o esmagamento dos direitos básicos de todos os cidadãos que tiverem o azar de residir nas proximidades, aniquilando, em termos claramente desproporcionados, o direito a gozar de um mínimo de tranquilidade, sossego e qualidade de vida no seu próprio domicílio.

   No caso dos autos, a perspectiva em que fundamentalmente se estriba a presente acção é a da tutela do direito de personalidade dos AA., afectado, de forma duradoura e relevante, pelas actividades ruidosas nocturnas exercitadas no estabelecimento explorado pelos RR. e pelas sequelas exteriores das mesmas, no momento em que os numerosos utentes o abandonam – não precludindo obviamente esta via, como atrás se referiu, a circunstância de se não ter demonstrado cabalmente que as actividades exercitadas violavam normas administrativas e ambientais sobre os limites de ruido.

   Não se acompanha, neste ponto, o decidido no acórdão recorrido acerca da inverificação de um facto ilícito, violador dos direitos de personalidade dos AA.

   Em primeiro lugar – e face à matéria de facto apurada, mesmo após as alterações decididas pela Relação - não pode duvidar-se que a própria actividade interna (isto é, dentro do próprio estabelecimento, em local plenamente controlado pelos RR.) de diversão nocturna explorada acarreta uma lesão séria e continuada do direito básico de personalidade dos AA., ocasionando dano substancial ao direito ao repouso e sossego e ao gozo e fruição de um mínimo de tranquilidade na sua própria casa.

   Não se olvide que está demonstrado que o som, resultante do funcionamento da discoteca,- inserida em zona habitacional e situada a 6 m do prédio dos AA. - muitas vezes até às 7 horas da madrugada, atravessa as paredes do imóvel onde se encontra instalado e ainda as suas janelas e portas, tornando-o perceptível no interior da habitação e até no quarto dos AA., ainda que com as janelas fechadas – sendo audível a música e podendo, por vezes, distinguir-se os seus detalhes acústicos.

  Ora, tal actividade, ocorrida em espaço controlado pelos RR. e lesiva do direito fundamental de personalidade dos AA., constitui comportamento ilícito, por envolver violação de um direito que, pela sua natureza e relevância, não pode deixar de se ter, em princípio, por prevalecente sobre os interesses empresariais dos RR. em explorarem, no local, uma actividade de discoteca/ estabelecimento de dança durante largos períodos nocturnos.

   Ou seja: perante este quadro factual, a actividade ruidosa nocturna levada a efeito no local – no interior do estabelecimento, em espaço plenamente controlado pela respectiva gerência – ocasiona um dano real, efectivo e consumado, não apenas do direito ao repouso e tranquilidade dos lesados no interior do seu domicílio, mas também envolve afectação do direito à saúde e integridade física e psicológica, agravada pela especial vulnerabilidade dos lesados, quer em função da idade, quer do estado de saúde do A.

 Não pode, pois, questionar-se que este comportamento dos respectivos administradores ou gerentes, em espaço por eles controlado, ao provocar – por manifesta insuficiência ou impossibilidade técnica de perfeita insonorização - um excesso de ruido audível de madrugada no interior da casa de habitação dos lesados se erige em causa adequada dos danos por eles sofridos, em sede de afectação dos direitos de personalidade: estamos, deste modo, confrontados com uma situação de, pelo menos, concausalidade, em que concorrem para a produção e extensão do dano, quer um comportamento directamente imputável aos RR., por ocorrido em espaço por eles plenamente controlado, quer comportamentos de terceiros/utentes, ocorridos no exterior do estabelecimento e que – embora se não possam imputar a título de censura aos RR., - têm de relevar para uma indispensável avaliação do impacto ambiental global negativo decorrente inevitavelmente da respectiva actividade empresarial.

  Na verdade, está cabalmente demonstrado que os ruídos e perturbações originadas pela actividade desenvolvida não se circunscrevem exclusivamente ao interior do estabelecimento, assumindo particular relevância e onerosidade as vozes, risos, gritos e ruídos de garrafas a partir produzidos pelos utentes do estabelecimento a partir do exterior e da via pública, e ainda o ruido emitido pelos respectivos veículos automóveis ou motociclos, nomeadamente pelo trabalhar dos seus motores, verificando-se sistematicamente arranques fortes com a produção de ruídos provocados pelo patinar das rodas motrizes e por um barulho intenso dos motores; das vozes e gritos dos utentes no espaço exterior são perceptíveis certas conversas e palavras no interior da habitação dos AA, sendo que é habitual os clientes permanecerem no exterior, quer durante o período de funcionamento, quer mesmo para além da hora de encerramento, conversando em voz alta, berrando e gritando;

- sempre que o espaço destinado a dança se encontra em funcionamento, os Autores, assim como os familiares e visitas pontuais que lá pernoitem, apenas com muita dificuldade conseguem adormecer, sendo que não conseguem dormir de forma repousada, tranquila e contínua, com um constante despertar, principalmente por força dos sons produzidos pelos utentes e respetivos veículos no exterior e zonas limítrofes envolventes, vendo o seu sono espalhado, com, pelo menos, dificuldade em voltar a adormecer.

- A factualidade supra descrita tem prejudicado, como consequência direta e necessária, fortemente, de forma reiterada e duradoura, o ânimo, disposição, qualidade de vida e alegria de viver dos autores, o que se está a repercutir gradualmente na sua saúde, condição física e mental, andando, durante os períodos de funcionamento intensivo do espaço de dança do estabelecimento, permanentemente mal dormidos, cansados, com sono e dor de cabeça, irritáveis, melancólicos, nervosos, sob stress, angustiados e revoltados.

- Durante os períodos em que o espaço para dança está em funcionamento, os netos dos autores, menores de idade, reduzem as pernoitas na sua casa ao absolutamente necessário e essencial, o que desgosta os autores.

- O Autor marido é uma pessoa doente, a quem foi extraído um rim na sequência de doença oncológica, sofrendo, ainda, de problemas cardíacos que, determinaram a aplicação de um pacemaker definitivo DDDR em data não apurada mas, pelo menos, em novembro de 2012 (cfr. documento de fls. 514 do procedimento cautelar), padecendo ainda de insónias, crises de ansiedade e hipertensivas, com repercussões negativas no seu coração e cérebro. (cfr. documento de fls. 514 do procedimento cautelar)

   Não pode, assim, duvidar-se que a situação global de excesso de ruído, provocado em parte directamente pela emissão de música em espaço plenamente controlado pelos RR. e, noutra parte, necessariamente e em termos consequenciais, pelos comportamentos previsíveis dos utentes no exterior, ligados inelutavelmente ao funcionamento e dimensão da discoteca, se erige em causa adequada da lesão do direito de personalidade dos AA. – não podendo deixar de se ponderar a fragilidade e vulnerabilidade destes e a consequente dificuldade acrescida em tolerar, sem consequências nocivas para a respectiva saúde e qualidade de vida, actividades ruidosas,- que não pode naturalmente ser ignorada ou desconsiderada pelos autores destas:

   E, embora se não possam responsabilizar civilmente os RR. por comportamentos de manifesta incivilidade  dos utentes da discoteca, ocorridos no exterior da mesma e após o respectivo encerramento, não poderá naturalmente deixar de se ponderar adequadamente este impacto ambiental negativo, consequente ao tipo de actividade exercida, quando se procurar realizar um juízo de compatibilização ou concordância prática dos interesses contraditórios em presença, nomeadamente ao fixar o horário permitido de funcionamento nocturno do estabelecimento de diversão…

    Importa realçar que – como se salientou em caso paralelo, abordado no acórdão atrás citado - não está em causa responsabilizar objectivamente os RR por quaisquer concretos actos danosos praticados, de forma aleatória e ocasional, por clientes na via pública: o que se trata é da indispensabilidade de - para ajuizar adequadamente da consistência, efectividade e gravidade da invocada lesão dos direitos de personalidade dos AA e procurar remediá-la, em termos adequados e proporcionais (nomeadamente ao fixar o horário permitido de funcionamento nocturno do estabelecimento) - proceder a uma avaliação do impacto ambiental negativo global que decorre, em termos inelutáveis, do funcionamento do estabelecimento de diversão nocturna em causa, não podendo dissociar-se a lesão sofrida da circunstância de nele se acomodar um número de utentes até 100/150 pessoas, que naturalmente terão de circular no local, de forma normalmente desordenada, nas horas de abertura e encerramento…

   E, por isso, quer na avaliação do preenchimento dos pressupostos da ilicitude e da culpa na lesão de direitos fundamentais de personalidade de terceiros, quer ao ao aplicar eventualmente a norma que rege sobre a colisão de direitos, não pode, numa perspectiva substancial – e sob pena de se precludir a efectividade da tutela dos direitos de personalidade lesados - deixar de se ter na devida conta todas as condições reais de funcionamento do estabelecimento e o dano ambiental que decorre necessariamente como consequência adequada - e inevitável - do tipo de actividades que nele se exercem: não se trata – como se referiu - de responsabilizar os proprietários do estabelecimento por específicos actos lesivos, concretamente praticados no exterior por clientes – que ninguém duvida não serem seus «comissários», por cuja actuação devam responder objectivamente – mas de ter em consideração condições e circunstâncias envolventes e que são manifestamente indissociáveis do tipo de actividade exercida, podendo e devendo quem explora tais actividades contar, num juízo de normal prognose, que a exploração de uma actividade de diversão nocturna, com a dimensão da revelada pelos presentes autos, numa zona residencial, é naturalmente susceptível de lesar ilicitamente direitos de terceiros.


6. Qual o reflexo deste enquadramento jurídico geral na concreta solução do litígio?

  Começam os recorrentes por peticionar, em primeira linha, que se decrete o encerramento do estabelecimento, por só assim se poder assegurar tutela do seu direito de personalidade, afectado pelo ruido gerado pelo respectivo funcionamento.

   Sucede, porém, que toda a matéria litigiosa, canalizada para os autos e processualmente adquirida, se centrou fundamentalmente na perturbação do direito ao sossego dos lesados, decorrente do funcionamento nocturno do bar/discoteca em questão, pelo que se não dispõe de elementos bastantes para inviabilizar, desde logo, um possível e eventual funcionamento do estabelecimento como mero café/esplanada, com exclusão do funcionamento nocturno como espaço de dança (já que é nesta peculiar e específica actividade que se fundam os danos mais gravosos invocados pelos AA).

   Ora, da matéria de facto apurada – e atrás especificada – decorre claramente que – apesar de algumas obras de insonorização realizadas – o estabelecimento explorado pelos RR não dispõe de condições adequadas para funcionar como espaço de bebidas e dança nocturno, por tal implicar uma lesão gravosa e desproporcionada do direito ao sossego e tranquilidade dos AA. no seu próprio domicílio, afectando, em termos intoleráveis, os seus direitos fundamentais de personalidade e pondo em causa, face à matéria provada, inclusivamente o direito à saúde destes.

   Ora, como vem constituindo jurisprudência corrente, numa situação como a dos autos, em que a actividade de discoteca implica inevitavelmente a produção de ruido nocturno audível no interior da casa de habitação dos AA., inviabilizando continuadamente o seu descanso e tranquilidade (não apenas por via do impacto ambiental negativo de tal actividade, consequente aos comportamentos no exterior dos utentes do estabelecimento, mas também pelo próprio ruido gerado pela emissão de música, projectado no interior do domicílio dos lesados) tem de conferir-se prevalência aos direitos de personalidade gravemente atingidos pela actividade ruidosa.

   Como se afirma, por exemplo, no muito recente Ac. de 29/11/2016, proferido por este Supremo no P. 7613/09.3TBCSC.L1.S1

Os direitos ao repouso, ao sono e à tranquilidade são emanação dos direitos fundamentais de personalidade, à integridade moral e física, à protecção da saúde e a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, corolários da dignidade humana. Por outro lado, são tarefas fundamentais do Estado a prossecução da higiene e salubridade públicas, o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a efectivação do direito ao ambiente, prevenindo e controlando a poluição e os seus efeitos e promovendo a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana.

II - Os direitos fundamentais, enquanto princípios que são, não se revestem de carácter absoluto, antes são limitados internamente, para assegurar os mesmos direitos a todas as outras pessoas, e também externamente, para assegurar outros direitos fundamentais ou interesses legalmente protegidos que com eles colidam, mediante a harmonização entre uns e outros, a qual sempre implicará o sacrifício, total ou parcial, de um ou mais valores.

III - Os conflitos entre o direito fundamental de um sujeito e o mesmo ou outro direito fundamental ou interesse legalmente protegido de outro sujeito hão de ser solucionados mediante a respetiva ponderação e harmonização, em concreto, à luz do princípio da proporcionalidade, evitando o sacrifício total de um em relação ao outro e realizando, se necessário, uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual.

IV - A essência e a finalidade deste princípio da proporcionalidade é a preservação, tanto quanto possível, dos diversos direitos fundamentais com amparo na Constituição e, em concreto, colidentes, através da sua harmonização e da otimização do meio escolhido com a observação das seguintes regras ou subprincípios: (i) a sua adequação ao fim em vista; (ii) a sua indispensabilidade em relação a esse fim (devendo ser, ainda, a que menos prejudica os cidadãos envolvidos ou a coletividade; (iii) a sua racionalidade, medida em função do balanço entre as respetivas vantagens e desvantagens.

   Por outro lado, acompanham-se inteiramente as considerações tecidas no Ac. de 29/11/2012, proferido pelo STJ no P. 1116/05.2TBEPS.G1.S1, onde se afirma, de forma certeira:

A actividade do estabelecimento e de outros similares é legítima, desde que licenciada e desde que sejam respeitadas as demais regras legais, designadamente as que se mostrem necessárias para acautelar direitos absolutos de terceiros. Contudo, tratando-se de actividade que funciona essencialmente em período nocturno mostra-se imprescindível uma especial atenção relativamente aos factores susceptíveis de afectarem o sossego e a tranquilidade de terceiros, com especial relevo para os aspectos atinentes ao ajustamento da potência da aparelhagem sonora e/ou ao eficaz isolamento do som, de modo a evitar-se a perturbação de todos quantos, habitando nas proximidades, pretendam descansar. 

Trata-se de matéria que, devendo obedecer ao Regulamento Geral do Ruído, não dispensa a adopção de outros cuidados quando, porventura, o respeito por tal Regulamento não seja suficiente para evitar a violação de direitos de natureza pessoal como os de personalidade, maxime quando é posto em causa o direito ao sono, ao sossego e à tranquilidade em período nocturno (Acs. do STJ, de 22-9-05, Revista nº 4264/04, e de 18-2-03 (Revista nº 4733/02).

Afinal, os direitos de personalidade não podem deixar de ser privilegiados no confronto com outros direitos, como são os conexos com o exercício de actividades lucrativas que impliquem o funcionamento de locais de diversão nocturna.

2.3. Nem sempre estes aspectos têm sido considerados, acautelados e preservados. Como a experiência o revela, não raras vezes os interesses daqueles que exploram ou que frequentam aqueles estabelecimentos de diversão acabam por se sobrepor a outros interesses ou aos direitos de outros indivíduos, perante a inacção das autoridades competentes em matéria de licenciamento ou de fiscalização de actividades ruidosas.

Com demasiada frequência se verificam comportamentos dilatórios ou atitudes de pura inércia geradoras de uma verdadeira denegação de direitos, abstendo-se aquelas entidades do uso dos mecanismos legais e/ou dos instrumentos administrativos que, com menores custos para os interessados e com mais eficácia, permitiriam uma melhor compatibilização dos direitos em conflito ou, se necessário, a cessação efectiva de situações de pura e manifesta ilegalidade.

Numa sociedade hedonista, parecem ganhar excessivo relevo tais actividades, como se não merecessem atenção os incómodos causados aos cidadãos (muitas vezes cidadãos mais idosos ou com menor capacidade de reacção) que habitam nas proximidades de estabelecimentos de diversão produtores de ruído. Omitindo-se medidas que levem a introduzir melhorias de ordem técnica ou de gestão capazes de evitar ou de atenuar os impactos negativos, são passados para plano secundário interesses inerentes a direitos subjectivos que deveriam ser merecedores de maior protecção.

Tal não se deve à falta de dispositivos legais: desde a Constituição que tutela o direito à qualidade de vida e à qualidade ambiental, passando pelo preexistente Código Civil que já na década de 60 do século XX previu a tutela dos direitos da personalidade (art. 70º), culminando com a aprovação do Regulamento Geral de Ruído (que actualmente consta do Dec. Lei nº 9/07, de 17-1, que revogou o Dec. Lei nº 292/00, de 14-11), a par da publicação de outros diplomas avulsos que regem aspectos de ordem urbanística ou relacionados especificamente com a qualidade das construções, nomeadamente com o respectivo isolamento acústico.

Como o quotidiano o revela, o que tem faltado, isso sim, é o uso adequado dos mecanismos legais já existentes, tudo se passando, com uma frequência inadmissível, como se a Lei Fundamental e outros diplomas constituíssem meros elementos decorativos de um ordenamento aparentemente moderno e zelador dos direitos dos cidadãos mas que, na realidade, acaba por descurar a tutela efectiva de direitos fundamentais. 

Isto, apesar de o Regulamento Geral do Ruído prever no seu art. 4º a atribuição de competências específicas às autoridades públicas para efeito de prevenção e controlo do ruído, assegurando o cumprimento de regras que tutelam interesses de ordem pública e os direitos dos cidadãos.

Para o efeito, justificar-se-iam seguramente maiores limitações do que aquelas que a experiência revela no que concerne, por exemplo, ao licenciamento de estabelecimentos de diversão nocturna geradores de maiores incómodos para a generalidade dos cidadãos. Limitações essas especialmente justificadas em zonas habitacionais, exigindo cuidados redobrados o licenciamento desses estabelecimentos, designadamente com efectiva ponderação da sua localização, horário de funcionamento ou condições de isolamento (cfr., para o efeito, o que consta do actual Regulamento Geral do Ruído aprovado pelo Dec. Lei n. 9/07, de 17-1, ou o Dec. Lei nº 146/06, de 31-7, na sequência da Directiva nº 2002/49/CE, de 25-6).

Como refere Miguel Lopes, “é possível proceder ao isolamento acústico entre diferentes tipos de estabelecimentos e as habitações, mas a melhor forma de controlo do ruído está no zonamento de actividades”, para o efeito, “sobrepondo o bom senso aos interesses económicos em jogo, através da definição de zonas especiais para a implantação de bares e discotecas, por forma a não perturbarem as habitações”. Por outro lado, não será o facto de um determinado estabelecimento se mostrar licenciado e a cumprir formalmente todas as obrigações constantes do alvará que obstará à responsabilização dos seus proprietários, desde que se apurem factos integrantes da responsabilidade civil extracontratual, tanto mais que, como assinala o referido autor, é ao utilizador final do estabelecimento que compete o “cumprimento das exigências legais a respeito do ruído emitido pelo estabelecimento” (em Ambiente em análise, na Revista Judiciária, nº 27, pág. 27).

  Ora, transpondo estas considerações de princípio para a especificidade da matéria litigiosa da presente acção, considera-se que o equilíbrio proporcional entre o direito de personalidade dos lesados e o exercício da actividade empresarial dos RR. implica – face às demonstradas condições do local – a sua inviabilidade de funcionamento como estabelecimento de dança/ emissão de música durante o período nocturno, por tal implicar o esmagamento ou lesão gravosa e desproporcional dos direitos fundamentais invocados pelos AA: e, por isso, considera-se que o ponto de equilíbrio adequado consistirá em, na procedência do pedido subsidiário formulado pelos recorrentes, proibir a utilização do local como espaço destinado a dança e emissão de música durante o período normal repouso nocturno, ou seja, entre as 22 e as 7 horas , assim se eliminando o incómodo proveniente da audição, no domicílio dos AA., do ruido da música emitida no espaço do estabelecimento e atenuando, pelo horário do respectivo encerramento, o impacto ambiental negativo causado, a altas horas, pela entrada/ saída desordenada e incívica dos respectivos utentes.

   No que se refere à indemnização arbitrada aos lesados pelos danos não patrimoniais sofridos, considera-se injustificada a revogação, operada pelo acórdão recorrido, da compensação concedida em 1ª instância – em valores, aliás, moderados – pela circunstância de, perante a matéria de facto apurada, ser pessoalmente imputável aos RR. a produção de excesso de ruido no interior do próprio estabelecimento, audível no interior da residência dos AA. durante o período de repouso nocturno ; existindo, assim, um nexo de concausalidade, em que tal comportamento dos RR., a eles plenamente imputável, por ocorrer em espaço por eles controlado, se adiciona, para agravar os danos, ao excesso de ruido proveniente de comportamentos no exterior de utentes do estabelecimento.

  E assim, perante tal situação de concausalidade, em que uma das causas da lesão e do dano sofrido radica em facto ilícito e culposo dos próprios RR., nada obsta a que os estes sejam civilmente responsabilizados, na medida da sua contribuição causal e pessoal para os danos invocados – repondo-se por isso, quanto a esta matéria, o decidido na sentença proferida em 1ª instância.


    7. Nestes termos e pelos fundamentos apontados concede-se em parte a revista, e em consequência, revogando o decidido no acórdão recorrido:

- condenam-se os RR. a fazer cessar, de imediato, a utilização do estabelecimento por eles explorado como espaço nocturno de dança/discoteca/ emissão de música , abstendo-se de o utilizar para esses fins entre as 22.00 horas e as 07.00 horas do dia seguinte;

- repõe-se a condenação dos RR. no pagamento de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelos AA., decretada em 1ª instância , no montante global de €8.000,00 (oito mil euro), distribuídos nos termos ali determinados;

-e confirmando-se, em tudo o mais, o decidido no acórdão recorrido.

Custas da acção e recurso na proporção de 2/3 para os RR. e 1/3 para os AA.


Lisboa, 29 de Junho de 2017


Lopes do Rego (Relator)

Távora Victor

António Piçarra