Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
406/12.2TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
PERDA DE INTERESSE DO CREDOR
MORA
PRAZO RAZOÁVEL
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
ESCRITURA PÚBLICA
TERMO ESSENCIAL
OCUPAÇÃO DE IMÓVEL
Data do Acordão: 11/02/2017
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DE OBRIGAÇÕES / CONTRATO-PROMESSA / RESOLUÇÃO DO CONTRATO / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / NÃO CUMPRIMENTO / FALTA DE CUMPRIMENTO E MORA IMPUTÁVEIS AO DEVEDOR / MORA DO CREDOR.
Doutrina:
-Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 4.ª Edição, 1990, 119.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 410.º, N.ºS 1 E 3, 432.º, N.º 1 E 808.º, N.º 1.
Sumário :
I. A perda do interesse do credor há de resultar da apreciação objetiva da situação, emergente da “natureza das coisas”, determinada na perspetiva de afastamento de qualquer subjetivismo.

II. A lei atribui ao credor o poder de fixar, ao devedor em mora, o prazo razoável para além do qual deixa de lhe interessar mais a prestação.

III. A resolução do contrato-promessa, não se baseando na lei ou em convenção, é ilícita.

IV. A falta de um dos promitentes à escritura pode corresponder a uma recusa inequívoca em outorgar o contrato prometido, havendo o incumprimento do contrato-promessa.

V. Tal não sucede quando a intenção não foi a de não cumprir o contrato-promessa, mas por se considerar extinto, por resolução, ainda que efetivamente não estivesse.

VI. A falta de uma das promitentes-vendedoras à escritura, ainda que o promitente-comprador tivesse comparecido, obsta a que se atribua ao promitente-comprador o incumprimento definitivo do contrato-promessa.

VII. Inexistindo a situação de incumprimento definitivo do contrato-promessa, imputável a qualquer um dos contraentes, estes estão ainda em condições de celebrar o contrato prometido.

VIII. Mantendo-se em vigor o contrato-promessa, subsiste o acordo quanto à fruição da fração pelo promitente-comprador.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I – RELATÓRIO


A AA - Materiais de Construção, Lda., instaurou, em 21 de fevereiro de 2012, na então 6.ª Vara Cível da Comarca de … (Juízos Centrais Cíveis de Lisboa, Comarca de Lisboa), contra BB e CC - Compra e Venda de Imóveis, Lda, ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que fosse declarado resolvido o contrato-promessa de compra e venda relativo à fração autónoma designada pela letra “E”, correspondente ao 3.º andar do prédio sito na Rua …, n.º s 25, 27 e 29, em …, que a Autora tem direito a fazer seu o sinal prestado pelo Réu, no valor de € 30 000,00, que o Réu fosse condenado a pagar-lhe a quantia mensal de € 600,00, desde novembro de 2011, acrescida dos juros de mora desde a citação, e a desocupar e restituir de imediato, livre de pessoas e bens, a fração, e que a Ré fosse condenada a pagar-lhe a indemnização a liquidar em “execução de sentença”, acrescida dos juros de mora, à taxa comercial, desde a citação até integral e efetivo pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese, que, com a R., é legítimo proprietário da fração, que prometeram vender ao R., tendo este, que prometeu comprar, pago sinal e a restante parte do preço a ser paga na data da escritura pública, a realizar trinta dias após o levantamento do embargo da obra pela Câmara Municipal de …, podendo, entretanto, a fração ser usada pelo R; este recusou-se a celebrar a escritura e, em outubro de 2011, enviou-lhe uma carta a resolver o contrato-promessa, por falta de interesse na compra da fração, que a A. não aceitou, tendo marcado a escritura, para a qual os RR. não compareceram.

Contestou a R., por exceção e impugnação, concluindo pela improcedência da ação.

Contestou também o R., por impugnação, concluindo pela improcedência da ação. Em reconvenção, pediu ainda que fosse reconhecida a resolução do contrato-promessa e que a A. fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 60 000,00, acrescida de juros, vencidos desde outubro de 2010 até efetivo e integral pagamento, alegando, para o efeito, o incumprimento do contrato-promessa, imputável às promitentes vendedoras e o direito a receber o dobro do sinal prestado.

Replicou a A., respondendo, por um lado, à matéria de exceção e, por outro, contestando, por exceção e impugnação, a reconvenção.

Treplicou ainda o R., para responder à matéria de exceção.

Foi proferido despacho saneador, julgando-se improcedentes as exceções alegadas, e foi organizada a base instrutória, da qual houve reclamação, com parcial êxito.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 29 de agosto de 2014, sentença, que julgando a ação improcedente, absolveu os Réus do pedido, e a reconvenção procedente, reconheceu a resolução do contrato-promessa e condenou a Autora a pagar ao Réu a quantia de € 60 000,00, acrescida de juros, desde outubro de 2010 até efetivo e integral pagamento.


Inconformada, a Autora apelou para o Tribunal da Relação de …, que, por acórdão de 14 de fevereiro de 2017, dando procedência ao recurso, revogou a sentença, declarando resolvido o contrato promessa, reconhecendo à Autora o direito a fazer seu o sinal prestado, no valor de € 30 000,00, e condenando o Réu a pagar à Autora a quantia mensal de € 300,00, desde novembro de 2011 até à efetiva desocupação e restituição da fração, acrescida dos respetivos juros de mora, desde a citação, e a desocupar e restituir, de imediato, livre de pessoas e bens, a fração, e ainda declarando improcedente a reconvenção.


Inconformado, foi agora o Réu que recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou essencialmente as conclusões:

a) Decidiu mal a Relação ao atribuir ao Recorrente a culpa pela resolução do contrato, porquanto a sua conduta não preenche os requisitos do instituto do abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium.

b) Ainda que assim não fosse, nunca poderia ser condenado à perca do sinal, mas antes devia ser restituído em singelo e condenado apenas a pagar um valor correspondente a € 300,00 por mês, desde a entrada da ação até à desocupação da fração, a título de compensação pela ocupação.

c) Tendo sido válida e eficaz a resolução do contrato operada pelo Recorrente, deve ser reconhecido como válida e eficaz a detenção da fração pelo Recorrente, no exercício do direito de retenção que lhe assiste.

d) O acórdão recorrido errou na interpretação dos factos, o que motivou o erro na determinação da norma aplicável – art. 674.º, n.º 1, do CPC.

e) A decisão recorrida deve ser revogada, porquanto aplica erradamente a lei aos factos, violando os arts. 441.º, 442.º, n.º 2, 801.º, 808.º e 755.º, n.º 1, alínea j), do Código Civil, e aplicando erradamente o art. 334.º do CC


Com a revista, o Réu pretende a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição pela decisão da 1.ª instância.


Contra-alegou a Autora, no sentido da improcedência do recurso.


Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


Neste recurso, está essencialmente em discussão o incumprimento de contrato-promessa de compra e venda de imóvel.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos:

1. A A. e a R. são donas e legitimas proprietárias, cada uma de 1/2 da fração autónoma designada pela letra “E”, correspondente ao 3.º andar do prédio urbano, sito na Rua …, n.º s 25, 27 e 29, em …, freguesia de …, e descrito na Conservatória do Registo Predial de …, sob o n.º 42.

2. O R. é, desde 23 de maio de 2005, sócio gerente da R., tal como o seu irmão.

3. A A. e a R. adquiriram o edifício referido em junho de 2005 e iniciaram, no mesmo, obras de restauro.

4. Em 10 de abril de 2006, a A. e a R. prometeram vender ao R., que aceitou e prometeu comprar, o imóvel referido, nos termos e condições constantes do documento junto a fls. 118 a 121.

5. Nos termos desse contrato, a venda foi prometida realizar mediante o pagamento de € 230 000,00.

6. No acto da celebração do contrato promessa, foi pago, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de € 60 000,00, tendo € 30 000,00 sido entregues à A. e € 30 000,00 à R.

7. A restante parte do preço seria paga no ato da outorga da escritura de compra e venda.

8. Por força do embargo da obra por parte da Câmara Municipal de …, registado na Conservatória do Registo Predial de …, ficou acordado que a escritura seria outorgada 30 dias após o cancelamento do registo do embargo.

9. Nos termos do disposto na cláusula quarta, a marcação da escritura deveria ser efetuada pelo promitente-comprador, que, para o efeito, deveria avisar as promitentes-vendedoras do dia, hora e local da sua celebração.

10.   De acordo com o contrato, as promitentes-vendedoras entregaram a fração ao promitente-comprador, na data da sua celebração.

11. O registo do levantamento do embargo (cancelamento do registo de embargo) foi efetuado em 17/2/2009.

12. Em 6/3/2009, a A. dirigiu ao R. a carta de fls. 47, informando-o de que estavam reunidas as condições para a outorga da escritura, a qual se poderia realizar no prazo de trinta dias.

13.   Em 14/7/2010, o R. dirigiu à A. a carta de fls. 49 e 50.

14.   Em 26/7/2010, a A. respondeu à essa carta, mediante o envio da carta de fls. 51 a 57.

15. Em 1/9/2010, o R. respondeu à carta da A., nos termos de fls. 58 a 61.

16.  O R., por carta de outubro de 2011, comunicou à A. a resolução do contrato promessa, invocando, além do mais, a perda de interesse na compra da fração, nos termos de fls. 62 e 63.

17.  Após a receção dessa carta, a A. marcou a escritura pública, comunicando em 3/11/2011 ao R. e à R. que a escritura se realizaria no dia 15/11/2011, pelas 15 horas, no Cartório Notarial da Dr.ª DD, sito na Praça …, n.º 74, 1.º-A, em ….

18.   Os RR. não compareceram para a realização da escritura.

19. A mandatária do R. informou o Cartório, via correio eletrónico, de que a escritura ficaria sem efeito, por o seu cliente ter resolvido o contrato promessa.

20. E um dos gerentes da R. remeteu para o Cartório um “fax”, no qual anexou a certidão do alvará n.º 1…/EO/2009, emitido pela Câmara Municipal de …, em 14/1/2009, referente à aprovação das obras de alteração do prédio.

21. Em 14/11/2011, a R. dirigiu à A. a carta de fls. 72 e 73, dando-lhe conta de que não iria comparecer para a realização da escritura, invocando como razões para tal, nomeadamente, a falta de conclusão das obras e a falta de licença de utilização, mais referindo que considerava que se deveria ter negociado com o promitente-comprador e que a marcação da escritura constituía uma “habilidade” com a qual não iria pactuar.

22. A R. dirigiu à A. uma carta, em 11/1/2012, propondo-lhe comprar a metade da fração prometida vender, pelo preço de € 75 000,00.

23. A A. e a R., no decurso das obras, haviam acabado por apresentar projeto da obra e requerer a licença de utilização.

24. Por despacho de 6/12/2011, foi emitido pela Câmara Municipal de … o alvará de utilização n.º 4…/UT/2011, relativo ao prédio.

25. A A., após a emissão da licença de utilização, marcou de novo a escritura, comunicando, em 23/1/2012, ao R. e à R., que a escritura se realizaria no dia 1/2/2012, pelas 14:30 horas, no referido Cartório Notarial.

26. O gerente da R., em 27/1/2012, enviou para a A. uma carta, informando de que a sua comparência no Cartório é inútil e descabida, face à resolução do contrato por parte do promitente-comprador.

27. E a mandatária do R. voltou a informar o Cartório, via correio eletrónico, de que a escritura ficaria sem efeito, por o seu cliente ter resolvido o contrato-promessa.

28. Em 30/7/2010, a então mandatária da A. enviou à R. uma carta, pedindo-lhe que tomasse uma posição sobre a questão, nomeadamente que informasse se, tal como a outra promitente vendedora, estava disponível para a outorga da escritura.

29.  A R. não deu qualquer resposta a essa comunicação.

30. Só em 31/10/2011 é que o gerente da R. enviou para a A., por via de correio eletrónico, uma comunicação onde expressa a sua posição, no sentido de que se deveria ter negociado com o promitente-comprador.

31. O projeto de arquitetura foi aprovado em 30/5/2008.

32. O processo de construção obteve deferimento em 28/11/2008 na generalidade, entrando posteriormente em fase de aprovação de especialidades.

33. O andar situa-se no centro da cidade de …, numa zona histórica.

34. É um duplex, com cerca de 100 m2, constituído, no andar superior, por uma suite com vestíbulo, e, no andar inferior, por sala, cozinha, quarto e casa de banho.

35. A fração foi entregue ao R. em agosto de 2007.

36. A licença de obra foi emitida em 14 de janeiro de 2009.

37. Da licença consta a obrigação de ser requerida a licença de utilização.

38. A realização das obras esteve a cargo da EE - Construção e Recuperação de Edifícios, Lda.

39. Esta apresentou orçamento e cronograma dos trabalhos a efetuar no prédio, documento entregue em 25/7/2005.

40. Na sequência de vistoria obrigatória, efetuada pelos bombeiros, as proprietárias vieram a ser notificadas pela Câmara Municipal de que era necessário colocar um tubo de evacuação de fumos.

41. Esse tubo tinha que passar obrigatoriamente pela fração.

42. A colocação do tubo aconteceu cerca de um ano após a visita dos bombeiros.

43. Enquanto se aguardava a colocação desse tubo, o processo camarário esteve parado.

44. Tais factos são do conhecimento do R., que lhe advém da sua qualidade de representante legal da R.

45. As obras foram contratadas, verbalmente, por A. e Ré.

46. Sendo a definição das obras a efetuar em concreto, bem como os demais aspetos da realização das mesmas, um trabalho que ficou a cargo da EE - Construção e Recuperação de Edifícios, Lda., a pedido das promitentes-vendedoras (alterado pela Relação).

47. As obras no prédio deviam estar terminadas no final de novembro de 2005.

48. Era um trabalho das promitentes-vendedoras, que o delegaram na EE - Construção e Recuperação de Edifícios, Lda., a obtenção das licenças necessárias à realização da obra (alterado pela Relação).

49. Após o R. ter tomado a posse da fração e passado a habitar nela, deram-se infiltrações na tubagem de ar condicionado, que obrigaram a que, durante um mês, não existissem condições de habitabilidade.

50. Não era possível celebrar os contratos com a EPAL (água) e EDP (eletricidade) em virtude da obra estar embargada.

51. Durante várias semanas, o R. ficou privado de água, o que obrigou a ir habitar, durante um mês, para casa de pessoas amigas.

52. A EPAL obrigou a novos trabalhos dentro da fração.

53. O processo de concessão de crédito para habitação nunca foi iniciado junto do banco pelo R., porquanto, para tanto, era necessária a conclusão das obras, a alteração da descrição predial da fração e o seu licenciamento para habitação.

54. Quando celebrou o contrato-promessa, o R. teve a garantia da A. de que poderia habitar a fração a partir de agosto de 2006 (alterado pela Relação).

55. O acesso ao andar para obras foi sempre facultado pelo R., tendo apenas pretendido, aquando da realização das obras do tubo de evacuação de fumos, que simultaneamente fossem realizadas outras obras da responsabilidade dos promitentes-vendedores, como forma de evitar que a habitação fosse sucessivamente devassada.

56. Uma fração idêntica à habitada pelo R. e, no mesmo local, é arrendada por um valor mensal entre € 600,00 e € 700,00.



***



2.2. Delimitada a matéria de facto, com a modificação decidida pela Relação e o expurgo das redundâncias e juízos conclusivos, importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, nomeadamente sobre o incumprimento do contrato-promessa de compra e venda de imóvel.

O Recorrente, imputando o incumprimento do contrato-promessa à Recorrida, pretende a repristinação da sentença, que lhe reconheceu o direito de resolução do contrato, mas que o acórdão recorrido revogou, declarando a resolução, por incumprimento dos RR.

A Recorrida, amparando-se no acórdão recorrido, insiste na imputação ao Recorrente do incumprimento do contrato-promessa.

Identificada a controvérsia emergente dos autos, vejamos então o direito aplicável aos factos provados.


O contrato-promessa, de acordo com o art. 410.º, n.º 1, do Código Civil (CC), é a convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato, a que se chama o contrato prometido ou contrato definitivo.

O objeto do contrato-promessa corresponde a uma obrigação de contratar, que varia consoante o contrato prometido.

No contrato-promessa relativo à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou sua fração autónoma, já construído ou a construir, exige-se que o documento escrito, que formaliza o contrato-promessa, contenha o reconhecimento presencial da assinatura dos promitentes e a certificação, pelo notário, da existência da licença de utilização ou de construção (art. 410.º, n.º 3, do CC).

Dada a maior solenidade deste tipo de contrato-promessa, procurou conferir-se um cuidado especial à sua celebração, evitando a negociação em casos de construção clandestina, numa proteção concedida especialmente a favor do adquirente.

No caso dos autos, o Recorrente, como promitente-comprador, e a Recorrida e a Ré, como promitentes-vendedores, celebraram por escrito, em 10 de abril de 2006, um contrato- promessa de compra e venda de imóvel, pelo preço de € 230 000,00.

Nos termos desse contrato, a escritura deveria ser celebrada até 120 dias após a sua assinatura, cabendo ao promitente-comprador a sua marcação e o aviso da outra parte, com a antecedência mínima de oito dias (cláusula 4.ª). No entanto, por efeito do embargo da obra no imóvel, as partes acordaram que a escritura seria outorgada trinta dias após o cancelamento do registo do embargo (cláusula 5.ª).

Na data da outorga do contrato-promessa, o Recorrente entregou às promitentes-vendedores o sinal de € 60 000,00, ficando acordado que a restante parte do preço seria pago no ato da outorga da escritura (cláusula 3.ª).

Por outro lado, o imóvel foi entregue ao Recorrente em agosto de 2007, apesar de, no contrato-promessa, se ter declarado a entrega reportada à data da sua celebração (cláusula 5.ª, n.º 2).  

A escritura de compra e venda, no entanto, não foi celebrada, embora o cancelamento do registo de embargo tivesse sido efetuado em 17 de fevereiro de 2009, sendo certo que cabia ao promitente-comprador a sua marcação e a notificação prévia das promitentes-vendedoras.

Não decorre do contrato, nem do contexto da sua execução resulta que o prazo, para a formalização da escritura, constituísse um prazo fixo ou absoluto, de modo que, sendo desrespeitado, tal equivaleria ao incumprimento definitivo do contrato-promessa.

Ultrapassado o prazo previsto no contrato, o promitente-comprador, porque lhe incumbia o dever da marcação da escritura, poderia incorrer na situação de mora.

A mora subsiste enquanto a prestação não for efetuada ou se mantiver o interesse do credor na prestação.

Perdido objetivamente o interesse na prestação ou não sendo esta realizada dentro do prazo razoavelmente fixado pelo credor, a obrigação considera-se como não cumprida, com todas as consequências daí emergentes (art. 808.º, n.º 1, do CC).

A perda do interesse do credor, no entanto, há de resultar de uma apreciação objetiva da situação, emergente da “natureza das coisas”, determinada na perspetiva de afastamento de qualquer subjetivismo. Verificada a perda de interesse do credor, a mora equivale, desde logo, ao não cumprimento definitivo da obrigação (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em geral, 4.ª edição, 1990, pág. 119).

Noutras situações, porém, pretendendo o credor converter, legitimamente, a mora no não cumprimento definitivo, a lei atribui-lhe o poder de fixar, ao devedor em mora, um prazo razoável para além do qual deixa de lhe interessar mais a prestação. Na realidade, o credor não é obrigado a permanecer vinculado ad aeternum e apenas o não cumprimento definitivo legitima a resolução do contrato.

Para esse efeito, o credor pode então interpelar o devedor, intimando-o a cumprir a prestação, dentro de prazo razoável, fixado de acordo com as circunstâncias concretas do contrato a celebrar, com a advertência, muito clara, de que a falta da prestação, no prazo fixado, o fará incorrer no incumprimento definitivo da obrigação.

Trata-se, pois, da chamada interpelação admonitória ou interpelação cominatória, que visa conceder ao devedor uma derradeira possibilidade de manter o contrato, nas palavras expressivas de ANTUNES VARELA (ibidem, pág. 119).

 

No caso sub judice, o Recorrente, que tinha o dever de marcar a escritura, não chegou a fazê-lo e por carta, de outubro de 2011, comunicou à Recorrida a resolução do contrato-promessa, invocando, designadamente, a perda de interesse na compra da fração.

O Recorrente fundamenta a perda de interesse, invocando especialmente que “as condições atuais não só estão completamente alteradas, por diminuição considerável dos (…) rendimentos do trabalho, enquanto profissional livre, como, de igual modo, o recurso ao crédito já não é possível” (fls. 63).

Quanto ao recurso ao crédito, ficou provado que o processo de concessão de crédito nunca foi iniciado junto do banco, porquanto, para tanto, era necessária a conclusão das obras, a alteração da descrição predial da fração e o seu licenciamento para habitação (53.)

A alteração superveniente da situação económico-financeira do Recorrente, a impossibilitar ou a tornar extremamente difícil o pagamento do restante preço do imóvel prometido comprar (€ 170 000,00), poderia objetivar uma situação de perda de interesse do promitente-comprador, para mais quando o contrato-promessa fora celebrado em 10 de abril de 2006. Com efeito, dado o lapso de tempo decorrido desde o contrato-promessa, a situação económica do promitente-comprador podia ter-se deteriorado, designadamente por efeito da diminuição substancial de rendimentos ou recusa da concessão de crédito bancário, ao ponto de ficar sem condições para a aquisição do imóvel prometido comprar.

Contudo, apesar dessa possibilidade, não se provaram factos suscetíveis de objetivarem a perda do interesse contratual do promitente-comprador. Na verdade, não ficou demonstrada qualquer diminuição de rendimentos, nomeadamente entre a data do contrato-promessa e a invocação da perda do interesse manifestada pelo promitente-comprador. Por outro lado, porque o procedimento para a obtenção do crédito bancário nem sequer foi iniciado, não se pode afirmar, sem a conjugação de outros factos, que não se conhecem, que o financiamento não era possível. Dadas as vicissitudes com as obras do imóvel, porém, admite-se que tal procedimento pudesse vir a ser mais complexo, mas isso, só por si, não podia obstar à concessão do crédito bancário.

Para além disso, o promitente-comprador continua a fruir do imóvel, para sua habitação, depois de entregue em agosto de 2007, o que não deixa de se revelar como contrário à alegada perda do interesse contratual.

Não se configura, assim, uma perda objetiva do interesse do promitente-comprador na compra e venda da fração, que justifique a imputação do incumprimento à parte contrária.

Nestas circunstâncias, a resolução do contrato-promessa pelo promitente-comprador, não se baseando na lei ou em convenção (art. 432.º, n.º 1, do CC), é ilícita, não produzindo o efeito jurídico pretendido pelo seu declarante.

Para além de não se provar a perda do interesse do promitente-comprador, também não se provou, sequer, que as promitentes-vendedoras tenham incorrido em mora, dado que, competindo ao primeiro a marcação da escritura, o mesmo ainda não diligenciou pela sua realização.

O contrato-promessa, sendo assim, permanece ainda em vigor.


Mas se não pode imputar-se o incumprimento do contrato-promessa às promitentes-vendedores, poderá, ao invés, ser atribuído ao promitente-comprador, como se decidiu no acórdão recorrido.

Com se viu, o promitente-comprador tinha a obrigação de marcar a escritura, com aviso prévio à contraparte, mas não chegou a marcar a data da escritura.

Independentemente de se ignorar se estariam reunidas todas as condições para a sua celebração, situação que os autos não esclarecem, mas admitindo que o promitente-comprador poderia estar em mora, caberia, então, às promitentes-vendedoras a fixação de um prazo razoável para que o promitente-comprador procedesse à marcação da escritura, sob a cominação de se considerar, para todos os efeitos, como não cumprida a obrigação, atento o disposto no art. 808.º, n.º 1, do CC.

Tal, porém, não sucedeu, não cabendo às promitentes-vendedoras, nos termos do contrato celebrado, a marcação da escritura de compra e venda, sendo irrelevantes, portanto, as sucessivas marcações realizadas por uma das promitentes-vendedoras.

Por isso, da falta do promitente-comprador à escritura marcada não emerge qualquer efeito jurídico, designadamente de recusa a celebrar o contrato prometido, não podendo, nessa medida, imputar-se-lhe o incumprimento do contrato-promessa.

Por outro lado, a sua falta de comparência à escritura, marcada pela Recorrida, não equivale à recusa em outorgar a escritura de compra e venda.

Na verdade, o promitente-comprador faltou ao ato, invocando, sempre, ter resolvido o contrato-promessa, circunstância que correspondia à realidade. Mas, sendo ilícita a resolução do contrato-promessa, como se referiu, não podia ter-se o mesmo como extinto, e, como tal, não podia ser invocada para obstar à celebração da escritura de compra e venda.

Assim, dado o contexto específico da falta de comparência do promitente-comprador ao ato notarial, não é possível depreender, dessa circunstância, uma intenção clara, correspondente à recusa da celebração do contrato prometido. Se, nalguns casos, a falta de uma parte à escritura pode corresponder a uma recusa inequívoca em outorgar o contrato prometido e, daí, resultar o incumprimento do contrato-promessa, no caso presente, tal não sucede, visto que a intenção não foi a de não cumprir o contrato-promessa, mas considerá-lo extinto, por resolução, ainda que efetivamente não estivesse.

Sendo as situações distintas, tem de lhe corresponder um tratamento jurídico diferenciado.

Neste contexto, não pode imputar-se, ao promitente-comprador, o incumprimento definitivo do contrato-promessa.


Por outro lado, importa ainda considerar não ser possível extrair da falta de comparência do Recorrente à escritura pública o efeito jurídico pretendido pela Recorrida, quando, ao mesmo ato, também faltou a outra promitente-vendedora, sem a qual era impossível a outorga do contrato prometido, meso que o Recorrente tivesse comparecido.

Esta circunstância obsta, igualmente, que possa atribuir-se, ao promitente-comprador, o incumprimento definitivo do contrato-promessa, carecendo de fundamento legal a resolução declarada no acórdão recorrido.


Inexistindo, pois, uma situação de incumprimento definitivo do contrato-promessa, imputável a qualquer um dos contraentes, estão estes ainda em condições de celebrar o contrato prometido, por ainda ser possível.

Nesta medida, da circunstância de ainda não se ter realizado a escritura pública de compra e venda prometida e de não ocorrer uma situação de incumprimento definitivo do contrato-promessa, nenhum efeito jurídico pode resultar, nomeadamente dos previstos no art. 442.º, n.º 2, do Código Civil.

Além disso, mantendo-se ainda em vigor o contrato-promessa, subsiste o acordo quanto à fruição da fração pelo promitente-comprador, legitimando a sua ocupação.

Consequentemente, não pode manter-se, integralmente, o acórdão recorrido, assim como também não pode repristinar-se a sentença, o que determina a improcedência tanto da ação como da reconvenção.


Assim, é de conceder a revista parcial, absolvendo o Recorrente do pedido formulado na ação.


2.3. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

 

I. A perda do interesse do credor há de resultar da apreciação objetiva da situação, emergente da “natureza das coisas”, determinada na perspetiva de afastamento de qualquer subjetivismo.

II. A lei atribui ao credor o poder de fixar, ao devedor em mora, o prazo razoável para além do qual deixa de lhe interessar mais a prestação.

III. A resolução do contrato-promessa, não se baseando na lei ou em convenção, é ilícita.

IV. A falta de um dos promitentes à escritura pode corresponder a uma recusa inequívoca em outorgar o contrato prometido, havendo o incumprimento do contrato-promessa.

V. Tal não sucede quando a intenção não foi a de não cumprir o contrato-promessa, mas por se considerar extinto, por resolução, ainda que efetivamente não estivesse.

VI. A falta de uma das promitentes-vendedoras à escritura, ainda que o promitente-comprador tivesse comparecido, obsta a que se atribua ao promitente-comprador o incumprimento definitivo do contrato-promessa.

VII. Inexistindo a situação de incumprimento definitivo do contrato-promessa, imputável a qualquer um dos contraentes, estes estão ainda em condições de celebrar o contrato prometido.

VIII. Mantendo-se em vigor o contrato-promessa, subsiste o acordo quanto à fruição da fração pelo promitente-comprador.


2.4. O Recorrente e a Recorrida, ao ficarem vencidos por decaimento, são responsáveis pelo pagamento proporcional das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decide-se:

1) Conceder revista parcial e absolver o Réu do pedido formulado na ação.


2) Condenar o Recorrente (Réu) e a Recorrida (Autora) no pagamento proporcional das custas, na ação e nos recursos.


Lisboa, 2 de novembro de 2017


Olindo Geraldes (Relator)

Maria do Rosário Morgado, vencida por entender que se verifica recusa antecipada de conhecimento do contrato, o que configura um incumprimento defeituoso do contrato, por parte do promitente- comprador. Por isso, confirmaria o acórdão recorrido.

Sousa Lameira