Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
207/22.0T8VNG-E.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
AÇÃO EXECUTIVA
INSOLVÊNCIA
LISTA DE CRÉDITOS RECONHECIDOS E NÃO RECONHECIDOS
SENTENÇA
EXTENSÃO DO CASO JULGADO
CREDOR
ÓNUS DA PROVA
DIREITO REAL DE GARANTIA
IMPUGNAÇÃO
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE COM DECLARAÇÃO DE VOTO.
Sumário :

I – O que se dispõe no art. 789.º/5 do CPC vale e é aplicável, ex vi art. 17.º do CIRE, ao processo de insolvência e ao respetivo apenso de verificação e graduação de créditos, com as necessárias adaptações.

II – Art. 789.º/5 do CPC que significa que, reclamando um credor um crédito reconhecido por sentença, outro qualquer credor, desde que não tenha sido parte no processo onde foi proferia tal sentença (credor este em relação ao qual a sentença não tem força de caso julgado, mas que até poderá ser um terceiro juridicamente indiferente), pode pura e simplesmente impugnar e não aceitar o crédito reconhecido em tal sentença (não ficando assim sujeito à eficácia da sentença), “obrigando” assim o respetivo credor/reclamante a fazer prova do mesmo na verificação e graduação de créditos em causa.

III – Art. 789.º/5 do CPC, aplicado com as necessárias adaptações ao processo de insolvência, que significa que vale como tal impugnação o não reconhecimento dum crédito (reconhecido por anterior sentença, que fará caso julgado em relação aos credores/reclamantes que foram parte no processo em que tal sentença foi proferida) por parte do AI, quando este apresenta a lista a que se refere o art. 129.º/1 do CIRE.

IV – Efetivamente, após tal não reconhecimento pelo AI, fica até prejudicada a possibilidade dum qualquer credor, em relação ao qual a anterior sentença não faça caso julgado (mas que seja terceiro juridicamente indiferente), poder vir impugnar um crédito reconhecido pela anterior sentença: o que está logicamente previsto (art. 130.º/1 do CIRE) é que um credor não reconhecido pelo AI impugne a exclusão (o não reconhecimento) do seu crédito por parte do AI e não que um credor venha dizer que “concorda” com o não reconhecimento por parte do AI.

Decisão Texto Integral:

Processo: 207/22.0T8VNG-E.P1.S1

6.ª Secção

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I – Relatório

No apenso à ação especial de insolvência – em que foi declarada em tal situação AA (assim declarado por sentença proferida em 18/1/2022, transitada em julgado) – veio o Exmo. Administrador de Insolvência (AI) apresentar a lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos, nos termos do art. 129º do CIRE.

Após o que a credora BB apresentou, em 08/04/2022, impugnação, nos termos do art. 130.º do CIRE, pretendendo o reconhecimento do crédito por si reclamado pelo montante de € 245.913,45 e como estando garantido por direito de retenção sobre o prédio urbano composto por casa de habitação, sita na Rua ..., descrita na conservatória sob o nº 513, e inscrito na matriz sob o artº 1010”.

Alegou, em síntese, que o insolvente prometeu vender-lhe o identificado prédio, tendo-lhe entregue as chaves do mesmo, negando-se depois a cumprir o contrato promessa apesar de várias vezes interpelado; razão pela qual, em 03/09/2012, instaurou ação declarativa, no âmbito da qual foi proferida sentença, transitada em julgado, que declarou o incumprimento definitivo do CPCV por facto imputável ao ali réu (e ora insolvente), condenando-o a pagar à ali autora a quantia de € 179.216,00, acrescida de juros legais desde a citação do Réu até ao efetivo pagamento, tendo-lhe sido reconhecido, para garantia de tal crédito, o direito de retenção sobre o imóvel prometido vender.

Após o que instaurou ação executiva para pagamento de quantia certa, onde foi penhorado o prédio urbano acima identificado, seguindo-se a fase de reclamação de crédito, em que o BPI reclamou o seu crédito hipotecário, vindo a ser proferida sentença de verificação e graduação de créditos, já transitada em julgado, em que voltou a ser reconhecido o seu crédito sobre o ora insolvente e o respetivo direito de retenção, graduando-se assim o seu crédito à frente do crédito hipotecário do BPI.

O Sr. Administrador da Insolvência respondeu, mantendo o não reconhecimento do crédito reclamado pela impugnante BB, alegando que a massa insolvente e os demais credores reclamantes no processo de insolvência não foram parte nas duas ações referidas pela impugnante, acrescentando ainda que, da análise da documentação junta pela impugnante, não resulta que o incumprimento definitivo do CPCV tenha sido por facto imputável ao insolvente.

A impugnante respondeu, defendendo que o caso julgado material decorrente das duas ações judiciais impõe o reconhecimento do seu crédito.

O Banco BPI, SA, alegando ser parte interessada, por ser credor hipotecário reconhecido, veio dizer que concorda com a posição do AI, pugnando pela não verificação de caso julgado, devendo a impugnante fazer prova do crédito que reclamou.

Realizada sem sucesso tentativa de conciliação, seguiu-se a prolação de Despacho Saneador, no qual o tribunal apreciou a exceção do caso julgado, nos seguintes termos:

“(…) A impugnante vem impugnar o não reconhecimento do seu crédito com base no facto de, tanto na ação declarativa nº2813/12.1..., como na graduação de créditos da execução nº1862/14.0... - Juiz ..., ter sido reconhecido à impugnante o direito de retenção sobre o imóvel prometido vender.

Tal ação teve como partes a ora impugnante como A. e o insolvente como Réu, pelo que, dúvidas não existem de que a sentença proferida se impõe ao insolvente, porém, entendemos que o mesmo já não acontece com a MI e demais credores, os quais não foram partes naquele processo.

Ora, em regra, o caso julgado só tem eficácia entre as partes, i é, entre os sujeitos que litigaram no processo, porque só estas intervieram no processo para defenderem os seus interesses.

Ou seja, a força obrigatória do caso julgado estabelece-se apenas entre as partes da ação em que foi proferida a decisão; obriga apenas quem nela interveio.

Portanto, in casu, para além de estarmos em face de um processo de insolvência (no qual aos interesses de cada credor e do próprio devedor se sobrepõe a salvaguarda do interesse coletivo da generalidade dos credores do insolvente), s.m.o., a identidade objetiva e subjetiva exigida pela exceção do caso julgado, não se verifica.

Deste modo e pelo exposto, julgo improcedente a exceção do caso julgado. (…)”

Passando a fixar o objeto do litígio – reconhecimento ou não à impugnante do crédito por esta reclamado sobre o insolvente, e, sendo reconhecido, a sua qualificação como garantido pelo direito de retenção ou comum – e a indicar os temas da prova, determinando-se o prosseguimento dos autos para julgamento.

Inconformada, com o despacho que julgou “improcedente a exceção do caso julgado”, veio a reclamante/impugnante BB dele interpor recurso de apelação, que foi admitido, tendo a Relação do Porto, por Acórdão de 13/07/2021, julgado improcedente tal apelação e confirmado a decisão recorrida.

Ainda inconformada, interpõe agora a BB o presente recurso de revista, visando a revogação do acórdão da Relação e a sua substituição por decisão que reconheça “(…) a eficácia do caso julgado (…), devendo julgar-se verificado o crédito da impugnante no valor reclamando como garantido com o direito de retenção (…)”

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

“ (…)

A) Os fundamentos do Douto Acórdão recorrido reduzem-se à citação de diversos sumários de Decisões do Supremo Tribunal de Justiça cuja pertinência, salvo o devido respeito, não se aplica às particularidades do presente caso concreto.

B) Sabemos que a questãoda eficácia extraprocessual da Sentença proferida na ação declarativa de verificação e graduação dos créditos proferida no âmbito de processo executivo (ou outro) no que respeita à verificação e graduação do crédito tem sido objeto de várias decisões na jurisprudência, nomeadamente do STJ.

C) Os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça citados na Decisão recorrida declaram nos sumários que aquela sentença não constitui caso julgado material nem dispõe de autoridade de caso julgado no incidente de verificação e graduação do processo de insolvência.

D) Porém, não obstante ser esta a tendência, o facto é que, no presente caso concreto as sentenças em questão e supra citadas, na nossa modesta opinião, terão eficácia do caso julgado material, no mínimo quanto ao reconhecimento do direito real de garantia da recorrente.

E) E, salvo o devido respeito, parece ser essa a posição que resulta da leitura dos Acórdãos citados na Decisão decorrida.

Na verdade:

F) Não sendo pacífica a questão dos efeitos do caso julgado da Sentença de verificação e graduação dos créditos proferida no âmbito de processo executivo (ou outro) no que respeita à verificação do crédito a Doutrina e jurisprudência é unânime quanto à eficácia do caso julgado no que respeita ao reconhecimento do direito real de garantia.

G) Ou seja, o caso julgado material produz-se quanto ao reconhecimento do direito real de garantia, ficando também por ele reconhecido o crédito reclamado na medida em que este se funda na existência atual desse mesmo direito real (um implica a existência do outro).

H) Transpondo este entendimento para o presente caso concreto, conclui-se que a sentença que julgou verificado o crédito da Impugnante ora recorrente é eficaz quanto ao reconhecimento do direito real de garantia.

I) Existindo CASO JULGADO MATERIAL quanto à existência do direito real de retenção, obrigatoriamente, terão de ser reconhecidos os factos em que o mesmo se funda, mais concretamente: (1)a existência do contrato promessa de compra e venda; (2) o sinal, (3) o incumprimento do contrato promessa imputável ao promitente vendedor ora insolvente, (4) a resolução contrato promessa por facto imputável ao promitente vendedor.

J) E, na verdade, não faz qualquer sentido o reconhecimento do direito real de retenção sem a existência de contrato promessa, do sinal e declaração de resolução do contrato promessa com culpa imputável à promitente vendedor ora insolvente e condenação do pagamento do sinal em dobro.

K) No presente caso concreto, a própria eficácia do CASO JULGADO MATERIAL formado pela sentença de verificação e graduação de créditos impõe igualmente se reconheça a existência do crédito, o seu valor, e que o mesmo tem origem na entrega do sinal em dobro, pressupondo sua violação, a traditio, o sinal e incumprimento definitivo.

L) Para prova do crédito – para além de ter sido alegada na reclamação de créditos a proveniência, a natureza e o montante – a impugnante juntou aos autos certidão de sentença transitada em julgado em 05.04.2014 proferida no âmbito de uma ação de processo ordinário que correu termos pelo ... Juízo Cível dos Juízos de Competência Cível de ..., sob o nº 2813/12.1... instaurada contra o insolvente.

M)Esta decisão, proferida muito tempo antes da declaração de insolvência, declara o incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda e condena o réu (ora insolvente) a pagar á impugnante a quantia de € 179.216,00 acrescida dos juros e impõe-se também pela força do caso julgado material que se formou com o reconhecimento da garantia real.

N) Se o crédito e a garantia que o acompanha encontra-se já reconhecido por sentença transitada em julgado proferida antes da declaração de insolvência, a eficácia do caso julgado mantêm-se no processo de insolvência, pois não existe, nem foi alegada qualquer razão para colocar em causa tais decisões, devendo julgar-se verificado o crédito da Impugnante no valor reclamando como garantido com o direito de retenção (…)”

Não foi apresentada qualquer resposta.

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

II-Fundamentação

II – A – Os Elementos factuais relevantes são os seguintes:

BB instaurou ação declarativa contra AA (ora insolvente) que correu seus termos no extinto ... Juízo Cível dos Juízos de Competência Cível de ..., sob o nº2813/12.1..., tendo sido proferida sentença transitada em julgado em 9.6.2014, que declarou o incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda celebrado entre autora e réu, e condenou o Réu (ora insolvente) a pagar à Autora a quantia global de € 179.216,00, acrescida de juros legais desde a citação do Réu até ao efetivo pagamento, a título de restituição em dobro do sinal; na mesma sentença, para garantia do crédito, foi reconhecido à reclamante o direito de retenção sobre o imóvel prometido vender;

- BB instaurou ação executiva contra o ora insolvente, para pagamento de quantia certa que seguiu seus termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de ..., Juízo de Execução de ..., processo nº1862/14.0... - Juiz ...; no decurso de tal processo executivo foi penhorado o prédio urbano destinado a habitação sita na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob nº 513/2007092- inscrito na matriz respetiva sob o artigo 984 Urbano;

-No incidente de reclamação de créditos, em que foram reclamantes o Banco BPI, SA e o Ministério Público em representação do Estado, foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos, que transitou em julgado em 12.3.2018, a qual, reconheceu e graduou o crédito da exequente; em tal sentença, em primeiro lugar, ficou graduado o crédito do Ministério Público (IMI relativo ao imóvel penhorado); em segundo lugar, o crédito exequendo de BB, por direito de retenção sobre o imóvel penhorado; e, em terceiro lugar, o crédito reclamado pelo Banco BPI, SA, garantido por hipoteca sobre o mesmo imóvel.

AA foi declarado insolvente por sentença proferida em 18.1.2022, transitada em julgado.

*

II – B – de Direito

A presente revista foi admitida por a recorrente invocar que a decisão recorrida incorreu em “ofensa de caso julgado” (o que, nos termos do art. 629.º/2/a)/in fine do CPC, torna um recurso “sempre admissível”), o que significa, como é evidente, que o objeto da presente revista se circunscreve à questão que a fez admitir.

E qual é a concreta “ofensa de caso julgado” invocada?

Tendo a ora recorrente reclamado crédito (no presente apenso de verificação e graduação de créditos, a correr termos por apenso à insolvência de AA), o AI não o reconheceu (na lista a que alude o art. 129.º do CIRE) e, segundo a ora recorrente, o seu crédito (correspondente ao sinal em dobro dum CPCV celebrado com o insolvente) já foi por duas vezes reconhecido judicialmente (quer no seu montante, quer como gozando de direito de retenção sobre o prédio prometido vender), pelo que, ao não ser tal aceite pelo AI, foi desrespeitado/ofendido o caso julgado material formado pelas duas anteriores decisões judiciais.

Desrespeito este (pelo caso julgado material formado) que a ora recorrente suscitou na impugnação que, nos termos do art. 130.º do CIRE, apresentou, tendo a 1.ª Instância, no saneador (deste apenso de verificação e graduação de créditos), considerado “improcedente a exceção do caso julgado”, mandando prosseguir os autos, para julgamento, para apurar da existência do crédito da ora recorrente (do seu montante e do direito de retenção).

Sendo de tal decisão, no saneador, a considerar “improcedente a exceção de caso julgado”, que foi interposta apelação e que agora, julgada improcedente a apelação, é interposta a presente revista.

Pretende pois a ora recorrente que, fruto do caso julgado material formado, a seu ver, pelas duas anteriores decisões judiciais, seja desde já reconhecido – sem necessidade do prosseguimento, determinado no saneador, para apurar da existência, montante do crédito e direito de retenção – o crédito que reclamou no montante de € 245.913,45 (decorrente do incumprimento pelo insolvente do contrato promessa com ele celebrado) e, ainda, que seja também reconhecido que tal crédito goza de direito de retenção.

Sendo que as duas anteriores decisões judiciais, como resulta dos elementos factuais acima alinhados, são:

- a sentença (transitada em julgado) proferida na ação declarativa 2813/12.1... (que correu termos entre a ora recorrente e o AA, ora insolvente) que declarou o incumprimento definitivo do CPCV celebrado entre a ora recorrente (como autora) e o referido AA (como réu), condenando este a pagar à ora recorrente a quantia global de € 179.216,00, acrescida de juros legais desde a citação do ali réu até ao efetivo pagamento, a título de restituição em dobro do sinal; e que, para garantia de tal crédito, reconheceu à ora recorrente o direito de retenção sobre o imóvel prometido vender; e

- a sentença (também transitada em julgado) de verificação e graduação de créditos proferida no respetivo apenso da ação executiva (instaurada exatamente para executar a sentença proferida na ação declarativa 2813/12.1...) 1862/14.0... (em que foi penhorado o imóvel prometido vender), apenso em que foram reclamantes o Banco BPI e o Ministério Público em representação do Estado, sentença essa que, em 12/3/2018, reconheceu o crédito da ali exequente e aqui recorrente antes reconhecido na ação declarativa; e que, em termos de graduação, colocou, em 1.º lugar, o crédito do Ministério Público (IMI relativo ao imóvel penhorado), seguido, em segundo lugar, pelo crédito exequendo da aqui recorrente e, em terceiro lugar, pelo crédito reclamado pelo Banco BPI.

E, claro, como já referimos, sustenta a recorrente que o que foi decidido em tais processos/sentenças vale e tem que ser respeitado no apenso de verificação e graduação de créditos, a correr termos por apenso à insolvência de AA, em que nos encontramos, ou seja, que o caso julgado formado por tais sentenças produz efeitos que são aqui, neste processo, oponíveis.

Vejamos:

O caso julgado, é sabido, só produz efeitos entre as partes, projetando a sua eficácia apenas nas relações entre as partes do processo, o que logo resulta da exceção de caso julgado pressupor a repetição da causa e esta “repetição” só ocorrer se as partes forem as mesmas (cfr. 581.º do CPC).

Aos terceiros que não participem no processo, que não hajam tido a oportunidade de defender os seus interesses – que podem naturalmente colidir, no todo ou em parte, com os da parte vencedora – não pode ser oposta a força de caso julgado duma decisão (a inoponibilidade do caso julgado a terceiros representa, assim, um mero corolário do princípio do contraditório).

Porém, “a ideia de que o caso julgado não produz efeitos em relação a terceiros não significa que todos aqueles que não figuram no processo como partes possam ignorar as sentenças proferidas e transitadas nas diferentes ações, agindo como se elas não existissem na esfera das realidades jurídicas.”1

O que não significa – em face da inevitável repercussão prática, não tanto do caso julgado, como da publicação da sentença – que se defendam os efeitos reflexos do caso julgado em relação a terceiros, mas apenas que a sentença acaba por definir, perante todos, as situações jurídicas das partes, acabando por irradiar repercussões que são mera consequência do modo como o direito substantivo conexiona as situações jurídicas desses terceiros com as situações jurídicas das partes.

Tudo está pois em saber “em que medida terceiros podem estar sujeitos, já não à autoridade do caso julgado, que, enquanto tal, não os atinge, mas à eficácia da sentença, quer no plano dos seus efeitos práticos ou de facto, quer no dos seus efeitos jurídicos indiretos.”2

Sendo justamente em tal ponto do problema que “é usual distinguir os terceiros juridicamente indiferentes dos terceiros juridicamente interessados: os primeiros (juridicamente indiferentes) são, ou pretendem ser, titulares duma situação jurídica que não pode, pela sua natureza, ser atingida pelo caso julgado, mas cuja consistência prática o caso julgado pode afetar, como é o caso do credor comum, cujo direito de crédito permanece, não obstante o desaparecimento de um bem do património do seu devedor diminuir a garantia que este representa para ele e restantes credores; juridicamente interessados são os titulares, ou pretensos titulares, de situações jurídicas que, a ser-lhes oposto o caso julgado, por ele podem ser, em si, afetados, quer por resultarem suprimidas, quer por terem o seu conteúdo modificado3 4.

Ou, nas palavras do Prof. Antunes Varela5:

“ Há, em 1.º lugar, as pessoas a quem podemos chamar terceiros juridicamente indiferentes. São as pessoas a quem a sentença não causa prejuízo jurídico, por não bolir com a existência ou validade do seu direito, embora possa afetar a sua consistência prática ou económica. (…) Nestes casos, em que a decisão contida na sentença não causa prejuízo jurídico ao direito de terceiro, nenhuma razão há para recusar a invocação do caso julgado perante esse terceiro, visto a regra da eficácia relativa do caso ter por fim evitar que terceiros sejam prejudicados, na consistência jurídica ou no conteúdo do seu direito (sem eles terem tido a possibilidade de se defender e esse risco não ocorrer em tal tipo de situações). Pode, por conseguinte, dizer-se que, em relação aos terceiros juridicamente indiferentes, a sentença impõe-se-lhes”.

Há as situações “em que as pessoas se arrogam a titularidade de uma relação ou posição incompatível com a reconhecida na sentença. (…) Nos casos deste tipo, nenhuma razão há, de acordo com o espírito da norma que prescreve a eficácia relativa do caso julgado, para impor a sentença a terceiro, titular da posição incompatível com a declarada na sentença transitada. Pelo contrário. Se a sentença proferida for invocada contra terceiro, deve reconhecer-se a este a ampla possibilidade de alegar e demonstrar a existência do seu direito, incompatível com a decisão passada em julgado.”

Isto dito – sendo por demais evidente, a nosso ver, que as duas referidas anteriores decisões judiciais não podem fazer caso julgado em relação aos aqui (neste apenso de insolvência) credores/reclamantes que não hajam participado nos processos em que tais decisões foram proferidas6 – somos levados a dizer que:

Em relação a créditos reconhecido noutros processos/sentenças, são outros credores (do mesmo devedor) terceiros juridicamente indiferentes, uma vez que o que o caso julgado de tais sentenças afeta é a consistência prática/económica do direito de crédito de tais outros credores, não havendo afetação/prejuízo jurídico do direito de crédito de tais credores.

Em relação ao reconhecimento noutro processo/sentença dum direito de retenção, já o mesmo não pode ser dito com a mesma amplitude: um credor que goze de hipoteca sobre o mesmo bem (sobre que incide o direito de retenção reconhecido) vê colocar-se-lhe à frente, com prioridade de pagamento (cfr. art. 759.º/1/in fine do C. Civil), um outro direito real de garantia, vendo assim o caso julgado formado pela sentença proferida noutro processo afetar/prejudicar a consistência jurídica do seu direito real de garantia (a sua hipoteca)7.

Em todo o caso, faz-se notar, uma coisa é dizer-se que credores são juridicamente indiferentes em relação ao caso julgado formado pela sentença proferida noutro e anterior processo – e dizer-se, no caso, que outros credores estão sujeitos à eficácia da sentença proferida em outro e anterior processo, corrido, no caso, entre o insolvente e um outro credor (a aqui recorrente ou a aqui recorrente e o BPI) – outra, diversa, é dizer-se que a sentença tem força ou autoridade de caso julgado em relação aos outros/restantes credores (não é isto – a força ou a autoridade do caso julgado em relação aos outros/restantes credores – que se afirma quando se diz que outros credores são terceiros juridicamente indiferentes).

Sucede que o que acabamos de dizer – sobre a medida em que terceiros podem estar sujeitos (já não à força ou à autoridade do caso julgado, que, enquanto tal, não os atinge) à eficácia da sentença – sofre desvios, por força de disposição legal, quando estamos numa execução, mais exatamente quando estamos no respetivo apenso de verificação e graduação de créditos.

Vem isto a propósito do que se dispõe no art. 789.º/5 do CPC, segundo o qual “se o crédito estiver reconhecido por sentença que tenha força de caso julgado em relação ao impugnante, a impugnação só pode basear-se em algum dos fundamentos mencionados nos art. 729.º e 730.º”, preceito este em que, na Reforma de 2003 (no então art. 866.º/5 do VCPC), foi introduzida (em relação à redação anterior), a seguir ao termo sentença, a expressão “que tenha força de caso julgado em relação ao impugnante”, querendo-se com tal expressão dizer que a restrição aos fundamentos da impugnação só vale quando o crédito estiver reconhecido por sentença que tenha força de caso julgado em relação ao impugnante.

E isto significa, dito de um modo simples e inteligível, que uma sentença que reconheça um crédito – em relação à qual outros credores (que justamente por não terem participado no processo não estão sujeitos à força do respetivo caso julgado) são terceiros juridicamente indiferentes – pode ser impugnada (ou melhor, o crédito pode ser impugnado) no âmbito do apenso de verificação e graduação de créditos por tais outros credores, que, sendo assim, deixam de estar sujeitos à eficácia da sentença (em relação à qual são terceiros juridicamente indiferentes).

E, é claro, o que se dispõe em tal art. 789.º/5 do CPC vale e é aplicável, ex vi art. 17.º do CIRE, ao caso – ao processo de insolvência e ao respetivo apenso de verificação e graduação de créditos – com as necessárias adaptações.

Na verificação e graduação de créditos duma execução, a lei prevê que todas as reclamações (incluindo o crédito exequendo) possam ser impugnadas (cfr. art. 789.º/3 e 4 do CPC), o que significa que, reclamando um credor um crédito reconhecido por sentença, outro qualquer credor, desde que não tenha sido parte no processo onde foi proferia tal sentença (credor este em relação ao qual a sentença não tem força de caso julgado, mas que até poderá ser um terceiro juridicamente indiferente), pode pura e simplesmente impugnar e não aceitar o crédito reconhecido em tal sentença (não ficando assim sujeito à eficácia da sentença)8, “obrigando” assim o respetivo credor/reclamante a fazer prova do mesmo na verificação e graduação de créditos em causa.

Era, aliás, exatamente esta a situação que se colocava na verificação e graduação de créditos da execução 1862/14.0... (em que a qui recorrente executou a sentença proferida na ação declarativa 2813/12.1...): não estava o BPI (reclamante em tal apenso de verificação e graduação de créditos) sujeito à força do caso julgado formado pela sentença proferida na ação declarativa 2813/12.1... (não foi parte em tal ação), podendo simplesmente impugnar o crédito exequendo (da aqui recorrente), por não estar sujeito, por força do referido art. 789.º/5 do C. Civil, à eficácia da sentença proferida na ação declarativa 2813/12.1...

Ignoramos se o BPI o não fez ou se a ali exequente (e aqui recorrente) fez ali prova do seu crédito (exequendo) e do direito de retenção9, o que não é para a questão sub-judice importante, na medida em que o que releva é que foi proferida sentença (transitada em julgado) de verificação e graduação de créditos que reconheceu o crédito exequendo (antes reconhecido na ação declarativa) e que, em termos de graduação, colocou, em 1.º lugar, o crédito do Ministério Público (IMI relativo ao imóvel penhorado), seguido, em segundo lugar, pelo crédito exequendo da aqui recorrente e, em terceiro lugar, pelo crédito reclamado pelo Banco BPI.

Sendo pois em relação a esta sentença de verificação e graduação de créditos (proferida na execução 1862/14.0...) que com mais acuidade se coloca a questão da aplicação, com as necessárias adaptações, do art. 789.º/5 do CPC.

Como dá nota o Acórdão recorrido, é bem controverso na doutrina o caso julgado (o que forma caso julgado) na ação de verificação e graduação de créditos.

Para Lebre de Freitas10, “(…) o objeto da ação de verificação e graduação não é tanto a pretensão de reconhecimento de um direito de crédito como o de reconhecimento do direito real que o garante, [o que] relega o reconhecimento do crédito para o campo dos pressupostos da decisão, como tal não abrangido pelo caso julgado (…)”. Assim, segundo mesmo autor, o caso julgado formado pela sentença de verificação e graduação de créditos “(…) produzir-se-á apenas quanto ao reconhecimento do direito real de garantia, ficando por ele reconhecido o crédito reclamado só na estrita medida em que funda a existência atual direito real (…)”, ou seja, o caso julgado formar-se-ia quanto à graduação, mas não quanto à verificação dos créditos.

Com o que Rui Pinto11 está em total desacordo, na medida em que considera que o pedido na reclamação é duplo: conhecer da existência dos créditos e fazer a sua graduação com o crédito do exequente, em razão das garantias reais (cfr. art. 791.º/2 do CPC). Portanto, segundo mesmo autor, “o reconhecimento da garantia real não integra o efeito jurídico pedido pelo reclamante. Por outras palavras, não estamos perante uma graduação de garantias, mas perante uma graduação de créditos (segundo as garantias, naturalmente). Não se forma caso julgado material quanto às garantias, pois elas são fundamento da decisão. Tampouco se forma caso julgado quanto à graduação em si mesma porque (…) também está suportada por garantias reais que não foram reconhecidas, salvo enquanto fundamento decisório. Portanto, forma-se caso julgado material quanto aos créditos (…)”.

Seja como for, admitindo que a sentença de verificação e graduação de créditos forma caso julgado quanto aos créditos (e não quanto à graduação, como refere Lebre de Freitas), não é aqui, a nosso ver, que está o contributo decisivo para o desfecho da questão sub-judice.

Porque, como é evidente, tal caso julgado – seja ele quanto aos créditos ou quanto à graduação – só vinculará quem foi parte na ação/execução de verificação de créditos (no caso e no que aqui releva, o BPI) e havendo muitos outros credores na insolvência podem estes, de acordo e nos termos do art. 789.º/5 do CPC (ex vi art. 17.º do CIRE), impugnar os créditos reconhecidos por tal sentença de verificação e graduação de créditos (sentença em relação à qual, aos créditos ali reconhecidos, são terceiros juridicamente indiferentes, mas a cuja eficácia, da sentença, não estão sujeitos, por aplicação do art. 789.º/5 do CPC).

Sendo neste ponto do raciocínio, aplicando com as necessárias adaptações o art. 789.º/5 do CPC ao processo de insolvência, que se deve considerar que vale e equivale a tal impugnação (por parte dos outros credores) o não reconhecimento dum crédito (reconhecido por anterior sentença, que fará caso julgado em relação aos credores/reclamantes que foram parte no processo em que tal sentença foi proferida) por parte do AI, quando este apresenta a lista a que se refere o art. 129.º/1 do CIRE.

Após tal não reconhecimento pelo AI, fica até prejudicada a possibilidade dum qualquer credor, em relação ao qual a anterior sentença não faça caso julgado, poder vir impugnar um crédito reconhecido pela anterior sentença: o que está logicamente previsto (art. 130.º/1 do CIRE) é que um credor não reconhecido pelo AI (como é/foi o caso da aqui recorrente) impugne a exclusão (o não reconhecimento) do seu crédito por parte do AI (e não que um credor venha dizer que “concorda” com o não reconhecimento por parte do AI12).

O AI, para elaborar a lista de créditos do art. 129.º/1, procede à análise das reclamações que recebeu, análise em que é chamado a tomar posição sobre questões jurídicas que as reclamações encerram, pelo que do mesmo modo que não reconhece créditos que não estão suportados em documentos idóneos, que não reconhece pedidos de sinal em dobro (por, por ex., o CPCV não estar resolvido), também pode/deve avaliar em que medida uma sentença antes proferida vincula (tem força de caso julgado) todos os credores e, em caso negativo, pode fazer uso do art. 789.º/5 do CPC (ex vi art. 17.º do CIRE) e impugnar o crédito reconhecido por tal sentença (que, repete-se, não faz caso julgado em relação aos credores que não participaram no processo em que a mesma foi proferida).

Foi exatamente isto que aconteceu nos autos, o que tem como consequência, como foi determinado, que a aqui recorrente tem de fazer prova, no presente apenso de insolvência, da existência do seu crédito, do seu montante e do direito real de garantia invocado.

É quanto basta para negar a revista.

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III - Decisão

Nos termos expostos, nega-se a apelação e confirma-se o Acórdão recorrido.

Custas pelo A./recorrente.

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Lisboa, 22/02/2024

António Barateiro Martins (Relator)

Ricardo Costa, com a Declaração de Voto anexa

Maria Amélia Alves Ribeiro

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Processo n.º 207/22.0T8VNG-E-P1.S1


Revista – Tribunal recorrido: Relação do Porto, ... Secção


DECLARAÇÃO DE VOTO


Não suporto grande parte da fundamentação de direito, em especial a que mobiliza o art. 789º, 5, do CPC para o processo de insolvência e a que respeita neste âmbito aos terceiros “juridicamente indiferentes”, remetendo no essencial para os acs. proferidos em 15/12/2020 (proc. 100/13) e 11/10/2022 (proc. 9160/15), sem prejuízo de subscrever o resultado decisório da impugnação relativa à questão da “ofensa do caso julgado” (e a bondade do acórdão recorrido).


STJ/Lisboa, 22/2/2024


O 1.º Adjunto


Ricardo Costa

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1. Prof. Antunes Varela, Manual de Processo, 1.ª ed., pág. 706.↩︎

2. Lebre de Freitas, CPC, Vol. 2.º, anotação ao antigo art. 674.º, pág. 685.↩︎

3. Lebre de Freitas, local citado.↩︎

4. V. G., como exemplo de juridicamente interessados, “os titulares ou pretensos titulares de situação geneticamente independente da que é feita valer na causa e com ela incompatível” – ser o terceiro o proprietário do prédio reconhecido a outrem pelo caso julgado.↩︎

5. Local citado, pág. 708.↩︎

6. Como é pacificamente considerado nos Acórdãos deste Supremo referidos no Acórdão recorrido: Acórdãos de 19/05/2020, de 15/12/2020, de 09/03/2021, de 13/04/2021, de 16/10/2022 e de 16/05/2023.↩︎

7. Cf., neste sentido, entre outros, Ac. deste STJ de 20/05/2010 (Relator: Hélder Roque).↩︎

8. E, se o não fizer, será o crédito constante da sentença reconhecido – é a hipótese discutida na segunda parte do Ac. STJ de 20/05/2010.↩︎

9. Ou, inclusivamente, se o desfecho do que ali foi sentenciado decorreu do entendimento jurídico que ali se teve.↩︎

10. Ação Executiva, pág. 264/5.↩︎

11. Manual da Execução, pág. 886/7.↩︎

12. Repare-se: se porventura o AI tivesse considerado que as anteriores sentenças tinham aqui força de caso julgado e reconhecido, por isso, o crédito reclamado pela aqui recorrente, poderiam outros credores impugnar tal reconhecimento, quer por não se lhes impor a força do caso julgado, quer por não estarem sujeitos, nos termos do art. 789.º/5 do CPC à eficácia das anteriores sentenças.↩︎