Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2790/16.0T8VFX.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: PROCRIAÇÃO MEDICAMENTE ASSISTIDA
CONSENTIMENTO INFORMADO
ESTABELECIMENTO DA FILIAÇÃO
ABUSO DO DIREITO
CÔNJUGE
DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL
REGISTO CIVIL
FALSIDADE
PROCRIAÇÃO
SEPARAÇÃO DE FACTO
IMPUGNAÇÃO DA PATERNIDADE
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
TEMAS DA PROVA
INSTRUÇÃO DO PROCESSO
PRINCÍPIO DA AQUISIÇÃO PROCESSUAL
Data do Acordão: 11/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DA FAMÍLIA / FILIAÇÃO / ESTABELECIMENTO DA FILIAÇÃO / ESTABELECIMENTO DA PATERNIDADE / PRESUNÇÃO DE PATERNIDADE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL – PROCESSO EM GERAL / INSTRUÇÃO DO PROCESSO – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / GESTÃO DO PROCESSO E DA AUDIÊNCIA PRÉVIA.
Doutrina:
- Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 234;
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume II, 4.ª Edição, p. 944;
- Jorge Duarte Pinheiro, O Direito de Família Contemporâneo, 3.ª Edição, p. 284;
- Pereira Coelho e Guilherme Oliveira, Curso de Direito da Família, Volume II, Tomo I, p. 143;
- Rute Teixeira Pedro, Actas do Seminário Debatendo a Procriação Medicamente Assistida, p. 158 e 159.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1826.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 3.°, 6.°, 410.° E 596.°.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 20.º, 36.º, N.º 1 E 67.º, N.º 2, ALÍNEA E).
PROCRIAÇÃO MEDICAMENTE ASSISTIDA (LPMA), APROVADA PELA LEI N.º 32/2006, DE 26-07: - ARTIGOS 4.º, N.ºS 1 E 2, 6.º, N.º 1, 14.º, N.ºS 1 E 2 E 20.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 13-11-2014, IN WWW.DGSI.PT.
- DE 23-03-2006, CJSTJ XIV, TOMO I, P. 150;
- DE 28-02-2012, IN WWW.DGSI.PT;

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

- ACÓRDÃO N.º 101/2009;
- ACÓRDÃO N.º 225/2018.
Sumário :

I - O legislador da reforma do CPC de 2013 pretendeu assegurar uma ampla e livre investigação sobre toda a matéria factual pertinente. A fixação de temas da prova visa meramente orientar a instrução (podendo, por isso, aqueles serem redigidos em termos conclusivos) e não excluir a produção de prova sobre factos relevantes alegados pelas partes ou que resultem da discussão.

II - O consentimento do beneficiário da procriação heteróloga (n.º 1 e n.º 2 do art. 14.º da Lei n.º 32/2006, de 26-07, na redacção vigente à data em que a autora recorreu a essa técnica de procriação medicamente assistida) que não contribuiu para o processo com as suas células reprodutoras é condição indispensável para a constituição do vínculo da filiação quanto àquele, já que a criança nascida através do recurso a essas técnicas é havida juridicamente como filha do marido ou membro da união de facto que haja consentido no seu emprego (n.º 1 do art. 20.º da Lei n.º 32/2006).

III - Tendo a autora recorrido à procriação medicamente assistida enquanto ainda estava casada com o recorrido e sem procurar obter o consentimento deste (contrariando a regra da biparentalidade constante do art. 6.º, n.º 1, da Lei n.º 32/2006) e tendo este, após a reconciliação do casal, acompanhado a gravidez, o nascimento e os primeiros meses de vida da criança, a registado como filha e a tratado como tal, é de concluir que, apesar de não ter sido prestado um consentimento nos termos expostos em II, houve uma real e efectiva adesão do recorrido à decisão da recorrente e a correspondente aceitação por parte desta, sendo, pois, realmente inaceitável que se pretenda pôr termo ao vínculo entretanto criado entre aquele e a criança.

IV - Perante o quadro descrito em III, é abusiva a invocação da falta do consentimento prévio para cessar o vínculo paternal de filiação.

V - O registo da criança como filha do recorrido não está eivado de falsidade (é, ao invés, consonante com as presunções constantes do n.º 1 do art. 20.º da Lei n.º 32/2006 e do art. 1826.º do CC) e, por si só, não afecta o direito daquela a conhecer a sua identidade genética e a sua historicidade pessoal.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

I.

AA intentou esta acção declarativa, com processo comum, de impugnação de paternidade presumida, contra BB.

Pediu que seja afastada a presunção de paternidade do réu e respectiva avoenga paterna relativamente à menor CC e ordenado o cancelamento do registo de paternidade que ora se impugna e respectiva avoenga paterna e, bem assim, a eliminação do apelido "DD", por não corresponder à verdade.

Como fundamento, alegou que se separou do réu em Março de 2015 e que, em Maio de 2015, recorreu a técnica de procriação medicamente assistida (PMA) em ..., da qual resultou o nascimento da sua filha, em 29 de Janeiro de 2016. Fê-lo sem consentimento do réu.

O Réu contestou, alegando que a acção não pode proceder uma vez que a inseminação artificial em causa foi por si consentida.

Foi nomeado curador à menor e procedeu-se à competente citação da ré CC, na pessoa do curador, não tendo sido apresentada contestação.

Realizado julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente.

A autora recorreu desta sentença, tendo o réu contra-alegado, pugnando pela manutenção do decidido e invocando abuso de direito por parte da A.

A Relação julgou a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida, embora com diferente fundamentação (abuso do direito).

Ainda inconformada, a autora vem pedir revista, tendo apresentado as seguintes conclusões:

A)      Nestes autos vem a A. AA impugnar a paternidade do R. BB, quanto à filha daquela, CC, nascida em … de … de 2016. E consequente cancelamento da paternidade e avoenga paterna no registo civil da menor.

B)      Para tanto alega que apesar de à data da concepção da CC, estar casada com o R, estavam já separados de facto há vários meses e o R. é reconhecidamente estéril.

C)      A CC foi concebida por recurso a banco de esperma em sede de PMA, em ..., sem o consentimento do marido da mãe, aqui R.

D)      Ainda na maternidade, o R., usando da fragilidade da A., registou a menor como sua filha. Registo que é falso.

E)      O então marido da A. não dava consentimento para a inseminação artificial.

F)      (…)

G)      Menos de 3 meses após o nascimento da CC, A. e R. voltaram a separar-se e vieram a divorciar-se.

H)     Foi nomeada curadora à menor, pela ora Apelante, e não impugnada pelo R. que, nada tendo a opor ao pedido na acção, antes o subscrevendo, não apresentou contestação.

I)      Fixados os Temas da Prova na audiência de julgamento e apresentada a prova documental e testemunhal foi proferida sentença na 1ª Instância que declarou improcedente a acção por se entender que a A. não fez prova da falta de consentimento do R. para a inseminação artificial.

J)      Interposto recurso, veio este a ser, em parte, procedente, tendo sido dado por provado que a A. informou o R. do recurso a PMA e que este não deu o consentimento a tal acto.

K)      Porém, o acórdão recorrido declara improcedente o pedido por entender que a presente é um abuso de direito na modalidade de "venire contra factum proprium ".

L)     (…)

M)     Na audiência prévia o único tema da prova fixado foi "saber se a A. recorreu a inseminação artificial com recurso a banco de esperma sem consentimento do marido".

N)      Em julgamento foi atendida prova de muitos outros factos (29), que não derivam do Tema da Prova e a este são alheios (factos 16 e 21 a 26 da matéria assente).

O)      Não foi dada à A. a possibilidade de contraditar tais factos.

P)      O que constitui violação do princípio do contraditório e de justa composição do litígio que subjaz ao julgamento (art. 3.°, 6.°, 410.° e 596.° do C.P.C.) e da tutela jurisdicional (art. 20.° da C.R.P.).

Q)      Com o que se mostra nula a fixação da matéria constante dos pontos 21 a 27 da matéria provada, e sobre a qual assenta a decisão recorrida.

R)      O consentimento informado é um conceito técnico (art. 14.° da Lei da PMA) que não admite outras formas de "consentimento".

S)      Está cabalmente provado que o R. não prestou consentimento informado à inseminação que determinou o nascimento da CC.

T)      A sentença recorrida, pese embora tenha fixado que o R. não deu o seu consentimento prévio à inseminação, não retira deste facto qualquer consequência legal.

U)      A sentença recorrida omite na totalidade todo o regime legal fixado na lei da PMA para determinar a Parentalidade, nomeadamente os arts. 14.°, 15.° e 20.° da Lei 32/2006.

V)      A presunção de paternidade, face à nova redacção da lei da PMA, não deriva do casamento, mas deriva do consentimento à inseminação.

W)     A actual Lei da PMA deixou de fazer derivar a paternidade da presunção legal que era atribuída ao marido da mãe, e passou a reconhecer apenas a parentalidade quando há consentimento prévio à inseminação.

Podendo dar consentimento o marido, o companheiro unido de facto, ou simplesmente um terceiro autorizado pela mãe.

X)      A actual lei também permite a inseminação da mulher só e manda que não se faça averiguação de paternidade.

Y)      A CC tem direito à Verdade. Porque daí derivam direitos fundamentais, como o direito à identidade genética, à historicidade e hereditariedade (art. 15.° n.º 2 a 4 da Lei 32/2006).

Z)      O acórdão recorrido viola o disposto nos arts. 14.°, 15.° e 20.° da Lei da PMA e ainda o disposto no art. 1.839.° do C.C.

AA) O acórdão recorrido tutela as falsas declarações prestadas pelo aqui R. perante o Registo Civil.

BB) A parentalidade não depende de qualquer acordo de vontades por livre arbítrio. Estamos em sede de direitos indisponíveis.

CC) Não é o facto de ter vivido com a mãe da CC durante 3 ou 4 meses e durante 2 meses a conviver com a menor que confere direitos de parentalidade.

DD) A paternidade só é fixada com base nos laços de sangue ou nos casos fixados na lei para protecção dos menores (adopção, apadrinhamento civil).

EE) Não há uma contratualização da parentalidade de que possa derivar o abuso de direito.

FF) O acórdão recorrido vale-se da tutela que dará a progenitura masculina à menor. Porém, sem qualquer fundamento legal após a aprovação da Lei 17/2016.

GG) A presunção legal de paternidade (art, 1.826.° do C.C.) é ilidível. E foi nesta acção ilidida face à não convivência do R com a A. ao tempo da concepção, à esterilidade do R e à prova do recurso a banco de esperma.

HH) A Procriação Medicamente Assistida tem protecção constitucional que a admite sujeita à protecção da Dignidade de toda a pessoa humana envolvida no processo.

II) Ao negar o direito da CC à verdade da sua ascendência, o acórdão recorrida viola o disposto nos arts. 68.° n.º 1 e) e art. 1.° da C.R.P.

JJ) O acórdão recorrido omite todo o regime legal aplicável por força da lei da PMA. Negando a Justiça que ao caso concreto é devido (art. 20.° da C.RP.).

KK) A CC tem direito à sua historicidade pessoal, identidade genética e à protecção na saúde que só a verdade pode trazer (art. 26.° n.º 1 e 3 da CRP).

LL) Ao ignorar a identidade genética da CC, a violação do seu direito a conhecer (nos casos definidos na lei) a sua historicidade e hereditariedade a troco de uma parentalidade que falta à verdade, feita de falsas declarações. o Tribunal a quo violou o art. 67.° n.º 2 al. e) e no art. 1º da CRP.

MM) O acórdão recorrido fez incorrecta aplicação do direito e violou o disposto nos arts. 3.°, 6.°, 410.°, 466.°, 591.° n.º 4, 155.°, 596.° e 615.° do C.P.C. e art. 1.º, 20.°, 26.°, 36.° e 67.° da C.R.P. e ainda os arts. 14.°, 15.° e 20.° da Lei 32/2006.

NN) Pelo que, deve revogar-se a decisão recorrida e, em sua substituição, ser proferido Acórdão que julgue procedente o pedido, declarando-se afastada a paternidade do aqui R. quanto à menor CC, ordenando-se o cancelamento da paternidade e avoenga paterna, assim como caducado o apelido DD da menor, no competente assento de nascimento.

O réu contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

Cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

- Nulidade da decisão sobre a matéria de facto; tema de prova;

- Falta de fundamento legal para atribuição ao réu da parentalidade:

       - Falta de consentimento informado;

       - Falsas declarações no registo;

- Inconstitucionalidade.

III.

Estão provados os seguintes factos:

1-    No dia … de … de 2016 nasceu CC.

2-    A menor é filha da aqui A. EE.

3-    Do assento de nascimento de CC consta como pai o então marido da mãe.

4-    O assento de nascimento da menor foi feito com base nas declarações do pai.

5-    BB sofre de doença que determinou a sua esterilidade.

6-    Desde que são casados (2/06/2012), A. e R. têm conhecimento da esterilidade.

7-    Por isso em 2012 adoptaram uma criança - FF.

8-    A A. nunca se conformou com o facto de não poder ter um filho biológico.

9-    O casal fez duas tentativas de recurso a técnicas de procriação medicamente assistidas (PMA), com recurso a esperma de dador.

10-  Tais tentativas mostraram-se falíveis e daí não resultou qualquer gravidez.

11-  Fruto de desentendimentos diversos, em Março de 2015 A. e R. separam-se de facto.

12-  Nessa altura, a aqui A. decidiu recorrer a inseminação artificial com recurso a banco de esperma.

13-  A A. em Maio de 2015, foi a ..., onde esta técnica de PMA é praticada e engravidou de dador anónimo.

14-  Na Clinica IVI ... foi feito todo o procedimento para que a gravidez fosse conseguida.

15-  E assim aconteceu.

16-  No fim do verão de 2015 A. e R. retomaram a vida em comum.

17-  E quando a A. foi para a maternidade, o R. acompanhou-a.

18-  Ali mesmo na maternidade, foi o R. quem procedeu às declarações para registo da menor CC.

19-  Tendo indicado como pai a si próprio, BB.

20-  A menor não tem nenhuma relação biológica com o aqui R.

21-  O R. sempre considerou e tratou a menor como sua filha, quer em público quer em privado.

22-  O R. acompanhou a gravidez e o nascimento da menor.

23-  O R. esteve presente nas consultas médicas de acompanhamento da gravidez, nas ecografias e no momento do nascimento.

24-  O R. foi a primeira pessoa a pegar na menor ao colo.

25-  Foi o R. que comunicou à família e amigos o nascimento da CC.

26-  Durante os primeiros meses de vida da menor, o R. sempre foi um pai presente.

27-  Durante esse período, o R. adormeceu a filha, pegou-lhe ao colo, teve-a no seu colo a dormir.

28-  Os documentos relativos ao recurso à inseminação artificial com sémen de dador levada a cabo pela autora em 2015 foram assinados apenas pela mesma.

29-  A autora declarou nessa altura que era uma mulher sem companheiro e que só ela prestava consentimento para tal procedimento.

No âmbito da reapreciação da matéria de facto, a Relação acrescentou este facto provado (dado como não provado na 1ª instância):

30-  O réu não deu o seu consentimento para o recurso à PMA.

Factos não provados:

1-    Apesar de ter informado o R. de que iria tentar mais uma vez o recurso à PMA, o R. recusou dar o seu consentimento.

2-    Que o réu tenha estado com a menor CC apenas 5 ou 6 vezes e para visitas de cortesia.

3-    Que tais visitas tenham sido de curta duração e que o R. não tenha mostrado qualquer apego afectivo à menor.

4-    Alterado para provado

5-    Que a menor não tenha qualquer relação afectiva com o R.

6-    Que desde que nasceu a CC tenha sido exclusivamente tratada pela mãe e família materna.

7-    Que o recurso à inseminação artificial, em 2015, com sémen de dador levada a cabo pela autora tenha sido com o conhecimento, o apoio e o consentimento do R.

8-    Que o processo de inseminação tenha sido pago com rendimentos do casal.

IV.

1.  Sustenta a recorrente que o acórdão recorrido é nulo por se fundamentar em matéria abusivamente dada como provada, não sujeita a contraditório, o que constitui violação do princípio do contraditório e de justa composição do litígio que subjaz ao julgamento (art. 3.°, 6.°, 410.° e 596.° do CPC) e da tutela jurisdicional (art. 20.° da CRP).

Esta questão decorre do facto de, na audiência prévia, se ter fixado um único tema de prova: saber se a autora recorreu a inseminação artificial com recurso a banco de esperma sem o consentimento do marido. No entanto, acrescenta a recorrente, em julgamento foi atendida prova de muitos outros factos (16 e 21 a 26), que não derivam daquele tema de prova e que lhe são alheios, não lhe tendo sido dada oportunidade de contraditar tais factos.

A este respeito, para questão idêntica colocada na apelação, afirmou-se no acórdão recorrido:

"Parece depreender-se do alegado que apenas se poderia canalizar para os factos apurados os que fossem "temas da prova".

Ora, enunciar os temas de prova significa fixar os pontos - no caso foi fixado um único ponto - que se julgam como essenciais para a solução do litígio.

Podemos ter factos concretos ou conclusões de facto e até de direito.

É óbvio que o apuramento dos factos não se pode nem deve restringir, por regra, aos "temas da prova" pois a decisão sobre a matéria de facto não se conforma com formulações conclusivas ou genéricas.

Antes se exige que o tribunal se pronuncie sobre os factos alegados pelas partes, essenciais para a decisão, bem como os instrumentais que possam resultar da discussão da causa e ainda os factos complementares ou concretizadores dos alegados que também possam resultar da discussão, como o impõe o princípio dispositivo consagrado no art.° 5.° do CPC com concretização, ao nível da sentença, no art.° 607.°. Ver, a título exemplificativo, o Ac.do STJ de 13/11/2014, in www.dgsi.pt, indicado pelo recorrido: «Perante uma enunciação puramente conclusiva dos temas da prova, cabe ao juiz, na fase de julgamento, ao considerar provada ou não provada a concreta matéria de facto a que eles se reportam, de especificar e densificar tal factualidade concreta, fundamentando a sua decisão, não podendo limitar-se a considerar provada ou não provada a matéria, puramente conclusiva, que na fase de saneamento e condensação havia sido enunciada».

No caso, trata-se de factos alegados pelo R na sua contestação com os quais pretendeu o mesmo infirmar a falta de consentimento alegada pela A na sua p.i.

Os factos foram apurados em face das provas que as partes tiveram a oportunidade, em devido tempo, de apresentar e de produzir em julgamento.

Não se alcança onde encontra a recorrente qualquer «violação do princípio do contraditório e de justa composição do litígio que subjaz ao julgamento (art. 3.°, 6.°, 410.° e 596.° do C.P.C.) e da tutela jurisdicional (art. 20.° da C.R.P.)».

Crê-se que se decidiu bem.

Importa referir que estão em causa factos alegados pelas partes nos respectivos articulados: quer pela autora (facto 16 – art. 20º da p.i.), quer pelo réu (factos 21 a 26 – arts. 30º a 36º da contestação).

Ora, o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas (art. 413º do CPC); quanto às provas constituendas, a parte deve ser notificada para todos os actos de preparação e produção da prova e é admitida a intervir nesses actos nos termos da lei (art. 415º, nº 2, do CPC).

No caso, como decorre dos autos, este ritualismo processual foi integralmente cumprido – oferecimento e admissão das provas e produção dessas provas na audiência de julgamento, com a presença das partes, a que se seguiu a correspondente decisão – não se vislumbrando, nesse âmbito, qualquer violação do princípio do contraditório; nem se compreende a afirmação da recorrente de que não lhe foi dada a possibilidade de contraditar "o que as testemunhas do R. disseram" (cfr. art. 516º, nº 2, do CPC).

No entender da recorrente, tal decorreria de ter sido fixado o aludido único tema de prova, a que os referidos factos são alheios, mas esta posição pressupõe uma visão excessivamente redutora desse instrumento processual.

Os temas de prova não podem ter por função excluir a produção de prova sobre os factos relevantes alegados pelas partes (ou que resultem da instrução), sob pena de o sistema se revelar mais rígido e inflexível que o anterior (base instrutória) que, por esse motivo, se pretendeu afastar.

O objectivo do legislador foi, precisamente, o de libertar a instrução de peias formais, assegurando uma ampla e livre investigação sobre toda a matéria de facto pertinente.

É o que se afirma na Exposição de Motivos que antecedeu a Proposta de Lei 113/XII:

"Relativamente aos temas de prova a enunciar, não se trata mais de uma quesitação atomística e sincopada de pontos de facto, outrossim de permitir que a instrução, dentro dos limites definidos pela causa de pedir e pelas excepções deduzidas, decorra sem barreiras artificiais, com isso se assegurando a livre investigação e consideração de toda a matéria com atinência para a decisão da causa. Quando, mais adiante, o juiz vier a decidir a vertente fáctica da lide, aquilo que importará é que tal decisão expresse o mais fielmente possível a realidade histórica tal como esta, pela prova produzida, se revelou nos autos. Estamos perante um novo paradigma que, por isso mesmo, tem necessárias implicações", designadamente "na eliminação de preclusões quanto à alegação de factos (…)".

Os temas de prova têm, assim, conteúdo meramente orientador da ulterior actividade instrutória, que vai ter por objecto todos os factos relevantes que carecem de prova.

Objecto de prova são os factos, não os temas; estes podem, aliás, integrar, como se tem entendido, conceitos de direito e conclusivos, que não poderão constar da decisão que vier a ser proferida.

No caso, a recorrente identifica o "consentimento", a que se alude no tema de prova enunciado, com o conceito preciso de "consentimento informado" exigido pelo art. 14º da Lei 32/2006, de 26/7.

Não é isso, porém, o que consta desse tema de prova: o termo utilizado não tem esse significado preciso e inequívoco, pelo que, de modo nenhum, poderia precludir a prova de factos, que foram alegados, sobre o circunstancialismo que envolveu o "consentimento" ou a falta dele, designadamente, como se refere no acórdão recorrido, para infirmar essa falta.

Não se verifica, por conseguinte, a violação dos princípios legais e constitucionais invocada pela recorrente.

2. Importa começar por definir o regime legal aplicável ao caso sub judice, uma vez que a recorrente se refere, indistintamente, quer ao regime sobre procriação medicamente assistida (PMA) instituído pela Lei 32/2006, de 26/7, quer ao regime que resulta das alterações, substanciais, a essa lei, introduzidas pela Lei 17/2016, de 20/6.

No caso, o recurso pela autora à PMA ocorreu em Maio de 2015, a que sobreveio a gravidez da autora e o posterior nascimento da filha CC em 29.01.2016; o registo do nascimento foi efectuado pelo réu no dia imediato.

Assim, no que respeita aos requisitos legais do recurso pela autora à PMA e efeitos daí derivados, verificados em data anterior a 01.08.2016 (art. 4º da Lei 17/2016), é aplicável, parece-nos, a Lei 32/2006, tendo em conta o disposto no art. 12º, nº 1 e 2, do CC: por regra, a lei só dispõe para o futuro e, quando dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos.

Como refere Baptista Machado, distinguindo entre constituição e conteúdo das situações jurídicas, "à constituição das situações jurídicas (requisitos de validade, substancial ou formal, factos constitutivos), aplica-se a lei do momento em que essa constituição se verifica; ao conteúdo das situações jurídicas que subsistam à data do início de vigência da lei nova aplica-se imediatamente esta lei, pelo que respeita ao regime futuro deste conteúdo e seus efeitos"[2].

3. Encontra-se constitucionalmente consagrado o direito de constituir família (art. 36º, nº 1, da CRP), que envolve o direito de procriar e de ter filhos. Este direito assenta, por regra, na prática do acto sexual, mas pode verificar-se por outra via, como é o recurso à PMA, cuja regulamentação, em termos que salvaguardem a dignidade da pessoa humana, é também exigida constitucionalmente, no âmbito da protecção da família (art. 67º, nº 2, al. e), da CRP).

Segundo dispõe o art. 4º, nºs 1 e 2, da Lei 32/2006[3], as técnicas de PMA são um método subsidiário e não alternativo, podendo ser utilizadas mediante diagnóstico de infertilidade (ou ainda para tratamento de doenças graves ou do risco de transmissão de doenças).

São "beneficiários", ou seja, podem recorrer às técnicas de PMA, as pessoas casadas que não se encontrem separadas judicialmente de pessoas e bens ou separadas de facto ou as que, sendo de sexo diferente, vivam em condições análogas às dos cônjuges há pelo menos dois anos – art. 6º, nº 1.

Assim, à luz deste diploma (neste ponto, em sentido bem diferente do actual), o acesso à PMA estava reservado aos casais heterossexuais: pessoas de sexo diferente que estivessem casadas ou que vivessem em união de facto há mais de dois anos.

No art. 10º, nº 1, é admitida a procriação heteróloga, com dádiva de ovócitos, de espermatozóides ou de embriões, a título subsidiário, ou seja, quando não possa obter-se a gravidez através do recurso a qualquer outra técnica que utilize os gâmetas dos beneficiários (cfr. art. 19º).

Privilegia-se, assim, a "correspondência entre o progenitor social e o progenitor biológico, apenas se admitindo a procriação heteróloga nos casos excepcionais em que não seja possível superar uma situação de infertilidade sem o recurso a um terceiro dador"[4].

Entre outras questões, esta admissibilidade da procriação heteróloga coloca o problema do anonimato do dador – cfr. art. 15º[5].

Nos termos do nº 5 deste artigo, o assento de nascimento não pode, em caso algum, conter a indicação de que a criança nasceu da aplicação de técnicas de PMA.

Com especial relevo para a questão debatida nestes autos, importa ter em consideração que os beneficiários devem prestar o seu consentimento livre, esclarecido, de forma expressa e por escrito, perante o médico responsável, devendo, para esse efeito, ser previamente informados, por escrito, de todos os benefícios e riscos conhecidos resultantes da utilização das técnicas de PMA, bem como das suas implicações éticas, sociais e jurídicas – art. 14º, nºs 1 e 2.

Por outro lado, em conformidade com o art. 20º:

1. Se da inseminação com sémen do dador vier a resultar o nascimento de um filho, é este havido como filho do marido ou daquele que viva em união de facto com a mulher inseminada, desde que tenha havido consentimento na inseminação, nos termos do art. 14º, sem prejuízo da presunção estabelecida no art. 1826º do CC.

2. Para efeitos do disposto no número anterior, e no caso de ausência do unido de facto no acto de registo do nascimento, pode ser exibido, nesse mesmo acto, documento comprovativo de que aquele prestou o seu consentimento nos termos do art. 14º. (…)

5. A presunção de paternidade estabelecida nos termos dos nºs 1 e 2 pode ser impugnada pelo marido ou aquele que vivesse em união de facto se for provado que não houve consentimento ou que o filho não nasceu da inseminação para que o consentimento foi prestado.

Assim, nestas situações, o consentimento do beneficiário é elemento imprescindível para a constituição do vínculo de filiação: só é pai jurídico aquele que tenha consentido no uso da técnica de procriação assistida.

Este consentimento pressupõe, como refere J. Duarte Pinheiro, "uma dupla intenção: uma intenção dirigida à admissão da procriação heteróloga e uma intenção ulterior de constituição de vínculo de filiação"[6].

Este vínculo, acrescenta o mesmo Autor, deve ser "constituído em relação ao beneficiário da PMA que não contribuiu, para o processo, com as suas células reprodutoras, desde que ele tenha consentido validamente na formação desse vínculo. Tanto mais que ele teve um papel causal determinante no nascimento. Foi a sua decisão que desencadeou o processo de procriação".

Refere também Rute Teixeira Pedro:

"(…) O fundamento assente na procriação medicamente assistida é uma verdade intencional, uma pura verdade do querer assumir um projecto parental e para esse efeito – para se cumprir essa vontade – um novo ser é criado (cujos interesses não estamos certos de que estejam a ser devidamente ponderados).

Neste sentido, aliás, deporão os critérios definidos no artigo 20º da LPMA quanto à determinação da parentalidade. Em homenagem à vontade dirigida àquele objectivo de dar concretização ao processo parental voluntariamente traçado – vontade esclarecida e exteriorizada nos termos do artigo 14º da LPMA – se explica a solução jurídica adotada para a determinação da parentalidade. Quer dizer, a criança nascida através do recurso às técnicas de procriação medicamente assistida é considerada, para o direito, como filha daqueles que prestem o consentimento nos termos do artigo 14º, id est, dos beneficiários das técnicas"[7].

4. No acórdão recorrido entendeu-se que, apesar de se ter considerado provada a falta de consentimento prévio do réu para o recurso da autora à PMA, a acção não deveria proceder, por existir abuso do direito por parte da autora.

Assim, depois de se caracterizar este instituto, em especial na vertente do venire contra factum proprium, afirmou-se a concluir:

"Descendo ao caso, cabe atentar que a A., pese embora se encontrasse separada de facto do R, ao tempo da inseminação da qual veio a resultar a gravidez aqui em referência, sempre com ele manteve contactos; que o dinheiro para o efeito, sendo embora da pertença da A, lhe foi entregue pelo R. marido a seu pedido (pois que o haviam investido num negócio dele, segundo a mãe da A.); com poucos meses de gravidez, o casal voltou a juntar-se, o R. acompanhou a gravidez, o nascimento e os primeiros tempos de vida da menor e o registo da menor foi levado a cabo com base nas declarações do R., na qualidade de pai.

Antes desta inseminação já o casal tinha recorrido por duas vezes a este método, mas sem sucesso. Daqui temos por adquirido que o R. partilhava com a A. da vontade de procriar uma criança. Persistindo a A. na sua vontade de ser mãe, mas estando o casal em separação, é lógico e compreensível que a A. não tivesse diligenciado por pedir ao R o seu consentimento expresso para a inseminação; mas não estivesse o casal separado, naquela época, por certo a inseminação teria sido levada a cabo com o acordo expresso do R..

O comportamento posterior do R. não pode ser visto senão como uma ratificação desse mesmo processo. Ratificação pelo R e aceitação por parte da A/mãe, que quis que o R figurasse como pai da filha pois se assim não fosse não se teria reconciliado, teria mantido a situação de separação e não teria permitido que o R. participasse no processos de gravidez e de nascimento nem de registo da criança.

Não é moralmente aceitável que uma mãe tenha, na constância do casamento, procriado uma criança, aceite que o marido participasse do processo de gravidez, nascimento e primeiros meses de vida para depois, contra as expectativas que lhe criou de ter a qualidade de pai desta criança, vir invocar a falta de consentimento para a inseminação, com o objectivo de retirar à menor e ao R. o vínculo que ficou juridicamente estabelecido, com outra argumentação que não seja "falta de consentimento para aquele concreto acto de inseminação".

Ao actuar como o faz agora está a A. a violar ostensivamente o "princípio da confiança" que conscientemente criou no R. ao permitir-lhe assumir a qualidade de pai da menor, em toda a sua plenitude; a A. apresenta-se a actuar em moldes manifestamente contrários à realidade que anteriormente deixou que fosse sedimentada.

Permitir que o pai ficasse sem esta qualidade, mas mais grave, permitir que a menor deixasse de ter este pai que também é o pai do seu irmão, para passar a não ter filiação paterna é uma situação chocante que não deve nem pode merecer a cobertura do direito, por configurar um uso abusivo do mesmo.

Portanto, mesmo provada a falta de consentimento do R. para o concreto acto de inseminação, que deu origem à vida da menor, sempre o direito que a A pretende aqui fazer valer não pode ser acolhido por configurar um exercício abusivo desse direito".

5. A recorrente censura o acórdão recorrido por neste se ter desconsiderado o regime legal aplicável, sem se aflorar sequer a provada falta de consentimento do réu à inseminação artificial realizada pela autora e sem se atender a que o registo do nascimento da filha foi feito com base em falsas declarações.

Esta censura poderia considerar-se, em parte, justificada, mas só aparentemente, parece-nos.

É certo que, no acórdão recorrido, se omitiu a referência expressa ao regime legal aplicável, designadamente nos aspectos focados pela recorrente. Todavia, no que respeita ao registo, a questão não foi invocada na apelação; quanto ao consentimento, tal ficou a dever-se ao relevo atribuído a razões e circunstâncias que levaram a concluir pela existência de abuso do direito, que se entendeu dever sobrepor-se aos efeitos que, em princípio, decorreriam do referido regime legal.

Com efeito, parece-nos evidente que está implícita, na fundamentação do acórdão recorrido, a exigência de consentimento prévio do réu para a inseminação artificial realizada pela autora, como pressuposto para o reconhecimento da paternidade daquele e que a sua falta ditaria, à luz do aludido regime legal, o não reconhecimento dessa paternidade, como pretende a autora.

Ponderou-se, todavia, que, no circunstancialismo provado, esta pretensão configurava o exercício abusivo do direito, que se entendeu obstar à sua procedência.

Assente, pois, a falta de consentimento prévio do réu para o recurso pela autora à PMA, o que importará discutir é se, para obstar ao efeito que daí decorreria, de afastamento da paternidade presumida (art. 20º, nº 1), como a autora pretende, é pertinente e legítimo o recurso ao abuso do direito e se este encontra apoio no circunstancialismo provado.

Crê-se que sim.

Importa salientar que a autora e o réu eram pessoas casadas entre si, tendo aquela, numa altura em que se encontravam separados de facto, recorrido, em ..., a técnica de PMA – inseminação artificial com dador anónimo – de que veio a engravidar.

Só a autora assinou a documentação necessária ao processo de inseminação, tendo declarado, na altura, que era "mulher sem companheiro e que só ela prestava consentimento".

Não se provou que tivesse pedido o consentimento do réu, tendo-se concluído na Relação que, estando separados de facto, é natural que a autora não o tivesse feito.

Decorre destes factos que, nesse procedimento, não foram cumpridos os requisitos legais da LPMA então em vigor: a autora, sendo casada, mas estando separada de facto, estava impedida de recorrer à PMA, conforme a regra da biparentalidade consagrada no art. 6º, nº 1, não tendo sido obtido o consentimento do réu marido para a inseminação, nos termos do art. 14º.

Repare-se, porém, que a recorrente vem invocar a falta de consentimento do réu, como fundamento para afastar a paternidade deste, mas essa falta apenas a ela será, em princípio, imputável, por ter decidido unilateralmente recorrer à PMA, não se tendo provado que tenha pedido o consentimento do réu, tendo declarado não ter companheiro e que só ela prestava o consentimento.

Por outro lado, o comportamento posterior do réu tem o significado inequívoco de que este aceitou e ratificou a decisão da mulher: após a reconciliação do casal, acompanhou a gravidez, o nascimento e os primeiros meses de vida da menor CC, tendo-a registado como filha; sempre foi um pai presente, tratando a menor como sua filha.

Note-se, aliás, que esta atitude de aceitação por parte do réu é compreensível e seria até expectável, após a reconciliação, uma vez que o casal já tinha recorrido anteriormente, por duas vezes, sem sucesso, à inseminação artificial.

A referida vivência e a investidura no papel e funções de pai revela que, à aceitação por parte do réu da decisão da autora, correspondeu, da parte desta, nesse período de vida em comum, a aceitação do réu como pai da filha.

Dispõe o art. 334º do CC que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

O abuso do direito, apesar da designação, reporta-se ao exercício de qualquer posição jurídica, nos casos em que esse exercício "conduz a um resultado clamorosamente divergente do fim para que a lei o concebeu e dos interesses jurídica e socialmente aceitáveis"[8].

As pessoas, no exercício de direitos e deveres, devem assumir um comportamento correcto e leal, não defraudando a confiança e as legítimas expectativas dos outros.

Na invocada modalidade de venire contra factum proprium, o abuso do direito exige sempre "uma situação de confiança – uma conduta de alguém que possa ser entendida como posição vinculante em relação à situação futura – e o investimento na confiança pela contraparte e boa fé desta"[9].

No caso, a autora vem invocar o não cumprimento de regras jurídicas que ela própria contornou e afastou, ao decidir recorrer sozinha à inseminação artificial, só ela prestando consentimento para tal procedimento.

Foi esta situação anómala (a fazer lembrar o tu quoque) que viabilizou a prática da inseminação, com violação da aludida regra da biparentalidade, então em vigor.

Por outro lado, não é realmente aceitável que a autora, depois da situação vivida após a reconciliação do casal – aceitando a adesão e participação voluntária do réu como marido e pai nesse seu projecto familiar, acompanhando a gravidez, o nascimento e os primeiros meses de vida da filha – venha, após nova separação do casal e contra as expectativas criadas, pretender pôr termo ao vínculo jurídico que, entretanto, se estabeleceu entre a filha e o réu, com fundamento na falta de consentimento para a inseminação.

É verdade que tal consentimento prévio do réu não existiu, como se provou, mas é indiscutível, face ao comportamento e relacionamento posterior dos cônjuges, que veio a verificar-se, de facto, um consentimento sério, efectivo e real do réu à decisão da autora, com a correspondente aceitação, que é manifesta, da parte desta.

Pode, pois, dizer-se, também aqui, que "o marido e mulher aderiram a um projecto familiar que consistiu na investidura do homem no estatuto social e afectivo de pai, sabendo que ele não era o progenitor. Este projecto, tornado possível pelos avanços da biotecnologia, exige dos pais um compromisso firme, que não ceda a quaisquer mudanças de conveniência, sob pena de nunca se fazer um investimento familiar normal e de se sujeitar o filho a alterações familiares penosas"[10].

Neste condicionalismo e relevando este consentimento do réu, a impugnação tinha de improceder.

A não se entender assim, impõe-se o recurso ao abuso do direito, como se decidiu, considerando o que acima se expôs.

A este respeito, não se resiste a reproduzir o que, a dado passo, é dito pelo recorrido nas contra-alegações:

"Com a separação do casal (da A. e do R.) e com a publicação da Lei nº 17/2016, de 20 de Junho, que entrou em vigor em Agosto de 2016, a qual veio permitir o acesso de todas as mulheres à procriação medicamente assistida, independentemente do estado civil, e instituir o regime da monoparentalidade, a A. quer agora, com a presente acção, voltar com a palavra atrás, ou seja, quer voltar com a paternidade atrás e descartar o R. do papel de pai ("pai social) da CC, o que não pode ser aceite nem tolerado, designadamente em nome e no interesse da própria filha".

Como se concluiu no acórdão recorrido, "permitir que o pai ficasse sem esta qualidade, mas mais grave, permitir que a menor deixasse de ter este pai que também é o pai do seu irmão, para passar a não ter filiação paterna é uma situação chocante que não deve nem pode merecer a cobertura do direito, por configurar um uso abusivo do mesmo".

6. A recorrente sustenta também que o acórdão recorrido tutela as falsas declarações prestadas pelo réu perante o Registo Civil.

Esta questão é nova, não tendo sido colocada anteriormente à Relação (cfr. conclusões MM) a QQ) da apelação); de todo o modo, parece-nos, não tem razão de ser.

Tendo em atenção o que se concluiu no ponto anterior, desconsiderando a falta de consentimento formal prévio, por se verificar, afinal, um consentimento real e efectivo dos dois cônjuges ao projecto familiar encetado pela autora, não vemos que haja qualquer falsidade nas declarações prestadas pelo réu perante o Registo Civil.

Com efeito, foi aí declarada a paternidade do réu em relação à menor CC, como se presumia, nos termos dos arts. 20º, nº 1, da LPMA e 1826º do CC.

Por outro lado, como dispõe o art. 15º, nº 5, o assento de nascimento não pode, em caso algum, conter a indicação de que a criança nasceu da aplicação de técnicas de PMA.

Como parece evidente, o registo da filha CC não põe minimamente em causa o direito desta à identidade genética e à sua historicidade pessoal. Tendo por fim comprovar e publicitar o facto jurídico do nascimento, não será aí que podem ser colhidas tais informações.

As limitações aos referidos direitos podem, de facto, ocorrer, mas derivam, desde logo, do regime previsto nas normas dos nºs 1 e 4 do art. 15º, como, aliás, já foi decidido pelo Tribunal Constitucional (citado Acórdão nº 225/2018), que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do nº 1, na parte em que impõe uma obrigação de sigilo absoluto relativamente às pessoas nascidas em consequência de processos de procriação medicamente assistida com recurso a dádiva de gâmetas ou embriões (…), e do nº 4, por violação dos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade de tais pessoas em consequência de uma restrição desnecessária dos mesmos, conforme decorre da conjugação do art. 18º, nº 2, com o artigo 26º, nº 1, ambos da Constituição da República Portuguesa.

7. A recorrente invoca ainda a "inconstitucionalidade da decisão recorrida", por violação dos arts. 1º, 20º, 26º, nºs 1 e 3, e 67º, nº 2, e), da CRP.

Importa começar por precisar que, contrariamente ao que vem afirmado pela recorrente, no acórdão recorrido foi considerado não provado este facto impugnado na apelação – conclusão KK) – a que a recorrente atribui importância decisiva:

- Apesar de ter informado o réu de que iria tentar mais uma vez o recurso à PMA, o réu recusou dar o seu consentimento.

É o que decorre claramente da fundamentação do acórdão recorrido (cfr. fls. 415) e já acima assim se considerou.

Por outro lado, a inconstitucionalidade nunca poderá ser da decisão judicial em si mesma e de eventual erro de julgamento que possa ter sido cometido; o juízo de inconstitucionalidade apenas tem por objecto a decisão "na parte em que ela não aplicou uma norma por motivo de inconstitucionalidade ou aplicou uma norma alegadamente inconstitucional"[11].

De todo o modo, parece-nos evidente que o acórdão recorrido não viola, nem vai implicar a violação do direito à identidade genética da menor CC e o direito desta a conhecer a sua historicidade e hereditariedade; nem aí se procedeu à interpretação das normas dos arts. 14º e 20º da LPMA violadora dos arts. 1º, 36º e 67º da CRP.

Como consequência da improcedência da impugnação deduzida pela autora subsiste a paternidade do réu que havia sido juridicamente estabelecida, com fundamento no regime da LPMA. E não é esta situação, por si, como qualquer outra em que tenha sido estabelecida, sem conflito, a parentalidade, que vai impedir o acesso do filho a informação sobre a sua identidade genética.

Já foi, aliás, reconhecida a conformidade constitucional do referido regime, na parte aqui aplicável, quer no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 101/2009, quer no Acórdão nº 225/2018, neste com a excepção acima indicada que, podendo afastar as objecções da recorrente, não está aqui implicada.

V.

Em face do exposto, nega-se a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

     Lisboa, 6 de novembro de 2018

Pinto de Almeida (Relator)

José Rainho

Graça Amaral

______________________________
[1] Proc. nº 2790/167.0T8VFX.L1.S1
F. Pinto de Almeida (R. 257)
Cons. José Rainho; Cons.ª Graça Amaral
[2] Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 234.
[3] A que respeitam os preceitos legais adiante citados sem outra menção.
[4] Acórdão do Tribunal Constitucional nº 101/2009.
[5] Cabe aqui referir que o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 225/2018 declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas dos nºs 1 e 4 do art. 15º, por violação dos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade.
[6] O Direito de Família Contemporâneo, 3ª ed., 284.
[7] Actas do Seminário "Debatendo a Procriação Medicamente Assistida", 158 e 159
[8] Acórdão do STJ de 23.03.2006, CJ STJ XIV, 1, 150.
[9] Acórdão de 28.02.2012, em www.dgsi.pt.
[10] Pereira Coelho e Guilherme Oliveira, Curso de Direito da Família, Vol II, Tomo I, 143.
[11] Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, Vol. II, 4ª ed., 944.