Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
642/06.0YXLSB-A.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: SERRA BAPTISTA
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
CABEÇA DE CASAL
INVENTÁRIO
SOCIEDADES COMERCIAIS
INQUÉRITO JUDICIAL
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/07/2010
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJASTJ, ANO XVIII, TOMO I/2010, P.9
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1. Tratando-se de processo de inventário, as contas a prestar pelo cabeça-de-casal, requeridas por apenso àquele processo, só podem respeitar ao período temporal em que, após a sua nomeação para o exercício do cargo, administrou os bens da herança.
2. No domínio do actual Código das Sociedades Comerciais, o processo próprio para obter judicialmente a prestação de contas é o de inquérito previsto no art. 67.º do mesmo diploma legal
Decisão Texto Integral:


ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:



AA veio intentar acção especial de prestação de contas contra BB, pedindo que o mesmo, na qualidade de cabeça-de-casal, venha prestar contas da administração dos bens da herança, designadamente das sociedades que melhor identifica na p. i., com as cominações legais, caso não as preste.

Alegando, para tanto e em suma:

Sendo as partes sócias das sociedades por quotas que melhor identifica, o réu, cabeça-de-casal desde a morte de sua falecida mulher, ocorrida em 6/11/98, nunca prestou contas.

Citado o réu, veio o mesmo contestar, alegando, também em síntese:
A A. é parte ilegítima, por estar desacompanhada de sua irmã, CC, a outra herdeira da sua falecida mulher, mãe de ambas;
A p. i é inepta, porque há falta de pedido (não existe concretização temporal no pedido da prestação de contas)
Pelo menos até Dezembro de 2004 as contas encontram-se prestadas;
A A. sempre teve acesso a tudo o que diz respeito às sociedades comerciais.

Respondeu a A., esclarecendo que vai pedir a intervenção principal provocada da outra interessada na herança, reiterando que o A. deve prestar contas a partir da abertura da herança.
Devendo a prestação de contas incluir todos os bens da herança que deram rendimentos.

A fls. 66 dos autos, veio a A. requerer a intervenção principal provocada de CC, a qual, após despacho de admissibilidade, veio contestar, pugnando pela improcedência da acção e pela absolvição do R. do pedido.

Foi proferido despacho a decidir que cabe ao cabeça-de-casal prestar contas da sua administração desde a abertura da herança, mandando notificar o réu para, nos termos ao art. 1014.º-A, nº 5 do CPC, prestar contas.

Inconformado, veio o réu interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, onde, por acórdão de 28 de Maio de 2009, se decidiu:
1. Na parcial procedência do recurso, revogar-se a decisão recorrida na parte em que ordenou caber ao cabeça-de-casal prestar contas da sua administração desde a abertura da herança.
2. Que a obrigação de prestar contas na presente acção, apenas se reporta ao período posterior à sua investidura como cabeça-de-casal, não compreendendo a gerência das sociedades comerciais em que A. e Réu são sócios.

Agora irresignada, veio a A. pedir revista para este Supremo Tribunal de Justiça, formulando, na sua alegação, as seguintes conclusões:

1ª - O douto acórdão da Relação de Lisboa de que se recorre não teve em conta o dispositivo legal do art° 2093.º do C. Civil que refere expressamente:
"1 - O cabeça de casal deve prestar contas anualmente.
2 - Nas contas entram como despesas os rendimentos entregues pelo cabeça de casal aos herdeiros ou ao cônjuge meeiro nos termos do artigo anterior, e bem assim o juro do que haja gasto à sua custa na satisfação de encargos de administração."
3 - ..... "
2ª - A requerente do inventário vem requerer que o cabeça de casal venha prestar contas desde a abertura da herança com fundamento em que à data do falecimento do "de cujus" existia um depósito bancário de Esc. 266.736$00 ou seja de € 1.330,48 que não consta da relação;
3ª - Por outro lado, o cabeça de casal vem adquirindo bens móveis para si e sua nova esposa sem que tenha outros rendimentos que não sejam os decorrentes dos bens da herança, designadamente da sociedade de que só ele é gerente;
4ª - Independentemente da apresentação das contas da sua gestão dessas sociedades, importa a das contas gerais da gestão da herança de todos os bens que lhe pertencem desde a morte do "de cujus" até ao momento;
5ª - Assim a prestação de contas deve reportar-se à abertura a herança e não à investidura do cabeça de casal após o processo de inventário;
6ª - O douto acórdão recorrido violou os art°s. 2092.º e 2093.º, ambos do C. Civil.

O recorrido contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.

Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.

Como é bem sabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objecto do recurso – arts 684º, nº 3 e 690º, nº 1 e 4 do CPC, bem como jurisprudência firme deste Supremo Tribunal.
Sendo, pois, as questões atrás enunciadas e que pela recorrente nos são colocadas que cumpre apreciar e decidir.

Podendo as mesmas reduzir-se às seguintes:
1ª – O réu, cabeça-de-casal, deve prestar contas da sua administração a partir da sua investidura ou desde a data da abertura da herança?
2ª – A prestação de contas deve compreender a gerência das sociedades comerciais de que a A. e R. são sócios?

Vejamos, começando-se, naturalmente, pela primeira questão suscitada: a do momento a partir do qual a A. pode pedir a prestação de contas pelo réu.

Estamos perante uma acção de prestação de contas intentada na pendência de um processo de inventário (1).

Pretendendo a A. que o réu – cabeça de casal nele nomeado e cônjuge sobrevivo do de cujus – preste contas da sua administração da herança nos termos do art. 1019.º do CPC (2).

Ora, a herança abre-se no momento da morte do seu autor – art. 2031.º do CC (3).

Pertencendo a administração da herança, até á sua liquidação e partilha, ao cabeça-de-casal (art. 2079.º), que administra os bens próprios do falecido e tendo este sido casado no regime de comunhão, os bens comuns do casal (art. 2087.º, nº 1).

Estando tal administração, desde o momento da abertura da herança, intimamente ligada à figura do cabeçalato (4)/(5)/(6), sendo certo que o cargo de cabeça-de-casal se defere prioritariamente ex lege (art. 2080.º), independentemente quer da aceitação de tal cargo, quer da aceitação de eventual vocação hereditária. Havendo, assim, uma forma de administração legal dos bens, com vista à conservação e frutificação normal e a todos os demais actos de administração ordinária dos bens da herança (7).

Havendo, no processo de inventário, lugar à nomeação e investidura do cabeça-de-casal (arts 1338.º a 1340.º do CPC), podendo, assim, distinguir-se entre o cabeça-de-casal com investidura oficial (nomeado em inventário) e mero detentor de facto de tal qualidade (8).

Estando o cabeça-de-casal, como tal, obrigado a prestar contas (art. 2093.º, nº 1).

Derivando tal obrigação da administração da herança que lhe incumbe, sendo a mesma garantia de que essa administração será exercida com diligência, competência e honestidade e que o administrador se não afastará das regras que a prudência indica e que a probidade impõe.

Está, pois – e tal não é afinal por ninguém impugnado – obrigado a prestar contas.

Mas, e sendo certo, como começámos por dizer, que estamos na dependência do inventário no qual foi o réu nomeado cabeça-de-casal – e entramos no cerne da questão – desde quando é que vigora tal obrigação?

Entendemos, também, de acordo com o acórdão recorrido, que a prestação de contas aqui pedida – na dependência do dito inventário, repete-se – só deve respeitar ao período temporal em que, após a nomeação para o exercício do cargo, administrou os bens da herança (9).

Assim também ensinando Vaz Serra (10) quando escreve: “ … Certo que estas funções não aparecem necessariamente ligadas à existência do inventário, o que equivale dizer que, em bom rigor, a lei não exige nomeação judicial para que a pessoa legitima se considere investida no exercício delas. Mas, claro está, no seu aspecto de direito e em referência ao processo de inventário, as contas a prestar pelo cabeça-de-casal, por apenso a esse processo, só podem respeitar ao período de tempo em que, após a nomeação nesse inventário, administrou os bens da herança.”

Podendo “(…) pedir-se a prestação de contas a pessoa que estivesse na administração da herança como cabeça-de-casal, mas pelo processo geral de prestação de contas (11).

Podendo, a respeito, ler-se em Lopes Cardoso (12): “(…) e tendo em conta que desde logo o cabeça-de-casal entra de facto no exercício de funções, e assim, mercê desse exercício, a administrar os bens hereditários, a Revista decana sustentou, e bem, que podia pedir-se a prestação de contas à pessoa que estivesse na administração da herança como cabeça-de-casal, mas pelo processo geral de prestação de contas, não pelo processo especial previsto no art. 1018.º do Cod. Proc. Civil anterior.”

Passemos á segunda questão: a de saber se a prestação de contas deve compreender a gerência das sociedades comerciais de que a A. e R. são sócios.

A A. é sócia das seguintes sociedades por quotas (13):
a) L… – Móveis e Decorações, Lda;
b) A… e P…, Lda;
c) A… & C…., Lda (certidões de fls 7 e ss e art. 4.º da contestação).

O R. é gerente dessas sociedades (certidões atrás aludidas).

Ora, nos termos do art. 21.º, nº 1, al. c) do CSC, todo o sócio tem o direito, entre outros, de obter informação sobre a vida da sociedade, nos termos da lei e do contrato.

Estando, quanto às sociedades por quotas, tal direito de informação melhor especificado no art. 214.º do mesmo diploma legal.

Devendo os membros da administração, alem do mais, relatar a gestão e apresentar contas relativamente a cada exercício anual – art. 65.º, ainda deste último mencionado Código.

Nada dispondo de especial o art. 263.º, nº 1 do aludido CSC, em relação às sociedades por quotas, sobre a prestação de contas, limitando-se, afinal, a regular o exercício do direito de informação dos sócios. Sendo, pois, a respeito aplicável o disposto nos arts 65º a 69º do mesmo diploma legal (14).

Incumbindo, assim ao réu, gerente das ditas sociedades, o dever de prestar contas.

Não o tendo feito, e estando ultrapassado o prazo da apresentação fixado no nº 5 do citado art. 65.º, estipula o art. 67.º seguinte que qualquer sócio pode requerer ao tribunal que se proceda a inquérito. Seguindo-se, então, o procedimento descrito nesse mesmo preceito (15).

Assim, tendo o Código das Sociedades Comerciais previsto a respeito um regime completo e exaustivo que permite aos sócios, mormente aos que não participam na administração da sociedade, a defesa dos seus direito sociais, não se compreende que se abra mão de outro, por completamente desnecessário.

Pelo que o meio adequado que os sócios, que pretendam ver prestadas as contas, que tempestivamente o não foram, têm à sua disposição para o efeito, é o de inquérito judicial e não o processo especial de prestação de contas previsto no CPC (16)

A razão está, pois, com a Relação, já que o processo próprio para a prestação de contas, a partir da entrada em vigor do Código das Sociedades Comerciais, não é o pela A. requerido.

Concluindo:
1. Tratando-se de processo de inventário, as contas a prestar pelo cabeça-de-casal, requeridas por apenso àquele processo, só podem respeitar ao período temporal em que, após a sua nomeação para o exercício do cargo, administrou os bens da herança.
2. No domínio do actual Código das Sociedades Comerciais, o processo próprio para obter judicialmente a prestação de contas é o de inquérito previsto no art. 67.º do mesmo diploma legal.

Face a todo o exposto, acorda-se neste Supremo Tribunal de Justiça em se negar a revista.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 7 de Janeiro de 2010
Serra Baptista (Relator)
Álvaro Rodrigues
Santos Bernardino

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(1) Rosto da p. i. de fls 2.
(2) Art. 7.º da p. i.
(3) Sendo deste diploma legal todas as disposições a seguir citadas sem referência expressa.
(4) A lei não resolve expressamente esta questão, ao invés do que acontece quanto ao seu termo (art. 2079.º do CC)
(5) Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, p. 51.
(6) Ac. do STJ de 9/6/09 (Hélder Roque), Pº 225-A/2000.S1.
(7) Capelo de Sousa, ob. cit., p. 52.
(8) Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, vol. III, p. 55. Pode, assim dizer-se, conclui ainda o mesmo autor, que o cabeça-de-casal tem existência jurídica desde a morte do autor da herança, independentemente de ter havido inventário para a partilha dos bens (ob. cit., vol. I, p. 264).
(9) Neste mesmo sentido os Acs deste STJ já citado, de 9/6/09 e o Acs da RE de 25/10/07, com menção de outra idêntica jurisprudência nas Relações e da RP de 3/2/83, Bol. 324, p. 622.
(10) RLJ Ano 85.º, p. 339, já referida no acórdão recorrido.
(11) Ainda Vaz Serra, rev. citada, p. 294.
(12) Ob. cit., vol. III, p.54 e seg.
(13) A Relação deveria ter elencado os factos que teve como provados, necessários à decisão do seu recurso. Não o fez, pelo que, para se evitar a baixa do processo, dar-se-ão aqui como assentes, ao abrigo do disposto no art. 659.º, nº 3 do CPC, os confessados pelo réu e os provados por documento. Sendo os mesmos bastantes para a decisão desta revista.
(14) Raul Ventura, Sociedades por Quotas, vol. II, p. 212.
(15) Menezes Cordeiro, Manual do Direito das Sociedades, vol. I, p. 773, António Pereira de Almeida, Sociedades Comerciais, p. 100 e Pinto Furtado, Curso do Direito das Sociedades, p. 473.
(16) Acs do STJ de 19/11/96 (Machado Soares), CJ S. Ano IV, T. 3, p. 106 (parte final), de 22/11/95 (Herculano Lima), CJ S Ano III, T. 3, p. 113, de 28/3/95 (Pereiro Cardigos), de 26/9/95 (Fernando Fabião), de 17/5/94 (Fernando Fabião), estes in www.dgsi.pt e da RC de 8/2/2000 (Abrantes Geraldes), CJ Ano XXV, T. 1, p. 15