Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6040/02.8TDPRT.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DIREITOS DE DEFESA
PENA SUSPENSA
APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO
PENA DE SUBSTITUIÇÃO
PENA DE PRISÃO
ESCOLHA DA PENA
CULPA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
FINS DAS PENAS
CORRUPÇÃO PASSIVA PARA ACTO ILÍCITO
DIREITO AO SILÊNCIO
Data do Acordão: 01/13/2010
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJASTJ, ANO XVIII, TOMO I/2010, P. 180
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário : I - O direito ao contraditório integra um complexo de direitos parcelares que constituem, em última análise, o estatuto do arguido, sendo no processo criminal que o princípio do contraditório assume a dignidade constitucional que o art. 32.º da CRP lhe atribui; a preservação das garantias de defesa do arguido passa, nos parâmetros do Estado de Directo Democrático, além do mais, pela observação do contraditório, de modo a que possa sempre ser dado conhecimento ao arguido do teor da acusação que lhe é feita e se lhe dê oportunidade para dela se defender.
II - A intangibilidade deste núcleo essencial compadece-se, no entanto, com a liberdade de conformação do legislador ordinário que, designadamente na estruturação das fases processuais anteriores ao julgamento, detém margem de liberdade suficiente para plasticizar o contraditório sem prejuízo de a ele subordinar estritamente a audiência: aqui o princípio tem a sua máxima expressão, pois nessa fase o arguido pode expor o seu ponto de vista quanto às acusações que lhe são feitas, contraditar as provas contra si apresentadas, apresentar novas provas e pedir a realização de outras diligências e debater a questão de direito.
III - Porém, à excepção desse núcleo – que impede a prolação de decisão sem ter sido dada ao arguido a possibilidade de “discutir, contestar e valorar”, não existe no espartilho constitucional forma que não tolere uma certa maleabilização do exercício do contraditório.
IV - Se o arguido suscitou expressamente a questão da suspensão da execução da pena no recurso interposto para o Tribunal da Relação, a alteração introduzida pela Lei 59/2007 ao art. 50.º do CP – que não alterou os pressupostos de que depende o funcionamento do instituto, antes se circunscrevendo à dimensão da pena de prisão susceptível de fundamentar a aplicação do instituto, bem como a sua duração – não colocou o recorrente perante um quadro legal que, ainda, não tinha suscitado o seu contraditório, mas, bem pelo contrário, o mesmo pronunciou-se sobre os pressupostos de execução da pena aplicada e estes são os mesmos perante a redacção anterior e actual do art. 50.º do CP.
V - O sentido com que se fala de penas de substituição é o daquelas que podem ser aplicadas em vez das penas principais concretamente determinadas; o seu elenco, tendo gradualmente vindo a ser incrementado e enriquecido em diversas legislações, é fruto da orientação político-criminal de restrição da aplicação da pena de prisão, que, aliás, se inscreve no mandamento mais amplo que postula que a pena deve estar liberta, na medida do possível, de efeitos estigmatizantes.
VI - Uma das questões mais importantes no âmbito das penas de substituição, e com que se debate a decisão, é o critério, ou critérios, que devem presidir à escolha entre prisão e uma pena de substituição. O que se afirma é então que, na lei penal vigente, a culpa só pode (e deve) ser considerada no momento que precede o da escolha da pena – o da medida concreta da pena de prisão –, não podendo ser ponderada para justificar a não aplicação de uma pena de substituição: tal atitude é tomada tendo em conta unicamente critérios de prevenção.
VII - É inteiramente distinta a função que as exigências de prevenção geral e de prevenção especial exercem neste contexto. Prevalência decidida não pode deixar de ser atribuída a considerações de prevenção especial de socialização, por serem sobretudo todo o movimento de luta que elas justificam, em perspectiva político-criminal, contra a pena de prisão. E essa prevalência verifica-se a dois níveis: o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa ou de uma pena de substituição quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas; e sempre que, uma vez recusada a aplicação efectiva da prisão, reste ao seu dispor mais do que uma espécie de pena de substituição, são ainda considerações de prevenção especial de socialização que devem decidir qual das espécies de penas de substituição abstractamente aplicáveis deve ser a eleita.
VIII - Por seu turno, a prevenção geral surge aqui sob a forma de conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização; quer dizer, desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias. Impõe-se que a comunidade jurídica suporte a substituição da pena, pois só assim se dá satisfação às exigências de defesa do ordenamento jurídico e, consequentemente, se realiza uma certa ideia de prevenção geral.
IX - Nos últimos anos ocorreram importantes modificações na teoria dos fins das penas que, no geral, alteraram a relação entre a prevenção geral e a prevenção especial em favor daquela. Neste contexto, foi beneficiada a prevenção de integração com o que se faz sobressair dentro da prevenção geral uma troca que leva da pura prevenção de intimidação para o aspecto positivo da salvaguarda e caucionamento da fidelidade ao Direito. Deste modo, a prevenção geral perdeu a sua orientação unidimensional para a agravação da pena para passar a constituir uma expressão diferenciada acerca da aceitação das normas e a disposição ao cumprimento destas por parte da população. Dependendo da específica situação do autor e do delito, ela pode mover-se entre o prescindir das sanções até um considerável agravamento da pena. Assim, a prevenção geral, de forma similar à prevenção especial, passou a constituir um princípio flexível para a determinação da pena da qual se aproximam tanto as estratégias de diversão como a compensação entre o autor e o ofendido, assim como um mais intensivo agravamento na imposição de sanções.
X - As modificações mais actuais e apreensíveis tiveram lugar dentro da prevenção especial. Elas podem ser resumidas da seguinte maneira: uma acentuada retirada da ideia de asseguração; uma clara mudança de acentuação dentro da ideia de ressocialização (evitar a dessocialização; formas sancionatórias ambulatórias em substituição das estacionárias); e, finalmente, uma revalorização das penas privativas de liberdade de curta duração.
XI - Pressuposto básico da aplicação de pena de substituição ao arguido recorrente seria a existência de factos que permitissem ao tribunal formar a convicção de que a censura expressa na condenação e a ameaça de execução da pena de prisão aplicada eram suficientes para afastar o arguido de uma opção desvaliosa em termos criminais e para o futuro.
XII - A admissão da suspensão da execução da pena até 5 anos de prisão que, note-se, já nada tem a ver com uma reacção humanista contra os malefícios das penas curtas de prisão, mas tão-somente reflectem um mau estar do legislador perante a pena carcerária, necessariamente que se deve reflectir num redobrado e atento exame da situação concreta em face das exigências de prevenção geral perante penas que correspondem a crimes que de forma alguma se enfileiram ou aceitam a designação de criminalidade menor.
XIII - O crime de corrupção constitui um autêntico flagelo social, dificilmente é aceitável para o conjunto dos cidadãos que a pena correspondente a tal ilícito seja suspensa na sua execução quando as circunstâncias apontam para uma actividade ilícita que apresenta uma razoável dimensão em termos de ilicitude.
XIV - No caso concreto, é evidente que o afastamento da actividade profissional e passagem à reforma necessariamente que tem a consequência de o arguido já não se encontrar em condições de praticar actos ilícitos do mesmo tipo. Assim, o afastamento da possibilidade prática de cometimento deste tipo de crimes não resulta de um acto voluntário e indiciador de uma opção livre e consciente de afastamento do ilícito, mas algo que é imposto por força das circunstâncias e, como tal, irrelevante.
XV - O arguido tem o direito ao silêncio, ou a contar a “sua verdade”, cuja invocação, em circunstância alguma, o pode prejudicar. Porém, o que está em causa não é a valoração de tal postura processual em sentido negativo, mas sim a valoração num sentido positivo, em termos de prevenção especial, da conduta contrária, ou seja, de uma assunção plena, e responsável, do acto ilícito cometido a qual inexiste no caso vertente. A negação injustificada da culpa não se encontra em consonância com uma afirmação de fidelidade ao direito.
XVI - Assim sendo, tendo o arguido sido condenado como autor material de 4 crimes de corrupção passiva para acto ilícito, p. e p. no art. 372.º, n.º 1, do CP, na pena única de 5 anos de prisão, inexiste fundamento para suspender a execução da pena aplicada.
Decisão Texto Integral: