Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3736/07.1TVLSB.L1.S.1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: PAULO SÁ
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
ANOMALIA PSÍQUICA
INTERNAMENTO
INTERNAMENTO COMPULSIVO
DECISÃO JUDICIAL
PRINCÍPIO DA NECESSIDADE
PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/22/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :

I - O internamento do portador de anomalia psíquica destina-se a dar guarida constitucional a intervenções restritivas da liberdade, justificadas pela existência de anomalia psíquica grave. Dada a natureza de intervenção restritiva do internamento compulsivo, justifica-se, também aqui, o princípio da proibição do excesso (cf. Lei da Saúde Mental, arts. 8.º, 9.º e 11.º). A CRP impõe ainda outras dimensões garantísticas: 1) o internamento deve ser feito em estabelecimento adequado, devendo entender-se como tal um hospital ou instituição análoga que permita o tratamento do portador de anomalia psíquica; 2) deve ser sujeito à reserva de decisão judicial (decretação ou confirmação do internamento).
II - Há um princípio de tipicidade das privações de liberdade, ao que acresce que, as privações de liberdade, sendo excepcionais, estão sujeitas aos requisitos materiais da necessidade, da adequação e da proporcionalidade. Para aferir da proporcionalidade da privação da liberdade, a jurisprudência do TC tem destacado a importância decisiva da duração e das condições em que se verificou a restrição de liberdade.
III - In casu, a privação de liberdade a que o autor foi sujeito é, nos seus efeitos práticos, equiparável à situação por que passa a generalidade das pessoas com problemas do foro psiquiátrico, sendo certo que aquele, apesar de se ter rebelado contra o tratamento, aceitou o internamento inicialmente, o que implica o reconhecimento da sua doença, igualmente subjacente à alta concedida consequente à sua declaração de compromisso relativamente ao tratamento ambulatório, o que nos remete para o afastamento, em concreto, de qualquer desnecessidade, inadequação ou desproporcionalidade.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. AA intentou, na Comarca de Lisboa (8.ª Vara), acção declarativa de condenação, com processo comum, sob a forma ordinária contra o ESTADO PORTUGUÊS, pedindo a condenação do réu no pagamento da quantia de € 60.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais.

Para tanto, alegou sumariamente:

Na sequência de mau relacionamento com a sua mulher, esta encaminhou-o para uma consulta de psiquiatria, na qual, a médica, sem o observar, elaborou um relatório, onde referia a necessidade do seu internamento compulsivo. Nesse mesmo dia, 22.06.04, agentes da PSP conduziram-no ao Hospital de S.ta Maria, onde, sem qualquer exame, foi determinado o seu internamento, tendo, desde então, ficado privado da liberdade.
O processo de confirmação judicial do internamento apenas teve início em 16.07.04 e a decisão de confirmação do internamento apenas ocorreu em 20.07.04, quando, na verdade, a decisão deveria ter sido proferida até 18.07.04, sendo que, durante todo o tempo do internamento, o autor esteve privado da liberdade, sem poder sair, sedado com forte medicação e sem ter possibilidade de contactar quem quer que fosse.
A secretaria judicial apenas cumpriu o despacho no dia 21.07.04 e, aquando da elaboração do ofício de notificação, o autor foi mal identificado e terá sido por via de tal erro que o autor nunca teve direito a defesa e, designadamente, o defensor nomeado nunca o contactou, nem teve qualquer intervenção no referido processo.
O A, estando fortemente medicado e sedado, impedido de sair do hospital e com limitados contactos com o exterior, não teve conhecimento da nomeação do defensor, nem tão pouco teve possibilidade de ter qualquer contacto com o processo, o qual só conheceu após a alta hospitalar, em 12.08.04.
O autor sentiu desgosto e mal-estar com a situação criada que foi, na sua versão, vexatória e humilhante e, tudo isso afectou a sua honra e bom-nome.

Citado, contestou o Réu, defendendo-se por excepção (prescrição) e impugnando os factos.

Houve réplica, na qual o A. se pronunciou pela não verificação da prescrição.

Foi proferido despacho saneador, no qual se relegou para o final a decisão sobre a excepção. Procedeu-se à elaboração do elenco dos factos assentes e da base instrutória, tendo sido apreciada a reclamação apresentada pelo Réu e parcialmente atendida.

Instruída a causa, realizou-se a audiência de julgamento, após o que foram dadas respostas às questões de facto enunciadas na base instrutória, não tendo as partes apresentado qualquer reclamação.

A final, foi proferida sentença que julgou improcedente a excepção de prescrição e dela se absolveu o autor; julgou-se, também, totalmente improcedente, por não provada, a acção e, em consequência, absolveu-se o réu dos pedidos contra si formulados, com custas pelo autor.

Desta decisão recorreu o Autor, de apelação, tendo a Relação de Lisboa decidido:
a) alterar as respostas dadas ao perguntado nos n.os 9, 13, 16 e 17 da base instrutória, (…);
b) revogar a sentença recorrida e, em sua substituição, condenar o ESTADO PORTUGUÊS a pagar ao Autor “a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros) pelos danos não patrimoniais resultantes da privação das suas liberdades, que sofreu nos 28 dias que decorreram entre 16 de Julho e 12 de Agosto de 2004, na parte que foi causada, directa e necessariamente pelos actos praticados nos Juízos do Tribunal Criminal de Lisboa descritos no ponto 4.2.5. do acórdão, pelos quais o apelado pode ser responsabilizado;
c) declarar que nada se provou que permita afirmar que os Oficiais de Justiça, Procuradores e Juízes que realizaram actos no processado identificado no ponto 4.2.5. do acórdão, actuaram com negligência grosseira, muito menos dolosamente, ou que nesses autos praticaram erros censuráveis ou ainda que procederam com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em razão do cargo que cada um deles, respectivamente, à data dos factos ocupava”, com custas pelo apelante na proporção do seu decaimento, estando o ESTADO PORTUGUÊS isento do pagamento das mesmas.

Desta decisão recorre, ora, o Estado, de revista, para este STJ.

O recorrente conclui as suas alegações do seguinte modo:

1. O internamento do recorrido no HSM ocorreu por forma voluntária, por parte deste;
2. Estabelece também o art. 2.º, n.º 1 de Dec.Lei n.º 48051, de 21 de Janeiro de 1967, que o Estado e as demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros, pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos, no exercício das suas funções ou por causa desse exercício;
3. Nos termos do art. 483.º do Código Civil, o dever de reparação, resultante da responsabilidade civil por factos ilícitos, depende da verificação dos seguintes pressupostos:
existência de um facto voluntário do agente e não de um mero facto natural causador de danos; ilicitude desse facto; que se verifique um nexo de imputação do facto ao lesante; que da violação do direito subjectivo ou da lei derive um dano e que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima, de modo a poder concluir-se que este resulta daquele;
4. Não se verifica qualquer nexo causal entre o internamento compulsivo do recorrido e os invocados danos morais por ele sofridos;
5. Os «agentes judiciários» não violaram qualquer disposição legal destinada a proteger os direitos do recorrido, pelo que,
6. O douto Acórdão deverá ser revogado, julgando-se improcedente a acção e absolvendo-se o Estado Português.

Não houve contralegações.

Colhidos os vistos, cabe apreciar e decidir.

II. Fundamentação

II. A. De Facto

Nas instâncias foi fixada a seguinte matéria de facto, após as alterações introduzidas pela Relação (assinaladas a itálico):

A) O autor foi observado em Junho de 2004 pela Dra. BB, que subscreveu um documento, datado de 22.06.04, no qual pode ler-se que: “observei no meu consultório o Sr. AA que apresenta sintomatologia de convicção delirante, que como toda a psicose, não é acessível à argumentação lógica e como tal não (apresenta) aceita medicação. Este senhor está muito agressivo, a mulher com quem vive corre risco de vida há facas e espingarda escondida em casa e como tal este homem necessita de internamento compulsivo.(…)”.
B) Com base neste documento, a autoridade de saúde do Lumiar dirigiu ao Exmo. Senhor Comandante da Esquadra de ......., ao abrigo do artigo 22.º da lei de saúde mental, um mandado de condução do autor ao serviço de urgência de Psiquiatria do HSM, por sofrer de anomalias psíquicas graves, por existir situação de perigo para bens jurídicos de relevante valor, próprios ou alheios de natureza pessoal ou patrimonial e por recusar submeter-se à terapêutica médica necessária.
C) O autor foi conduzido ao serviço de urgências de psiquiatria do HSM por agentes da PSP no dia 22.06.04.
D) Nesse mesmo dia, 22.06.04, o autor assinou o termo de consentimento informado, onde se pode ler que: “declaro que fui informado e esclarecido sobre os procedimentos terapêuticos que me poderiam vir a ser aplicados durante o meu internamento de acordo com a boa prática clínica. Tive ocasião de colocar todas as questões e dúvidas que me foram suscitadas. Fui informado que a assinatura deste consentimento não afecta os meus direitos legais”, consentimento esse que foi comunicado aos juízos criminais de Lisboa, por fax de 23.06.04.
E) No dia 16.07.04, pelas 14.15h, o Sr. Dr. CC dirigiu ao Tribunal um fax com o seguinte teor: CC, (...) médico assistente do Sr. AA, internado no serviço de psiquiatria deste Hospital, vem por este meio pedir que o internamento do doente acima referido passe para internamento compulsivo. Estamos disponíveis para enviar avaliação psiquiátrica quando for requisitada.
F) Nesse dia 16.07.04, o juiz competente solicita a avaliação psiquiátrica do autor.
G) No dia 19.07.04 foi feita insistência junto do Hospital para que fosse dado cumprimento ao despacho de 16.07.04.
H) Foi lavrada no processo uma cota com o seguinte teor: “informo de que por motivo de desencontro entre a Sra. Juiz de turno e o funcionário este expediente que deu origem ao processo de lei de saúde mental n.º 477/04.5TLLSB só foi distribuído às 16.35h.”
I) No dia 20.07.04 foi proferido o despacho de fls. 39 com o seguinte teor: “1.º solicite-se ao CD da Ordem dos Advogados a indicação de defensor, nomeando-se desde já o que a ordem vier a indicar, 2.º Ao digno magistrado do MP e nada opondo determina-se a manutenção do internamento nos termos do disposto no artigo 26.º da lei 36/98 de 24.07 e atento a que se verificam os requisitos legais do artigo 22.º da mesma lei, com referência ao seu artigo 12.º (…)”
J) Nesse mesmo dia é remetida ao Tribunal uma informação clínico-psiquiátrica datada de 20.07.04 e subscrita pela Sra. Dra. DD e pelo Sr. Dr. EE, onde se pode ler que: “o sr. AA foi internado no serviço de psiquiatria do Hospital de Santa Marta a 23.06.04 por apresentar, desde há cerca de 2 anos, um quadro de ideias delirantes paranóides (envenenamento por parte da mulher) e relacionadas com o comportamento sexual da mulher.(…). O doente não revela crítica em relação à doença e apresenta um prognóstico reservado.(…) O doente AA apresenta uma anomalia psíquica grave actual que o incapacita para reger sua pessoa e bens, não sendo possível determinar a duração deste período de doença, podendo a incapacidade a ela associada ser temporária. Por este motivo é solicitado o internamento compulsivo do doente (…)”.
L) No dia 21.07.04 foi expedida notificação para o Conselho Distrital da Ordem dos Advogados, solicitando a nomeação de um defensor ao autor.
M) No dia 21.07.04 foi expedida outra notificação para o Director do Hospital de Santa Maria, comunicando que foi mantido o internamento de AA e solicitando a notificação deste do despacho do Sr. Juiz de 20.07.04, da informação dos direitos e deveres que lhe assistem, e solicitando que se apure junto do doente o nome e morada do parente mais próximo que com ele conviva.
N) Nessa notificação pedida ao Hospital de Santa Maria o autor é identificado do seguinte modo: AA, solteiro, filho de FF e de GG, natural da freguesia de São Sebastião da Pedreira, concelho de Lisboa, nacional de Portugal, nascido em 08.08.84, b.i. 00000000, domicílio: Bairro ........, Estrada M....., ..., Carnide, Lisboa.
O) Em 21.07.04 seguiu uma notificação para a PSP de Lisboa.
P) O autor teve alta em 12.08.04.
Q) Em 03.08.04 é junto ao processo um relatório de avaliação clínico-psiquiátrico, datado do dia anterior.
R) No dia 11.08.04 é junto ao processo comunicação proveniente do HSM onde é referido que o autor teria alta no dia seguinte.
S) Em 17.09.04 é pedido pelo Tribunal que o HSM informe se o autor tinha efectivamente tido alta no dia inicialmente indicado para tal.
T) Foi extraída certidão do processo n.º 477/04.5TLLSB do Tribunal de Turno que originou o processo de internamento compulsivo n.º 484/04.8 TLLSB da 2ª secção do 6º juízo criminal de Lisboa, autuado em 23.07.04.
U) Nesse mesmo dia foi proferido o despacho de fls 27, cujo teor se dá por reproduzido, desse processo que manteve a nomeação do Sr. Dr. HH como defensor do autor e determinou a notificação do autor nos termos e para os efeitos dos artigos 15.º, n.ºs 1 e 11.º da lei de saúde mental.
V) Tal notificação foi solicitada ao Hospital de Santa Maria e por este efectuada na pessoa do autor, com menção dos seus direitos e deveres, tendo o autor recusado assinar tal notificação.
X) A notificação ao ilustre defensor nomeado continha correcta identificação do processo e mencionava que o autor se encontrava internado no Hospital de Santa Maria.
Z) Desde há alguns anos o autor tem vindo a ter problemas familiares, inclusive com a esposa (artigo 1.º da B.I.).
AA) O autor foi a uma consulta de psiquiatria com a Dra. BB (artigo 4.º da B.I.).
AB) Após ter consultado e examinado o autor, a Dra. BB elaborou o relatório referido em A) (artigo 6.º da B.I.).
AC) O autor foi conduzido por agentes da PSP ao Hospital de Santa Maria (artigo 7.º da B.I.).
AD) O Autor, depois de ocorridos os factos relatados nas alíneas A) a C) dos “Factos Assentes”, e já depois das 21 horas desse dia, foi internado no dia 22 de Junho de 2006, após ter assinado o documento denominado “consentimento informado internamento” de fls. 101, parcialmente transcrito na alínea D) dos “Factos Assentes” e que aqui se dá por integralmente reproduzido, tendo esse internamento sido mantido, a partir de, pelo menos, o dia 25 de Junho de 2004, contra a sua vontade e com restrições no seu direito de usar o seu telemóvel e no de contactar com o exterior e receber visitas, estando, para além disso, proibido de sair do espaço em que estava instalado o “serviço” em que estava internado e tendo-lhe sido ministrada, durante todo o período que durou o internamento, medicação que não solicitou nem quis tomar nem tomou livremente por, desde o início, ter referido que recusava “qualquer terapêutica psicotrópica” (artigo 9.º da B.I.).
AE) Durante o internamento, e para além do que consta da resposta ao n.º 9 a medicação que foi forçado a tomar diminuía, de forma bem perceptível, a sua capacidade de se aperceber claramente da situação em que se encontrava e a sua capacidade para se relacionar com as outras pessoas (artigo 13.º da B.I.).
AF) A privação de liberdade que o Autor sofreu causou-lhe mal-estar e um profundo desgosto, e que, com isso, o mesmo ficou debilitado (artigo 16.º da B.I.).
AG) O autor, impossibilitado de estabelecer e manter contactos com o exterior numa primeira fase, e, numa segunda com grandes limitações a tais contactos, não pode acompanhar o regular desenvolvimento processual, ainda que o quisesse ter feito (artigo 17.º da B.I.).
AH) O autor padecia de uma grave doença do foro psiquiátrico, classificável como “perturbação paranóide” ou “perturbação delirante crónica” caracterizada pela convicção e persistência de ideias paranóides (artigo 20.º da B.I.).
AI) No quadro dessa enfermidade, o autor poderia desenvolver comportamentos heteroagressivos, designadamente em relação à sua esposa, tal importando risco para a integridade física daquela e a necessidade do seu urgente e adequado tratamento médico (artigo 21.º da B.I.).
AJ) Como é característica das doenças psicóticas, o autor não denotava crítica em relação à enfermidade de que padecia e como tal recusava o necessário tratamento (artigo 22.º da B.I.).
AL) O contacto pessoal e a observação directa do autor permitiram à Dra. BBo constatar o estado da doença e concluir pela necessidade da sua sujeição a tratamento médico urgente, assim se justificando que tenha elaborado o relatório referido na alínea A) (artigo 23.º da B.I.).
AM) No dia 22.06.04, o autor foi internado pela Dra. II depois de o ter observado e de ter confirmado a sua doença e urgente carência de tratamento adequado (artigo 24.º da B.I.).
AN) Previamente a Sra. Dra. II explicou ao autor a necessidade do seu internamento e os procedimentos terapêuticos que se previa fossem utilizados (artigo 25.º´da B.I.).

II.B. De Direito

Como resulta dos artigos 684.º, n.º 4 e 690.º do Código de Processo Civil as conclusões das alegações delimitam o âmbito do recurso.

A única questão que integra o objecto do recurso é a da inexistência dos pressupostos da indemnização por factos ilícitos, designadamente, a ilicitude e o nexo causal.

II.B.1. No quadro constitucional dos direitos, liberdades e garantias pessoais ocupa lugar de relevo o direito à liberdade, consagrado no art.º 27.º da Constituição da República Portuguesa.

O citado normativo trata-o, no n.º 1, como um direito fundamental, indicando expressamente, no n.º 2, as medidas de privação da liberdade constitucionalmente admissíveis, estatuindo que essas medidas só podem decorrer de “sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança”.

Fora deste regime-regra define-se um rol variado, mas taxativo, de medidas de privação da liberdade, «pelo tempo e nas condições que a lei determinar» (n.º 3), nele se incluindo, entre outros, o «internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente» [al. h) desse n.º 3].

Finalmente, o preceito em análise, para além de impor um dever de informação imediato e de forma compreensível, para com o indivíduo objecto de tais medidas, das razões da privação da liberdade e dos direitos que lhe assistem, estabelece ainda o princípio da indemnização, pelo Estado, dos danos decorrentes da privação inconstitucional ou ilegal («contra o disposto na Constituição e na lei») da liberdade (n.os 4 e 5).

Diz expressamente o citado n.º 5 do artigo 27.º:

«A privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer.»

A responsabilidade civil do Estado é, assim, alargada, no domínio dos factos decorrentes da função jurisdicional, não ficando circunscrita ao plano do clássico erro judiciário (condenação injusta), a que alude o n.º 6 do art. 29.º do diploma fundamental.

A Constituição conforma-se com o que dispõe a Convenção Europeia sobre os Direitos do Homem (aprovada para ratificação pela Lei 65/78, de 13 de Outubro), que, no seu art. 5.º, depois de consignar que toda a pessoa tem direito à liberdade e segurança (n.º 1), acrescenta que ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo nos casos que explicita, entre eles «se se tratar da detenção legal de uma pessoa susceptível de propagar uma doença contagiosa, de um alienado mental, de um alcoólico, de um toxicómano ou de um vagabundo», e remata, no n.º 5, estatuindo que «qualquer pessoa vítima de prisão ou detenção em condições contrárias às disposições deste artigo, tem direito a indemnização».

O internamento do portador de anomalia psíquica destina-se a dar guarida constitucional a intervenções restritivas da liberdade, justificadas pela existência de anomalia psíquica grave. Dada a natureza de intervenção restritiva do internamento compulsivo, justifica-se, também aqui, o princípio da proibição do excesso (cfr. Lei da Saúde Mental, arts. 8.º, 9.º e 11.º). A Constituição impõe ainda outras dimensões garantísticas: 1) o internamento deve ser feito em estabelecimento adequado, devendo entender-se por estabelecimento adequado um hospital ou instituição análoga que permita o tratamento do portador de anomalia psíquica (…); 2) deve ser sujeito à reserva de decisão judicial (decretação ou confirmação do internamento) – GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição revista, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, pp.483-484.

Estes AUTORES defendem que o artigo 27.º, n.º 5, da CRP alarga a responsabilidade civil do Estado a factos ligados ao exercício da acção jurisdicional, para além do mero erro judiciário.

E continuam: “O facto de a Constituição remeter para a lei a regulamentação da indemnização, não tolhe a aplicabilidade directa e imediata (cfr. 18.º-1) deste preceito, devendo os órgãos aplicadores do direito dar-lhe eficácia, mesmo na falta da lei (ACsTC n.os 90/89 e 160/95). Na falta de lei específica, deverá aplicar-se o DL n. 48.051, de 21-11-1967, com as devidas adaptações” (obra e volume citados, p. 485).

Temos para nós que não há que fazer aqui apelo ao artigo 22.º da Constituição, dado que o que está aqui verdadeiramente em questão é a privação da liberdade, sendo justificado recorrer ao que tem sido dito relativamente ao artigo 225.º do CPP e artigo 27.º, n.º 5, da Constituição.

Dissemos no acórdão de que fomos relator (Proc. 65/09-1, de19.03.09):

“Cabe abordar ainda a suficiência do citado artigo 225.º do CPP e a sua constitucionalidade para determinar se ele constitui ou não ou, se é ele apenas, o normativo a que importa recorrer para a dilucidação do invocado direito indemnizatório.

O Tribunal Constitucional tem vindo a defender a tese da constitucionalidade do preceito (vejam-se entre outros os acórdãos n.os 90/84, 160/95, 12/2005 e 13/2005, todos em www. tribunalconstitucional. pt.

E na citada jurisprudência constitucional, designadamente nos últimos acórdãos citados, é posta em destaque a ideia de que, «… no caso do artigo 27º, n.º 5, a intervenção legislativa, mais do que apenas uma concretização ou promoção do direito fundamental (e, assim, do que uma mera regulamentação da fixação da indemnização, na sua forma e quantum), é, por decisão do próprio legislador constitucional, constitutiva e conformadora do seu conteúdo, no exercício de uma liberdade que a Constituição quis deixar às opções de política legislativa.

Assim, é claro que o controlo judicial da conformidade com a Constituição se poderá aqui fazer apenas segundo um critério de evidência (isto é, destinado a apurar se é manifesta a inconstitucionalidade), e, designadamente, apenas quanto ao respeito pelo núcleo essencial do direito assegurado pelo artigo 27º, n.º 5, da Constituição, evitando que ele seja esvaziado ou aniquilado pelo concreto regime conformador.»

Não se desconhece que certa doutrina sustenta que a Constituição confere o direito de indemnização, independentemente de culpa e que o legislador ordinário não pode limitar a responsabilidade do Estado aos casos típicos de prisão preventiva ilegal ou injustificada (LUÍS GUILHERME CATARINO, A Responsabilidade do Estado pela Administração da Justiça, pp. 355 e 380; RUI MEDEIROS, Ensaio Sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos, p. 105; JOÃO AVEIRO PEREIRA, Responsabilidade Civil por Actos Jurisdicionais, p. 215).

Nessa linha se insere a posição de MÁRIO TORRES, extractada no voto de vencido, formulado nos acórdãos do TC n.os 12/2005 e 13/2005 já citados:

«Entendo que o artigo 27.º, n.º 5, da CRP, ao proclamar que “a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer”, não reservou ao legislador ordinário a liberdade de optar entre a concessão, ou não, de indemnização pela privação ilegal da liberdade, mas tão só a de concretizar os requisitos e condicionamentos da concessão da indemnização constitucionalmente garantida, sempre subordinado ao princípio da proporcionalidade (na tripla perspectiva de proporcionalidade em sentido estrito, adequação e necessidade) e jamais diminuindo a extensão e o alcance do conteúdo essencial do preceito constitucional (artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da CRP).
(…) Mas é seguro que uma privação de liberdade é contrária à Constituição e à lei sempre que for imposta em situações em que a Constituição e a lei a não permitem, seja por “erro de direito” de quem a decretou (por directa infracção de prescrições constitucionais e legais vigentes), seja por “erro de facto” (erro na apreciação dos pressupostos de facto), pois também nesta última hipótese a privação da liberdade acabou por ser decretada numa situação em que a Constituição e a lei a não permitiam. Nesta perspectiva, surge como não inteiramente rigorosa a diferenciação, feita nos dois números do artigo 225.º do CPP, entre prisão “ilegal” (no n.º 1) e prisão “não ilegal” (no n.º 2), já que uma prisão preventiva decretada com base em errada representação dos pressupostos de facto acaba por ser também uma prisão preventiva decretada em situação não permitida por lei e, por isso, neste sentido, “ilegal”».

Mas tal entendimento não tem sido acolhido pela jurisprudência largamente dominante deste Supremo (orientação de que divergiram os acórdãos do STJ. de 12.11.98, publicado na CJSTJ, VI, 3.º, p. 112 e de 11.03.2003, proc. 03A418, inserto em www.dgsi.pt), sendo que aquela abundante jurisprudência dominante, que não vemos razão para alterar, encontra apoio na lição de GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3ª ed, p. 187), donde resulta que o art. 225.º do C.P.P. interpreta correctamente o sentido do preceito constitucional do art. 27.º, n.º 5 (Acs. STJ de 3.12.98, Rev. 864/98, da 2.ª secção; de 11.11.99, Rev. 743/99, da 2.ª secção; de 9.12.99, Rev. 762/99, da 1.ª secção; de 6.1.00, Rev. 1004/99, da 7.ª secção; de 4.4.00, Rev. 104/00, da 6ª secção; de 20.6.00, Rev. 433/00, da 6.ª secção; de 19.9.02, Rev. 2282/02, da 7.ª secção; de 13.5.03, Rev. 1018/03, da 6.ª secção; de 27.11.03, Rev. 3341/03, da 7.ª secção).

Como se diz no acórdão deste STJ, de 1.6.2004, processo n.º 04A1572, in www.dgsi.pt:

«Consequentemente, face ao disposto nos arts. 27.º, n.º 5 da C.R.P. e 225.º do C.P.P., é de concluir não ser de aceitar "a imputação ao Estado, referida ao art. 22.º da Constituição (de cuja previsão o art. 27.º, n.º 5, constitui historicamente alargamento), de uma responsabilidade objectiva geral por actos lícitos praticados no exercício da função jurisdicional, em termos de abranger, para além do clássico erro judiciário, a legitima administração da justiça, em sede de detenção e de prisão preventiva legal e justificadamente efectuada e mantida; nem sequer a aplicação, sem outra exigência, neste hipótese especial, que é a ocorrente, do regime geral ou comum da responsabilidade civil extra-contratual previsto nos arts. 483 e 562 do C.C.”, como se lê no citado Ac. deste S.T.J. de 27.11.03 (proferido na Rev. 3341/03, da 7.ª Secção)».

Na falta, neste caso, de uma norma como a do CPP citado, parece claro que é o Decreto-Lei n.º 48051 o aplicável, como defendem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, sendo certo que, atenta a aplicação da lei no tempo, está fora de questão a aplicabilidade aos factos referidos nos presentes autos do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, resultante da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro.

II.B.2. Justifica-se que se faça agora, um breve apelo aos pressupostos genéricos de responsabilidade extracontratual.

Na nossa ordem jurídica, o princípio basilar do regime da responsabilidade civil extracontratual decorrente da prática de actos ilícitos encontra-se plasmado no art. 483.º, n.º 1, do C.C.

Enuncia tal norma que «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».

Como afirma MENESES LEITÃO (Direito das Obrigações, Almedina, Coimbra, 5.ª ed., vol. I, p. 285), tal artigo vem estabelecer «uma cláusula de responsabilidade civil subjectiva, fazendo depender a constituição da obrigação de indemnização da existência de uma conduta do agente (facto voluntário), a qual represente a violação de um dever imposto pela ordem jurídica (ilicitude) sendo o agente censurável (culpa), a qual tenha provocado danos (dano), que sejam consequência dessa conduta (nexo de causalidade entre o facto e o dano).»

São, assim, pressupostos de que depende o direito de indemnização assente nesta modalidade da responsabilidade civil: o facto; a ilicitude; a culpa; o dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (neste sentido, ver ainda, entre outros, ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, p. 483; ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, vol. I, p. 526; e RUI DE ALARCÃO, Direito das Obrigações, 1983, Coimbra, p. 238).

O elemento básico da responsabilidade civil é o facto do agente – um facto voluntário.

Este facto consiste, por regra, num facto positivo, que importa a violação do dever de não ingerência na esfera de acção do titular do direito absoluto.

Mas, o facto pode traduzir-se também num facto negativo, numa omissão. Neste caso, a imputação ao agente exige a sua oneração com um dever especial de praticar o acto omitido. Dever esse que terá de resultar de contrato, da lei ou, resultar do facto de possuir coisas ou exercer actividades que se apresentam como potencialmente susceptíveis de causar dano a outrem, traduzindo-se o mesmo na obrigação de tomar providências adequadas a evitar a ocorrência de danos (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, Coimbra, vol. I, 4.ª ed., p. 488 e MENESES LEITÃO, obra e vol. citados, p. 287).

Fora do domínio da responsabilidade civil (por não haver voluntas) ficam os danos provocados por causa de força maior ou pela actuação irresistível de circunstâncias fortuitas (ANTUNES VARELA, Das Obrigações…, cit., vol. I, p. 529).

A ilicitude pode revestir duas formas essenciais: a) a violação de um direito de outrem (enquadram-se, aqui, tipicamente, os direitos absolutos); b) a violação da lei que protege interesses alheios.

Continuamos a seguir ANTUNES VARELA (Das Obrigações…, vol. I, pp. 552 e 553) que afirma:

«A violação do direito de outrem só é ilícita quando reprovada pela ordem jurídica. De um modo geral, pode dizer-se que a ilicitude é afastada quando se actua no regular exercício de um direito e no cumprimento de um dever jurídico. Há, ainda, causas especiais justificativas do facto: a acção directa, a legítima defesa, o estado de necessidade e o consentimento do lesado.»

A culpa exprime um juízo de censurabilidade da conduta pessoal do agente: este, em face das circunstâncias concretas do caso, devia e podia ter agido de outro modo.

A culpa pode revestir duas modalidades: o dolo e a negligência ou mera culpa.

Na falta de outro critério legal, a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (art. 487.º, n.º 2 do CC).

O ónus da prova dos factos integrantes da culpa, no quadro da responsabilidade civil extracontratual, incumbe ao lesado, se não houver presunção legal de culpa (art. 487.º,n.º 1, do CC).

Para haver obrigação de indemnizar, é condição essencial que haja dano ou prejuízo a ressarcir.

Nem todos os danos sobrevindos ao facto ilícito são, porém, ressarcíveis, mas, apenas, os resultantes do facto ou causados por ele, à luz da teoria da causalidade adequada, consagrada no art.º 563.º do CC.

II.B.3. Da Lei de Saúde Mental (Lei n.º 36/98, de 24 de Julho, a que doravante nos referiremos pela abreviatura LSM) são relevantes as seguintes disposições:

– Do capítulo II, Do internamento compulsivo, Secção I, Disposições gerais
Artigo 6.º
Âmbito de aplicação
1 – O presente capítulo regula o internamento compulsivo dos portadores de anomalia psíquica.
2 – O internamento voluntário não fica sujeito ao disposto neste capítulo, salvo quando um internado voluntariamente num estabelecimento se encontre na situação prevista nos artigos 12.º e 22.º

– Do capítulo II, Do internamento compulsivo, Secção III, Internamento
Artigo 12.º
Pressupostos

1 – O portador de anomalia psíquica grave que crie, por força dela, uma situação de perigo para bens jurídicos, de relevante valor, próprios ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial e recuse submeter-se ao necessário tratamento médico pode ser internado em estabelecimento adequado.
2 – Pode ainda ser internado o portador de anomalia psíquica grave que não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento, quando a ausência de tratamento deteriore de forma acentuada o seu estado.

– Do capítulo II, Do internamento compulsivo, Secção IV, Internamento de Urgência
Artigo 22.º
Pressupostos

O portador da anomalia psíquica pode ser internado compulsivamente de urgência, nos termos dos artigos seguintes, sempre que, verificando-se os pressupostos do artigo 12.º, n.º 1, exista perigo iminente para os bens jurídicos aí referidos, nomeadamente por deterioração aguda do seu estado.
Artigo 25.º
Termos subsequentes

1 Quando da avaliação clínico-psiquiátrica se concluir pela necessidade de internamento e o internando a ele se opuser, o estabelecimento comunica, de imediato, ao tribunal judicial com competência na área a admissão daquele, com cópia do mandado e do relatório da avaliação.
2 Quando a avaliação clínico-psiquiátrica não confirmar a necessidade de internamento, a entidade que tiver apresentado o portador de anomalia psíquica res­titui-o de imediato à liberdade, remetendo o expediente ao Ministério Público com competência na área em que se iniciou a condução.
3 O disposto no n.º 1 é aplicável quando na urgência psiquiátrica ou no decurso de internamento voluntário se verifique a existência da situação descrita no artigo 22.º
Artigo 26.º
Confirmação judicial

1 Recebida a comunicação referida no n.º 1 do artigo anterior, o juiz nomeia defensor ao internando e dá vista nos autos ao Ministério Público.
2 Realizadas as diligências que reputar necessárias, o juiz profere decisão de manutenção ou não do internamento, no prazo máximo de quarenta e oito horas a contar da privação da liberdade nos termos dos artigos 23.º e 25.º, n.º 3.
3 A decisão de manutenção do internamento é comunicada, com todos os elementos que a fundamentam, ao tribunal competente.
4 A decisão é comunicada ao internando e ao familiar mais próximo que com ele conviva ou à pessoa que com o internando viva em condições análogas às dos cônjuges, bem como ao médico assistente, sendo aquele informado, sempre que possível, dos direitos e deveres processuais que lhe assistem.
Artigo 27.º
Decisão final

1 Recebida a comunicação a que se refere o n.º 3 do artigo anterior, o juiz dá início ao processo de internamento compulsivo com os fundamentos previstos no artigo 12.º, ordenando para o efeito que, no prazo de cinco dias, tenha lugar nova avaliação clínico-psiquiátrica, a cargo de dois psiquiatras que não tenham procedido à anterior, com a eventual colaboração de outros profissionais de saúde mental.
2 E ainda correspondentemente aplicável o disposto no artigo 15.º
3 Recebido o relatório da avaliação clínico-psiquiátrica e realizadas as demais diligências necessárias, é designada data para a sessão conjuntas à qual é correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 18.º, 19.º, 20.º e 21.º, n.º 4.

II.B.4. Feita esta breve digressão pelas ideias essenciais na matéria em discussão, passemos à sua concreta aplicação ao caso vertente.

Começaremos por salientar que a acção está estruturada pelo A. contra o Estado, por factos cometidos pelos agentes judiciários. Ou seja, está fora de questão, a apreciação de qualquer acto censurável de outros eventuais funcionários ou agentes do Estado, designadamente, dos médicos.

Quanto às faltas que são apontadas aos agentes judiciários, pelo A, elas são as seguintes:

– Não cumprimento do prazo previsto no artigo 26.º, n.º 2, da LSM para a prolação da decisão de confirmação ou não do internamento;
– Não nomeação de defensor ao A. nos termos e prazo consignado no artigo 26.º, n.º 1, da LSM;
– Errada identificação do A. nas notificações dirigidas ao HSM, ao autor e à polícia;
– Não ter sido dada ao A. a possibilidade de se pronunciar, por não determinação imediata da notificação pessoal do interditando, do familiar mais próximo e do defensor, nos termos do artigo 15.º e 16.º da LSM e por, após se encontrar junta avaliação psiquiátrica do Autor, não ter sido marcada a sessão conjunta prevista nos art.s 18.º e 19.º da Lei n.º 36/98.

O douto Acórdão aponta ainda como “faltas” no processado, a “não atempada, no dia 20 de Julho de 2004, distribuição do processo que só foi realizada às 16h e 35m”, “o não cumprimento integral do despacho judicial proferido nesse dia, porque à hora a que o processo foi entregue pelo M.mo Juiz de turno na secretaria (16h e 55m) não se encontrava qualquer Magistrado do Ministério Público neste edifício”.

Como resulta dos autos, o A. conduzido coactivamente ao Hospital, aceitou aí ser submetido a internamento voluntário e aos procedimentos terapêuticos que lhe poderiam ser aplicados.

Uma vez internado, terá havido alteração de comportamento do A. e relutância em submeter-se à medicação.

Perante este quadro, que, no entanto, não chegou ao conhecimento do Tribunal, foi solicitado o internamento compulsivo.

A situação não se enquadra nas disposições relativas ao internamento de urgência, o que implicava um internamento compulsivo urgente, a que se seguiriam os trâmites conducentes à confirmação ou não do internamento.

Mas, nos termos conjugados dos art.s 6.º, n.º 2 e 12.º da LSM, podia ser ordenado o internamento compulsivo de quem estivesse voluntariamente internado, mas recusasse o tratamento médico, ou não tivesse o discernimento para o consentir, e fosse portador de anomalia psíquica grave, como era o caso do recorrido.

Aplicáveis, assim seriam as normas relativas ao internamento, designadamente o artigo 15.º e 16.º

Relativamente ao pedido de internamento compulsivo, recaiu sobre o mesmo, despacho judicial, datado de 20.07.04, determinando a manutenção do internamento.

E foi dado cumprimento ao demais disposto no artigo 15.º

Neste artigo e no seguinte não há qualquer fixação de um prazo curto de determinação de internamento compulsivo, à semelhança do artigo 26.º, nem a fixação de prazos preclusivos para notificação do internando, do familiar mais próximo e do defensor oficioso.

Constata-se, também que o A. foi notificado do despacho de fls. 39 e, de igual modo, o defensor oficioso foi notificado, patenteando-se que, apesar do erro de identificação, a notificação chegou ao conhecimento de ambos, em termos que possibilitaria ao defensor contactar o A. e reagir contra a decisão, uma vez que nela se indicava o nome correcto deste e se referia o seu internamento no Hospital de Santa Maria, estando ainda referido o n.º do processo e o tribunal onde o mesmo pendia.

É certo que não foi notificado o parente mais próximo do A, em virtude do lapso de identificação, mas, a ter ocorrido essa notificação, teria como sujeito passivo a mulher do A, o que seria de nenhuma influência na defesa dos direitos do A, uma vez que foi a mulher do A. que desencadeou as diligências para o seu internamento, uma vez que temia pela sua integridade física.

Ou seja, foi cumprido, no essencial, o disposto no artigo 15.º da LSM, não tendo sido afectadas as garantias de defesa do A.

É um facto que o M.º Juiz, a fls. 39, ordena a manutenção do internamento, fora dos pressupostos do internamento compulsivo de urgência e, por isso, incorrectamente.

Porém, como lapidarmente se afirma, em síntese, no acórdão deste Tribunal, de 31.03.2004, processo n.º 04A051, perfilha-se o entendimento, que conta com a concordância de Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, p. 509), de que:

"a) – Os actos de interpretação de normas de direito e de valoração jurídica dos factos e das provas, núcleo da função jurisdicional, são insindicáveis;
b) – Por tal motivo, o erro de direito – que pode respeitar à aplicação (lei a aplicar), à interpretação (sentido da lei aplicada), ou à qualificação (dos factos) – é eliminado, em princípio, pelo sistema de recursos ordinários previstos na lei, que permite a correcção de sentenças viciadas por um tribunal superior antes que se tornem irrecorríveis (art.ºs 676º a 761º do CPC);
c) – Na jurisdição cível, estão ainda previstos os recursos extraordinários de revisão e de oposição de terceiro, que contemplam vários fundamentos de impugnação de decisões transitadas em julgado (art.ºs 771º a 782º do CPC);
d) – O erro de direito só será fundamento de responsabilidade civil quando, salvaguardada a essência da função judicial referida em a), seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível, e de tal modo grave que transforme a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas".

Esta corrente jurisprudencial está acolhida nos acórdãos deste Tribunal de 31.03.04, processo n.º 03B3887, de 29.06.2005, processo n.º 05A1064 e de 20.10.2005, processo n.º 05B2490, todos em www.dgsi.pt

Logo, o referido erro de julgamento resultante da aplicação incorrecta da lei, não é de configurar como erro grosseiro, a justificar a responsabilização do Estado.

De qualquer modo, está-se perante um erro de julgamento, contra o qual o A. e o seu defensor não reagiu, sendo certo que poderia ter sido requerido um “Habeas Corpus”, ou a revisão da situação do internado (artigos 31.º e 35.º da LSM) e que não é invocado, pelo A. como fundamento do pedido indemnizatório.

A invocada falta, consistente em não ter sido marcada a sessão conjunta prevista nos art.s 18.º e 19.º da LSM, não ocorreu, porquanto foi determinada a avaliação clínico-psiquiátrica, que foi realizada no prazo previsto na lei e enviada ao tribunal, no dia imediato – Cfr. artigo 17.º, n.os 1 e 4 da LSM.

Não chegou a ser efectuada a sessão conjunta, dado o facto de o internamento ter cessado por alta, em 12.08.2004, de acordo com a informação datada do dia anterior, onde se referia que a alta deveria ocorrer no dia seguinte, sendo que, apesar da natureza urgente do processado, não foram desrespeitados prazos preclusivos e a marcação da sessão conjunta não era viável antes da data da alta, dada a necessidade da efectivação de notificações, e tomando na devida conta que o dia 3 foi uma terça-feira e o dia 12 foi a quinta-feira seguinte.

Pelo que respeita às restantes “falhas” apontadas no douto Acórdão, nomeadamente o facto de o processo só ter sido distribuído cerca das 16,35 h do dia 20.07.04 e de não haver sido cumprido na íntegra, naquele mesmo dia, o despacho judicial proferido, não implica qualquer falta, porquanto nada obriga, mesmo num processo urgente, a despachar no próprio dia, sendo certo que o atraso no cumprimento está justificado, em termos que não suscitam dúvidas.

Ora, como resulta do que já se disse, não há sequer facto ilícito.

É certo que há um princípio de tipicidade das privações de liberdade (sobre esta matéria, Ac. nº 363/00 do Tribunal Constitucional in www.tribunalconstitucional.pt e Constituição Portuguesa Anotada, de JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Tomo 1, p. 305, X, Coimbra Editora, 2005), ao que acresce que, as privações de liberdade, sendo excepcionais, estão sujeitas aos requisitos materiais da necessidade, da adequação e da proporcionalidade (autores e obra acabados de citar, p. 307, XI). Mas, neste âmbito, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem destacado a importância decisiva, para aferir da proporcionalidade da privação de liberdade, da duração e das condições em que se verificou a restrição de liberdade (ibidem e Acs. do Tribunal Constitucional n.os 228/97, 663/98 e 363/00).

Mas a privação de liberdade a que o A. foi sujeito é, nos seus efeitos práticos, equiparável à situação por que passa a generalidade das pessoas com problemas do foro psiquiátrico, sendo certo que aquele, apesar de se ter rebelado contra o tratamento, aceitou o internamento inicialmente, o que implica o reconhecimento da sua doença, igualmente subjacente à alta concedida, consequente à sua declaração de compromisso relativamente ao tratamento ambulatório.

O que nos remete para o afastamento, in concreto, de qualquer desnecessidade, inadequação ou desproporcionalidade.

De todo o modo, não seria a falta destes requisitos que configurariam, só por si, o conceito de ilegalidade.

O internamento do A. foi voluntário. A proposta de internamento compulsivo subsequente teve a tramitação adequada, tomando como base o desconhecimento do tribunal de que o A. mudara de atitude, rebelando-se contra o internamento e/ou contra o tratamento.

Aliás, como resulta dos próprios autos, estava perfeitamente ao alcance do A. o fazer cessar, de imediato, o internamento. Apenas teria que se disponibilizar para o tratamento ambulatório.

Sendo inútil apreciar da existência dos demais pressupostos da responsabilidade extracontratual.

Todavia sempre se sublinhará que faltaria também o pressuposto da culpa, sendo que como já se deixou dito a responsabilidade civil extracontratual do Estado-Juiz, assenta, na culpa do juiz, razão pela qual, não se verificando este requisito, não há lugar a responsabilidade objectiva do Estado (além dos acórdãos citados este entendimento está acolhido nos Acs. deste Tribunal de 17.12.03, proc.º n.º 02A4032, de 19.10.04, proc.º n.º 04B2543, de 13.05.03, proc.º n.º 03A1018, de 01.06.04, proc.º n.º 04A1572 e de 11.03.03, proc.º n.º 03A418, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

Por tudo isto, o douto acórdão recorrido violou o disposto. 2.º, n.º 1, de Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Janeiro de 1967 e o artigo 483.º do CC, pelo que deve ser revogado e mantida a sentença, proferida em 1.ª instância.

III. Termos em se acorda em conceder a revista do R. e, em consequência se revoga o acórdão recorrido e se absolve o R. do pedido.

Custas aqui e nas instâncias, pelo A, na proporção do decaimento, sendo que o R está isento.

Lisboa, 22 de Junho de 2010

Paulo Sá (Relator)
Mário Cruz
Garcia Calejo