Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
75/19.9EAPRT.P1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ERNESTO VAZ PEREIRA
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
PESSOA COLETIVA
RESPONSABILIDADE CRIMINAL
REPRESENTANTE
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 01/31/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência tem por finalidade a obtenção de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça que fixe jurisprudência, no interesse da unidade do direito, resolvendo o conflito suscitado, (cfr art. 445.º, n.º 3, do CPP), relativamente à mesma questão de direito, quando existem dois acórdãos de tribunais superiores com soluções opostas, para situação de facto idêntica e no domínio da mesma legislação, assim favorecendo os princípios da segurança e previsibilidade das decisões judiciais e, ao mesmo tempo, promovendo a igualdade dos cidadãos.

II. Do carácter excepcional deste recurso extraordinário decorre necessariamente um reforçado grau de exigência na apreciação da respectiva admissibilidade, compatível com tal incomum forma de impugnação, em ordem a evitar a vulgarização e a banalização dos recursos extraordinários. E é entendimento comum do STJ que a interpretação das regras jurídicas disciplinadoras de tal recurso se deve fazer com as restrições e o rigor inerentes e exigidas a essa excepcionalidade evitando que se transmute em mais um recurso ordinário.

III. Um dos requisitos substanciais da admissibilidade do recurso extraordinário é a oposição de acórdãos, isto é, a oposição de julgamentos relativamente à mesma questão de direito sobre identidade de situações de facto. Para descobrirmos duas “soluções opostas” temos de demandar e encontrar a montante duas situações de facto idênticas.

IV. Aqui a questão a dirimir convoca o disposto no artigo 3º do DL 28/84, de 20/01.

V. Como do normativo resulta, para condenação da pessoa coletiva exige-se sempre uma conexão entre o comportamento do agente, pessoa singular, - enquanto seu órgão ou representante, agindo em seu nome e no interesse colectivo, - e a pessoa coletiva.

VI. No caso, em ambos os acórdãos estão em causa, a prática de infracções antieconómicas previstas e punidas pelo DL 28/84. E em ambos os casos foi acusada como autora uma pessoa coletiva.

VII. Mas, sublinhe-se já, nenhum dos acórdãos descarta a necessidade da dita conexão para a condenação da pessoa coletiva. Não se vislumbra interpretação diferente entre os dois no que a tal parte do normativo concerne. O que há, sim, a montante, é falta de identidade factual, id est, não verificação da mesmidade factual.

VIII. No acórdão recorrido há agente, há pessoa física, o gerente da loja, só falta a sua identificação, configurando-se conexão entre a pessoa física do agente (não identificado), - que, provou-se, agiu como órgão ou representante da sociedade e em seu nome e no interesse coletivo, - e a sociedade condenada.

IX. No acórdão fundamento não há agente, não há pessoa física. E absolveu-se a sociedade arguida porque, em termos de factos, não se apurou quem agiu, nomeadamente, se foi algum dos seus órgãos ou representante, admitindo-se até ter sido um terceiro. Não se tendo apurado quem foi, necessariamente não se pode dar o salto para dar como provado que tenha sido um órgão ou representante da firma arguida, E na falecida exigida conexão absolveu-se a pessoa coletiva.

X. E é dessa distinção factual que, naturalmente, nascem diferentes soluções, a condenação da pessoa coletiva no acórdão recorrido e a absolvição da pessoa coletiva no acórdão fundamento. Diferentes soluções essas que não podemos ter como “soluções opostas” ou conflituantes face à não verificação da exigida identidade factual.

XI. Com o que falta, in casu, o requisito substancial de soluções opostas sobre prévia identidade factual.

Decisão Texto Integral:

Acordam, na 3ª Secção, Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

I.1. “Pingo Doce - Distribuição Alimentar, S.A.”, veio, nos termos dos arts. 437.° e seguintes do Código de Processo Penal, interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, invocando oposição de julgados entre o acórdão recorrido, proferido em 14/06/2023 pelo Tribunal da Relação do Porto e o acórdão fundamento proferido em 20/02/1991, no recurso n.° 0124729 pelo Tribunal da Relação do Porto, “quanto ao entendimento e aplicação do disposto no artigo 3.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 28/84, de 20 de Janeiro.

Rematou o recurso com as seguintes conclusões:

“1.° Há oposição entre o douto acórdão recorrido (proferido nos autos de processo 75/19.9EAPRT.P1, pela 4a Secção do Venerando Tribunal da Relação do Porto), e o douto acórdão fundamento (proferido em 20 de Fevereiro de 1991, no recurso n.° 0124729 pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto), quanto ao entendimento e aplicação do disposto no artigo 3.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 28/84, de 20 de Janeiro, tendo ambos os acórdãos sido proferidos na vigência do mesmo regime e tendo ambos transitado em julgado.

2ª A oposição é manifesta, porquanto no douto Acórdão ora recorrido se considerou que a pessoa colectiva pode ser responsabilizada criminalmente, dispensando a identificação de pessoa singular que tenha actuado em nome e no interesse daquela, bastando a presunção de que alguém terá agido como seu órgão ou representante em seu nome e no interesse colectivo; enquanto que o douto Acórdão fundamento se pronuncia no sentido de, não se sabendo quem agiu em nome e no interesse da sociedade, não se encontram preenchidos aqueles pressupostos, pelo que não pode o ente colectivo ser objecto de censura criminal.

3.ª Deverá fixar-se jurisprudência no sentido da solução consagrada neste último Acórdão, por ser esse o entendimento que se afigura mais consentâneo com o disposto no DL 28/84.

I.2. Respondeu o MP, afirmando, em síntese, o seguinte:

“não se vislumbra nas questões equacionadas uma verdadeira oposição de julgados juridicamente relevante uma vez que a matéria de facto dos diversos arestos não é coincidente, nem a natureza da matéria qualificativa sobre que incidiram, razão pela qual o recurso não satisfaz os pressupostos formais do recurso para fixação de jurisprudência, elencados nos artigos 437.º e seguintes do Código de Processo Penal e, por isso, é inadmissível.

(…) Exige-se que as factualidades em comparação possuam uma relação de semelhança e identidade substanciais que permitam o mesmo tratamento ou resposta jurisprudencial, o que não se verifica no caso concreto.”

E, não havendo “identidade factual dos julgados, e logo, em consequência, qualquer exercício cognitivo sobre qualquer oposição relevante de julgados”, acaba a pugnar pela rejeição do recurso.

I.3. Veio parecer do Sr PGA neste Supremo.

Defende que não se verifica oposição de julgados já que a matéria de facto não é idêntica, porque:

“Com efeito, no acórdão fundamento foi dado como provado que o sócio, acusado conjuntamente com a pessoa coletiva, não tinha qualquer ligação com o setor de produção da fábrica onde eram confecionados os chouriços falsificados (uma vez que apenas lhe competiam funções na parte do escritório), mais se tendo apurado que o mesmo desconhecia a existência, nos chouriços, dos corantes referidos bem como a falta de requisitos higiénicos dos mesmos.

Já no acórdão recorrido foi dado como provado que o gerente de loja sabia que as garrafas expostas para venda ao público encontravam-se etiquetados com um valor inferior àquele que era cobrado a quem as adquirisse, que agiu com o propósito de auferir um lucro ilegítimo, correspondente à diferença entre os valores que anunciava e os que cobrava na caixa registadora aquando do pagamento pelo comprador/consumidor e que quis agir da forma descrita, livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.”

E também a matéria de direito é distinta porque

“Com efeito no acórdão fundamento a questão que se colocou foi, simplesmente, a de se verificar se estavam reunidos os requisitos do artigo 3º, nº 1 do Decreto-Lei 28/84, tendo-se imediatamente concluído pela negativa dado que, face à matéria de facto dada como provada, não se apurou que algum órgão ou representante da pessoa coletiva tivesse tido intervenção, ou sequer conhecimento, da falsificação do chouriço:

Já no acórdão recorrido, porque foi dado como provado ter existido este conhecimento e aquela intervenção na prática do crime de especulação, a questão que se colocou foi a de se saber se era ainda necessário conhecer a identidade precisa, individualizada e detalhada dessa pessoa física.

Exposto de outra forma, o acórdão fundamento não se pronunciou sobre a questão de direito colocada no acórdão recorrido porque da matéria facto dada como provada não resulta que algum órgão ou representante da pessoa coletiva tivesse tido qualquer intervenção ou conhecimento da falsificação do chouriço.”

Com o que “não é possível afirmar que os dois acórdãos respondem com “soluções opostas” à mesma questão jurídica.”

I.4. Veio resposta ao parecer que mantém os fundamentos e o pedido do recurso.

I.5. Foi aos vistos e decidiu-se em conferência.

I.6. O objeto do recurso, tal como vem configurado pelo Recorrente, é saber se se verifica oposição de julgados entre os supracitados acórdãos, recorrido e fundamento, “quanto ao entendimento e aplicação do disposto no artigo 3.°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 28/84, de 20 de Janeiro.”

Porquanto, afirma, no acórdão recorrido se considerou que a pessoa colectiva pode ser responsabilizada criminalmente, dispensando a identificação de pessoa singular que tenha actuado em nome e no interesse daquela, bastando a presunção de que alguém terá agido como seu órgão ou representante em seu nome e no interesse colectivo; enquanto que o acórdão fundamento se pronuncia no sentido de, não se sabendo quem agiu em nome e no interesse da sociedade, não se encontram preenchidos aqueles pressupostos, pelo que não pode o ente colectivo ser objecto de censura criminal.”

E finaliza o Recorrente: “Deverá fixar-se jurisprudência no sentido da solução consagrada neste último Acórdão, por ser esse o entendimento que se afigura mais consentâneo com o disposto no DL 28/84.”

II - FUNDAMENTAÇÃO

II.1. Pressupostos do recurso

O recurso para a fixação de jurisprudência é um recurso extraordinário, por isso excepcional, cujo regime processual próprio e autónomo está fixado nos artigos 437º a 448º do CPP. Sendo que para o não especialmente regulado se aplicam subsidiariamente as disposições que regulam os recursos ordinários (448º).

O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência tem por finalidade a obtenção de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça que fixe jurisprudência, “no interesse da unidade do direito”, resolvendo o conflito suscitado, ut art. 445.º, n.º 3, do CPP, relativamente à mesma questão de direito, quando existem dois acórdãos de tribunais superiores com soluções opostas, para situação de facto idêntica e no domínio da mesma legislação, assim favorecendo os princípios da segurança e previsibilidade das decisões judiciais e, ao mesmo tempo, promovendo a igualdade dos cidadãos.

O que se compreende, até tendo em atenção, como se diz no ac. do STJ n.º 5/2006, publicado no DR I-A Série de 6.06.2006, que «A uniformização de jurisprudência tem subjacente o interesse público de obstar à flutuação da jurisprudência e, bem assim, contribuir para a certeza e estabilidade do direito.» Por isso se lhe atribui carácter normativo.

Do carácter excepcional deste recurso extraordinário decorre necessariamente um reforçado grau de exigência na apreciação da respectiva admissibilidade, compatível com tal incomum forma de impugnação, em ordem a evitar a vulgarização, a banalização dos recursos extraordinários. E é entendimento comum do STJ que a interpretação das regras jurídicas disciplinadoras de tal recurso se deve fazer com as restrições e o rigor inerentes e exigidas a essa excepcionalidade1 evitando que se transmute em mais um recurso ordinário.

Como o STJ o tem vindo a reiterar, a interposição do recurso para fixação de jurisprudência depende da verificação de pressupostos formais e de pressupostos materiais. (cfr acórdãos 23.02.2022, proc. n.º 31/19.7GAMDA-A.C1-A.S, de 23/02/2022, 4/19.0T9VNC.G1-A.S1, de 30/06/2021, proc. nº 9492/05.0TDLSB-J.S1, de 9.10.2013, proc. nº 272/03.9TASX, e de 8.7.2021, 41/17.9GCBRG-J.G1-B.S1 e de 08/07/2021, (Pleno), proc. 3/16.PBGMR-A.G1.S1).

Constituem pressupostos formais da admissibilidade do Recurso para uniformização de jurisprudência,


(i) a legitimidade e interesse em agir do recorrente
2;

(ii) a tempestividade;

(iii) a invocação e identificação de um único acórdão fundamento, com junção de cópia;

(iv) trânsito em julgado dos dois acórdãos de tribunais superiores conflituantes, (i) ambos do STJ; (ii) ou ambos da Relação, (iii) ou um da Relação, o recorrido, de que não seja admissível recurso ordinário e o outro, o fundamento, do STJ3;

(v) Em chamado pressuposto negativo, que não haja já uniformização de jurisprudência, sobre a questão de direito em discussão, fixada no sentido do acórdão recorrido. Como se excepciona na parte final do nº 2 do artigo 437, “salvo se a orientação perfilhada no recorrido da Relação estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.”

(vi) justificação, de facto e de direito, da oposição.

Como pressupostos de natureza substancial identifica a jurisprudência os seguintes:
(i) proferimento dos dois acórdãos sob o domínio da mesma legislação, art. 437º, nº 3, do CPP;.

(ii) as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito; art. 437º, nº 1, do CPP;

(iii) as decisões em oposição sejam expressas;

(iv) as situações de facto e o respetivo enquadramento jurídico sejam idênticos em ambas as decisões.

Neste caso, anotando-se que o acórdão fundamento transitou em julgado em 27/02/1991 mister é concluir que estão preenchidos todos os requisitos formais.

II.2. Falta de antagonismo das decisões em causa

II.2.1. Norma convocada

Um dos requisitos substanciais da admissibilidade do recurso extraordinário é, pois, a oposição de acórdãos, isto é, a oposição de julgamentos relativamente à mesma questão de direito sobre identidade de situações de facto. Para descobrirmos duas “soluções opostas” temos de demandar e encontrar a montante duas situações de facto idênticas. Se as questões de facto são distintas necessariamente terão soluções diversas. Só a identidade factual releva para o recurso de uniformização de jurisprudência. “Não pode haver oposição ou contradição entre dois acórdãos, relativamente à mesma questão fundamental de direito, quando são diversos os pressupostos de facto em que assentaram as respetivas decisões.” (in ac. do STJ de 16/03/2022, proc. nº 5784/18.7T9LSB.L1-A.S1, Nuno Gonçalves)

Aqui a questão a dirimir convoca o disposto no artigo 3º do DL 28/84, de 20/01.

Citando-o:

“Artigo 3.º

(Responsabilidade criminal das pessoas colectivas e equiparadas)

1 - As pessoas colectivas, sociedades e meras associações de facto são responsáveis pelas infracções previstas no presente diploma quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo.

2 - A responsabilidade é excluída quando o agente tiver actuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito.

3 - A responsabilidade das entidades referidas no n.º 1 não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes, sendo aplicável, com as necessárias adaptações, o n.º 3 do artigo anterior.”

E, como se assinalou em “8.” do preâmbulo do citado diploma,:

“8. Importante novidade neste diploma é a consagração aberta da responsabilidade penal das pessoas colectivas e sociedades, a que algumas recomendações de instâncias internacionais, como o Conselho da Europa, se referem com insistência.

Tratando-se de um tema polémico em termos de dogmática jurídico-penal, nem por isso devem ignorar-se as realidades práticas, pois se reconhece por toda a parte que é no domínio da criminalidade económica que mais se tem defendido o abandono do velho princípio societas delinquere non potest.

Em todo o caso, o princípio da responsabilidade penal das pessoas colectivas é consagrado com prudência: exige-se sempre uma conexão entre o comportamento do agente - pessoa singular - e o ente colectivo, já que aquele deve actuar em representação ou em nome deste e no interesse colectivo. E tal responsabilidade tem-se por excluída quando o agente tiver actuado contra ordens expressas da pessoa colectiva.”

Como do normativo resulta, para condenação da pessoa coletiva exige-se sempre uma conexão entre o comportamento do agente, pessoa singular, - enquanto seu órgão ou representante, agindo em seu nome e no interesse colectivo, - e a pessoa coletiva.

No caso, em ambos os acórdãos estão em causa, a prática de infracções antieconómicas previstas e punidas pelo DL 28/84. E em ambos os casos foi acusada como autora uma pessoa coletiva.

Mas, sublinhe-se já, nenhum dos acórdãos descarta a necessidade da dita conexão para a condenação da pessoa coletiva. Não se vislumbra interpretação diferente entre os dois no que a tal parte do normativo concerne.

Não há diferença de interpretação do normativo. O que há, sim, a montante, é falta de identidade factual, id est, não verificação da mesmidade factual, como veremos.

II.2.2. Explicitemos o factual no acórdão recorrido:

No acórdão recorrido imputava-se ao arguido AA, em autoria material, a prática de de um crime de especulação p. e p. pelo artigo 2.°, n.° 1 e 35.°, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei n.° 28/84, de 20 de janeiro; e à sociedade “Pingo Doce” a prática de um crime de especulação p. e p. pelos artigos 3.°, nº 1 e 35.°, nº 1 alínea c), do Decreto-Lei 28/84, de 20 de janeiro.

Na 1ª instância foi proferida sentença (rectificada a 10/10/2022) que absolveu o arguido AA e condenou a arguida “Pingo Doce — Distribuição Alimentar, S.A.”, pela prática de um crime de especulação, p. e p. pelos artigos 3°, n. ° 1, e 35.°, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei n.° 28/84, de 20 de Janeiro, na pena de trezentos dias de multa à razão diária de quatrocentos euros, o que perfaz o montante de 120.000,00 €.

Recorreu a arguida para o Tribunal da Relação com o fundamento da falta de conexão uma vez que o arguido AA havia sido absolvido. Nas suas palavras, “a sentença não contém a factualidade necessária para que se considere preenchido o primeiro pressuposto da responsabilidade previsto pelo artigo 3°, n.° 1 do Decreto-Lei n.° 28/84, de 20 de Janeiro, ou seja, não se encontra identificada a pessoa singular que, actuando como órgão ou representante, praticou a infracção imputada à Recorrente. Tem que praticar a infracção, não bastando, para tanto, a referência genérica ao “gerente de loja”, enquanto abstraído da pessoa singular concreta.”

Mas a sentença da 1ª instância deu como provado, além do mais, o seguinte:

“6. O gerente de loja sabia que as garrafas expostas para venda ao público encontravam-se etiquetados com um valor inferior àquele que era cobrado a quem as adquirisse.

7. Com a conduta descrita a sociedade arguida praticou um preço superior ao preço anunciado de venda ao público, induzindo em erro o consumidor e as expetativas em adquirir, pelo preço mencionado, aquelas garrafas do vinho.

8. O gerente de loja e a arguida agiram com o propósito de auferir um lucro ilegítimo, correspondente à diferença entre os valores que anunciava e os que cobrava na caixa registadora aquando do pagamento pelo comprador/consumidor.

9. O gerente de loja e a arguida quiseram agir da forma descrita, livre,voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.”

Esta materialidade fáctica foi confirmada pela Relação.

Em termos de motivação da 1ª instância, pode ler-se,: “No que concerne ao elemento subjetivo (facto n° 6, 7, 8 e 9): sempre se diga que estando demonstrada a factualidade de 1 a 5, valorou igualmente o Tribunal as regras da normalidade e da experiência comum, conjugadamente com todos os meios de prova produzidos, ficando assim convencido que o gerente de loja, sabia perfeitamente que o preço que estava a ser anunciado para o Vinho Alentejo ...” (€2,49) não era o que estava a ser cobrado aos clientes.

Acresce que é a gerência de loja quem trata do processo de afixação dos preços, designadamente, da impressão das etiquetas dos preços (testemunha BB).”

Ficou, assim, o Tribunal convencido que o gerente de loja à data (a promoção em causa estava em vigor há nove dias, relativamente à situação em causa nos presentes autos e já não era a primeira vez que o preço era cobrado acima do anunciado — repete-se) sabia que quer antes quer depois dos factos em apreço, o preço que estava a ser cobrado era superior ao anunciado e assim atuou com o propósito de aumentar os lucros da loja.

Atuando desse modo (cobrando preço superior ao anunciado ao consumidor) não pode deixar de saber que está a praticar um crime (intrinsecamente ligado à sua atividade profissional).

E sabendo disso o homem médio, disso sabe o gerente de loja (representante da sociedade arguida). Por conseguinte, se o homem médio decide, sabendo do exposto, cobrar preço superior ao anunciado, fá-lo porque quer, o que ocorreu também com o gerente de loja da arguida (tratando-se o preço dos produtos de uma questão que, por força das funções de gerência que exerce, não pode desconhecer).

Acresce que em situações como a dos autos, dizem-nos as regras da experiência comum e da normalidade, que o agente age de forma livre, voluntária e consciente, sendo certo que nenhuma prova se fez no sentido de que não agiu, nos termos descritos, livre, deliberada e voluntariamente.”

E ainda: “Regressando ao caso concreto.

Passando para a análise do caso dos autos verifica-se, relativamente à sociedade arguida, que se preenche o tipo legal de crime de especulação, tendo em atenção os factos provados n° 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9, atenta a atuação do seu gerente de loja.

Com efeito, a palavra gerente tem o significado comum de “aquele que gere ou administra, aquele que tem sobre si a responsabilidade da gestão ou administração, dando instruções ou mesmo executando-as, no interesse da sociedade” e o gerente de loja é a pessoa responsável pela gestão do estabelecimento, dotada de importantes poderes de planeamento, fiscalização e de controlo da atividade dos colaboradores que prestam serviço nesse sector da empresa (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-03-2017, processo n° 769/ 14.5TAFUN.L1-3, disponível em www.dgsi.pt).

Inexistem circunstâncias suscetíveis de afastar a ilicitude e/ou a culpa.

Pelo que se impõe a condenação da sociedade arguida Pingo Doce — Distribuição Alimentar, S.A. pela prática do crime de especulação, p. e p. pelos artigos 3.°, n. 01, e 35.°, n. ~l alínea c), do Decreto-Lei n.° 28/84, de 20 de janeiro.”

Depois, em sede de recurso, quanto ao fundamento invocado como, “F - ERRO DE DIREITO: NÃO PREENCHIMENTO DO TIPO LEGAL DE CRIME DE ESPECULAÇÃO (FALTA DO ELEMENTO OBJECTIVO DO CRIME NA FORMA CONSUMADA; DO ELEMENTO SUBJECTIVO E NEXO DE IMPUTAÇÃO’), aditou a Relação:

“Todas estas questões foram já acima afloradas quando decidimos das questões enunciadas.

Mas vejamos. (…)

Também - já acima o dissemos - não tem qualquer sentido, defender que a responsabilidade penal da recorrente se encontra afastada pois da sentença não consta a responsabilidade penal de outro sujeito ou, no mínimo, qualquer facto atinente à actuação de determinada pessoa singular, pelo que não é possível avaliar o item interno da actuação – a vontade, a consciência, o descuido - e que caracterizariam o facto como doloso ou negligente.

Não é necessária para o preenchimento do tipo legal de crime a identificação precisa da pessoa que actuou em nome e no interesse da pessoa colectiva.

Basta que se vislumbre uma ligação jurídica funcional e profissional à mesma sob pena de estarmos a exigir ao tribunal recorrido uma capacidade de adivinhação que o mesmo não tem.

Porém, dos factos provados é possível deduzir com segurança que esse preço foi fixado por uma pessoa cuja identidade não foi possível apurar mas que actuava em nome, representação e no interesse da arguida e que possuía um vínculo jurídico de subordinação com a recorrente.

Para que as pessoas colectivas possam ser responsabilizadas pelos seus actos praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções é estritamente necessária a indicação da entidade singular (órgão, agente, representante ou trabalhador) perpetrante dos pertinentes factos e a determinação da relação destes com o ente colectivo, bem como a demonstração a especial ligação funcional ou profissional, mas não se exige a sua identificação precisa, individualizada e detalhada quando a mesma não é possível de efectuar, como não foi.

E a sentença recorrida satisfaz estes requisitos quando deu como PROVADO que:

«1. A sociedade arguida Pingo Doce-Distribuição Alimentar, S.A., com sede na Rua ..., n.° 7, ..., tem por objeto social a produção e o comércio de produtos alimentares e não alimentares, incluindo medicamentos não sujeitos a receita médica e, de um modo geral, de todos os produtos de grande consumo, a exploração de centros comerciais, a prestação de serviços e ainda o de importações e exportações.

2. No exercício da sua atividade, no mês de maio de 2019, a sociedade arguida explorava o estabelecimento comercial denominado “Pingo Doce “, sito em 5. ..., ....

3. No dia 1 de maio de 2019, no referido estabelecimento comercial, no expositor destinado à venda ao público de vinhos, o arguido fez expor, para venda ao público, várias garrafas de “Vinho Alentejo ... “, de 75cl, com o código 878208, anunciando na etiqueta correspondente, o preço promocional unitário de 62,49 (dois euros e quarenta e nove cêntimos), a pagar pelo consumidor.

4. Ao contrário do que era anunciado na etiqueta promocional que se encontrava colocada junto às aludidas garrafas, o valor cobrado ao consumidor pela sociedade arguida, naquele estabelecimento comercial era de 62,99 (dois euros e noventa e nove cêntimos).

6. O gerente de loja sabia que as garrafas expostas para venda ao público encontravam-se etiquetados com um valor inferior àquele que era cobrado a quem as adquirisse.

7. Com a conduta descrita a sociedade arguida praticou um preço superior ao preço anunciado de venda ao público, induzindo em erro o consumidor e as expetativas em adquirir, pelo preço mencionado, aquelas garrafas do vinho».

E face a esta conduta provada não vislumbramos como possa a arguida eximir-se à sua responsabilidade penal pela prática consumada e dolosa do crime de especulação em causa nos autos.

Improcede, assim, a argumentação da Recorrente.”

Como se vê, o tribunal de 1ª instância não deu como provada qualquer acção do também acusado AA como órgão ou representante da sociedade arguida e, por isso, absolveu-o4. Mas deu como provada a acção do gerente de loja, que, apesar de não identificado, (e não acusado), actuou como órgão e representante da sociedade, acabando a condenação da sociedade a assentar na conexão entre o comportamento desse gerente de loja não identificado, - como órgão ou representante da sociedade e a actuar em seu nome e no interesse coletivo, - e a sociedade.

“8. O gerente de loja e a arguida agiram com o propósito de auferir um lucro legitimo, correspondente a diferença entre os valores que anunciava e os que cobrava na caixa registadora aquando do pagamento pelo comprador/consumidor.

9. O gerente de loja e a arguida quiseram agir da forma descrita, livre, voluntaria e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.”

Em suma, no acórdão recorrido apurou-se que foi um (seu) órgão ou representante da pessoa coletiva, o gerente da loja, só não se apurou a sua identidade. E tendo sido um seu órgão ou representante, agente esse que agiu em nome e no interesse coletivo, entendeu o acórdão recorrido dar como provada a conexão exigida. Há conexão, e a responsabilização penal não é tolhida pela falta de identificação do agente (não identificado mas conectado).

II.2.3. Olhemos para a factualidade no acórdão fundamento:

Vinham acusados a sociedade e o seu sócio-gerente pela prática de crime de falsificação na confecção de chouriço p. e p. nos arts 24º e 82º do DL 28/84. Na 1ª instância absolveu-se o arguido e condenou-se a sociedade, A absolvição do arguido assentou em que “O arguido CC, por não ter qualquer contacto com o setor produtivo da “I.......”, desconhecia a existência, nos chouriços, dos corantes referidos bem como a falta dos requisitos higiénicos dos mesmos.”

Interposto recurso pela sociedade, em pugna pela absolvição, disse, a seguir, a Relação que, tendo sido absolvido o sócio gerente CC, “fica sem se saber quem praticou os factos que – apenas no aspecto objetivo – integravam infracção criminal. Nomeadamente, não se sabe se foi algum órgão ou representante da sociedade que, com a sua conduta, deu causa a que os produtos apreendidos se encontrassem decompostos e impróprios para o consumo público. Este resultado bem pode ter acontecido por acção ou omissão de um terceiro em relação a sociedade. Sendo assim, a responsabilidade criminal da sociedade recorrente não pode fundar-se no disposto no art. 3º do DL 28/84, pois faltam os dois requisitos essenciais à existência dessa responsabilidade: por um lado, que a falsificação dos produtos fosse causada por conduta de algum órgão ou representante da sociedade; por outro, que essa conduta fosse exercida em nome e no interesse da sociedade.” E mais adiante: “Não se sabendo quem (e como) agiu, dando causa à deterioração dos produtos, não pode a sociedade ser objeto de censura criminal.” E, com tal fundamento se absolveu a sociedade arguida “I.......”.

Percebe-se a absolvição da sociedade. Que assenta na inexistência de conexão, inexistência essa que falha logo por não se saber quem foi o agente que deu causa à deterioração, sublinhando o aresto a falta do “quem”, admitindo o acórdão até ter sido um terceiro.

Em resumo, no acórdão fundamento falta o agente, impossibilitando desde logo a conexão por falta do agente, por falta da pessoa física. Se falta pessoa física inviável se torna procurar acção cometida por seu órgão ou representante em seu nome e no interesse coletivo. Com o que o acórdão fundamento descartou a conexão e acabou a absolver a pessoa coletiva.

II.2.4. Resumo comparativo da diversidade das situações de facto

No acórdão recorrido há agente, há pessoa física, o gerente da loja, só falta a sua identificação, configurando-se conexão entre a pessoa física do agente (não identificado), - que, provou-se, agiu como órgão ou representante da sociedade e em seu nome e no interesse coletivo, - e a sociedade condenada.

No acórdão fundamento não há agente, não há pessoa física. E absolveu-se a sociedade arguida porque, em termos de factos, não se apurou quem agiu, nomeadamente, se foi algum dos seus órgãos ou representante, admitindo-se até ter sido um terceiro. Não se tendo apurado quem foi, necessariamente não se pode dar o salto para dar como provado que tenha sido um órgão ou representante da firma arguida, E na falecida exigida conexão absolveu-se a pessoa coletiva.

E é dessa distinção factual que, naturalmente, nascem diferentes soluções, a condenação da pessoa coletiva no acórdão recorrido e a absolvição da pessoa coletiva no acórdão fundamento. Diferentes soluções essas que não podemos ter como “soluções opostas” ou conflituantes face à não verificação da exigida identidade factual.

Contraditório com a solução do acórdão recorrido seria sim se o acórdão fundamento, - provado que eventual (não identificado) gerente da loja, ou outra pessoa física com ligação jurídica funcional e profissional à pessoa coletiva agiu como seu órgão ou representante e em seu nome e no interesse coletivo, - tivesse julgado que não existia conexão e, na inexistência e por causa dela, acabava a absolver. Não foi o caso.

Concluindo, falta, in casu, o requisito substancial da oposição de julgados em prévia identidade factual entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, não podendo, por conseguinte, o recurso prosseguir.

III - DECISÃO

Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 437º, nº 1, 441.º, n.º 1, ambos do C.P.P. por inexistência do requisito substancial de soluções opostas sobre identidade factual tomadas pelo acórdão recorrido e pelo acórdão fundamento, rejeita-se o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.

Custas pelo Recorrente fixando-se a taxa de justiça em três (3) UC’s (arts 513, nº 1, do CPP, 8, nº 9 do RCP e tabela III anexa do RCP).


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STJ, 31 de janeiro de 2024

Ernesto Vaz Pereira (Juiz Conselheiro Relator)

Teresa de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)

Ana Barata Brito (Juíza Conselheira Adjunta)

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1. Cfr ac. do STJ de 30/10/2019, proc. nº 324/14.0TELSB-N.L1-D.S1, Raul Borges.

2. O interesse em agir corresponde à expectativa de repercussão favorável (cfr artigo 445, nº 1)

3. Não pode ser invocado como acórdão fundamento um acórdão do Tribunal da Relação, sendo o acórdão recorrido um acórdão do STJ (ac. do STJ de 15/04/1999, in ASTJ, nº 30, 76).

4. “Relativamente ao arguido AA, tendo em atenção que a sua participação não resulta da factualidade provada e tendo em atenção o facto não provado a), impõe-se a sua absolvição.” E “O facto a) resultou não provado por falta de prova nesse sentido: o arguido negou-o, nenhuma testemunha o afirmou com assertividade e não resulta da prova documental. Assim, resultou não provado que o arguido fosse gerente da loja de ... e onde constava a referência a este arguido ficou a constar somente “o gerente de loja”. (in sentença da 1ª instância).