Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B634
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: ALUGUER DE LONGA DURAÇÃO
PROTOCOLO
SEGURO-CAUÇÃO
NULIDADE
Nº do Documento: SJ200603090006347
Data do Acordão: 03/09/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. No âmbito das relações de mútuo demarcam-se os contratos de abertura de crédito em conta-corrente e de descoberto em conta-corrente, no primeiro caso sob a convenção de o crédito ser utilizado pelo cliente por várias vezes, e, no segundo, sob a convenção de aquela conta envolver saldo positivo para a instituição de crédito e de saldo negativo para o cliente.
2. O contrato de seguro caução é atípico, a favor de terceiro, consubstanciado em três relações jurídicas, a de valuta entre o tomador do seguro e o beneficiário, a de cobertura entre a seguradora e o tomador do seguro e a de prestação entre seguradora e o beneficiário, envolvendo, em regra, garantia de pagamento, pessoal, autónoma, simples, de boa execução.
3. Imitada ilegalmente a assinatura da pessoa que no instrumento da proposta de contrato de seguro-caução, ausente o consenso que pressuposto necessário da celebração de qualquer contrato, a consequência é a de inexistência do primeiro dos referidos contratos.
4. Pressuposta a existência de contrato de seguro caução objectivado no incumprimento pelo locatário de identificado contrato de aluguer de longa duração da sua obrigação de pagamento de rendas, a inexistência deste contrato por falta de real vinculação e de objecto, por forjada ter sido a assinatura do locatário indicado, a consequência seria a nulidade do primeiro, sobretudo pela inexistência de risco a salvaguardar.
5. A mutuante que concedeu crédito à mutuária sob condição da existência dos contratos de aluguer de longa duração e de aluguer de longa duração de determinado veículo automóvel não tem, por isso, no confronto da seguradora, título para lhe exigir a indemnização pelo incumprimento do contrato de mútuo.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I
A Empresa-A intentou, no dia 11 de Março de 1996, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra a Empresa-B, pedindo a sua condenação a pagar-lhe 2 278 108$, juros moratórios e o valor correspondente ao imposto do selo, sob o fundamento de incumprimento por Empresa-C de um contrato de abertura de crédito no montante de 5 000 000$ destinado à compra de viaturas para o negócio de outorga de contratos de aluguer de longa duração e em contrato de seguro-caução celebrado entre a ré e Empresa-C.
A ré suscitou o chamamento à autoria de Empresa-C e de Empresa-D, a primeira aceitou-o e a última negou haver contratado com Empresa-C e invocou a falsidade de identificados documentos.

Afirmou, ademais, que o contrato de seguro caução só cobria o incumprimento do contrato de aluguer de longa duração relativo ao veículo automóvel com a matrícula nº BJ, ser o primeiro nulo por inexistir o seu objecto, não ter Empresa-C participado o sinistro, ter a autora recebido de Empresa-C 2 559 980$ referentes a diversos contratos e dever a parte proporcional desse valor ser abatida ao montante por ela reclama, a que se seguiu a réplica e a tréplica.
Realizado o julgamento, foi preferida sentença no dia 16 de Dezembro de 2004, por via da qual a ré foi condenada a pagar à autora € 11 363,15 acrescidos de juros no montante de € 604,73 vencidos até à propositura da acção e vincendos à taxa de desconto do Banco de Portugal.
Apelou a ré, e a Relação, por acórdão proferido no dia 22 de Setembro de 2005, absolveu-a do pedido.

Interpôs a apelada recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- as rendas devidas por Empresa-D eram depositadas na conta de Empresa-C para amortização do financiamento, e em caso de não pagamento das rendas pela primeira à segunda a recorrente podia socorrer-se do contrato de seguro-caução;
- apesar da invalidade do contrato de aluguer de longa duração, mantém-se a responsabilidade da recorrida, porque em razão dos protocolos e contratos que celebrou, garantiu-lhe a cobertura dos riscos;
- o contrato de seguro-caução é autónomo, sem natureza acessória face à obrigação garantida, não lhe podia ser oposta a excepção da invalidade;
- o contrato de seguro-caução não é nulo, cobre os riscos de incumprimento do contrato de financiamento bancário que celebrou com Empresa-C, com pagamento do montante indemnizatório à primeira interpelação;
- é esse o sentido a extrair dos contratos celebrados, em particular do contrato de seguro caução, de harmonia com o disposto nos artigos 236º e 238º do Código Civil, que a Relação infringiu em erro de julgamento.

Respondeu a recorrida, em síntese de conclusão de alegação:
- não estão em dívida rendas relativas ao mencionado veículo automóvel, o contrato de seguro-caução visava garantir o pagamento das rendas relativas ao contrato de aluguer de longa duração de identificado veículo automóvel, mas Empresa-C não o adquiriu;
- o contrato de seguro-caução é inexistente por falta de declaração da tomadora, ou é nulo por impossibilidade física do objecto e, se fosse válido, não abrangeria o direito de crédito invocado pela recorrente;
- não assumiu garantia autónoma, visto que se obrigou a pagar dívida de outrem, e se o fosse on first demand podia invocar os meios de defesa que se prendam directamente com o próprio contrato de garantia, tais como a invalidade por indeterminabilidade do objecto;

II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. No dia 30 de Abril de 1992, Empresa-C e a Empresa-B declararam, por escrito, em documento denominado Protocolo, o seguinte: o presente protocolo tem por finalidade definir as relações entre as empresas no tocante à emissão de seguros de caução destinados a garantir o pagamento à Empresa-C dos veículos por ela vendidos em aluguer de longa duração; Empresa-C compromete-se a colocar na Empresa-B os seguros de caução que exigir aos seus clientes destinados a garantir o pagamento das prestações de veículos adquiridos por aqueles em aluguer de longa duração; Empresa-C garante igualmente à Empresa-B o pagamento dos prémios de seguro apesar das apólices serem emitidas em nome dos seus clientes; Empresa-B compromete-se, num prazo de 48 horas, a dar resposta a Empresa-C da aceitação das propostas de seguro que lhe sejam apresentadas, devidamente documentadas, e a emitir as respectivas apólices, caso a subscrição do risco seja tecnicamente aceitável; dependendo da duração da garantia a prestar, os contratos serão tarifados por 12 meses, 1%; 24 meses 1,35%; e 36 meses 1,75%; independentemente da duração do seguro, a responsabilidade garantida pela Empresa-B corresponde em cada momento ao valor das prestações em dívida vencidas, bem como das vincendas não pagas, tendo como limite o capital seguro da apólice; em caso de sinistro coberto pela apólice, Empresa-C obriga-se a transferir a propriedade do veículo locado para a Empresa-B, sem contraprestação ou quaisquer encargos, desde que esta confirme, perante a instituição de crédito a quem livremente for cessionado o direito a indemnização, o pagamento dos danos seguros; as indemnizações resultantes do contrato de seguro serão determinadas pela apresentação do contrato de locação, da conta-corrente do locatário, da fotocópia do recibo da prestação em falta, da fotocópia da carta enviada pelo locador ao locatário atestando o período da mora e a taxa de juro aplicável e da carta a declarar a resolução do contrato;
e, com os referidos documentos, a seguradora pagará à primeira interpelação do beneficiário o montante indemnizatório; Empresa-C compromete-se, no entanto, a não reclamar o pagamento de qualquer prestação em falta antes de decorrerem 45 dias da data de pagamento prevista; Empresa-B compromete-se a emitir todas as apólices de seguro caução cujo tomador seja a Empresa-C ou quem esta indicar, até ao montante de 7 500 000$, mediante o pagamento de um prémio de 12 500$; com a formalização da proposta de seguro caução, Empresa-C indicará à Empresa-B a entidade jurídica a favor de quem é constituído o benefício; e, no caso referido nos números anteriores, Empresa-C pagará à Empresa-B, à primeira interpelação, o montante indemnizatório que porventura esta tenha de cumprir por virtude do accionamento do seguro caução; a denúncia do protocolo poderá ser efectuada por ambas as partes mediante um pré-aviso registado de 30 dias, comprometendo-se Empresa-B a subscrever, durante aquele período, todas as cauções tecnicamente aceitáveis.

2 A propriedade do veículo automóvel com a matrícula nº BL, marca Peugeot, esteve sujeita aos seguintes registos: em 30 de Dezembro de 1992 a favor de Empresa-E, em 14 de Janeiro de 1993 a favor de AA e, desde 18 de Outubro de 1995, a favor de BB.

3. Representantes da autora e de Empresa-C declararam por escrito, no dia 25 de Agosto de 1992, que intitularam de contrato de financiamento, a primeira conceder à última um crédito em conta-corrente até 50 000 000$, destinado a financiar a actividade de aluguer de longa duração de veículos automóveis desenvolvida por Empresa-C, a utilizar na compra das viaturas objecto daqueles contratos de aluguer, e que o crédito seria disponibilizado mediante entrega da cópia do contrato de aluguer de longa duração, cópia da autorização de débito em conta bancária enviada ao banco do locatário e entrega da apólice do contrato de seguro celebrado com a ré, e que o capital seguro era igual ao valor da totalidade das rendas a pagar pelo locatário, tendo como beneficiária a autora.

4. No âmbito do declarado mencionado sob 3, após solicitação de Empresa-C, a autora concedeu-lhe o financiamento de 5 000 000$.

5. Pelo teor dos documentos entregues pela Empresa-C à autora - cópia do contrato de aluguer de longa duração, apólice de seguro, autorização de débito em conta - o financiamento referido sob 4 destinava-se à aquisição de um veículo automóvel com a marca BMW, matrícula nº BL, que Empresa-C teria dado em aluguer de longa duração a Empresa-D pelo prazo de 36 meses, pagamentos trimestrais, com vencimento do primeiro aluguer no dia 20 de Fevereiro de 1993 e o último no dia 20 de Novembro de 1995.

6. Para a disponibilização daquele financiamento, Empresa-C entregou à autora a apólice de seguro nº 150104102285, subscrita pela ré no dia 16 de Fevereiro de 1993, da qual consta ser a autora a beneficiária, Empresa-D a tomadora e Empresa-C a segurada, e o pagamento de onze rendas trimestrais referentes ao aluguer de longa duração do veículo marca BMW 318 l , com a matrícula BL, o objecto.

7. Apenas foram pagas as rendas vencidas até 20 de Novembro de 1994 e, no dia 25 de Julho de 1995, a autora enviou à ré, que a recebeu, uma carta referente àquela apólice, na qual lhe comunicou não ter sido liquidada a renda vencida no dia 20 de Janeiro de 1994 e reclamou-lhe o capital em dívida de 2 390 891$, acrescido dos juros vencidos de 394 792$ e imposto de selo de 27 635$, mas a ré nada lhe pagou.

8. Por via de vários protocolos subscritos entre a Empresa-C e a ré, em Dezembro de 1990, 25 de Julho de 1991, 1 de Novembro de 1992 e 1 de Novembro de 1993, a primeira comprometeu-se a colocar na última os contratos de seguro-caução que exigisse aos seus clientes locatários de longa duração, destinados a garantir o pagamento por estes das rendas respectivas, como tomadores do seguro, dos veículos entregues em regime de aluguer de longa duração.

9. A apólice mencionada sob 6 foi emitida pela ré por solicitação de Empresa-C, por carta, e a última nunca comunicou à primeira que Empresa-D não lhe tinha pago as prestações do contrato de aluguer de longa duração.

10. Empresa-D não celebrou com Empresa-C qualquer contrato de aluguer de longa duração nem qualquer contrato de seguro-caução com a ré, não sendo o carimbo referente a Empresa-D, constante dos documentos insertos a folhas 10 a 12, dela, e não são de CC, DD ou de EE as assinaturas como pertencendo à Empresa-D constantes dos documentos insertos a folhas 10 a 13, factos que sempre foram conhecidos de Empresa-C.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se a recorrente tem ou não direito a exigir da recorrida o pagamento de € 11 363,15, juros moratórios e o valor correspondente ao imposto do selo.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação da recorrente e da recorrida, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- lei adjectiva aplicável na acção e nos recursos;
- delimitação do objecto do recurso;
- natureza e efeitos dos protocolos outorgados entre a recorrida e Empresa-C
- natureza e efeitos do contrato celebrado entre a recorrente e Empresa-C;
- natureza e objecto dito celebrado entre a recorrida e Empresa-C;
- produz ou não o referido contrato os efeitos que lhe são próprios?
- tem ou não a recorrente, no confronto da recorrida, o direito de crédito que invocou?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela determinação da lei adjectiva aplicável na acção e nos recursos.
Considerando que a acção foi intentada no dia 11 de Março de 1996, são-lhe aplicáveis as normas processuais anteriores às do Código de Processo Civil Revisto, que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 1997, salvo no que concerne aos prazos, em que
é aplicável a lei nova (artigos 6º, nº 1, e 16º do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12
de Dezembro).
Considerando que a prolação da sentença no tribunal da 1ª ocorreu no dia 16 de Dezembro de 2004, aos recursos são aplicáveis as pertinentes normas do Código de Processo Civil Revisto (artigo 25º, nº 1, do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro).

2.
Delimitemos, ora, o objecto do recurso de revista.
Na sentença proferida no tribunal da 1ª instância foi declarado estarem afectados de nulidade não só a autorização imputada a Empresa-D para o débito na sua conta bancária e o crédito correspondente na conta corrente aberta pela recorrente no confronto e a favor de Empresa-C do montante das rendas relativas ao contrato de aluguer de longa duração como também este contrato.
Da referida decisão só Empresa-B interpôs recurso que não teve o referido segmento declarativo por objecto, e a então recorrida, que teve êxito na acção, não requereu a ampliação do âmbito do recurso de apelação a que se reporta o artigo 684º-A, nº 1, do Código de Processo Civil.
Expressa a lei que os efeitos do julgado na parte não recorrida não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo (artigo 684º, nº 4, do Código de Processo Civil).
Aliás, a ora recorrente, apelada no recurso de apelação, não põe em causa no recurso de revista a mencionada decisão sobre o vício de nulidade do acto jurídico e do contrato de aluguer de longa duração do veículo automóvel em causa.
Em consequência, a referida problemática não pode ser objecto do recurso de revista em análise, pelo que dela não conhecemos.

3.
Atentemos agora na natureza e nos efeitos dos protocolos outorgados entre a Empresa-C e recorrida.
Na altura da contratação entre Empresa-C e a recorrente, por um lado, e a primeira e a recorrida, por outro, vigorava entre estas últimas um acordo empresarial, por elas denominado protocolo, datado de 7 de Abril de 1992.
Por ele, visaram definir as suas relações no concernente à emissão de seguros caução destinados a garantir o pagamento a Empresa-C dos veículos automóveis por ela vendidos na sequência de contratos de aluguer de longa duração.
Empresa-C declarou comprometer-se a colocar na recorrente os seguros caução, que exigisse aos seus clientes, destinados a garantir-lhe o pagamento das prestações relativas aos veículos por eles adquiridos em aluguer de longa duração.
E a recorrida declarou, por seu turno, comprometer-se a emitir todas as apólices de seguro caução até 5 000 000$ cujo tomador fosse Empresa-C ou quem esta indicasse.
Empresa-C declarou, por seu turno, obrigar-se a indicar à recorrida a entidade a que era concedido o benefício, e a última a pagar, à primeira interpelação, o montante indemnizatório que devesse cumprir por via do accionamento do seguro caução.
Assim, reporta-se o protocolo em análise às condições a observar na eventual celebração, entre Empresa-C ou quem esta indicasse e a recorrida, de contratos de seguro-caução em que a primeira ou outrem figuraria como beneficiária.
A referida garantia cobriria, naturalmente, o incumprimento pelo locatário, face à locadora Empresa-C, das obrigações decorrentes dos contratos de aluguer de longa duração entre ambos celebrados.
É indubitável que, face aos termos do aludido protocolo, na previsão de Empresa-C e da recorrida, os contratos de seguro caução neles mencionados são essencialmente do tipo nele previsto.
O conteúdo do referido protocolo assume algum relevo na interpretação das declarações negociais que tenham sido insertas nas condições particulares dos contratos de seguro-caução em análise posteriormente celebrados, mas não pode afectar o sentido que delas resulta.

4.
Vejamos agora a natureza e nos efeitos do contrato celebrado entre a recorrente e Empresa-C.
As partes convencionaram, por um lado, que o referido crédito era concedido para Empresa-C comprar viaturas automóveis destinadas à sua actividade de aluguer de longa duração e que a sua disponibilização dependia, além do mais, por um lado, da entrega por ela à recorrente da cópia dos contratos de aluguer de longa duração e de seguro-caução celebrados.
E, por outro, a entrega por Empresa-C à recorrente de autorização da locatária à respectiva instituição de crédito para debitar o valor das rendas e os creditar directamente na mencionada conta-corrente de depósitos e de levantamentos e da entrega de apólice de contrato de seguro caução celebrado com a recorrida com capital seguro igual ao totalidade das rendas a pagar pela locatária e tendo a recorrente por beneficiária.
As partes configuraram, pois, uma situação de contratos conexos sem a característica essencial da união ou coligação.
A concessão de crédito mediante remuneração é uma das funções naturais dos bancos, por via de modalidades diversas, por exemplo mútuo, abertura de crédito ou desconto, todas elas entroncando no chamado mútuo bancário.
Previstos no artigo 362º do Código Comercial, não têm regulamentação própria, regendo-se por via das respectivas declarações negociais e, na sua falta, pelas normas dos contratos que representarem ou em que se desenvolverem (artigos 405º do Código Civil e 363º do Código Comercial).
Entre as referidas modalidades surgem-nos no comércio jurídico os contratos de abertura de crédito em conta-corrente e de descoberto em conta-corrente.
No primeiro caso, a instituição de crédito e o cliente convencionam no sentido de o crédito ser utilizado pelo último por várias vezes; no segundo, a instituição de crédito, sob a forma de conta-corrente, admite um saldo positivo a seu favor, decorrente, por exemplo, de pagamentos por conta do cliente, no confronto com o correspondente saldo negativo para o último.
Trata-se de algo semelhante a contratos-quadro em que os direitos de crédito concernentes surgem por via da movimentação da conta-corrente a crédito ou a débito, ou seja, por via da utilização do dinheiro por parte do creditado.
Tendo em conta a factualidade provada constante de II 3 e 4, a recorrente e Empresa-C celebraram um contrato de abertura de crédito em conta corrente (artigos 3º, 362º, 363º, 394º a 396º do Código Comercial, 686º, 1142º e 1145º do Código Civil).
Trata-se, com efeito, de uma promessa directa por parte da recorrida em relação a Empresa-C, ou seja, de uma abertura de crédito verdadeira e própria, sob a forma de conta corrente, e com o a disponibilização do dinheiro convencionado, no montante de 5 000 000$, consumou-se o contrato real de mútuo.
Todavia, o pressuposto da celebração do referido contrato de mútuo relativo à celebração pela mutuária de um contrato de locação de longa duração de veículo automóvel não se verificou.

5.
Atentemos agora na natureza e nos efeitos do contrato dito celebrado Empresa-D e Empresa-B.
O contrato de seguro em geral é a convenção pela qual uma seguradora se obriga, mediante retribuição paga pelo segurado, a assumir determinado risco e, caso ele ocorra, a satisfazer, ao segurado ou a um terceiro, uma indemnização pelo prejuízo ou um montante previamente estipulado.
Trata-se de um contrato formal, certo que a sua validade depende de o respectivo conteúdo ser consubstanciado num documento escrito, denominado apólice, da qual devem constar, além do mais, o nome do segurador, do tomador e do beneficiário do seguro, o respectivo objecto e a natureza e o valor e os riscos cobertos (artigo 426º, § único, do Código Comercial).
Conformado com o referido tipo negocial geral, o contrato de seguro-caução configura-se como uma das modalidades do contrato de seguro de créditos, especialmente regido pelo Decreto-Lei nº 183/88, de 24 de Maio, alterado pelos Decretos-Leis nºs 127/91, de 22 de Março, e 29/96, de 11 de Abril, pelo artigo 114º, nº 5, do Decreto-Lei nº 102/94, de 20 de Abril, e pelo Decreto-Lei nº 214/99, de 15 de Junho.
Resulta da lei que o contrato de seguro de créditos é susceptível de cobrir, por exemplo, o risco da falta ou do atraso de pagamento dos montantes devidos ao credor (artigo 3º, nº 1, alínea c)).
O contrato de seguro caução, subespécie do contrato de seguro de créditos, é susceptível de compreender o seguro caução directa, o seguro caução indirecta, o seguro fiança e o seguro aval (artigo 1º, nº 4).
Deve inserir, para além dos elementos previstos para o efeito no Código Comercial, inter alia, a obrigação a que se reporta, é individualizado pela específica natureza do risco coberto, isto é, o de incumprimento temporário ou definitivo de obrigações que, por lei ou convenção, sejam susceptíveis de caução, fiança ou aval (artigos 6º, nº 1, e 8º).
A obrigação de indemnizar por parte da seguradora tem como limite o montante correspondente ao que é objecto do contrato de seguro (artigo 7º, nº 2).
O beneficiário da indemnização pode ser o credor da obrigação a que se reporta o contrato de seguro, caso em que se está perante o contrato de seguro caução directa, ou a pessoa que garantir o cumprimento da referida obrigação, situação que se configura como contrato de seguro caução indirecta.
Dir-se-á que o contrato de seguro caução é atípico, a favor de terceiro, consubstanciado numa tríplice relação, entre o tomador do seguro e o beneficiário, designada por relação de valuta, entre a seguradora e o tomador do seguro, caracterizada por relação de cobertura, e entre a seguradora e o beneficiário, definida por relação de prestação.
Perante a factualidade provada, a conclusão é no sentido de que, aparentemente, Empresa-D e Empresa-B celebraram um contrato de seguro caução directa, em que a primeira figura como tomadora, a segunda como seguradora, Empresa-C como segurada e a recorrente como beneficiária.
Entende a recorrente que o contrato de seguro-caução se traduz em garantia autónoma à primeira solicitação.
Discutida tem sido a estrutura essencial do contrato de seguro-caução, oscilando as opiniões entre a qualificação de contrato de fiança e a qualificação de garantia autónoma, e a doutrina demarca no grupo das garantias pessoais as acessórias e as autónomas e, no âmbito destas, as que funcionam à primeira solicitação e as que desse modo não funcionam, estas denominadas de simples.
As garantias acessórias, como é o caso da fiança, caracterizam-se pela íntima relação entre a obrigação de garantia e a relação principal, traduzida na comunicação dos vícios inerentes à segunda ao vínculo contratual resultante da primeira, em termos de a sua validade, eficácia e conteúdo serem moldados sobre aquela, permitindo que o garante, quando a garantia é executada, possa opor ao beneficiário todas as excepções que lhe seriam oponíveis pelo devedor.
Com efeito, no contrato de fiança, o fiador contrai, em regra, uma obrigação acessória e subsidiária da obrigação principal do afiançado, sendo a acessoriedade o seu elemento essencial, do que resulta que a obrigação dele decorrente se subordina à obrigação afiançada e a acompanha, designadamente no plano da invalidade ou da extinção, em razão do que o fiador pode invocar perante o credor os meios de defesa de que o sujeito afiançado dispunha (artigos 632º, 637º e 652º do Código Civil).
Diversamente, as garantias pessoais autónomas de funcionamento à primeira solicitação - on a first demand - implicam para o garante a obrigação de pagar a quantia estabelecida com base no mero pedido, solicitação ou exigência do beneficiário, sem que lhe seja permitido invocar qualquer excepção fundada na relação fundamental entre o ordenante e o beneficiário.
No que concerne ao funcionamento das garantias pessoais autónomas simples ou de boa execução não basta a mera exigência de pagamento para que o garante seja obrigado a cumprir, certo que lhe deve ser exigido que pague mediante a comprovação de que estão preenchidos os pressupostos pré-estabelecidos para a actuação da sua responsabilidade.
Embora o contrato de seguro caução desempenhe, em regra, uma função económica muito próxima de qualquer garantia pessoal acessória, designadamente da derivada do contrato de fiança, e da garantia autónoma simples, a sua verdadeira natureza tem de ser captada, em concreto, face às respectivas declarações negociais integrantes das cláusulas particulares, especiais ou gerais.
Resulta das cláusulas gerais dos referidos contratos de seguro-caução, em tanto quanto releva nesta específica análise, por um lado, serem excluídos da garantia a recusa pelo tomador do seguro do cumprimento das suas obrigações em virtude de litígio técnico decorrente das relações contratuais ou legais com o beneficiário.

E, por outro, serem excluídos da garantia o incumprimento por factos imputáveis ao beneficiário ou aos seus mandatários e a conivência ou conluio entre o beneficiário e o tomador do seguro ou entre este ou quaisquer pessoas a quem o beneficiário tenha cometido a fiscalização dos factos ou actos cobertos pela apólice e ainda os resultantes de comprovada negligência do próprio beneficiário e ou dos seus mandatários.
Acresce, resultar dos referidos contratos de seguro que o direito à indemnização do beneficiário surge quando, após a verificação do sinistro, o tomador do seguro, interpelado para satisfazer a obrigação, se recusar injustificadamente a fazê-lo, e que, surgido o direito à indemnização como acima é definido, o beneficiário tem o direito a ser devidamente indemnizado pela apelante no prazo de 45 dias a contar da data da reclamação.
Perante este quadro, o direito de indemnização decorre da verificação prévia da recusa injustificada de pagamento por parte da tomadora do seguro, do que resulta não se estar perante obrigação de pagamento à primeira solicitação, isto é, de que se não trata, na espécie, de garantia autónoma à primeira solicitação.
Por outro lado, tendo em conta a estrutura do referido contrato de seguro caução, dele não resulta tratar-se de mera obrigação acessória de pagamento como a que resulta do contrato de fiança.
Em consequência, do que se trata, tal como vem sendo considerado por alguma doutrina, é de uma garantia de pagamento, pessoal, autónoma, simples, de boa execução.

6.
Vejamos agora se o contrato celebrado entre a recorrida Empresa-D é ou não susceptível de produzir os efeitos que lhe são próprios.
O seguro pode ser contratado por conta própria ou por conta de outrem, mas se não se declarar na apólice que é por conta de outrem, considera-se contratado por conta de quem o fez (artigo 428º, proémio, § 2º do Código Comercial).
E se aquele por quem ou em nome de quem o seguro é feito não tem interesse na coisa segurada, é nulo o contrato de seguro (artigo 428º, proémio, § 1º do Código Comercial).
No caso vertente, não consta do clausulado do contrato de seguro-caução que Empresa-C tenha outorgado por conta de Empresa-D, certo que à denominação desta que nele consta como tomador.
Todavia, a referida problemática, tal como a das declarações reticentes, a capacidade dos contraentes, a possibilidade do objecto, a contrariedade à lei, à ordem pública ou aos bons costumes, a indeterminabilidade, o erro ou a divergência entre a vontade real e a vontade declarada, por exemplo, susceptíveis de implicar a nulidade ou a anulabilidade, só assumem relevo negativo no quadro dos contratos em geral, incluindo o de seguro-caução, desde que se verifique o seu elemento estrutural que é o mútuo consenso.
O contrato de seguro-caução é essencialmente, conforme já se referiu, uma convenção pela qual uma seguradora se obriga, mediante retribuição, a pagar pelo segurado, a assumir determinado risco, ou seja, é seu elemento estruturante o consenso vinculativo naturalmente motivado por determinada função económica e social.
Os sujeitos do contrato de seguro-caução, que é de natureza formal, são, pois, naturalmente, a seguradora e o tomador, e é seu elemento essencial o mútuo consenso, sem o qual não faz sentido jurídico considerar a sua existência.
Como as assinaturas imputadas aos representantes de Empresa-D não são deles, mas de outrem que as imitou, certo é que em relação à tomadora do seguro não há declaração negocial, o que significa inexistir o consenso essencial à existência de contrato de seguro-caução invocado pela recorrente.
A conclusão é, por isso, no sentido de que inexiste, na espécie, o contrato de seguro-caução invocado pela recorrente no confronto da recorrida.

7.
Atentemos, ora, se a recorrente tem ou não, no confronto da recorrida, o direito de crédito que invocou.
Conforme acima se referiu, por falta do necessário consenso, inexiste o contrato de seguro-caução dito celebrado entre Empresa-D a recorrida.
De qualquer modo, se fosse de considerar a existência do referido contrato de seguro-caução, como não havia contrato de aluguer de longa duração de qualquer veículo automóvel, e, por isso, por isso, inexistência de risco de incumprimento por via da omissão de pagamento, que foi declarado como objecto mediato do primeiro dos referidos contratos, a conclusão seria a da sua nulidade.
Como o pedido de condenação da recorrida assentou, para além do contrato de mútuo, na celebração de um contrato de aluguer de longa duração de veículo automóvel e de um contrato de seguro-caução com ele conexo, à míngua destes pressupostos, ou seja, da sua celebração, ele não pode proceder.
Inexiste, por isso, entre a recorrente e a recorrida a relação de prestação por esta em relação àquela, de que dependia o êxito da pretensão da primeira.
Em consequência não tem a recorrente direito de exigir da recorrida a indemnização derivada do incumprimento por Empresa-C do contrato de mútuo que com ela celebrou.

8.
Vejamos, finalmente, a solução para o caso derivada dos factos provados e da lei.
Em virtude de falta de impugnação e de ampliação do objecto do recurso de apelação não pode este Tribunal alterar o decidido no tribunal da 1ª instância no sentido da nulidade do contrato de aluguer de longa duração em causa.
O conteúdo do protocolo celebrado entre a recorrida e Empresa-C é susceptível de assumir algum relevo na interpretação de declarações negociais que eventualmente tenham sido insertas nas condições particulares dos contratos de seguro-caução posteriormente celebrados entre ambas.
Ele visa, com efeito, definir as condições de celebração de contratos de seguro caução a favor de Empresa-C, mas não constitui, suporte de alguma obrigação da recorrida no confronto da recorrente, porque é caso de inter alia acta.
A recorrente e Empresa-C celebraram um contrato de abertura de crédito em conta corrente de natureza comercial, espécie do contrato de mútuo bancário de outorga frequente.
Não foi celebrado o contrato de seguro caução que Empresa-C se vinculou a a ser celebrado entre a recorrida e Empresa-D, porque a assinatura nele aposta não é dos representantes da tomadora, a última, mas de outrem que a imitou.
Ainda que fosse de concluir no sentido da sua existência, estaria afectado de nulidade em virtude da inexistência do contrato de aluguer de longa duração de veículo automóvel a que se reportava e, consequentemente, do risco cuja cobertura devia marcar a sua razão de ser.
Não ocorrem, por isso, na espécie, os pressupostos da existência da obrigação de indemnização da recorrida no confronto da recorrente.

Improcede, por isso, o recurso.
Vencida, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).


IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condena-se a recorrente no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 9 de Março de 2006.
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís