Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1310/04.3TBMFR.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MOREIRA ALVES
Descritores: PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE DA AUDIÊNCIA
GRAVAÇÃO DA PROVA
FALTA DE REGISTO
DEPOIMENTO DE PARTE
NULIDADE PRINCIPAL
NULIDADE SECUNDÁRIA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Doutrina: - Lebre de Freitas, Código Processo Civil anotado.
- Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil.
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 201º, 205º, 563º N.º 1, 650 N.ºS 3 E 4 , 651º N.º 1 ALÍNEA A) E N.º 3, 656º E 658º, E 722.º, N.º2.
Jurisprudência Nacional: - ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 30/1/2001, PROCESSO N.º 4050/00 – 6ª.
Sumário :
I - A violação da regra da continuidade da audiência (cf. art. 656.º do CPC) não parece estar sancionada processualmente, não gerando qualquer nulidade, o que bem se compreende, uma vez que o seu cumprimento, exacto e preciso, dificilmente pode ser efectivado, sobretudo nos casos de julgamentos demorados e complexos, sob pena de colapso total do demais serviço agendado.
II - Se se entender que a descontinuidade da audiência de julgamento constitui o vício da nulidade, esta não pode qualificar-se senão como nulidade secundária (cf. art. 201.º do CPC) e, a ser assim, o referido vício só produz nulidade quando a lei o declare ou a irregularidade possa influir no exame ou na decisão da causa.
III - A anomalia da gravação da prova nunca pode ser sindicada pelo STJ, uma vez que este tribunal não aprecia matéria de facto a não ser nos casos excepcionais previstos no n.º 2 do art. 722.º do CPC. Saber se a aludida anomalia é ou não relevante para a decisão de facto, passa, naturalmente, pela sindicância de toda a prova, o que está vedado ao STJ.
IV - Se a Relação, considerando o contexto de todo o depoimento de parte do réu, o teve por perfeitamente compreensível, apesar de uma pequena falha da gravação e, por isso, considerou aquela falha irrelevante para a decisão de facto, não pode aqui pôr-se em causa tal apreciação, já que estamos no domínio de pura matéria de facto. Só assim não seria se, por ex., a Relação tivesse decidido que a deficiência de gravação, abstractamente considerada, não constituiria qualquer tipo de nulidade, sendo sempre irrelevante para a decisão de facto.
V - Acresce que, no caso concreto, do depoimento do réu, apenas foi aproveitado a parte dele que constitui confissão e, quanto a essa parte, não ocorreu qualquer omissão de gravação, além de que foi registada na acta, nos termos do art. 563.º, n.º 1, do CPC, sem qualquer reclamação ou reparo do recorrente. Consequentemente, se a declaração confessória do réu é perfeitamente perceptível, não sofrendo essa parte da gravação de qualquer anomalia, não seria o restante teor do depoimento que podia prejudicar a força probatória plena que a lei atribui à confissão.
VI - Se é certo que o réu tem todo o direito de se defender, com plena liberdade, já não tem o direito de alegar factualidade contraditória, como fez logo na sua contestação e continuou a fazer ao longo do processo, quando tal factualidade, por pessoal, não podia dele ser desconhecida: o direito de defesa não pode passar por se alegar o pagamento da dívida accionada, ao mesmo tempo que se nega ter recebido a mercadoria, e, portanto, se nega a existência da dívida (a mesma que, alegadamente, teria sido paga). É manifesta a má-fé do réu ao longo de todo o processado, pelo que deve ser sancionado.
Decisão Texto Integral: Relatório
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No Tribunal Judicial da Comarca de Mafra,
AA- F... e S..., S.A.
Intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinários, contra
BB,
alegando em resumo que, no exercício da sua actividade de importador de produtos frutícolas, vendeu ao R. diversas mercadorias, descriminadas nas facturas juntas aos autos, destinadas à revenda pela R. em mercados de produtos horto-frutícolas.
O R., porém, não pagou à A. o preço de tais mercadorias, estando em dívida 15.056,18€.
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Contestou o R.
Deduziu a excepção da prescrição (de curto prazo) e impugnou a factualidade articulada pela A., alegando, quer que pagou todas as mercadorias fornecidas pela A., quer que nunca lhe foram entregues as mercadorias aqui em causa pelo que nada deve à A..
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A A. Veio reduzir o pedido em 1.003,04€, que reconhece ter-lhe sido já pago, mantendo o restante pedido.
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Proferiu-se despacho saneador, no âmbito do qual foi julgada improcedente a excepção de prescrição.
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Fixaram-se os factos assentes e organizou-se a base instrutória.
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Realizado o julgamento, com gravação da prova, e lida a decisão de facto, foi proferida sentença final que julgou a acção procedente, condenando a R. no pedido (reduzido).
Condenou-se ainda o R. na multa de 20UC’s, como litigante de má-fé.
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Inconformado recorreu o R. de facto e de direito, pugnando, entre o mais, pela repetição do julgamento visto que ocorreu deficiência na gravação da prova, no que respeita ao depoimento de facto do R. (falta gravação de parte desse depoimento).
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Conhecendo a apelação a Relação julgou-a improcedente, quer quanto à matéria de facto, que reapreciou e decidiu não alterar, apesar de pequenas deficiências na gravação do depoimento do R., que se tiveram por irrelevantes e insusceptíveis de influir na decisão, quer quanto ao direito.
Confirmou, pois, a sentença recorrida.
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É deste acórdão que novamente inconformado, volta a recorrer o R., agora de revista e para este S.T.J..
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Conclusões
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Apresentadas tempestivas alegações, formulou o recorrente as seguintes conclusões:
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Conclusões da Revista
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II - Conclusões
De tudo o que acima foi exposto, conclui-se que:
a) Que o presente recurso foi interposto do acórdão proferido pela Relação de Lisboa, que, considerou parcialmente improcedente o recurso apresentado pelo apelante, ora recorrente, confirmando a sentença recorrida, designadamente, em função da interpretação conferida à nulidade processual decorrente da imperceptibilidade da gravação de um depoimento prestado numa sessão de audiência de julgamento, bem como, da violação do princípio da continuidade e concentração da audiência e a sua susceptibilidade de influir no exame e decisão da causa;
b) Uma das questões em causa, é a existência de uma falha técnica existente na gravação de uma das sessões de julgamento, e a susceptibilidade desta influir no exame e na decisão da causa, tendo em consideração que, entre as sessões de audiências de discussão de julgamento decorreram 15 meses;
c) Sabemos que, não compete às partes num processo, que controlem a gravação efectiva dos depoimentos prestados;
d) O que o aqui recorrente sustenta, que, a omissão parcial do seu depoimento de parte, que é apontado pela sentença da l.ª Instância como principal enformador da decisão proferida, é grave, e certamente é susceptível de influir no exame e na decisão da causa;
e) Na modesta opinião do aqui recorrente, não é necessário que este prove que a omissão da gravação foi a causa da decisão, mas apenas que esta é susceptível de influir na decisão, pois esta interpretação é aquela que se extrai da lei;
f) A ausência de som, isto é, do depoimento do réu nos autos, corresponde aproximadamente a 15 minutos de gravação, num depoimento, que no máximo durou cerca de 45 minutos;
g) Esta questão é tanto ou mais importante, pelo facto de o Tribunal de l.ª Instância ter fundamentado a sua decisão, proferida em 4 de Janeiro de 2008, ou seja, 6 meses após a última sessão, pela confissão obtida pelo depoimento de parte;
h) Muito embora esteja em causa uma nulidade processual, que à partida, não integra a nulidade da sentença, certo é que, a existir, dela deriva nulidade da própria sentença, e do acórdão recorrido, nos termos do n.0 2 do art.° 201° do CPC, visto que a sentença, e o acórdão, dependem em absoluto dos factos que forem considerados provados, não só pela 1ª instância, mas também, de forma definitiva, pela Relação, portanto com base em elementos de prova que esta esteja em condições de analisar quando seja caso disso;
i) Sucede que, mesmo que se admitisse que o depoimento de parte sempre poderia ser livremente apreciado pelo julgador, a falha da gravação, no contexto das declarações do réu, e, atenta a ponderação dada às mesmas na decisão da matéria de facto, não pode deixar-se de se concluir pela susceptibilidade de a anomalia verificada na gravação ter influência na decisão do pleito;
j) Sem necessidade de mais considerações/a Relação, decidindo como decidiu, violou a lei substantiva, designadamente, pela errada aplicação e interpretação da lei de processo, circunstancia que vicia o douto acórdão, em termos que acarretam a sua nulidade;
k) Outra questão, que deverá ser conjugada com a anterior, é a manifesta violação do princípio da continuidade e concentração da audiência;
1) Se é verdade que esta irregularidade não foi suscitada durante o processo, também não deixa de o ser, que, após a verificação da falha técnica na gravação, em conjugação com a fundamentação da sentença, se verifica que esta violação foi determinante para a errada apreciação da lide;
m) Sem dúvida que a irregularidade cometida, influiu no exame e na decisão da causa, devendo nessa medida ser suprimida, pela repetição da produção da prova;
n) Relativamente aos factos dados como provados, confirmados pelo Acórdão recorrido, não pode o Tribunal a quo, escudar-se no princípio da livre apreciação da prova para justificar a formação de uma convicção, que contraria a factualidade vertida em sede de prova;
o) Cuja desconformidade é notória, porquanto a motivação apresentada resulta de uma convicção sustentada em contradição com os depoimentos prestados;
p) A livre apreciação da prova, não se confunde de modo algum com a apreciação arbitrária da prova, nem com a mera impressão criada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova, como é o caso dos presentes autos; .
q) Pelo exposto, existe na opinião do recorrente, um erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais, pela ofensa do regime legal do ónus da prova, devendo nessa medida o Acórdão recorrido, ser corrigido, por outro, que respeite o regime legal em sede de ónus da prova;
r) Por último, o Acórdão recorrido, viola ostensivamente o regime instituído nas alíneas a) e b) do n° 2 do artigo 456° do CPC, o qual, têm de ser interpretado em consonância com a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, princípios basilares de um estado de direito;
s) O recorrente nos autos, não litigou com má-fé, pelo que deve ser absolvido totalmente desta condenação;
t) Termos em que, sem necessidade de mais considerações, a Relação, decidindo como decidiu, violou a lei substantiva, designadamente, pela errada interpretação e aplicação da lei do processo, bem como, errou relativamente à interpretação da prova junta aos autos, ofendendo dessa forma, as regras relativas à força probatória
Nestes termos, deverá o presente recurso proceder, por provado e, em consequência ser anulado o acórdão proferido, sendo ordenada a sua substituição por outro que obvie aos vícios apontados, assim fazendo V. Ex.a, Venerandos Juízes Conselheiros, a costumada JUSTIÇA
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Não foram oferecidas contra-alegações.
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OS FACTOS
Foram os seguintes os factos fixados pela Relação (a que não alterou a matéria de facto tido por provada na 1ª instância).
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Foram dados como provados na sentença recorrida os seguintes factos:
1. A autora dedica-se à actividade de importação e exportação de frutas e comércio de produtos hortícolas (ai. A. da matéria de facto assente);
2. O réu liquidou a importância de € 1.003,04 por referência à factura 58717 emitida pela autora em 04.11.1998 (al. B. da matéria de facto assente);
3. No exercício da sua actividade, a autora forneceu ao réu os produtos descriminados nas facturas:
a. 58717, com data de emissão de 04.11.1998 e vencimento na mesma data, no valor de 250.740$00 (€ 1.250,69);
b. 58920, com data de emissão de 09.11.1998 e vencimento na mesma data, no valor de 584.944$00 (€ 2.890,74);
c. 59063, com data de emissão de 12.11.1998 e vencimento na mesma data, no valor de 200.655$00 (€ 1.086);
d. 59220, com data de emissão de 16.11.1998 e vencimento na mesma data, no valor de 238.455$00 (€ 1.189,45);59926, com data de emissão de 18.11.1998 e vencimento na mesma data, no valor de 509.276$00 (€ 2.540,26);
e. 59488, com data de emissão de 23.11.1998 e vencimento na mesma data, no valor de 210.210$00 (€ 1.048,52);
f. 59804, com data de emissão de 01.12.1998 e vencimento na mesma data, no valor de 492.188$00 (€ 2.455,02);
g. 60100, com data de emissão de 08.12.1998 e vencimento na mesma data, no valor de 427.035$00 (€ 2.130,04);60348, com data de emissão de 14.12.1998 e vencimento na mesma data, no valor de 108.990$00 (€ 543,64) - (art° 1º da base instrutória);
4. Produtos esses que foram recebidos pelo réu (art° 2o da base instrutória);
5. As compras e vendas a que se referem as facturas dos autos foram negociadas por António Manuel Soares Campos em nome do réu;

Fundamentação
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Como se vê das conclusões, são quatro as questões suscitadas na revista.
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1- Saber se a imperceptibilidade parcial da gravação, no que concerne ao depoimento de parte do R. deve ser tida como capaz de influir na decisão (de facto), e, como tal se deve levar à anulação do julgamento para repetição desse depoimento;
2- Violação do princípio da continuidade da audiência.
Saber se terá influído na decisão, sobretudo se conjugada com a deficiente gravação do depoimento da parte do R.;
3- Erro na apreciação da prova levada a cabo em sede de apelação.
4- Condenação do R. como litigante de má-fé.
Não se justificaria, segundo o recorrente.
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1ª e 2ª Questão
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Como resulta dos autos, o R., nas alegações oferecidas na apelação, refere que, ao proceder à audição das cassetes gravadas em ordem a impugnar a matéria de facto, verificou que a 2ª cassete que corresponde ao início da primeira audiência de 12/10/2007, onde se encontra o registo do depoimento de parte do R. se encontra deficientemente gravada, sendo por diversas ocasiões, imperceptível a sua audição, além de se verificar em dois momentos, a omissão (falha) do registo do aludido depoimento do R..
Tal imperfeição da gravação tem manifesto relevo para a decisão da causa, constituindo nulidade processual – Art. 201º n.º 1 do C.P.C. – que o recorrente pode invocar perante a Relação, por estar em tempo – Art. 205º n.º 3 do C.P.C. – pelo que deve ser anulada a sentença.
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Em sede de apelação, a Relação apreciou tal questão.
Ouvidas as cassetes gravadas verificou o tribunal recorrido “que apenas na gravação da cassete n.º 1, da 2ª sessão da audiência de discussão e julgamento levada a efeito no dia 12 de Outubro de 2007, aquando da prestação do depoimento de parte do réu – e apenas neste – ocorreram dois pequenos hiatos a que correspondem falhas na audição”. Conclui, a seguir, o acórdão recorrido que “a pequena duração da falha de gravação, no contexto da globalidade sequencial das declarações do réu – declarações essas perfeitamente compreensíveis – e, atento a ponderação dada às mesmas na decisão da matéria de facto, não pode deixar de se concluir pela irrelevância da invocada anomalia verificada na gravação” “O depoimento do réu apenas relevou – e bem – quanto à circunstância deste ter admitido que CC era o seu representante no negócio de frutas, o que sucedia nas datas constantes nas facturas em causa nos autos”.
“E, essas declarações consideradas pelo tribunal a quo como confessórias, e sobre as quais foi observado o disposto no artigo 563º n.º 1do CPC, mostram-se bem audíveis na gravação que foi efectuada”.
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Assim, pelas aludidas razões, concluiu-se no acórdão recorrido, que a diminuta anomalia da gravação da prova não tem relevância para a decisão da causa, já que não impede a reapreciação da prova produzida.
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De facto, apesar da invocação da dita anomalia, o R. impugnou as respostas dadas aos quesitos, com toda a amplitude e sem restrição, fundamentando nos depoimentos das testemunhas a razão da sua divergência com a decisão de facto, já que, na sua opinião, tais depoimentos não suportariam as respostas dadas, sem que tenha sido apontado qualquer anomalia da gravação em relação a tais depoimentos.
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E a Relação reapreciou criticamente a matéria de facto impugnada, como havia sido requerido na apelação, tendo em conta a prova produzida, registada nas cassetes, que ouviu, concluindo não haver razão para alterar a decisão de facto que, por isso, manteve integralmente.
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Também na apelação o recorrente invocou a nulidade decorrente de o tribunal não ter dado cumprimento ao princípio da continuidade e concentração da audiência, violando assim o disposto nos Art.ºs 656º e 658º do C.P.C..
Alegou, para o efeito, que a 1ª sessão do julgamento ocorreu no dia 4/7/2006, cuja continuação foi agendada para o dia 19/1/2007, que igualmente foi adiada para o dia 16/6/2007, mas porque esse dia caía num sábado, foi novamente adiada para o dia 15/6/2007 (melhor se diria antecipada), acabando por ser novamente adiada para o dia 12/10/2007 (data em que se efectuou).
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Sobre esta questão, entendeu a Relação, e bem, a nosso ver, que a considerar-se tal situação como integrando uma nulidade, tratar-se-ia sempre de uma nulidade secundária, pelo que, tendo o R. sido notificado dos adiamentos referidos, deveria ter arguido a nulidade no prazo do Art. 205º do C.P.C..
Não o tendo feito encontra-se sanada a nulidade.
Acrescenta, correctamente, que a falta de continuidade da audiência, no caso, não é susceptível de influir no exame ou na decisão da causa, tanto mais que toda a prova se encontra gravada.
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Insiste o recorrente, na revista, que a mencionada anomalia na gravação é susceptível de influir na decisão da causa, e, como tal, gera nulidade, devendo repetir-se a prova.
Depois, procura enfatizar tal deficiência, conjugando-a com a falta de continuidade da audiência. Essa descontinuidade teria sempre de ser tida como nulidade por ser susceptível de influir na decisão, dado existirem falhas na gravação, uma vez que a decisão assenta a sua base no depoimento de parte do réu.
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Vejamos.
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Começando por esta última questão dir-se-á, desde logo, que, no caso concreto, será muito duvidoso falar-se em violação da regra da continuidade da audiência prevista no Art. 656 n.º 2 do C.P.C..
É que não pode escamotear-se que a 1ª suspensão (e não adiamento) do julgamento iniciado em 4/7/2006, ficou a dever-se à ampliação da base instrutória que aí teve lugar e à necessidade de permitir às partes o oferecimento de prova complementar, como determina o Art.º 650 n.ºs 3 e 4 do C.P.C., sendo certo que foi requerida a junção de documentos, alguns dos quais a requisitar a outras entidades, de modo que os últimos documentos, foram juntos aos autos em 5/1/2007.
Deste modo, foi adequada e justificada a data de 19/1/2007 para a continuação do julgamento (Não se encontra documentado nos autos que essa continuação tenha sido agendada para 25/9/2006 e depois adiada para 19/1/2007, como refere o recorrente).
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Os dois adiamentos que se seguiram em 19/1/2007 e 15/6/2007, resultaram do impedimento do juiz de círculo na continuação de outros julgamentos envolvendo RR. presos, que, como se sabe, têm carácter de urgência, preferindo a quaisquer outros.
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Portanto, a suspensão após a 1ª audiência parece caber na excepção expressamente prevista no Art.º 656º n.º 2, e os aditamentos seguintes, mostram-se justificados, verificando-se situação semelhante à prevista no Art.º 651º n.º 1 a) e n.º 3, também excepcionada no Art. 656º n.º 2.
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Por outro lado, vê-se dos autos que o depoimento de parte do R. (único em relação ao qual existem deficiências na gravação) foi colhido na audiência de 12/10/2007, sendo certo que a decisão de facto foi proferida em 25/10/2007, 13 dias depois, pelo que o dito depoimento de parte estaria ainda bem presente na memória do julgador (e toda a restante prova estava bem gravada ou era documental), não se verificando os inconvenientes que o recorrente quer sugerir quando enfatiza os mais de 15 meses decorridos entre a 1ª audiência e a decisão de facto.
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De qualquer modo a violação da regra da continuidade da audiência não parece estar sancionada processualmente. Quer dizer, não gerará nulidade (cof. Lebre de Freitas – C.P.C. anotado; Rodrigues Bastos – Notas ao C.P.C.; Ac. S.T.J. de 30/1/2001 – Proc. N.º 4050/00 – 6º), o que bem se compreende, uma vez que o seu cumprimento exacto e preciso, dificilmente pode ser efectivado, sobretudo nos casos de julgamentos demorados e complexos, sob pena do colapso total do demais serviço agendado.
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Seja como for, se se entender que a descontinuidade da audiência de julgamento constitui o vício da nulidade, esta não pode qualificar-se, senão, como nulidade secundária (Art.º 201º do C.P.C.) e, a ser assim, o referido vício só produz nulidade quando a lei o declare ou a irregularidade possa influir no exame ou na decisão da causa o que não é, seguramente, o caso dos autos.
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Em qualquer caso, sempre teria de ser arguida pelo interessado, no caso pelo recorrente, no prazo legal, o que não aconteceu, daí, que a tratar-se de nulidade, há muito que estaria sanada.
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Para além do que já se referiu, convém notar que não pode estabelecer-se qualquer conexão entre a descontinuidade concreta da audiência e a anomalia da gravação e não só pela proximidade entre o depoimento do R. e a decisão de facto, como já se salientou.
Acresce, na verdade, que a convicção do julgador de 1ª instância que determinou a decisão de facto, que a Relação confirmou após reapreciação da prova, não assenta exclusivamente no depoimento de parte, como se vê claramente da sua fundamentação.
As respostas aos quesitos 3º e 4º é que assentaram nesse depoimento, mas apenas na parte dele que foi tida por confessória, e, essa parte, tal como determina a lei processual, foi transcrita na acta e, de resto, como se afirma no Ac. Recorrido, no que a ela respeita, o depoimento é perfeitamente perceptível.
Logo, todo o material provatório que esteve na base da decisão de facto, encontra-se registado nos autos sem qualquer anomalia, pelo que a alegada descontinuidade da audiência, quando muito, integraria mera irregularidade, sem influência na decisão ou exame da causa.
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E, quanto à anomalia da gravação, é óbvio que o S.T.J. nunca poderia aqui sindicá-la, depois de a Relação a ter tido por irrelevante para a reapreciação da prova produzida nos autos.
Como é sabido, e não necessita de maiores desenvolvimentos, o S.T.J. não aprecia matéria de facto a não ser nos caos excepcionais previstos no n.º 2 do Art.º 722º do C.P.C., situação que não ocorre no caso dos autos.
Ora, saber se a aludida anomalia era ou não relevante para a decisão de facto, passaria, naturalmente, pela sindicância de toda a prova o que, como se disse, está vedado ao S.T.J..
De modo que, assim como o S.T.J. não pode sindicar o eventual erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, também não pode pôr em causa a valoração que a Relação fez de cada um dos meios de prova de que se serviu para proceder à reapreciação que lhe foi solicitada e lei lhe consente a menos que se tratasse de prova vinculada que o tribunal recorrido tivesse desrespeitado.
Se a Relação, considerando o contexto de todo o depoimento do réu, o teve por perfeitamente compreensível, apesar da pequena folha da gravação, e por isso, considerou aquela falha irrelevante para a decisão de facto, não pode aqui pôr-se em causa tal apreciação, já que estamos no domínio de pura matéria de facto.
Só assim não seria se, por ex., a Relação tivesse decidido que a deficiência da gravação, abstractamente considerada, não constituiria qualquer tipo de nulidade, sendo sempre irrelevante para a decisão de facto.
Nada disso se passa no caso concreto.
O tribunal recorrido reconheceu que tal anomalia podia constituir nulidade secundária, só que, para que ocorresse a nulidade, seria necessário que, no caso concreto, essa anomalia fosse tal, que comprometesse a apreciação da prova impugnada e, por isso pudesse influir na decisão de facto a fixar.
Foi exactamente a essa indagação concreta que procedeu o tribunal recorrido, concluindo que, no caso tal não acontecia, pelo que a falha se traduz em mera irregularidade incapaz de influir na decisão, sendo, como tal, irrelevante.
Seguiu-se o critério legal constante do Art. 201º do C.P.C. e do Art.º do DL 39/95, já que este último dispositivo apenas exige a repetição da gravação quando se verifique a sua omissão parcial ou imperceptibilidade “sempre que for essencial ao apuramento da verdade”.
No caso, decidiu-se não se tratar de omissão grave ou importante, por não comprometer a compreensão do depoimento considerado na sua globalidade, o que se fez após a análise do depoimento gravado.
Tal juízo não pode ser aqui sindicado, como se referiu.
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Acresce que, no caso, do depoimento do R., apenas foi aproveitado a parte dele que constitui confissão e, quanto a essa parte, não ocorreu qualquer omissão de gravação, além de que foi registada na acta nos termos do Art.º 563º n.º 1 do C.P.C., sem qualquer reclamação ou reparo do recorrente.
Consequentemente, se a declaração confessória do réu é perfeitamente perceptível, não sofrendo essa parte da gravação de qualquer anomalia (nem tal alega o recorrente) não seria o restante teor do depoimento que podia, de algum modo, prejudicar a força probatória plena que a lei atribui à confissão.
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Improcedem, poios, as duas primeiras questões suscitadas na revista.
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3ª Questão
Pretende o recorrente a correcção do acórdão recorrido quanto à matéria de facto por ter ocorrido erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais da causa, por ofensa do regime legal do ónus da prova, uma vez que, como resulta do depoimento das testemunhas, a A. não conseguiu provar o seu direito.
(cof. Conclusões n/ o/ p/ q/).
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Ora, disse-se já, o S.T.J. não pode conhecer de matéria de facto a não ser nos casos excepcionais a que se refere o n.º 2 do Art. 722º de C.P.C..
Por isso mesmo, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, ou, como se diz no n.º 2 do Art. 729º, a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto a matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional do n.º 2 do Art.º 722, situação que não ocorre no caso.
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Provou-se que o A. forneceu ao R. (ao representante deste no negócio de frutas, o que é o mesmo) as mercadorias constantes das facturas juntas aos autos, que o R. não pagou na totalidade.
Tal matéria não pode ser aqui alterada, pelo que, sem necessidade de maiores considerações, improcedem as referidas conclusões.
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4ª Questão
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Insurge-se finalmente o R. por ter sido condenado em multa como litigante de ná-fé.
Se é certo que o R. tem todo o direito de se defender com plena de liberdade, já não tem direito de alegar factualidade contraditória, como fez logo na contestação e continuou a fazer ao longo do processo, quando tal factualidade, por pessoal, não podia ser dele desconhecida, pese embora a sua adolescência …
Na verdade, o direito de defesa não pode passar por se alegar o pagamento da dívida accionada, ao mesmo tempo que se nega ter recebido a mercadoria, e portanto, se nega a existência da dívida (a mesma que alegadamente teria sido liquidada …) nem por reconhecer o Sr. António Campos como seu representante à data dos factos (cof. Artigo 20 da contestação) e procurar demonstrar o contrário ao longo do processo, como resulta da audiência do 4/7/2006 (cof. Também requerimento de fls. 106) o que até veio a originar a ampliação da matéria de facto.
O R. litigou, pois, com manifesta má-fé ao longo de todo o processado, pelo que deve, por isso, ser sancionado.
Aliás, nesta parte, por se concordar inteiramente com o acórdão recorrido, para ele se remete o recorrente.
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Improcedem todas as conclusões da revista.
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DECISÃO
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Termos em que acordam
Neste S.T.J. em negar revista, confirmando-se o
acórdão recorrido.
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Custas pelo recorrente.
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Supremo Tribunal de Justiça
Lisboa, 12 de Janeiro de 2010.

Moreira Alves (Relator)
Alves Velho
Moreira Camilo