Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B4016
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA GIRÃO
Descritores: DANOS PATRIMONIAIS
INDEMNIZAÇÃO DE PERDAS E DANOS
Nº do Documento: SJ200302270040162
Data do Acordão: 02/27/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 13352/01
Data: 05/07/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Na presente acção A e mulher B pedem a condenação da C , a pagar à autora a quantia de 1.090.000$00 e ao autor a quantia de 3.855.700$00, acrescida do débito que vier a liquidar-se em execução de sentença pela paralisação e recolha do automóvel de passageiros BG-... , propriedade do autor, e que, no dia 16/9/1997, foi embatido pelo tractor agrícola ...-GQ, segurado na ré, com culpa exclusiva do condutor deste veículo, por ter desrespeitado um sinal de STOP.
Contestando, a ré aceitou a culpa, mas impugnou os danos, designadamente quanto ao valor do veículo BG, que ficou irrecuperável, sendo a pretendida reconstituição natural excessivamente onerosa para si.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença que condenou a ré a pagar à autora a quantia de 462.000$00 e ao autor a quantia de 525.290$00, bem como o montante que, a título de posterior privação do uso do veículo até completo ressarcimento dos danos dos autores, venha a ser liquidado em execução de sentença, acrescendo a cada uma dessas quantias juros de mora, às taxas legais, desde a citação até efectivo pagamento.
Desta sentença apelaram ambas as partes, a ré subordinadamente, e a Relação do Porto, concedendo parcial provimento ao recurso principal, alterou a condenação a favor do autor para o montante de 425.290$00, relegando para execução de sentença a indemnização pela perda do veículo por forma a que corresponda «àquilo que o lesado precisa de despender para obter um veículo da igualha do sinistrado», mantendo-se no mais a decisão recorrida.
A ré seguradora pede agora revista deste acórdão, formulando as seguintes conclusões:
1. Porque, consoante se alcança do pedido formulado, os recorridos pretendiam, no tocante aos danos provocados no automóvel, a condenação da recorrente no pagamento da reparação do seu veículo;
2. Porque, caso concluísse pela razoabilidade do valor da reparação, o tribunal apenas se podia ater a esse pedido, por corresponder ao que, em primeira mão, a lei manda atender - artigo 562 do Código Civil;
3. Mas porque, em consonância com o alegado pela aqui recorrente, se deu como provado nos autos que o valor venal do veículo dos autores não ultrapassava a quantia de 100.000$00;
4. Mostrando-se, por isso, excessivamente onerosa a reparação e impondo-se, por conseguinte, que a condenação da ré se contenha nos ditos 100.000$00;
5. Porque foi esse, e apenas esse, o valor que se apurou relativo aos prejuízos sofridos pelos recorridos com a perda do veículo, já que nada mais foi alegado a esse respeito;
6. Não havia, portanto, que relegar para liquidação em execução de sentença um prejuízo que se mostra já apurado e bem delimitado;
7. Porque a recorrente sempre reconheceu perante os recorridos estar constituída no dever de indemnizar pelo equivalente ao valor venal do veículo;
8. Porque, porém, tal pagamento não pôde ter lugar uma vez que os autores recusaram-no, pugnando pelo conserto da viatura;
9. Não é devida qualquer indemnização a título de privação de uso do veículo;
10. Ao decidir de forma diversa o douto acórdão em crise violou, por erro de aplicação e interpretação o disposto nos artigos 562, 566 e 813 do Código Civil e 661 do Código de Processo Civil.

Contra-alegou apenas o autor Joaquim, pugnando pela confirmação do julgado e pedindo a condenação da recorrente, por litigância de má fé, em multa e indemnização não inferior a 1.500 euros.
Corridos os vistos, cumpre decidir.


Estando o objecto do recurso circunscrito à matéria dos danos atinentes ao veículo sinistrado, da factualidade apurada interessam os seguintes factos:

Em consequência do embate o BG-... , modelo 2000, ficou danificado, quer na carroçaria, quer na mecânica;

O BG-... já tinha cerca de 29 anos;

A reparação do BG foi orçamentada em 2.619.910$00;

Em 16/9/97 O BG-... estava a funcionar como se novo fosse, uma vez que o autor lhe prestava há longos anos constante assistência de forma a mantê-lo em boas condições de funcionamento, conservação e pintura;

No que a vista alcançava o BG não apresentava sinais de ferrugem ou qualquer indício de degeneração e era considerado pela marca BMW como um veículo de gama média/alta;

O autor utilizava o BG nas suas actividades profissionais de deslocação e nas de sua família nos fins-de-semana;

O autor está sem o BG desde 24/4/98;

Em consequência do choque o chassis do BG partiu pelo meio;

Com a idade que tinha o veículo dos autores tinha como cotação comercial máxima a quantia de 100.000$00, de nada valendo os seus salvados;
10º
Em caso de recuperação do BG ele estaria em condições de circular de acordo com as regras de segurança rodoviária.

São três as questões a resolver na presente revista:
1ª--INDEMNIZAÇÃO PELOS DANOS DO VEÍCULO SINISTRADO;
2ª--INDEMNIZAÇÃO PELA PRIVAÇÃO DO USO DO VEÍCULO;
3ª--LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ PELA RECORRENTE.

Apreciemos cada uma delas.
1ª QUESTÃO

É sabido que o princípio geral da obrigação de indemnizar, plasmado no artigo 562 do Código Civil, é o da reposição natural.

Excepcionalmente, nos termos dos nºs 1 e 2 do artigo 566 do mesmo Código, quando a reconstituição natural for impossível, ou não repare integralmente os danos, ou for excessivamente onerosa para o devedor, deve a indemnização ser fixada em dinheiro, tendo como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos.

No caso que nos ocupa, o autor-recorrido, proprietário do automóvel sinistrado (BG-...), formulou o pedido relativo aos danos por este sofridos de acordo com o princípio da restauração natural.
No entanto, tendo em conta os valores em causa - 2.619.910$00 orçamentados para a reparação do veículo e 100.000$00 como cotação comercial máxima que ele tinha antes do acidente --, a primeira instância considerou excessivamente onerosa a restauração natural e fixou a indemnização em 100.000$00, correspondente ao valor venal do veículo.
A Relação, entendendo ser praticamente impossível ao autor adquirir, por 100.000$00, um veículo em condições idênticas ao BG, alterou, nesta parte, a sentença, no sentido de a indemnização, a liquidar em posterior execução, corresponder ao que o autor terá de despender para adquirir um veículo «da igualha do sinistrado».

A recorrente seguradora insurge-se contra esta decisão, argumentando que, não podendo ser satisfeito, por excessivamente oneroso, o pedido da restauração natural e não tendo sido apurados outros prejuízos para além do valor comercial do veículo, a indemnização tem que se conter neste valor (100.000$00), como decidiu a 1ª instância.

É a atitude frequente das seguradoras pretenderem pagar apenas o valor venal de um veículo usado quando a sua reparação se mostre excessivamente onerosa.

Mas sem o acolhimento da jurisprudência, designadamente a deste Alto Tribunal.

Como certeiramente se lê no acórdão do STJ, de 7/7/1999, CJSTJ, Ano VII, Tomo III, página 17, um veículo muito usado fica desvalorizado e vale pouco dinheiro, mas, mesmo assim, pode satisfazer as necessidades do dono, enquanto a quantia, muitas vezes irrisória, equivalente ao seu valor comercial pode não conduzir à satisfação dessa mesmas necessidades, o que é o mesmo que dizer que pode não reconstituir a situação que o lesado teria se não fossem os danos.

Daí que se venha entendendo que, para efeitos de considerar se a reconstituição natural traduzida na reparação do veículo é ou não excessivamente onerosa para o devedor, nos termos da parte final do nº 1 do artigo 566 do Código Civil, não basta ter em conta apenas o valor venal do veículo, mas, ainda e cumulativamente, o valor que tem o uso que o seu proprietário extrai dele e que se computa pelo facto de o proprietário ter à sua disposição um automóvel que usa, de que dispõe, de que disfruta e que a mera consideração do valor venal «tout court» sonega, elimina ou omite. (Cfr. ac. do STJ, de 16/11/2000, CJSTJ, ano VIII, Tomo III, página 125).

Ora, assentes estes princípios e considerada a matéria de facto atinente, supra transcrita, não nos parece merecedora de censura a decisão recorrida.

As instâncias concluíram pela excessiva onerosidade da reparação do veículo em causa, pelo que, não constituindo objecto do presente recurso de revista, esta questão torna-se definitivamente indiscutível.

Assim, há que - concretizando o princípio estabelecido no nº 2 do artigo 566 do Código Civil -- fixar uma indemnização em dinheiro que permita ao lesado autor adquirir um veículo de características idênticas ao sinistrado e que lhe proporcione as mesmas condições de uso de que, com ele, desfrutava apesar da sua longa idade (29 anos).

Contrariamente ao pretendido pela recorrente e no que concerne à indemnização em análise, o único elemento valorativo que se apurou não foi só o valor venal (100.000$00) do veículo.
Provou-se ainda que, apesar de ser um veículo com 29 anos, graças aos cuidados do seu proprietário, «funcionava como se novo fosse», «não apresentava sinais de ferrugem ou qualquer indício de degeneração e era considerado pela marca BMW como um veículo de gama média/alta», sendo certo que o autor o utilizava «nas sua actividades profissionais de deslocação e nas da sua família nos fins de semana».

Ora, todas estas (alegadas e comprovadas) características e utilizações do veículo têm que ser devidamente valoradas e cumuladas com o valor venal do veículo por forma a que se fixe uma indemnização a favor do autor que lhe permita, no vasto mercado de automóveis usados, adquirir um da marca, tipo, idade e estado de conservação idêntico ao sinistrado.

E não seria " manifestamente " com a indemnização apenas de 100.000$00 que o autor conseguiria comprar um automóvel com as características e as potencialidades de uso apontadas.
2ª QUESTÃO

Reage ainda a recorrente contra a indemnização em que foi condenada pela privação do uso do veículo, pois que, apesar de sempre ter reconhecido perante os recorridos indemnizá-los pelo valor venal do veículo, estes recusaram tal pagamento, pugnando pelo conserto da viatura.
Não colhe, como é evidente, este argumento.

Cabe ao lesante (ou à sua seguradora, como é o caso) reparar o mais depressa possível os danos por forma a que estes não se agravem.

No caso de veículo sinistrado incumbe-lhe, designadamente, mandar proceder às reparações necessárias e facultar ao lesado um veículo de substituição ou indemnizá-lo pelas despesas que teve que suportar em consequência da privação do veículo.
A recorrente nada disto fez e nem sequer há qualquer prova de ter oferecido ao lesado ou de ter depositado a favor dele os 100.000$00 que considera indemnização justa pelos danos do veículo sinistrado.
Mas mesmo que tivesse havido essa oferta ou esse depósito, face ao decidido é evidente que assistiam boas razões aos recorridos para não aceitarem os propostos 100.000$00.
3ª QUESTÃO

Na sua contra-alegação defende o recorrido a condenação da recorrente em multa e indemnização a seu favor no montante de 1.500 euros, por litigância de má fé nos termos das alíneas a) e d) do artigo 456 do Código de Processo Civil, uma vez que deduz oposição cuja falta de fundamento não devia, nem podia ignorar.
Não procede, porém, esta sua pretensão, sob pena de se coarctar o legítimo direito de as partes discutirem e interpretarem livremente os factos e o regime jurídico que os enquadram, por mais minoritárias (em termos jurisprudenciais) ou pouco consistentes que se apresentem as teses defendidas.

DECISÃO
Pelo exposto nega-se a revista, com custas pela recorrente.

Lisboa, 27 de Fevereiro de 2003
Ferreira Girão
Luís Fonseca
Eduardo Baptista