Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A1825
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: CARDOSO DE ALBUQUERQUE
Descritores: INSOLVÊNCIA
COMPRA E VENDA
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
FORMALIDADES ESSENCIAIS
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Nº do Documento: SJ200809300018256
Data do Acordão: 09/30/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - As novas disposições da resolução em beneficio da massa insolvente do CIRE, constantes dos artºs 120º e ss são inaplicávies aos actos e contratos do insolvente celebrados anteriormente ao início da vigência deste diploma.
II - A forma de efectuar a resolução prevista no artº 123º vale tanto para aos negócios não formais, como formais, como é o caso por estarmos em presença de um contrato de compra e venda de imóveis, celebrado entre o impugnante e o insolvente, então necessariamente sujeito a escritura pública
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


No âmbito do processo de insolvência, que corre termos no Tribunal da Comarca de Portimão desde 30/03/2006 em que foi declarado insolvente AA, por sentença proferida em 21/04/2006 foi exercida pelo administrador da insolvência, contra BB, por carta registada com aviso de recepção (AR) datada de 2/10/2006 e recebida em 9/10/2006, a resolução em benefício da massa insolvente de contrato de compra e venda (em que foi vendedor o insolvente e adquirente o referido BB), celebrado em 23/6/2003 e que teve como objecto ½ de fracção autónoma designada por letra ... do prédio urbano registado sob o nº ... na Conservatória do Registo Predial de Lagoa, com base no artº 120º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/3 e depois alterado pelo Dec.Lei nº200/2004 de 18 de Agosto ( com entrada em vigor em 15 de Setembro desse ano) invocando simulação, sem pagamento de preço, com o objectivo de subtrair o descrito bem aos credores do insolvente.
Pelo mencionado adquirente foi deduzida impugnação da resolução, ao abrigo do artº 125º do CIRE.
No respectivo processo, que corre por apenso ao processo de insolvência, foram suscitadas pelo impugnante várias questões contrariadas pelo Administrador na sua contestação e em que igualmente deduziu reconvenção, considerada por aquele inadmissível e que mereceram decisão no despacho saneador certificado a fls. 270-286.
Sucintamente, foram as seguintes as questões invocadas e a solução dada pelo tribunal de 1ª instância:

– aplicabilidade do artº 123 do CIRE sobre a forma de resolução nele prevista apenas a actos não formais (o que impediria a resolução do contrato em causa): o tribunal considerou que o preceito indicado não distingue entre actos formais e não formais, tendo aplicação a todo o tipo de actos, pelo que seria admissível a resolução no caso;

– inaplicabilidade do regime do CIRE à resolução do contrato em causa, por ter sido celebrado na vigência do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF), aprovado pelo Decreto-Lei nº 132/93, de 23/4 (pelo que a resolução só podia incidir sobre contrato celebrado há menos de 2 anos ou 6 meses, conforme fosse gratuito ou oneroso, nos termos do artº 156º, nº 1, als. a) e c), do CPEREF, contados desde a celebração do contrato, em 23/6/2003, e até à data da abertura do processo conducente à falência, que no caso ocorreu em 30/3/2006, estando já transcorrido qualquer daqueles prazos): o tribunal entendeu que o CIRE se aplica aos contratos celebrados antes da sua entrada em vigor, sob pena de não se poder decretar a insolvência ao abrigo do CIRE sempre que o seu fundamento fossem factos ocorridos na vigência da lei antiga ou de as normas do CIRE sobre resolução de actos prejudiciais à massa insolvente só entrarem plenamente em vigor 4 anos após a sua vigência formal (por o artº 120º nº1 permitir a resolução de actos ocorridos nos 4 anos anteriores à data do início do processo de insolvência);

– a inaplicabilidade do regime do CIRE à resolução do contrato em causa, pelas razões já referidas, implicaria ainda que o prazo para exercer a resolução, contado do conhecimento do acto pelo administrador da insolvência, seria, não o de 6 meses do artº 123º, nº 1, do CIRE, mas o de 3 meses do artº 156º, nº 3, do CPEREF, já decorrido à data do início de funções do aqui administrador (em 26/4/2006), com a consequente caducidade do direito de resolução: o tribunal, ao considerar aplicável o CIRE (e o seu prazo de 6 meses), afasta a caducidade, por só terem decorrido pouco mais de 5 meses entre o início de funções do administrador (26/4/2006) e a recepção da carta de resolução (9/10/2006);

– existência de causa prejudicial, que consiste noutra acção de impugnação de resolução (apenso S), respeitante a outra fracção (letra E), que, juntamente com a de letra G aqui em causa, foram objecto de acordo de permuta de fracções entre insolvente e o aqui impugnante no âmbito da celebração de contratos-promessa (pelo que a semelhança entre os dois processos imporia decisão igual de ambos e determinaria a suspensão do presente processo, enquanto processo posterior): o tribunal entendeu que há similitude e paralelismo entre os dois processos, mas não dependência, por neles estarem em causa vendas posteriores à permuta de fracções autónomas entre si;

– inadmissibilidade da reconvenção deduzida pelo administrador da insolvência, em que este formula a impugnação pauliana do contrato em causa, para a eventualidade de procedência da impugnação da resolução desse mesmo contrato (por se tratar de acção especial, que não comporta reconvenção): o tribunal admitiu o pedido reconvencional, por considerar a acção em causa como processo comum, tramitado sob a forma de processo ordinário (atento o valor de 50.120,81 €), e o respectivo pedido emergir dos factos que servem de fundamento à defesa, ao abrigo do artº 274º, nos 1 e 2, al. a), do CPC.

Do despacho supra descrito foi interposto pelo impugnante recurso de apelação, mas alterado depois para agravo, tendo a Relação de Évora confirmado o mesmo.
De novo inconformado, o impugnante recorreu de revista, recurso como tal recebido, apesar da oposição do recorrido, rematando as alegações com as seguintes conclusões ( reproduzindo-se a respectiva ordem de numeração) :
“1ª Tal como se defendeu ( na 1ª questão) o disposto no artº 123º do CIRE não é aplicável ao caso “sub judice”, bem como tal instituto não tem aplicação para a resolução dos actos formais como a compra e venda de bens imóveis, sendo assim a notificação de fls 62/63 inexistente, nula ou inexistente ou ineficaz para reproduzir tal resultado quanto ao contrato de venda de bem imóvel o qual para a sua formação exige “formalidade ad substantiam” , não podendo ser destruído por via administrativa.
2ª – Considerando que o contrato de compra e venda foi celebrado em 22/03/2003 e que teve por base o contrato-promessa de compra e venda de 1/11/2002, é aplicável a lei vigente à data, ou seja o CPEREF e não o Dec. Lei nº 53/2004 de 18 de Março que entrou em vigor em 18 de Setembro.
3ª – Considerando o disposto no artº 156º do CPEREF – lei aplicável ao contrato celebrado - o negócio jurídico celebrado só poderia ser resolvido
a) No prazo de dois anos nos termos do disposto no artº 156º,nº1 aln a)
b) Considerando que o processo de insolvência deu entrada no tribunal em 30 de Março de 2006, o contrato celebrado em 23/06/2003 é assim inatingível pelos efeitos da insolvência decretada por sentença de 21/04/2006.
5ª - Tal como se defendeu no relatório, o novo diploma legal (CIRE) quanto aos contratos de compra e venda de bens imóveis não tem aplicação retroactiva, nem aliás o legislador consagrou qualquer regime transitório de aplicação de tal norma (artº 120º, nº1 do CIRE) a qual, a existir, salvaguardaria sempre os direitos adquiridos, pelo que se aplica ao caso o regime geral a que se refere o artº 12º nº1 do CCivil e não o novo diploma.
6ª -A interpretação que no tribunal “a quo” se fez de enquadrar a situação factual no disposto na parte final do nº2 do artº 12º do CCivil é ilegal na medida em que :
a) Não estamos em presença de qualquer relação jurídica de natureza duradoira subjacente à data da entrada em vigor do CIRE, pressuposto essencial de tal aplicação da norma;
b) Nenhuma relação jurídica do contrato de fls 64 dos autos se encontrava pendente à data da entrada em vigor do CIRE, sendo este o pressuposto legal da aplicação da aplicação de tal preceito conforme se verifica da decisão recorrida.
7ª – A interpretação que no tribunal da 1ª instância, bem como no tribunal “a quo” se fez do artº 120º nº1 do CIRE extraída pelo Mº Juiz na decisão recorrida ao fazer retroagir os efeitos do novo diploma a factos passados na vigência da Lei nº132/93 é para além de ilegal, inconstitucional porque violador de normas substantivas do artº 12º nº1 e 2 do CC, bem como do disposto no artº 2º quanto aos princípios da protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica que os rege e que implica um mínimo de certeza e segurança quer no seu direito, quer nas expectativas que lhe são proporcionadas pela lei vigente à data da celebração dos seus negócios jurídicos, bem como pelos artºs 16º, 17º, 18º e 62º da CRP
8ª O entendimento legal extraído da decisão recorrida de fazer retroagir os efeitos do artº 120º, nº1 do CIRE ao contrato celebrado entre o recorrente e o agora insolvente, ofende de modo ostensivamente inaceitável e intolerável, claramente o princípio da segurança jurídica e da confiança dos cidadãos e da comunidade que hão de poder depositar na ordem jurídica que os rege no tempo em que celebraram os contratos em face do disposto no artº 2º da CRP
9ª A aplicação retroactiva da nova lei (CIRE) ao contrato celebrado em 23/06/2003 produz assim uma alteração jurídica anteriormente constituída, inadmissível, intolerável, arbitrária e demasiado onerosa para a qual o recorrente ou a comunidade não podiam contar tanto mais que quer a doutrina, quer a jurisprudência citada, nomeadamente dos Tribunais Superiores, sustentam ser ilegal tal interpretação retroactiva da lei e que foi seguida na decisão recorrida.

10ª Estão assim inteiramente demonstrados os pressupostos legais, objectivos e subjectivos que têm feito o Tribunal Constitucional considerar que em casos como o dos presentes autos:
" –Este Tribunal, na esteira de jurisprudência já perfilhada pela Comissão Constitucional, vem entendendo que o princípio do Estado de direito democrático (proclamado no preâmbulo da Constituição e, após a revisão constitucional de 1982, consagrado no seu artigo 2º) postula ‘uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas’, razão pela qual ‘a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela lei básica» (cf. o Acórdão nº 303/90, in “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 17º V., pág.65 e Diário da República, 1ª série, de 26 de Dezembro de 1990)."
11ª
A) Quanto à 3ª questão apresentada, tal como ali se referiu, entende-se que foi intenção do legislador estabelecer no Dec.-Lei 53/2004, de 18 de Março (ClRE), para a tramitação de quaisquer acções e/ou incidentes processuais, como no caso da impugnação a que se refere o artigo 125º do CIRE, a forma sumária e não ordinária;
B) Tal como se tentou demonstrar na 4ª questão , neste tipo de processo especial de insolvência, concretamente com o fundamento de resolução a ser praticado pelo administrador de insolvência nos termos do artº 123º, com fundamento no artigo 120º do CIRE que deu origem à impugnação judicial, não é possível a dedução do pedido reconvencional, não havendo no caso, qualquer conexão entre a causa de pedir do recorrente com os novos pedidos da reconvinte, nem se aplicam, no caso, as regras comuns do artº 274º e 501º do CPC;
12ª Tendo em vista o que consta da 6ª questão, o instituto jurídico da "acção pauliana", a que se refere o artº 127º do CIRE – norma processual de aplicação imediata –, não pode ser invocada pelo administrador da massa insolvente que não é credor. Nos termos do disposto no artº 127º, nº 1, do CIRE, tal acção está exclusivamente reservada aos credores quando o administrador não use o mecanismo legal da resolução dos actos – o que não foi o caso. Esta questão, para além de ilegal porque o Administrador não é credor que pudesse recorrer a tal figura jurídica, configura o abuso de direito a que se refere o artº 334º do CC;
13ª Tal como se demonstrou na 8ª questão, o incidente de impugnação que constitui o apenso "S", constitui questão prejudicial, vinculativa para o Mº Juiz, e que este não observou em claro desrespeito perante o disposto no nº 1 do artigo 279º do CPC.»

O recorrido contra alegou, levantando a questão da inadmissibilidade do recurso, por estarem em causa alegadas violações de normas processuais, de resto era isso que resultava do anterior recurso interposto como apelação, mas recebido como agravo, sendo que o saneador não pusera termo ao processo e não havia nenhuma excepção peremptória, pois estas são deduzidas na contestação.
E no seguimento, tomou posição sobre cada uma das questões suscitadas, remetendo no essencial para o acórdão que deveria ser integralmente confirmado
Por despacho do Exmo Desembargador Relator foi o recurso admitido como de revista, por terem sido apreciadas questões também de natureza substantiva e não apenas processual.
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Neste tribunal foi mandado seguir o recurso, sem prejuízo da apreciação da dita “questão prévia “ no presente acórdão e sem necessidade de audição prévia das partes por terem tomado já posição nas alegações e contra alegações e requerimentos avulsos apresentados na Relação.
Foram, também, corridos os vistos legais .
Cumpre decidir.
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Antes de mais, cumpre-nos apreciar a questão prévia da admissibilidade, espécie e âmbito do presente recurso.
Cremos que o recorrido não tem razão em dizer que o recurso era inadmissível por dever ser recebido como agravo, visto o despacho saneador no segmento objecto de recurso para a Relação apenas se ter debruçado sobre questões processuais e não ter apreciado quaisquer excepções peremptórias.
Sem dúvida que algumas das questões suscitadas no presente recurso tem natureza processual, como seja a da forma de processo adequada à impugnação judicial da resolução prevista no artº 125º do CIRE, a da inadmissibilidade da reconvenção e a questão prejudicial, mas outras versam indiscutivelmente questões sobre erros de aplicação de normas substantivas, como seja a da discutida aplicação retroactiva do CIRE quanto à resolução impugnada do contrato celebrado pelo insolvente implicando a caducidade e até a invalidade desse mecanismo de tutela dos credores no novo processo de insolvência. O que acontece simplesmente é que podendo constituir fundamento acessório da revista a violação de normas processuais, nos termos do artº 722º nº1 do CPC o seu conhecimento fica dependente do agravo ser autonomamente admissível, como agravo continuado nos termos previstos no artº 754,nº2 o que efectivamente não é o caso, por o saneador que apreciou e rejeitou a existência de causa prejudicial e considerou admissível a reconvenção ter sido objecto de decisão pela Relação, não se verificando nenhuma das situações excepcionais previstas naqueles nºs 2 e 3º do preceito.
Vale isto por dizer que o objecto da revista fica circunscrito à apreciação da validade e tempestividade da resolução em benefício da Massa Insolvente, objecto da acção impugnatòria enquanto excepção peremptória àquele direito, posto que no caso e face à estrutura peculiar da acção, ele apareça como fundamento desta.
O recorrido referiu também como fundamento da inadmissibilidade da recurso de revista que o acórdão resultara ele mesmo de um recurso de agravo.
Mas sem razão
Dispõe o artº 721ºnº1 do CPCivil que a revista cabe do acórdão da Relação que conheça o mérito da causa.
Isto quer dizer que independentemente de o precedente recurso ser de agravo ou recebido como agravo, é sempre admissível revista, desde que a decisão respeite ao mérito da causa.
Com efeito e ao contrário do que anteriormente à RPC 1995/96 previa, o nº1 do artº 721º deixou de condicionar a revista ao acórdão da Relação que tivesse incidido sobre um recurso de apelação ( v. neste sentido, entre outros, Lopes do Rego, Comentários ao CPC, 2ª I Vol., 616 e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 7ª ed., 241/242)
Basta assim que este tenha recaído sobre o mérito da causa, o que já vimos ser o caso.
Decide-se, pois julgar improcedente a questão prévia, importando, agora examinar as que caibam dentro dos limites da decisão de mérito proferida.( conclusões 1ª a 10ª)

Dão-se aqui reproduzidos os factos que sumariamente se expuseram no relatório, pois outros não são necessários para a apreciação do recurso.
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A questão fundamental suscitada nas conclusões em sede de revista respeita à aplicabilidade ou não das novas disposições da resolução em beneficio da massa insolvente do CIRE, constantes dos artºs 120º e ss para os actos e contratos do insolvente celebrados anteriormente ao início da vigência deste diploma e independentemente dessa aplicação, saber se o modo de a efectivar prevista no artº 123º vale tanto para aos negócios não formais, como formais, como é o caso por estarmos em presença de um contrato de compra e venda de imóveis, celebrado entre o impugnante e o insolvente, então necessariamente sujeito a escritura pública.
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Como dito no acórdão, tal distinção da resolução conforme incida sobre contratos formais ou não formais é especiosa e não tem o menor apoio no CIRE tão pouco na lei comum, na regulação de tal instituto .
Na verdade e como também explicado por Pedro Romano Martinez in Cessação do Contrato, 175 e Brandão Proença, A Resolução do Contrato no Direito Civil, 152 a resolução, nos termos gerais do artº 432º do CCivil, constitui uma declaração unilateral receptícia e segue o regime comum da liberdade de forma, ainda que o negócio jurídico que se pretenda dissolver ou extinguir seja formal ( no mesmo sentido vai o Ac.deste Supremo de 9/05/1995, CJ/S 1995, TºII, 66, o qual distingue a validade da declaração da respectiva eficácia, sendo que no caso de ser exigível escritura pública a que a outra parte não queira outorgar deva o declarante obter decisão judicial confirmatória do seu direito)
Só assim não acontecerá quando a lei exija conforme cada tipo de contrato requisitos próprios ou torne obrigatória o seu decretamento pelo tribunal.
Dispõe o apontado preceito do CIRE tão somente que “ a resolução pode ser efectuada por carta registada com aviso de recepção “ norma que não difere da que constava no CPEREF no artº 156º, nº3 e que prescrevia justamente esse formalismo mínimo, sem prejuízo do uso de meios mais solenes como a notificação judicial avulsa ou da própria instauração de acção judicial.
Esse entendimento é o que vêm expresso entre outros autores por João Labareda e Carvalho Fernandes no seu CIRE Anotado, Vol I, Reimp 443 e por Gravato Morais, Resolução em Benefício da Massa Insolvente, 151 -157 , mas sem que para tal importe a natureza formal ou não formal dos actos e contratos susceptíveis de tal resolução por parte do administrador a título condicional ou incondicional.
As instâncias decidiram, pois e correctamente que tal resolução extra judicial do contrato de compra e venda da apontada fracção predial, observou os requisitos de forma previstos na lei, sendo certo dever entender-se que o legislador afastou a exigência de tal resolução se fazer por outros meios mais solenes.
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Vejamos agora a questão nuclear da aplicabilidade do novo regime da resolução prevista no CIRE a actos imputados ao impugnante antes do início da sua vigência, como é o caso, visto o contrato resolvido e objecto de impugnação por ele celebrado e por via do qual adquiriu a propriedade de um fracção predial que pertencia ao insolvente, remontar a 2003 e ser anterior ao início de vigência do mesmo no âmbito do qual se iniciou o processo de insolvência, instaurado concretamente em 30/03/2006.
Se bem que o diploma que o aprovou insira uma disposição transitória que determina, designadamente, a aplicabilidade do CPEREF aos processos pendentes, o certo é que tal disposição – artº 12º nº1 - se refere apenas à sucessão da lei processual no tempo.
No entanto no CIRE, tal como no revogado CPEREF regulam-se matérias de natureza substantiva (civis além de matéria penal, laboral e fiscal) valendo para estas as regras específicas da aplicação da lei no tempo e em caso de dúvida devendo entender-se que o Código dispõe para o futuro, como sustentam João Labareda e Carvalho Fernandes ( op. e vol cit.,, 50)
Estão nessas condições os efeitos da insolvência no que respeita à resolubilidade dos negócios e actos celebrados pelo insolvente anteriores ao início do processo.
Com efeito tais negócios e actos desde que não ainda em curso – e em curso, como ensina Oliveira Ascenção ( Insolvência, Efeitos sobre os Negócios em Curso in Revista Thèmis, Ed. Especial, 105 e ss)serão aqueles que estejam “em aberto” ou seja subsistentes apesar de terem origem no passado, objecto da regulamentação nos artºs 102º a 119º do CIRE - são passíveis de serem resolvidos nos termos e condições que constam dos artºs 120º a 126º
Trata-se este de um meio, a par da impugnação pauliana, tido por mais adequado a prevenir os actos que prejudiquem a integridade da massa insolvente.
Ainda que prevista no anterior diploma falimentar, assume hoje a maior importância, recobrindo em teoria um leque de hipóteses que naquela apenas justificavam o recurso à acção de impugnação pauliana pelo liquidatário ou por qualquer credor, em benefício da massa, então chamada de “impugnação pauliana colectiva” (artº 160º do CPEREF).
Neste ponto, a ideia principal a reter é que no âmbito do CIRE podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os actos e negócios do insolvente prejudiciais à massa praticados (ou omitidos) dentro dos quatro anos anteriores à data do início do processo, (artº 120º nº1) sendo esse conceito de acto prejudicial definido como todo aquele que diminua, frustre, dificulte, ponha em perigo ou retarde a satisfação dos interesses dos credores (artº 120º nº2) o qual se presume com a força de presunção inilidível para uma certa categoria de actos, elencados no arº 121º(120º, nº3) sempre pressupondo e presumindo a má fé de terceiro, mas permitindo prova em contrário pela prática de actos previstos no nº2 nos dois anos anteriores ao início do processo (artº 120ºnº4) e sendo a má fé entendida como o conhecimento de situação de insolvente do devedor, do carácter prejudicial do acto e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente e do início do processo de insolvência (artº 120º,nº5)
Tal resolução afasta-se do conceito civilístico (artºs 432º e ss do CCivil) na medida em que na lei comum constitui uma extinção fundamentada de um contrato que entre as partes se encontrava em vigor, enquanto na concepção do CIRE ela visa dar sem efeito actos já integralmente praticados ou omitidos ( cfr para melhor elucidação Gravato Morais ( op. cit., 190 e ss)
E para além do mais, pode ser desencadeada pelo administrador através da já referida carta registada com aviso de recepção, nunca depois de seis meses sobre o conhecimento do acto e nunca depois de dois anos sobre a declaração de insolvência, bastando para tal que se verifiquem as circunstâncias referidas no artº 120º e seus números, de resto invocadas na situação dos autos.
Circunstâncias estas que divergem daquelas que no âmbito do CPEREF previam idêntico mecanismo de tutela dos interesses dos credores.
O artº 156º deste último diploma dispunha, com efeito, como unicamente passíveis de resolução por iniciativa do liquidatário os actos prejudiciais à massa desde que celebrados a título gratuito nos dois anos anteriores à abertura do processo ( nº1 al n a) ) a partilha em determinadas condições, celebrada um ano antes da mesma data de abertura (nº1 aln b) e os actos a título oneroso praticados pelo falido nos seis meses anteriores à data da abertura do processo com sociedades por ele dominadas directa ou indirectamente e isto em caso em caso de falência individual.
Todos os demais, onerosos ou gratuitos que implicassem prejuízo para a massa ficavam, como acima dito sob alçada da acção judicial de impugnação pauliana que tanto podia ser instaurada pelo liquidatário, como pelos credores, mas cujo resultado quando favorável aproveitava a todos e não somente ao proponente (artsº 159º e 160º).
Ora o CIRE veio como que unificar as ditas duas figuras, extinguindo a acção pauliana colectiva, apenas a permitindo a título residual aos credores e fundamentalmente teve em vista reforçar, valorizar e agilizar o mecanismo da resolução, como instrumento privilegiado de tutela dos credores e a tal ponto que se pode afoitamente concluir, tal como expende Gravato Morais que a resolução em benefício da massa prevista no passado não encontra correspondência na realidade actual, já que só um escasso grupo de actos a ela sujeitos encontra equivalência na disciplina anterior.
No presente pleito, estamos perante a resolução extra judicial levada a cabo pelo administrador da massa insolvente de um contrato de compra e venda de ½ de uma fracção predial entre o ora recorrente como comprador e o insolvente, como vendedor ocorrido em data anterior à do início da vigência do CIRE mas a que se aplicou o regime neste definido.
Defende o recorrente, em extensíssima peça alegatória que tal contrato não era atingível pela resolução desde logo porque ultrapassados os prazos para o exercício de tal direito ao abrigo do CPEREF e já não subsistirem os seus efeitos por se tratar de um contrato de execução instantânea, pelo que a resolução não tinha cabimento, envolvendo uma aplicação retroactiva da lei, além do mais inconstitucional.
Porém no entendimento do douto acórdão, o contrato, posto que concluido antes do início de vigência do CIRE tinha efeitos que perduraram para além da revogação do CPEREF e logo a ele se devendo aplicar o novo regime legal definido nos artºs 120º a 126º, por ser aplicável a regra da 2ª parte do nº2 do artº 12º do Civil, não traduzindo a aplicação do novo diploma uma destruição retroactiva dos efeitos do contrato mas a sua extinção para o futuro.
Vejamos.
Segundo o princípio tradicional da proibição da retroactividade das leis, apenas com tutela constitucional expressa no domínio penal, mas podendo mesmo assim quando desrespeitado pelo legislador, merecer tutela indirecta por atingir direitos fundamentais, como o da confiança ( artº 2º da CRP) e conforme o disposto no seu nº1, o artº 12º do CCivil estabelece no nº2 que quando a lei nova dispuser sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, se deve entender em caso de dúvida que ela só visa os factos novos, mas se ao contrário dispuser sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem, entende-se que ela abrange as próprias relações constituídas e que subsistam à data da sua entrada em vigor.
Pode deste modo, em relação ao citado artº 12º fixar-se o seguinte entendimento, conforme a jurisprudência deste tribunal ( por todos o Ac de 4/11/1999, BMJ, nº491, 207) .
Se a nova regulamentação legal se prende com qualquer facto produtor de certo efeito, tem ela tão só aplicação aos factos novos .
Se a nova regulamentação se conexiona apenas com o direito, sem referência ao facto que lhe deu origem, então essa lei nova aplicar-se –á às relações jurídicas já constituidas e que subsistam à data da sua entrada em vigor.
Escreveu a este propósito Batista Machado,( in Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, 122) igualmente citado no acórdão que :
“ (…)A aplicação ou não aplicação imediata das disposições de uma lei nova ao conteudo e efeitos dos contratos anteriores depende fundamentalmente de uma qualificação dessas disposições: referirem-se elas a um estatuto legal ou a um estatuto contratual; ou então na fórmula da nº2 do artº 12º depende da resposta à questão de saber se elas abstraem dos factos constitutivos das mesmas situações jurídicas(…)”
Ora no caso parece-nos a todas as luzes inequívoco que a nova lei não veio regular em novos moldes o regime legal de resolução dos contratos ou actos do insolvente, abstraindo dos factos que lhe dão origem.
Já atrás vimos que o CIRE veio sobre a resolução a favor da massa dos actos e contratos celebrados pelo insolvente anteriormente ao início do próprio processo e que pudessem ser causa de prejuízo para ela, estabelecer um regime novo sem correspondência com o estabelecido na lei falimentar anterior, tanto quanto aos fundamentos, como quanto os prazos para o respectivo exercício.
Essa nova regulamentação não está no entanto dissociada dos factos causadores de prejuízo para a massa na medida em que não só os considerou como lhe atribuiu um outro dimensionamento e uma nova valoração.
E no caso vertente, porque a indicação do legislador vai no sentido da aplicação para o futuro das normas reguladoras de matéria de direito substantivo, parece-nos que a regra a aplicar será a do nº1 do artº 12º ou seja, o CIRE não pode aplicar-se no que respeita ao regime de resolução, aos actos praticados pelo insolvente anteriores ao início da sua vigência, já que justamente ao determinar a sua resolubilidade enquanto forma de cessação dos mesmos, está a dispor sobre os seus efeitos, e não sobre o conteúdo da relação jurídica surgida entre as partes, com abstracção do facto que lhes deu origem.
De resto, nem pode dizer-se, como ressalta do douto acórdão que a situação jurídica derivada do contrato de compra e venda celebrado entre o impugnante e o insolvente ainda subsistisse à data da declaração de insolvência, por tal contrato ser de execução instantânea, logo tendo já produzido os efeitos a que se destinava e apenas subsistindo como título dos efeitos produzidos como adverte ao tratar desta temática no âmbito da extinção das situações jurídicas Oliveira Ascenção ( Teoria Geral, Vol IV , Título V, 308) e igualmente se retira da docência de Galvão Telles que a propósito da interpretação da norma da segunda parte do nº2 do artº 12º aponta como critério orientador para descriminar as hipóteses em que os efeitos pendentes ou futuros são vistos em ligação directa com os factos, sua causa e aquelas outras em que em que são olhados em si e no seu próprio conteúdo, o da distinção entre as situações jurídicas instantâneas ( como é o caso de um contrato de compra e venda) e as situações jurídicas duradoiras, estas traduzidas num exercício continuado ou periódico, apenas estas escapando, quanto ao presente e ao futuro à lei antiga, entrando na órbita da lei nova.( Direito das Sucessões, Noções Fundamentais, 6ª ed., 314 a 326 e que remete para as Lições de Introdução ao Estudo do Direito, Vol I, reimp,1990, 220 a 222).
Sendo esta solução a que também se extrai dos pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República a respeito da aplicação de tal norma e transcritos no douto acórdão na parte em que salientam todos eles que « tratando-se de uma relação ou situação jurídica duradoira, derivada de facto passado, aplica-se, salvo certos casos ou circunstâncias, a lei nova na sua existência futura »
Aqui chegados, temos em consequência que julgar não aplicável o CIRE`à resolução do contrato firmado entre o impugnante e o insolvente, por anterior ao seu início de vigência, o que vale por dizer que à luz da lei falimentar vigente ao tempo da respectiva celebração apenas se tornava o mesmo, enquanto prejudicial à massa, passível de impugnação pauliana ( como o continua a ser, ainda que em modes diferentes e sempre, nos termos gerais do artº 610ºe ss ) por não enquadrar nenhum dos pressupostos previstos para o uso desse específico mecanismo contemplados no citado artº 156º do CPEREF.
E a ser assim, tornar-se–á inútil discutir a inconstitucionalidade da interpretação do preceito do artº 123º do CIRE em termos de este ser aplicável a contratos celebrados na vigência do regime anterior.

A procedência do pedido impugnatório pode ter influência no curso do pedido reconvencional entretanto deduzido e já admitido, sendo que essa questão não foi colocada a este tribunal, senão na perspectiva processual da sua admissibilidade( nºs 2 e 3 do artº 274ºdo CPC), que não na da viabilidade da respectiva apreciação em função daquela improcedência ( nº 6 do mesmo artº 274º).
Entendemos, assim, que a sorte de tal pedido deverá ser, no seguimento do agora decidido, apreciada na 1ª instância.

Nos termos e pelas razões expostas, acorda-se neste tribunal, em :
- Não tomar conhecimento das questões atinentes à violação da lei processual e como fundamento acessório da revista, nos termos atrás já referidos
- Conceder-se a revista, revogando-se o douto acórdão, confirmatório da decisão da 1ª instância sobre a aplicabilidade do regime de resolução do contrato impugnado constante do CIRE, julgando-se procedente o pedido de declaração de ineficácia da resolução extrajudicial do dito contrato, por não admissível na lei falimentar vigente à data da sua celebração, com anulação dos actos processuais subsequentes e sem prejuízo do que se decidir sobre a sorte do pedido reconvencional.
- E condenar a massa insolvente nas custas,( artº 233º, nº4 do CIRE)

Lisboa, 30 de Setembro de 2008

Cardoso de Albuquerque (Relator)
Azevedo Ramos
Silva Salazar