Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2234/11.3TBFAF.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: ARRENDAMENTO COMERCIAL
FORMA LEGAL
INVOCABILIDADE DA NULIDADE
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/17/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / ARRENDAMENTO URBANO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 220.º, 334.º.
REGIME DO ARRENDAMENTO URBANO (RAU): - ARTIGO 7.º, N.º 2, ALÍNEA B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 28/11/2002, PROCESSO N.º 02B3559, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 30/10/2003, PROCESSO N.º 03B3125, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 28/2/2012, PROCESSO N.º 349/06.8TBOAZ.P1.S1, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 11/12/2014, PROCESSO N.º 1370/10.8TBPFR.P1.S1, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 8/10/2015, PROCESSO N.º 370/13.0TBEPS-A.G1.S1, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
1. É a lei em vigor ao tempo da celebração do negócio jurídico que regula as condições da respectiva validade formal, não podendo aplicar-se, de modo retrospectivo, os preceitos ulteriormente editados que estabeleçam diferentes requisitos de forma para o acto.

2. Em situações excepcionais e bem delimitadas, pode decretar-se, ao abrigo do instituto do abuso de direito, a inalegabilidade pela parte de um vício formal do negócio jurídico, decorrente da preterição das normas imperativas que, à data da respectiva celebração, com base em razões de interesse público, regiam a forma do acto : porém , esta solução -conduzindo ao reconhecimento do vício da nulidade, mas à paralisação da sua normal e típica eficácia- carece de ser aplicada com particulares cautelas, não podendo generalizar-se ou banalizar-se, de modo a desconsiderar de modo sistemático o conteúdo da norma imperativa que regula a forma legalmente exigida para o acto.

3. Em consonância com esta orientação geral, pode admitir-se a paralisação da invocabilidade da nulidade por vício de forma, com base num censurável venire contra factum proprium , quando é claramente imputável à parte que quer prevalecer-se da nulidade a culpa pelo desrespeito pelas regras legais que impunham a celebração do negócio por determinada forma qualificada ou quando a conduta das partes, sedimentada ao longo de período temporal alargado, se traduziu num escrupuloso cumprimento do contrato, sem quaisquer focos de litigiosidade relevante, assumindo aquelas inteiramente os direitos e obrigações dele emergentes – e criando, com tal estabilidade e permanência da relação contratual, assumida prolongadamente ao longo do tempo, a fundada e legítima confiança na contraparte em que se não invocaria o vício formal, verificado aquando da celebração do acto.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




1. AA propôs acção de condenação, com processo ordinário, contra BB e mulher, CC, pedindo que seja declarado válido e existente o contrato de arrendamento comercial celebrado e os Réus condenados a reconhecerem-no como legítimo arrendatário da cave (estabelecimento comercial), arrecadação exterior e logradouro do prédio a que se refere a relação locatícia e a restituírem-no definitivamente à posse do locado, no estado em que se encontrava antes do esbulho, a absterem-se da prática de quaisquer actos que atentem contra os seus direitos, decorrentes do dito arrendamento; peticiona ainda o pagamento de quantia, a título de sanção pecuniária compulsória e de indemnização pelos invocados danos.

Como fundamento de tais pretensões, alega, em síntese, que por escrito celebrado em 17 de Agosto de 1993 os Réus, representados por procurador, deram-lhe de arrendamento a cave do prédio urbano, sito no lugar de …, freguesia de …, Fafe, bem como a arrecadação exterior e logradouro de tal imóvel, omisso na matriz, pelo prazo de um ano, com início em 1 de Setembro de 1993, pela renda anual de Esc. 240.000$00, a pagar em duodécimos de Esc. 20.000$00 na casa do senhorio ou de quem o representasse, no primeiro dia útil do mês a que respeitasse, para o destinar a pub-disco,

Após tal celebração, entrou na posse e fruição da cave, explorando um estabelecimento comercial denominado "Pub Horizonte", que ali tem funcionado ao longo dos anos, utilizando ainda a arrecadação exterior para armazém de bebidas, depósitos e motores de água e o logradouro como parque de estacionamento de veículos para clientes, fornecedores e trabalhadores, o que ocorre desde 1 de Setembro de 1993, à vista e com o conhecimento de todos, sem oposição nem interrupção, na firme convicção do exercício pleno do direito de arrendatário. Explorava o estabelecimento, abrindo ao público nos horários próprios, adquirindo mercadorias e pagando o custo, fazendo obras e benfeitorias, limpando-o e cuidando do seu asseio, contratando pessoal, pagando os salários, seguros multiriscos e de responsabilidade civil, água, luz e telefone, licenças e alvarás.

Sucede que o Réu, desde Fevereiro de 2011, começou a ameaçar e a apodar de expressões injuriosas clientes, fornecedores e trabalhadores, bem como a dizer que destruiria todos os veículos automóveis que se encontrassem no parque de estacionamento; como habita no primeiro andar, batia com um ferro na placa superior para fazer barulho e espantar os clientes, abria a água que se introduzia no interior do estabelecimento; mais tarde, vedou com portão automático e aumentou os muros envolventes do parque de estacionamento, que não mais pôde ser utilizado como anteriormente; também retirou o telhado que estava no hall de entrada do estabelecimento, apoderou-se da antena de televisão e destruiu uma lareira que estava no referido hall, bem como a chaminé; em 9 de Julho de 2011, pelas 16 horas, sem autorização nem consentimento seu, destruiu a porta de emergência situada nas traseiras do estabelecimento; posteriormente, abriu a porta da entrada principal e mudou-lhe a fechadura, apoderando-se de todos os equipamentos que se encontravam no interior e que discrimina; ainda abriu uma porta larga para o exterior junto à porta principal de entrada para o estacionamento que indicia que pretende utilizar o locado para entrada, saída e guarda de veículos; desta forma descaracterizou completamente a cave, a arrecadação e o logradouro e ofendeu a sua posse, usando de violência.

Em virtude de tais factos está impedido de explorar o estabelecimento desde 4 de Fevereiro de 2011, sendo que auferia uma média mensal de € 2.000 pela actividade aí desenvolvida.

Acrescenta que se sentiu triste, aborrecido, revoltado e incomodado com a conduta dos Réus, vexado e menosprezado como arrendatário, pretendendo €5.000 como compensação.

Os Réus contestaram, contrapondo que o contrato invocado pelo Autor nunca existiu, tendo o negócio invocado sido simulado; na verdade, a cave nunca lhe foi arrendada porque o seu procurador, DD, informou que a ia ocupar, nunca informando que a ia arrendar a outra pessoa, nem que ia destinar-se a disco-pub, tanto mais que o prédio não reunia condições para esse efeito, nem teve licença para utilização; em 1993/1994 viviam em França só se deslocando a Portugal em férias no mês de Agosto de cada ano, pelo que não sabiam o verdadeiro destino da ocupação da cave.

Referem, ainda, que o contrato alude na primeira cláusula ao rés-do-chão - e não a cave, nem a arrecadação ou logradouro,- sendo que o prédio estava inscrito na matriz sob o artigo 1980, o que o procurador sabia; acrescentam que o arrendamento tinha de ser celebrado por escritura pública e que o prédio, destinado a habitação, não tem isolamento acústico que permitisse uma actividade do género.

Afirmam que o procurador nunca lhes comunicou a situação decorrente do documento junto e que nunca lhe permitiram a utilização da arrecadação exterior e logradouro.


Acrescentam ainda que o local foi encerrado no decurso do mês de Fevereiro de 2011 por iniciativa de DD e na sequência de desinteligências com este, em Outubro de 2010, revogaram a procuração que lhe haviam outorgado e rescindiram o contrato de empreitada respeitante a obras de remodelação do seu imóvel; negam que o marido tivesse retirado o telhado, destruído a lareira, chaminé, porta de emergência ou se apoderasse da antena da televisão ou dos equipamentos, porquanto comunicou àquele para os retirar, o que não foi feito. Concluem que, estando o estabelecimento inactivo, não existiam receitas de exploração, sendo o valor peticionado fantasioso.

O demandante replicou, argumentando que os Réus frequentaram o estabelecimento inúmeras vezes, que tinha publicidade no exterior, alvará de abertura concedido pelo Governo Civil, licenciamento sanitário emitido pela Câmara Municipal, estava munido de licença de abertura e funcionamento emitida pela Secretaria de Estado da Cultura, com projecto de licenciamento requerido e apresentado pelo Réu - e que era do contador da luz nele instalado que era fornecida energia para a zona de habitação; a renda sempre lhes foi paga e pelos mesmos recebida; reiteram que o logradouro sempre se encontrou ligado ao estabelecimento, tendo sido assinalado como parque de estacionamento privativo na planta que o Réu juntou ao projecto.

Defendem que os Réus litigam de má fé pois o contrato não foi reduzido a escritura pública a pedido e por interesse dos Réus alegando que não era necessário, pois eram todos conhecidos e sérios; mais de quinze anos decorreram desde a ocupação até à propositura da acção e sempre os Réus autorizaram e aprovaram as obras de remodelação, evidenciando contentamento por beneficiarem o prédio; invocam o regime decorrente do RAU e do NRAU para contrariar o vício decorrente da falta de escritura pública e, à cautela, a actuação dos Réus em abuso de direito, ao invocarem a nulidade por violação da sua confiança na estabilidade do contrato.

Os Réus treplicaram, impugnando os documentos juntos e reiterando que o procurador lhes ocultou os contornos da situação que só conheceram com a propositura da acção.

Realizado o Julgamento, foi proferida sentença a julgar a acção improcedente por não provada, absolvendo-se os Réus dos pedidos formulados pelo Autor.


2. Inconformado apelou o A., impugnando, desde logo, a decisão proferida acerca da matéria de facto; tal impugnação foi, porém, julgada improcedente, salvo no que toca à eliminação do ponto 17 dos factos provados, o que conduziu à estabilização do seguinte quadro factual:

1. Foi outorgado por escrito, em l7 de Agosto de 1993, um documento intitulado de "contrato de arrendamento" entre DD (sendo referido que na qualidade de procurador de BB, ora Réu) e AA, tendo sido dado de arrendamento ao Autor o rés-do-chão do prédio urbano sito no lugar de …, freguesia de Estorãos [alínea A) dos factos assentes e fls. 12113, cujo teor por brevitatis causa se dá por integralmente reproduzido].

2. Pelo prazo de um ano, com inicio em 1 de Setembro de 1993 [alínea B) dos factos assentes].

3. Pela renda anual de € 240.000$00/ € 1.197,11 a pagar em duodécimos de 20.000$00/ € 99,76 na residência dos senhorios ou de quem legalmente os representar, até ao primeiro dia útil do mês a que respeitar [alínea C) dos factos assentes].

4. Para o destinar a pub-disco [alínea D) dos factos assentes].

5. Em 27 de Agosto de 1987 no Consulado de Portugal em Versalhes os Réus declararam constituir seu procurador DD a quem conferiam poderes para dar de arrendamento nos termos e condições que entendesse, prédio ou partes de prédio que lhes pertencessem, sitos em Fafe, podendo o inquilino ser o próprio representante, para requerer vistorias a prédios sitos no mesmo concelho a fim de lhes ser concedida a respetiva licença de utilização, para os representar junto da Câmara Municipal de Fafe ou do Governo Civil de Braga a fim de requerer licenças ou outros documentos relativos a instalação de quaisquer estabelecimentos nos ditos prédios; para os representar junto da Repartição de Finanças, podendo participar prédios, contratos de arrendamentos, declarações de rendas e acompanhar quaisquer procedimentos fiscais, praticando e requerendo tudo quanto se tornasse necessário para requerer registos, averbamentos e cancelamentos e finalmente para requerer, praticar e assinar tudo o que se tornasse necessário para os referidos fins [documento de fls, 179 - aditamento ao abrigo do disposto no artigo 5° n° 2 alínea a) do Código de Processo Civil].

6. Na sequência da procuração referida em 5) o Réu autorizou o procurador a utilizar o espaço de logradouro para parque de estacionamento do estabelecimento que o mesmo passou a explorar no rés-do-chão, bem como a aceder à arrecadação exterior onde se encontrava a bomba destinada a extrair água do poço para abastecimento do mesmo [resposta ao artigo 1 ° da base instrutória],

7. No âmbito do acordo referido em 1) o Autor durante dois a três anos até 1998 e, posteriormente, o procurador identificado em 1) e 5), por si e por intermédio de outras pessoas, utilizaram a arrecadação exterior como armazém e o logradouro como parque de estacionamento de veículos automóveis para os clientes, fornecedores e trabalhadores [resposta ao artigo 2° da base instrutória],

8. Os Réus sabiam que a arrecadação exterior e o logradouro eram utilizados no âmbito da exploração do estabelecimento referido em 6) [resposta ao artigo 3° da base instrutória].

9. Em Janeiro/Fevereiro de 2011 o Réu apelidou as pessoas que geriam o pub de "chulos" e dizia que entrava por ali com uma máquina destruindo tudo [resposta ao artigo 4° da base instrutória].

10. Também vedou com portão automático o acesso ao parque de estacionamento e aumentou os muros envolventes [resposta ao artigo 5° da base instrutória].

11. No âmbito das obras de remodelação do prédio realizadas em 20 10 e 2011, o Réu mandou retirar o telhado que cobria o hall de entrada do estabelecimento transformando esse espaço num terraço [resposta ao artigo 6° da base instrutória].

12. A chaminé do fogão de sala que existe no hall de entrada do rés-do-chão foi destruída no decurso das obras de remodelação referidas em 10) [resposta ao artigo 7°,da base instrutória].

13. Em Julho de 2011 o Réu abriu a porta da entrada principal do estabelecimento e mudou as fechaduras, mantendo no interior do rés-do-chão os equipamentos que se encontravam no Pub-Disco: sofás, máquina de café, máquina de lavar louça, máquina de gelo, bebidas, arca frigorífica, aparelhos sonoros (mesa de mistura de som, colunas de som, cd's) extintores, bancos, focos, apliques e quadros decorativos [resposta ao artigo 9° da base instrutória].

14. Na mesma época criou uma abertura no alçado esquerdo do prédio, junto à porta principal do estabelecimento, onde colocou um portão para acesso de veículos ao interior do rés-do-chão [resposta ao artigo 10° da base instrutória],

15. Também mudou a localização do contador da luz tendo, em momento contemporâneo ao referido em 9), fechado à chave a arrecadação referida em 6) [resposta ao artigo 11 ° da base instrutória].

16. O estabelecimento deixou de funcionar desde Fevereiro de 2011 na sequência da falta de água derivada da impossibilidade de acesso à arrecadação referida em 6) pelo motivo aludido em 15) [resposta ao artigo 12° da base instrutória].

17]- Eliminado pela Relação

18. Em Outubro de 2010 o Réu marido revogou a procuração referida em 5) [resposta ao artigo 18° da base instrutória].

19. Os Réus tomaram conhecimento e autorizaram as obras de remodelação efetuadas no prédio para adaptação do rés-do-chão ao funcionamento do estabelecimento [resposta ao artigo 21 ° da base instrutória].


3. Passando a apreciar o enquadramento jurídico do pleito, a Relação negou provimento à apelação, nos seguintes termos:

 Alega o apelante que ao contrário do decidido na sentença recorrida, o contrato de arrendamento celebrado entre o Autor e o Réu é válido, sendo que o documento junto com a petição inicial e junto aos autos a fls. 12 e 13, é inequívoco quanto à posição de cada uma das partes que ali surgem de um lado o arrendatário, e de outro, os senhorios, e, o eventual vício de forma de escritura pública é sanado pela entrada em vigor da nova lei que a dispensou para este tipo de contratos, posteriormente a 1 de Maio de 2000, com a entrada em vigor das alterações ao artigo 7º do RAU, pelo Decreto-Lei nº 64-A/2000 de 22 de Abril; mais alegando o recorrente que, ao invocar a nulidade por falta de forma, os recorridos contrariam os mais elementares e importantes princípios de boa-fé, constituindo um manifesto abuso de direito, pois, o decurso de um período de tempo tão longo fez nascer a convicção legítima de que não viriam a invocar a nulidade do contrato de arrendamento e de que tal direito nunca viria a ser exercido como fundamento, o que consubstancia um venire contra factum proprium.

Relativamente à 1ª questão, á data da celebração do contrato de arrendamento dos autos, reportado a 17 de Agosto de 1993, regia o Regime de Arrendamento Urbano decorrente do DL nº 321-B/90 de 15 de Outubro, estabelecendo nos artigos 7° n° 2 e 8° a obrigatoriedade de celebração de escritura pública dos contratos de arrendamento sujeitos a registo e os destinados a comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, tendo este RAU vindo a ser revogado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro (cfr. artº 3º que determina a revogação do direito anterior), tendo esta nova lei, no que ao caso sub judice importa, reposto o artº 1069º do Código Civil, com a seguinte redacção (artº 3º) : - artigo 1069º - “ O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito desde que tenha duração superior a seis meses”.

Como bem salienta a Mª juiz “ a quo” na sentença recorrida, o novo regime de celebração do contrato de arrendamento urbano não se aplica ao contrato dos autos, subsistindo as exigências de forma decorrentes da aplicação do artº 7º-nº2-al.b) do RAU, pois que importa ter presente o disposto no artigo 12° n° 2 do Código Civil, nos termos do qual, “Quando a lei dispõe sobre condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, em caso de dúvida, entende-se que apenas visa os factos novos; quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas abstraindo dos factos que lhe deram origem, a lei nova abrange as próprias relações já constituídas que subsistam à data da sua entrada em vigor'".

Sendo que também nos termos do artº 59º do NRAU, relativamente á aplicação no tempo da Lei 6/2006, se estatuí no seu n° 1, que o NRAU se aplica aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias, dispondo o nº3 do preceito, e mesmo relativamente ás normas supletivas contidas no NRAU, que só se aplicam aos contratos celebrados antes da sua entrada em vigor quando não sejam em sentido oposto ao de norma supletiva vigente aquando da celebração, caso em que é essa a norma aplicável, regime que, maxime, se aplicará no caso de normas imperativas, como é o caso da norma que regulamenta a forma de celebração do contrato de arrendamento, nestes termos, devendo concluir-se que é a lei em vigor ao tempo da conclusão do contrato que regula as condições da validade substancial e formal do contrato (neste mesmo sentido v. P. Lima e A. Varela, in Código Civil, anotado, volume I, pg. 60: “ ... as condições de validade de um contrato (capacidade, vícios de consentimento, forma, etc.), bem como os efeitos da respectiva invalidade, têm de aferir-se pela lei vigente ao tempo em que o negócio foi celebrado” ; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12/6/2012- “ Aplica-se a lei vigente à data da celebração de um contrato de arrendamento para determinar o sentido das declarações negociais e para aferir a sua validade” , tendo como consequência que que o negócio jurídico em causa padece de nulidade nos termos do artigo 220° do Código Civil, confirmando-se o já decidido pelo Tribunal de 1ª instância, improcedendo os fundamentos da apelação.

Também no tocante ao invocado abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, improcede a apelação, desde logo, não se tendo provado que tenha o Autor sido colocado na situação descrita por actos dos Réus, como o Autor alega no artº 56º da réplica, não se provando os invocados fundamentos do invocado abuso de direito, ao Autor incumbindo o respectivo ónus da prova nos termos gerais do artº 342º-nº1 do Código Civil, não se provando que o Réu conhecesse a realização do contrato dos autos, nem sequer que as rendas tenham sido pagas aos Réus ou por estes recebidas- crf. respostas negativas aos ar-tigos 3º e 19º da Base Instrutória e falecendo, ainda, a pretensa resposta afirmativa ao artº 16º, na redacção constante das alegações de recurso.


4. Novamente inconformado, interpôs o A. revista excepcional, admitida por decisão da competente formação, que encerra com as seguintes conclusões:

1ª-) O que o Recorrente pretende, ao abrigo do disposto no artigo 672°, n°1 al. a) do CPC, é que este Supremo Tribunal de Justiça, aprecie a matéria de facto dada como provada e não provada, nos presentes autos, e assim proceda a uma melhor aplicação do direito;

2ª-) O artigo 672° consagra uma excepção à regra de que apesar da verificação da dupla conforme, a revista é admissível, a título excepcional, se se verificar o condicionalismo retratado no n.° 1 deste preceito, ou seja, quando esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;

3ª-) Nos presentes autos estava em causa, a validade de um contrato de arrendamento e o reconhecimento por parte dos recorridos de que o recorrente era legítimo arrendatário da cave, da arrecadação e logradouro do prédio identificado nos autos, bem como a serem condenados a restituírem definitivamente a posse do locado;

4ª-) O tribunal de 1ª instância, deu como provado que: "Foi outorgado por escrito, em 17 de Agosto de 1993, um documento intitulado de contrato de arrendamento entre DD (sendo referido que na qualidade de procurador de BB, ora Réu) e AA, tendo sido dado de arrendamento ao Autor o rés-do-chão do prédio urbano sito no Lugar de …, freguesia de Estorãos.";

5ª-) Pelo que, se torna necessário o recurso a este recurso de revista, ao abrigo do disposto na al. a) do n° do artigo 672° do CPC;

6ª-) Ora, tendo ficado provada a existência de um acordo quanto à utilização do imóvel aqui em causa, este acordo escrito é válido à luz da entrada em vigor das alterações ao artigo 7º do RAU, pelo Decreto-Lei n° 64-a/2000 de 22 de Abril;

7ª-) A partir da data de 1 de Maio de 2000, e tendo em conta que o Autor sempre efectuou o pagamento das rendas pela utilização e ocupação do local, e os senhorios receberam as rendas, surgiu um novo contrato de arrendamento, e este já não padece de qualquer vício de forma;

8ª-) Tal regime é também o constante no NRAU aprovado pela Lei n° 6/2006 de 27 de Fevereiro;

9ª-) O documento junto com a petição inicial e junto aos autos a fls. 12 e 13, é inequívoco quanto à posição de cada uma das partes que ali surgem de um lado o arrendatário, e de outro, os senhorios;

10ª-) O eventual vício de forma de escritura pública é assim sanado pela entrada em vigor da nova lei que a dispensou para este tipo de contratos;

 11ª-) Contudo e sem prescindir, caso se entenda que o contrato de arrendamento não é válido, o decurso do tempo fez criar a convicção legítima de que não viriam a invocar a nulidade do contrato de arrendamento e de que tal direto nunca viria a ser exercido como fundamento, pois representa um "venire contra factum proprium", agindo os recorridos com abuso de direito;

12ª-) Seguindo os ensinamentos de Aragão Seia, a forma escrita constitui uma formalidade ad probationem, não sendo elemento do negócio jurídico, e por isso não é indispensável à sua constituição e validade, pois o contrato é válido independentemente do escrito que, sendo assim, tem por fim tornar mais segura a prova;

13ª-) Pereira Coelho e António Pais de Sousa, também entendem e ensinam que a exigência de escrito no artigo 7ª n° 1 do RAU, apenas serve para prova da declaração, é uma formalidade ad probationem, por isso, o arrendamento pode ser provado por confissão, ou por qualquer outro meio de prova;

14ª-) Aqui no caso concreto, existe um contrato de arrendamento escrito, através do qual o senhorio deu ao inquilino o gozo de um imóvel mediante retribuição, que se prolongou ao longo de 18 anos, que incluía o rés-do-chão, arrecadação e logradouro, desde 1993 até 2011;

15ª-) O inquilino enquanto possuidor, tendo pago sempre as rendas, não pode deixar de ser inquilino só pela falta de escritura pública;

16ª-) O inquilino não pode ser privado do gozo do locado de forma arbitrária e tirana por parte do senhorio, como a decisão recorrida permite;

17ª-) A falta de escritura pública não é imputável ao Autor e aqui recorrente, pois foram os Réus e aqui recorridos com a sua inércia que geraram esta situação;

 18ª-) Ao invocar a nulidade por falta de forma, os recorridos contrariam os mais elementares e importantes princípios de boa-fé, constituindo um manifesto abuso de direito;

19ª-) O decurso de um período de tempo tão longo fez nascer a convicção legítima de que não viriam a invocar a nulidade do contrato de arrendamento e de que tal direito nunca viria a ser exercido como fundamento, o que consubstancia um venire contra factum proprium;

20ª-) Dispõe o artigo 334° do nosso Código Civil que "É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.";

21ª-) Ora, o conteúdo material da boa-fé coincide com o princípio da confiança e por sua vez este princípio propende para a presentação da posição do confiante;

22ª-) No caso em apreço, permitir que uma nulidade formal, opere a favor da parte que vem beneficiando da prestação da contraparte, consistiria na violação da confiança, na modalidade de venire contra factum proprium;

23ª-) Citando os ensinamentos do Professor Menezes Cordeiro, os quatro pressupostos de protecção da confiança através do venire contra factum proprium são: 1º- uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredita numa conduta alheia; 2º- uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis; 3º- um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido, por parte do confiante, o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade, pelo venire, e o regresso à situação anterior se traduzam num injustiça clara; 4º- uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança, no factum proprium, lhe seja de algum modo recondutível;

24ª-) No caso dos autos estes pressupostos verificam-se, merecendo a posição do Autor tutela jurídica;

25ª-) Acresce ainda que, dos presentes autos resulta que estamos perante uma clara e manifesta situação de confiança que durou 18 anos, tendo sido paga a renda acordada;

26ª-) Houve sempre ao longo deste tempo um elevado investimento de confiança, que consistiu na utilização do locado mediante o pagamento de uma renda, além de que foram efectuadas diversas benfeitorias no locado com o consentimento do senhorio;

27ª-) É manifestamente notório que os recorridos agem em abuso de direito ao invocarem a nulidade do contrato de arrendamento por falta de forma;

28ª-) A declaração de nulidade no presente caso deve ser afastada, mantendo-se a eficácia do contrato;

29ª-) As finalidades do formalismo negocial são: a defesa das partes contra a sua leviandade ou precipitação; clareza na expressão da vontade das partes; separação entre as simples negociações e os termos definitivos do negócio, facilitar a prova da declaração de vontade, evitando os perigos da prova testemunhal;

30ª-) Ora, existe um contrato de arrendamento mediante escrito particular, em 17 de Agosto de 1993 e iniciado o arrendamento em 1 de Setembro de 1993, vem sendo paga a renda mensal, autorizaram obras de remodelação (ponto 19º dos factos provados) e, só passado 18 anos, se lembram os RR. de invocar a nulidade do contrato porque foi celebrado por escrito, mas não por escritura pública como a lei exige;

31ª-) A conduta dos RR. representa um venire contra factum proprium modalidade de abuso de direito, capaz de paralisar a nulidade invocada, justificando a sua não declaração pelo tribunal;

32ª-) As finalidades do formalismo negocial devem impedir a improcedência da arguição da nulidade por abuso de direito;

33ª-) Trata-se aqui de uma situação de segurança jurídica, que a não ser respeitada, poderá levar a situações de grandes injustiças, pois dar prevalência a questões formais em vez de questões substanciais, como o decurso de um grande lapso de tempo em que existe, de um lado, o pagamento de uma renda e o uso de um imóvel, e do outro, o recebimento da renda e a permissão de uso;

34ª-) Decorridos 18 anos em que tudo se passa desta forma, não pode uma das partes vir agora alegar que o contrato é nulo por falta de forma;

35ª-) Agem os recorridos com abuso de direito ao invocarem a nulidade do contrato de arrendamento por falta de forma, o que justifica e não declaração de nulidade do contrato de arrendamento, devendo o mesmo ser considerado válido e eficaz;

36ª-) A questão supra descrita é uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é necessária para uma melhor aplicação do direito, nomeadamente do disposto no artigo 334º do Código Civil bem como da aplicação do princípio da boa-fé na formação e cumprimento dos contratos.

37ª-) Por todo o exposto, o douto acórdão recorrido, violou entre outras, as normas contantes do artigo 334° do Código Civil, e o princípio da boa-fé da proibição de venire contra factum proprium, constantes do nosso ordenamento jurídico, pelo que deve ser revogado.

 Nestes termos e nos melhores de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o douto Acórdão proferido, e substituindo-o por outro que julgue a acção procedente por provada, fazendo-se assim a acostumada Justiça!


Os RR/recorridos contra alegaram, pugnando pela confirmação do decidido pelas instâncias.


5. O litígio que opõe as partes versa sobre a questão da nulidade formal do contrato de arrendamento para fins comerciais, celebrado pelas partes em 17/8/1993 mediante documento particular, constante de fls. 12/13 dos autos.

Como é evidente e incontroverso, a questão da validade formal de um negócio jurídico tem – como referem as instâncias – de aferir-se perante o quadro normativo vigente à  data da celebração do acto – sendo irrelevantes para tal efeito as modificações operadas supervenientemente pela lei nova: ora, vigorando em 1993 o art. 7º, nº2, alínea b) do RAU, que impunha a formalização de um negócio daquele tipo através de escritura pública, padece o negócio celebrado efectivamente da nulidade prevista no art. 220º do CC – sem que o facto de, posteriormente, a lei ter prescindido de tal forma, bastando-se com o mero documento escrito, possa convalidar ou sanar tal nulidade. Ou seja: nenhuma censura merece o decidido pelas instâncias no sentido de que é a lei em vigor ao tempo da celebração do negócio jurídico que regula as condições da respectiva validade formal, não podendo aplicar-se, de modo retrospectivo, os preceitos ulteriormente editados que estabeleçam diferentes requisitos de forma para o acto.

Deste modo, a solução do litígio terá de passar, em termos decisivos, pela verificação da alegada existência de abuso de direito do senhorio, ao prevalecer-se de tal nulidade formal do negócio, de modo a determinar se tal invocação do vício de nulidade afronta, em termos intoleráveis, o princípio da confiança – o que, em caso de resposta afirmativa,  conduziria, não obviamente a convalidar ou sanar o referido vício formal, mas antes – e apenas – a paralisar a respectiva invocabilidade perante o arrendatário.

A jurisprudência tem admitido, em situações excepcionais e bem delimitadas, que possa decretar-se  a inalegabilidade pela parte  de um vício formal do acto jurídico, decorrente da preterição das normas imperativas que, à data da respectiva celebração, com base em razões de interesse público., regiam a forma do acto – acentuando, porém , que esta solução (conduzindo ao reconhecimento do vício da nulidade, mas à paralisação da sua normal e típica eficácia) carece de ser aplicada com particulares cautelas, não podendo generalizar-se ou banalizar-se, de modo a desconsiderar de modo sistemático o conteúdo da norma imperativa que regula a forma legalmente exigida para o acto.

Como se afirma, por exemplo, no Ac. de 28/2/12 , proferido pelo STJ no P. 349/06.8TBOAZ.P1.S1 :

Tem-se entendido, apesar disso, que os efeitos da invalidade por vício de forma podem ser excluídos pelo abuso de direito, mas sempre em casos excepcionais ou de limite, a ponderar casuisticamente.

Como se fez notar no ac. deste Supremo de 06-8-2010 (Proc. 3161/04.6TMSNT.L1.S1), “não pode generalizar-se e banalizar-se o recurso à figura do abuso de direito como forma de – sindicando os motivos pessoais e subjectivos que estão na base da invocação da nulidade pelo interessado cujo interesse é por ela prosseguido - acabar por se precludir a aplicação sistemática do regime legal imperativo que comina determinada invalidade por motivos de deficiências de forma do acto jurídico – dependendo a subsistência do invocado abuso de direito da alegação e prova de ter ocorrido um particular e fundado «investimento de confiança» na estabilidade e definitividade do contrato”.

Trata-se, pois, de reconhecer a admissibilidade da invocação desde que, no caso concreto, as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso de direito servirá de válvula de escape no nosso ordenamento jurídico, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo.

“Sempre tendo na devida conta que, nestes casos de nulidade formal dos negócios, não é qualquer actuação que justifica o impedimento do exercício do direito de requerer a nulidade, antes e porque as regras imperativas de forma visam, por norma, fins de certeza e segurança do comércio em geral, só excepcionalmente é que se pode submeter a invocação da nulidade à invocação do venire contra factum proprium “ac. STJ, de 30/10/2003 (proc. 03B3125).

Reportando-se aos casos excepcionais em que se justificasse a cedência da nulidade perante a proibição do venire, o Prof. BAPTISTA MACHADO (in “RLJ”, 118º-10/11), propõe o concurso dos seguintes pressupostos: a) ter a parte confiado em que adquiriu pelo negócio uma posição jurídica; b) ter essa parte, com base em tal crença, orientado a sua vida por forma a tomar posições que ora são irreversíveis, pelo que a nulidade provocaria danos vultuosos, agora irremovíveis através de outros meios jurídicos; e, c) poder a situação criada ser imputada à contraparte, por esta ter culposamente contribuído para a inobservância da forma exigida, ou então ter o contrato sido executado e ter-se a situação prolongado por largo período de tempo, sem que hajam surgido quaisquer dificuldades.

Em consonância com esta orientação geral, tem-se admitido a paralisação da invocabilidade da nulidade por vício de forma:

- quando é claramente imputável à parte que quer prevalecer-se da nulidade a culpa pelo desrespeito das regras legais que impunham a celebração do negócio por determinada forma qualificada, obstando a que possa vir invocar-se um vício que a própria parte causou com o seu comportamento no momento da celebração do negócio, agindo de modo preterintencional ou, pelo menos, com culpa grave ( cfr ., por ex., o Ac.de 28/11/02, proferido pelo STJ no P. 02B3559 onde se decidiu que actua com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o locador que, convencendo o arrendatário de que mais tarde fariam a escritura correspondente, celebra contrato de arrendamento para comércio em simples documento particular e, depois de adiar a celebração dessa escritura, vem interpor acção em que pede a declaração da nulidade do contrato, invocando, precisamente, a falta de escritura notarial);

- quando a conduta das partes, sedimentada ao longo de período temporal alargado, se traduziu num escrupuloso cumprimento do contrato, sem quaisquer pontos ou focos de litigiosidade relevante, assumindo estas inteiramente os direitos e obrigações dele emergentes – e criando, com tal estabilidade e permanência da relação contratual, assumida prolongadamente ao longo do tempo, a fundada e legítima confiança na contraparte em que se não invocaria o vício formal, verificado aquando da celebração do acto.

   Neste sentido – e em concretização deste critério geral - veja-se, por ex., a situação dirimida no Ac.de30/10/03, proferido pelo STJ no P. 03B3125, em que se abordou aprofundadamente esta tema, considerando:

Estabelece o artº. 334º que "é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito".

 Daí se infere, no entanto (sobretudo da expressão manifestamente) que o exercício de um direito só poderá taxar-se de abusivo quando exceda manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, ou, o mesmo é dizer, quando esse direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante .

 Prevê aquele artº. 334º, sobremaneira, a boa fé objectiva: não versa sobre factores atinentes, directamente, ao sujeito, mas antes elementos que, enquadrando o seu comportamento, se lhe contrapõem. Nessa qualidade, concorre com outros elementos normativos, na previsão legal dos actos abusivos: o sujeito exerce um direito - move-se dentro de uma permissão normativa de aproveitamento específico - o que, já por si, implica a incidência de realidades normativas e deve, além disso, observar limites impostos pelos três factores acima isolados, dos quais um a boa fé (os demais serão os bons costumes e o fim social e económico do direito). O sentido desta implica a determinação do conjunto" .

 E assenta, essencialmente, no princípio (cláusula geral) de que "as pessoas devem ter um certo comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros" .

 Princípio esse - vulgarmente denominado de princípio da confiança - que reside no pressuposto ético-jurídico fundamental de que "a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem. Assim tem de ser, pois poder confiar é uma condição básica de toda a convivência pacífica e da cooperação entre os homens. Mais ainda: esse poder confiar é logo condição básica da própria possibilidade da comunicação dirigida ao entendimento, ao consenso e à cooperação (logo, da paz jurídica)" .

 Tal acontece, designadamente, com aquelas condutas que denunciam a posição do agente perante certo assunto e que, com base na coerência esperada de quem se auto-apresenta com certa identidade pessoal, igualmente geram expectativas nos outros.

 É aqui que entronca a proibição do venire contra factum proprium, isto é, do exercício do direito por alguém "em contradição com uma sua conduta anterior em que fundadamente a outra parte tenha confiado" .

 "A proibição da chamada conduta contraditória exige a conjugação de vários pressupostos reclamados pela tutela da confiança. Esta variante do abuso do direito equivale a dar o dito por não dito, radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, pois pressupõe duas atitudes espaçadas no tempo, sendo a primeira (factum proprium) contraditada pela segunda atitude, o que constitui, atenta a reprobabilidade decorrente da violação dos deveres de lealdade e de correcção, uma manifesta violação dos limites impostos pela boa fé. A proibição de comportamentos contraditórios é de aceitar quando o venire contra factum proprium atinja proporções juridicamente intoleráveis, traduzido em chocante contradição com o comportamento anteriormente adoptado pelo titular do direito" .

 Haverá, por isso, para a concretização do abuso e determinação dos limites da boa fé, "que atender de modo especial às condenações ético-jurídicas dominantes na colectividade. Para que haja abuso é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito" .

Constata-se, por exemplo, uma situação de venire contra factum proprium quando uma pessoa, em termos que, especificamente, a não vinculem, manifeste a intenção de não ir praticar determinado acto e depois o pratique, ou quando uma pessoa, de modo a não ficar especificamente adstrita, declare avançar com certa actuação e depois se negue. O venire contra factum proprium é, assim, o assumir de comportamentos contraditórios que violam a regra da boa fé e é dotado de carga ética, psicológica e sociológica negativa.

A verdade, porém, é que, assentando o abuso do direito num conjunto de elementos, sobretudo de natureza normativa, importa atentar especificamente no caso sub judice, porquanto nos encontramos face a uma situação em que é a própria ordem jurídica que determina a nulidade invocada de forma alegadamente abusiva.

 Ora, a possibilidade de invocação do abuso de direito por inobservância da forma legalmente prescrita não tem tido uniforme entendimento nem na doutrina nem na jurisprudência.

 De um lado, o Professor Manuel de Andrade, embora não categoricamente, admite a invocação do abuso de direito quando a invocação da nulidade por vício de forma seja feita em circunstâncias tais que a tornem verdadeiramente escandalosa, como sucede nos casos em que a nulidade seja arguida por quem a provocou ou por quem induziu dolosamente a contraparte a não insistir pela formalização do negócio, criando-lhe a expectativa de que a nulidade jamais seria arguida .

 Já o Professor Vaz Serra defende a inadmissibilidade dessa invocação "por as disposições legais respeitantes à forma se destinarem a um fim de segurança ou de certeza jurídicas inconciliáveis com a eficácia da declaração não formalizada" .

 Sustenta, por sua vez, Menezes Cordeiro, que "quando uma situação de invalidade seja considerada como de origem censurável por, na sua génese, ter havido uma actuação contrária a regras jurídicas, incluindo a própria boa fé, altura em que ocorre a culpa in contrahendo, podem, com facilidade, constituir-se os pressupostos da responsabilidade civil: o dano - e não a sua imputação - tomaria corpo aquando da alegação da nulidade, ou do seu próprio reconhecimento, por ofício, pelo tribunal: tem, então, cabimento, o arbitrar de uma indemnização em espécie - arts. 562º e 566º, nº 1 a contrario - que, procurando reconstituir a situação a que se teria chegado se não tivesse havido prevaricação, corresponda, materialmente, ao cumprimento do contrato nulo, mediante a contraprestação acordada, devida agora a título de compensação necessária para evitar enriquecimentos indevidos".

 Não deixa, no entanto, o mesmo autor, de acrescentar que "não podem, à face do Direito português, manter-se, por via directa da boa fé, os efeitos falhadamente procurados pelo acto nulo"

 Este Supremo Tribunal de Justiça, inicialmente mais formalista e recusando a invocação do abuso de direito nos casos de nulidade decorrente de inobservância da forma legal , veio depois, maioritariamente (posição a que aderimos) a reconhecer a admissibilidade dessa invocação desde que, no caso concreto, as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso de direito servirá de válvula de escape no nosso ordenamento jurídico, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo. Sempre tendo na devida conta que, nestes casos de nulidade formal dos negócios, não é qualquer actuação que justifica o impedimento do exercício do direito de requerer a nulidade, antes e porque as regras imperativas de forma visam, por norma, fins de certeza e segurança do comércio em geral, só excepcionalmente é que se pode submeter a invocação da nulidade à invocação do venire contra factum proprium.

 E ainda, sem qualquer reserva, que o acontecimento futuro gerado pelo factum proprium seja, em termos de nexo, consequência adequada daquele (18).


Mais recentemente, podem citar-se os casos abordado no Ac. de 8/10/15, proferido por este Supremo no P. 370/13.0TBEPS-A.G1.S1 e no Ac. de 11/12/14, proferido no P. 1370/10.8TBPFR.P1.S1, em que se decidiu, respectivamente, que:

Os efeitos da invalidade do negócio jurídico por vício de forma podem ser excluídos pelo abuso de direito, em casos excepcionais, a ponderar casuisticamente, em que as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso de direito servirá de válvula de escape, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo.

Actua em violação grosseira do princípio da boa fé, na vertente da protecção da confiança, o Banco que dá à execução determinado crédito hipotecário, desconsiderando o anterior comportamento de um seu funcionário qualificado, gerente de agência bancária, que:

- pôs em circulação cópia de um documento autenticado que cabalmente autorizava a realização do distrate da hipoteca quanto à fracção adquirida, entregando-o à própria executada, após ter embolsado os cheques visados que era suposto titularem o montante do crédito hipotecário em dívida;

- garantiu cabalmente à executada que o distrate das hipotecas estava plenamente assegurado , ao assumir que tal declaração conteria um lapso material na identificação das fracções objecto da autorização de distrate de hipoteca , omitindo indevidamente a fracção que correspondia à garagem, comprometendo-se a proceder à respectiva correcção e a entregar o original da declaração devidamente rectificado ( e só com este pretexto retendo na sua posse o referido original do documento autenticado de renúncia à hipoteca);

- tal comportamento concludente do representante do Banco criou justificada confiança na executada quanto à inverificação de qualquer obstáculo na efectivação do distrate de ambas as hipotecas – só por isso de tendo realizado a escritura de alienação do imóvel.

Neste concreto circunstancialismo, fica vedada ao Banco exequente a invocabilidade do défice formal, decorrente de o executado não dispor do original do documento autenticado que titulava a renúncia à hipoteca e autorizava o respectivo distrate, não podendo consequentemente prosseguir os seus termos a respectiva execução hipotecária.

E – no segundo aresto citado -  que:

Ainda que de modo muito cauteloso, os efeitos da nulidade por falta de forma, podem ser paralisados se o seu exercício corresponder a abuso do direito.

É de considerar ter lugar esta figura, relativamente à promitente vendedora, por violação manifesta do princípio da boa fé, se:

Publicitou, através de anúncio, a “venda” do imóvel;

Aceitou a proposta feita pelo autor em hasta pública por ela levada a cabo;

Foi recebendo dele as quantias relativas ao preço, tendo o momento do pagamento das duas primeiras sido fixado com referência ao que ela chamou “adjudicação” do imóvel;

Em dissonância com o estipulado, exigiu antecipadamente o pagamento da prestação (de 10%) que se venceria só com a efetivação da escritura pública, assim tudo tendo ficado pago;

Tendo ficado estipulado que a marcação desta caberia a ela, nunca a marcou, apesar de interpelada por ele várias vezes;

Deixou decorrer quase sete anos, desde que recebeu a última prestação do preço, até requerer na Conservatória do Registo Predial a aquisição do prédio em seu nome, para possibilitar a venda.

E se:

O promitente comprador, para além de ter pago a totalidade do preço, celebrou com terceiro contrato visando a transmissão do imóvel.


Ora, no caso dos autos, é manifesto que se não verificam as circunstâncias que têm conduzido, em situações perfeitamente delimitadas e materialmente justificadas, a paralisar a invocação de um vício formal do negócio por uma das partes – que pretende prevalecer-se da respectiva nulidade formal, no confronto da outra, que tem interesse na subsistência da relação contratual: e – note-se – a inverificação de tais circunstâncias específicas e peculiares resulta, desde logo, da matéria de facto provada e não provada , já que – importa realçar – as instâncias consideraram não provada matéria que seria fulcral para poder actuar, na situação dos presentes autos,  o instituto do abuso de direito.

Saliente-se a matéria factual constante dos quesitos 20 e 22, que mereceu, em 1ª instância, a resposta de não provado, a qual foi mantida na Relação, apesar da impugnação deduzida pelo apelante:

Artigo 20 º - O contrato de arrendamento não foi reduzido a escritura pública a pedido dos RR. não obstante o A. reiteradamente solicitar que se outorgasse a escritura p Artigo 20 º - O contrato de arrendamento não foi reduzido a escritura pública a pedido dos RR. não obstante o A. reiteradamente solicitar que se outorgasse a escritura pública ?

----------- Não Provado

Artigo 22º -  O decurso de tempo decorrido desde a celebração do contrato criou a convicção ao A. de que os RR. não invocariam a nulidade do contrato de arrendamento ?

----------- Não Provado


Na verdade, a resposta negativa a estes dois pontos da base instrutória significa que a parte interessada em paralisar a invocabilidade da nulidade formal não logrou provar, por um lado, que a falta de cumprimento das exigências de forma, no momento da celebração do contrato, se pudesse imputar ao senhorio; e, por outro lado, que a mera subsistência da relação contratual ao longo do tempo não foi susceptível de criar na contraparte a convicção fundada de que aquele interessado se não viria a prevalecer da nulidade – ou seja: a inverificação dos pressupostos de facto que dependeria , afinal, o funcionamento do instituto do abuso de direito, na vertente da protecção da confiança, assentou decisivamente numa situação de insucesso probatório da própria parte interessada em invocar a dita figura do abuso de direito…

Para além disso, sempre se dirá que os contornos da concreta situação litigiosa se afastam decididamente da fisionomia dos casos em que se tem admitido a paralisação da invocabilidade da nulidade formal do negócio com base numa situação enquadrável num censurável venire contra factum proprium: é que, como atrás se salientou, tal figura pressupõe que a relação contratual subsistiu prolongadamente no tempo, sendo cumprida pacificamente pelas partes sem quaisquer pontos ou focos de litigiosidade relevante: ora, tal não sucedeu manifestamente no caso dos autos, já que:

- por um lado – e ao contrário do que pretende o recorrente na sua alegação – não pode considerar-se provado que a renda convencionada sempre foi paga aos RR e por estes recebida ( vide resposta negativa ao quesito 19) : ou seja, não há certeza prática acerca de um elemento absolutamente essencial à consolidação e estabilização da relação locatícia emergente do negócio inquinado pela nulidade formal;

- por outro lado, não está minimamente clarificado e definido qual era efectivamente a extensão do objecto material da relação de arrendamento, particularmente se esta abrangia apenas a cave do prédio ( ou o rés do chão, como referia o documento que titulava o contrato) ou também a arrecadação exterior , logradouro e parque de estacionamento, totalmente omitidos naquele documento particular (e resultando dos factos provados que tais espaços teriam sido utilizados, na sequência de autorização do dono do imóvel, pelo procurador que interviera na celebração do contrato).

Nestas circunstâncias – e perante o concreto quadro factual subjacente ao litígio – não pode considerar-se preenchida a figura do abuso de direito, o que naturalmente conduz à admissibilidade da invocação da nulidade do negócio, por preterição da forma legalmente imposta no momento da sua celebração.


6. Nestes termos e pelos fundamentos apontados nega-se provimento à revista, confirmando o decidido no acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.


Lisboa, 17 de Março de 2016


Lopes do Rego (Relator)

Orlando Afonso

Távora Victor