Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08S1901
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MÁRIO PEREIRA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
FACTOS CONCLUSIVOS
ILAÇÕES
Nº do Documento: SJ20090422019014
Data do Acordão: 04/22/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário : I - Os factos, no domínio processual, abrangem as ocorrências concretas da vida real e o estado, a qualidade ou situação real das pessoas, neles se compreendendo não só os acontecimentos do mundo exterior directamente captáveis pelas percepções (pelos sentidos) do homem, mas também os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo (por exemplo, o dolo, a determinação da vontade real do declarante, o conhecimento de dadas circunstâncias, uma certa intenção).
II - A expressão “inadvertidamente”, utilizada na decisão fáctica quando se relata que o sinistrado “ingeriu inadvertidamente líquido corrosivo - ácido de soldar” traduz uma situação do foro cognitivo-sensorial do sinistrado e reveste a natureza de dado de facto, sendo, como tal, passível de ser objecto de instrução e prova.
III - A negligência grosseira a que alude o art. 7.º, n.º 1, al. b) da LAT/97 e o n.º 2 do art.º 8º do RLAT traduz um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência, comportamento esse que só por uma pessoa particularmente negligente se mostra susceptível de ser assumido, revestindo as características da indesculpabilidade e da inutilidade ou desnecessidade.
IV - O STJ, dados os seus limitados poderes em matéria de facto, constantes dos art.ºs 722º, n.º 2 e 729º, n.º 2 do CPC, não pode censurar as ilações de facto tiradas pela Relação, contidas no quadro de decorrência lógica da factualidade fixada pelo julgador de facto da 1ª instância.
V -.É de concluir que houve negligência grosseira e exclusiva do sinistrado que trabalhava como trolha na reconstrução de uma casa, ao ingerir o líquido que o veio a vitimar, no seguinte quadro de facto: o líquido estava dentro de uma garrafa apropriada, com rotulagem claramente indicativa da perigosidade do respectivo conteúdo (rótulo com uma caveira desenhada, bem como dizeres relativos à perigosidade do seu conteúdo); a garrafa encontrava-se dentro de um espaço fechado (armário na cozinha); o sinistrado sabia ler e até pelo próprio cheiro, se detectava o conteúdo e perigosidade do líquido.
VI - Tratou-se de um acto voluntário que, no contexto apurado, teve na base uma situação de clamorosa desatenção, descuido ou distracção, em que só incorreria alguém extremamente descuidado e negligente.
VI - Não tem virtualidade para tornar mais exigente o preenchimento do conceito de “negligência grosseira”, o simples facto provado de o sinistrado ser pessoa que “ingeria bastantes bebidas alcoólicas”, nada consentindo as afirmações de que o empregador disso soubesse, de que o sinistrado se sentisse compelido a beber de qualquer garrafa que lhe parecesse conter uma bebida alcoólica, de que uma garrafa guardada num armário da cozinha fosse por ele apercebida como uma garrafa contendo uma bebida alcoólica, de que estivesse sob o efeito do álcool quando ingeriu o ácido ou de que tinha na ocasião afectada a sua capacidade de discernimento e de entendimento.
VII - É vedada ao Supremo a extracção de eventuais presunções decorrentes da factualidade dada como provada, tarefa que está reservada às instâncias, na medida em que, ao fazê-lo, estão a conferir matéria factual que pode ser estabelecida por livre apreciação do julgador.
VIII - Não se verifica violação de regras de segurança no trabalho por parte do empregador que levava a efeito a obra de construção civil se o risco estava identificado e havia aviso informador, claro e suficiente, aos trabalhadores que pudessem, por qualquer motivo, vir a entrar em contacto com a garrafa - o líquido corrosivo não se encontrava exposto ou colocado em local facilmente manuseável ou em termos de se poder confundir com instrumento ou material de trabalho utilizável, mas num armário, não estava guardado em garrafa de cerveja ou outra, destinada ao consumo de bebidas alcoólicas ou outro tipo de líquidos bebíveis, que se pudesse confundir com elas e induzir, portanto, o sinistrado em erro sobre o exacto conteúdo da garrafa, mas dentro de uma garrafa com rótulo indicador de que continha líquido perigoso -, não sendo exigível, atento todo o contexto apurado, que o empregador tivesse assumido precauções acrescidas no acondicionamento e guarda do produto.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


I – As autoras AA e BB, patrocinadas pelo Ministério Público, intentaram a presente acção especial de acidente de trabalho, contra os réus CC e mulher DD, pedindo que estes fossem condenados a pagar-lhes a reparação das despesas de funeral de EE, marido e pai das autoras, respectivamente, e as pensões e prestações que discriminaram, acrescidas de juros de mora.
Alegaram, para tal, em síntese:
No dia 1 de Agosto de 2001, o EE foi vítima de acidente de trabalho mortal, quando, numa casa em reconstrução, trabalhando para os RR., inadvertidamente ingeriu um líquido corrosivo, ácido de soldar, que se encontrava dentro de uma garrafa, que aí havia sido deixada, depois de ter sido utilizada em trabalhos nessa obra pelos réus nos dias anteriores, num armário sobre a banca da cozinha.
O acidente ocorreu porque os réus não cumpriram os seus deveres em matéria de segurança no trabalho, tendo abandonado o frasco com produto corrosivo e tóxico num armário aparentando-o por produto consumível e sem que das suas presença, características e função tivessem dado conhecimento ao trabalhador.
Os réus não tinham a responsabilidade infortunística transferida para qualquer seguradora.

Os réus contestaram, invocando que não se verificou qualquer acidente de trabalho, e alegaram factos tendentes a descaracterizá-lo.

Concluíram pela sua absolvição do pedido.

Saneada, condensada e discutida a causa, foi proferida sentença que julgou a acção procedente e condenou os réus a pagarem:
a) À autora AA, a pensão anual e vitalícia no montante de 1.911,87 euros, com início em 2 de Agosto de 2001 até à idade da reforma, e de 2.549,16 euros após esta ou quando afectada de doença física ou mental que lhe afecte sensivelmente a sua capacidade de trabalho, sendo o valor do subsídio de férias e de Natal no valor de 1/14 cada da pensão anual e no mês de Maio e Novembro;
b) À autora BB, a pensão anual e temporária no montante de 1.274,58 euros, a partir de 2 de Agosto de 2001, sendo o valor do subsídio de férias e de Natal no valor de 1/14 cada da pensão anual e no mês de Maio e Novembro;
c) A cada uma das autoras, a quantia de 2.005,14 euros, a título de subsídio por morte.
d) À autora AA, 2.673,52 euros, a título de reparação com as despesas do funeral com transladação;
e) Juros de mora à taxa legal.

Na sequência de reforma requerida pelas autoras, foi proferida, a fls. 273, decisão que rectificou a sentença “passando a constar a pensão anual e vitalícia agravada por inobservância das regras de segurança:
- 3.823,74 euros para AA;
- 2.549,16 euros para BB”.

Apelaram os RR., pedindo a sua absolvição do pedido.
Por seu douto acórdão, a Relação do Porto concedeu provimento ao recurso, tendo revogado a sentença e absolvido os RR. do pedido.


II – Agora inconformadas as AA., interpuseram a presente revista, em que formularam as seguintes conclusões:
1ª- A Relação, fundamentando-se no disposto no art. 646°, n° 4, do CPC, eliminou o advérbio de modo «inadvertidamente», no n° 4 da matéria de facto provada em 1ª instância, escrevendo que se tratava de matéria conclusiva.
2ª- O art. 646°, n° 4, do CPC estatui que se têm por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito, bem como as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos, ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
3ª- Os juízos de valor sobre matéria de facto (que não são factos puros, nem questões de direito, mas, como o nome indica, ilações extraídas sobre matéria de facto, por recurso a critérios como os do bonus pater familiae, ou do homo prudens), não devem ser incluídos na base instrutória.
4ª- Mas, segundo a melhor doutrina e a jurisprudência, se os juízos de valor sobre matéria de facto tiverem sido incluídos na base instrutória, não poderá a resposta do tribunal colectivo sobre essa matéria ser tida como não escrita ao abrigo do disposto no art. 646°, n° 4, do CPC, visto não se tratar de questões de direito.
5ª- Assim, deverá ser revogada a decisão da relação que eliminou o advérbio de modo «inadvertidamente» no n° 4 da matéria de facto provada em 1ª instância.
6ª- Segundo a matéria de facto provada, o R. marido, que trabalhava por conta própria, na reconstrução de uma casa, em Vinhais, contratou o sinistrado, um alcoólico crónico, a pedido deste, para desempenhar funções auxiliares, como servente da construção civil; alguns dias depois de começar a trabalhar nessa obra, no dia 1 de Agosto de 2001, logo após o início do período laboral, o sinistrado ingeriu inadvertidamente ácido de soldar (ácido clorídrico, uma substância corrosiva) que o réu marido deixara dentro de uma garrafa, guardada numa caixa de papelão, no armário colocado sobre a banca da cozinha.
7ª- A Relação entendeu que, sendo o sinistrado um trabalhador adulto, lhe era de exigir o cuidado de não meter à boca e tomar um gole de um líquido, contido numa garrafa qualquer, guardada numa caixa de um armário da cozinha da casa em que efectuavam obras de reparação e que, a omissão deste cuidado, constituía uma negligência grosseira do sinistrado, descaracterizadora do acidente de trabalho.
8ª- Porém, o sinistrado era um alcoólico crónico o que, como é um facto notório, numa terra como Vinhais, o R. não podia desconhecer, até porque não era a primeira vez que ele para si trabalhava.
9ª- É, também, um facto notório que os alcoólicos – que são doentes mentais, sofrendo de uma dependência de álcool – se sentem compelidos a beberem de qualquer garrafa que lhes pareça conter uma bebida alcoólica; e, uma garrafa guardada num armário da cozinha é, para um alcoólico, apercebida como uma garrafa contendo uma bebida alcoólica.
10ª- O R. marido, que tinha como empregado auxiliar/servente um alcoólico, devia ter tido o cuidado de não deixar a garrafa com líquido de soldar guardada no armário da cozinha;
11ª- E, não tendo tido este cuidado, o R. marido omitiu o dever geral de cuidado, exigível a quem contrata um alcoólico crónico como seu trabalhador,
12ª- Omitindo, ainda, o dever de avaliar os riscos e verificar a existência de agentes químicos perigosos para a segurança e saúde do seu trabalhador, mais tarde especificamente previsto nas disposições combinadas dos arts. 3°, als. a) e b) i. (sic) e 4° do DL n° 290/2001 (que transpôs para o ordenamento jurídico nacional a Directiva n° 98/24/CE, do Conselho, relativa à protecção da saúde e segurança dos trabalhadores contra os riscos ligados à exposição a agentes químicos no trabalho), mas que já resultava do Anexo I da Portaria n° 732-A/96 e do art. 8° do DL n° 441/91, interpretados em conformidade com a Directiva n° 98/24/CE.
13ª- A jurisprudência densificou o conceito de «negligência grosseira», previsto no art. 7º, n° 1, al. b), da Lei n° 100/97 e no n.° 2 do art. 8.° do Decreto-Lei n.º 143/99, como um comportamento que, em face das condições da própria vítima e não em função de um padrão geral, abstracto, de conduta, é inútil, indesculpável, reprovado pelo mais elementar sentido de prudência.
14ª- É jurisprudência pacífica que, para a descaracterização do acidente de trabalho, é exigido que a culpa grave e indesculpável da vítima deva ser a causa exclusiva do acidente de trabalho.
15ª- O douto acórdão recorrido, decidindo ao arrepio de jurisprudência anterior do STJ sobre a questão da ingestão involuntária de um líquido cáustico no tempo e local de trabalho não impedir a reparação do acidente de trabalho, violou o disposto no art. 646°, n° 4, do CPC, na Portaria n° 732-A/96 e no art. 8° do DL n° 441/91, bem como os arts. 7°, n.º 1, alínea b), da lei n.º 100/97, e 8°, n. ° 2, do Decreto-lei n. ° 143/99.
16ª- Por tudo isto, o douto acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por decisão que condene os RR. a reparar o acidente de trabalho sofrido pelo falecido marido e pai das ora recorrentes, aliás, como decidido na sentença de 1ª instância proferida nos autos.

Os RR. contra-alegaram, defendendo a confirmação do julgado.


III – Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Como vimos, a sentença decidiu ter havido acidente de trabalho, que não descaracterizou, antes considerou, na decisão que reformou a sentença, devido a violação de normas de segurança, no trabalho, por parte do empregador, e, por isso, condenou os RR. na respectiva reparação, a título agravado.
O acórdão recorrido, no que aqui interessa, suprimiu do facto 4 o advérbio “inadvertidamente” e considerou descaracterizado o acidente de trabalho, tendo, por isso, absolvido os RR. do pedido.

Na revista, as AA. impugnam esses 2 segmentos decisórios e pedem a repristinação da decisão constante da sentença.
São, pois, essas as questões que, levadas às conclusões, constituem objecto do recurso (art.ºs 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do CPC) -(1) .

O acórdão recorrido deu como provados os seguintes factos:
1. Os réus são casados entre si e o réu marido dedica-se à actividade de construção civil, nomeadamente de construção e recuperação de casas, revertendo a sua actividade em proveito comum do casal;
2. A autora AA foi casada com EE, casamento que foi dissolvido por morte deste em 1 de Agosto de 2001, e a autora BB nasceu em 1 de Dezembro de 1990, sendo filha daqueles;
3. O réu andava a trabalhar numa casa do Bairro do ..., em Vinhais, e o falecido EE andou alguns dias nessa obra;
4. No dia 1 de Agosto de 2001, logo após o início do período laboral, na casa em reconstrução no Bairro do .., em Vinhais, o falecido EE ingeriu líquido corrosivo - ácido de soldar;
5. Tal líquido encontrava-se dentro de uma garrafa que ali havia sido deixada pelo réu marido, num armário sobre a banca da cozinha;
6. Os factos descritos em 4 e 5 ocorreram quando o falecido EE prestava trabalho ao serviço, sob as ordens, direcção e fiscalização do réu marido, com a categoria de servente e funções auxiliares de trolha e com o horário de trabalho das 08.00 horas às 12.00 horas e das 13.00 horas às 17.00 horas, de segunda a sexta-feira, mediante o salário diário de 17,46 euros;
7. Do acidente descrito em 4 resultaram para o falecido, directa e necessariamente, as lesões descritas no relatório de autópsia, cuja cópia se mostra junta aos autos a fls. 18 a 25 e no documento junto a fls. 15, os quais aqui se dão por reproduzidos, nomeadamente coagulação intra vascular disseminada (formação de coágulos no interior dos vasos), de que, como consequência directa, necessária e adequada, lhe adveio a morte em 1 de Agosto de 2001;
8. O réu marido, à data dos factos descritos, não tinha a sua responsabilidade infortunística, decorrente de acidentes de trabalho que ocorressem com o falecido EE, transferida para qualquer seguradora;
9. O sinistrado EE faleceu no Hospital Distrital de Bragança e o seu cadáver foi transladado para Vinhais, onde foi sepultado, tendo a viúva suportado as despesas do funeral;
10. EE era uma pessoa que bebia bastantes bebidas alcoólicas;
11. EE pediu ao réu CC para que o deixasse andar com ele a trabalhar na casa sita no Bairro do ...;
12. EE trabalhava ao dia e não era assíduo ao trabalho;
13. No dia 1 de Agosto de 2001, pouco depois das 08.00 horas, quando o réu passava junto da casa de habitação do EE, no Bairro do .., encontrou-o a tossir encostado ao muro da casa onde reside, fora do normal;
14.Como tossia e quase não falava, o réu perguntou-lhe o que tinha e EE respondeu-lhe que tinha bebido uma garrafa que tinham dentro de uma caixa de papelão apertada em cima do armário da cozinha antiga da obra que andavam a realizar;
15.Perante tal situação, vendo-o atrapalhado, o réu levou EE ao Centro de Saúde de Vinhais, donde foi transferido para o Hospital Distrital de Mirandela e daí para o Hospital Distrital de Bragança;
16. O réu teve no local de trabalho uma garrafa de ácido de soldar que tinha um rótulo por fora com evidente sinal de perigo – uma caveira e vários dizeres, alusivos à perigosidade;
17. EE, em regra, trabalhava como servente da construção civil e sabia ler;
18. Essa garrafa tinha estado num armário fechado sobre a banca da cozinha, mas também dentro de uma caixa fechada com um cordel;
19. Até pelo próprio cheiro se detecta o conteúdo e perigosidade do líquido.

IV – Conhecendo:

1. Da pretendida alteração do facto n.º 4:
Na apelação, a Relação entendeu, sem outras considerações, que a expressão "inadvertidamente", constante do facto 4 da matéria de facto, era “manifestamente conclusiva, devendo, como tal, considerar-se como não escrita, art. 646, n.º 4” (ver fls. 324).
Contra o assim decidido se insurgem as AA., nos termos sintetizados nas conclusões 1ª a 5ª.
Apreciando:
Segundo o “Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea”, da Academia das Ciências de Lisboa, a expressão “inadvertidamente” significa “de modo inadvertido”, sendo que “inadvertido” significa, por sua vez, “desatento”, “descuidado”, “distraído”.
Por isso, “ingerir inadvertidamente líquido corrosivo” significa ingerir líquido corrosivo por desatenção, descuido ou distracção.
O que traduz um dado de facto, do foro interno, situado no domínio cognitivo-sensorial.
Ora, tem sido entendido que os factos, no domínio processual, abrangem as ocorrências concretas da vida real e o estado, a qualidade ou situação real das pessoas, neles se compreendendo não só os acontecimentos do mundo exterior directamente captáveis pelas percepções (pelos sentidos) do homem, mas também os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo (por exemplo, o dolo, a determinação da vontade real do declarante, o conhecimento de dadas circunstâncias, uma certa intenção) -(2).
E, neste enquadramento, entendemos que a expressão “inadvertidamente”, traduzindo uma situação do foro cognitivo-sensorial do sinistrado, reveste a natureza de dado de facto, integrando matéria de facto e, como tal, passível de ser objecto de instrução e prova, como foi, no presente processo.
Não se está perante um conceito de direito, uma noção jurídico-normativa, em que, a pretexto da fixação da factualidade relevante para a decisão da causa, se esteja, na realidade, a efectuar, de forma directa e imediata, uma qualificação ou interpretação jurídicas, assim dando como verificado o elemento integrador da previsão normativa em causa, com o que se estaria a alcançar, directamente, a solução jurídica do caso em apreço, sem a necessária mediação ou subsunção da factualidade relevante para o efeito.
Neste quadro, não vemos que revista natureza conclusiva ou de direito, a fixação, pelo julgador de facto da 1ª instância, de que foi “inadvertidamente” que o sinistrado ingeriu o líquido em causa, pelo que não havia motivo para considerar não escrita essa expressão, ao abrigo do n.º 4 do art.º 646º do CPC, e para a eliminar da respectiva resposta.
Assim, colhe a pretensão das AA., nesta sede, e ordena-se que o facto 4 volte a ter a seguinte redacção:
“No dia 1 de Agosto de 2001, logo após o início do período lboral, na casa em reconstrução no Bairro do ..., em Vinhais, o falecido EE ingeriu inadvertidamente líquido corrosivo – ácido de soldar”.


2. Da descaracterização do acidente de trabalho
As instâncias concluíram, sem que tal venha impugnado na revista, pela existência de acidente de trabalho que vitimou o EE.
Em aberto está a questão de saber se ocorreu ou não a descaracterização do acidente, sendo que as AA./recorrentes situam a sua discordância em 2 planos: entendem que não está demonstrada a negligência grosseira do sinistrado; e defendem, também, que, em qualquer caso, essa negligência não teria sido causa exclusiva do acidente, por ter ocorrido também culpa concorrente e violação de regras de segurança pelo R. empregador, causais desse acidente.

Atenta a data do acidente (1 de Agosto de 2001) e como foi entendido nas instâncias, sem discordância das partes, ao caso é aplicável o regime constante da Lei n.º 100/97, de 13.09 (doravante designada por LAT), e do respectivo regulamento, aprovado pelo DL n.º 143/99, de 30.04 (doravante designado por RLAT).

Estabelece o n.º 1 do art.º 7º da LAT, na parte que aqui interessa:
“Não dá direito a reparação o acidente:
(...)
b) Que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado”.
E, por sua vez, dispõe o art.º 8º, n.º 2 do RLAT:
“2. Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão”.
Como refere Carlos Alegre, em “Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais”, 2ª ed., pág. 63, em anotação ao art.º 7º da LAT, “ao qualificar a negligência de grosseira, o actual legislador está a afastar implicitamente a simples imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano que não considera os prós e os contras”.
Acrescentando, depois, que “o legislador do artigo 7º teve (...) o cuidado de distinguir a negligência quanto à intensidade da vontade ou gravidade, no pressuposto de que a doutrina costuma estabelecer três graus: lata, leve e levíssima. A negligência lata ou grave confina com o dolo e parece ser, sem dúvida, a esta espécie de negligência que se refere o legislador ao mencionar a negligência grosseira”.
No fundo, a previsão é similar à da al. b) da Base VI da anterior Lei n.º 2127, de 03.08.1965 - (3), na interpretação doutrinária e jurisprudencial praticamente pacífica, segundo a qual a negligência grosseira traduzia um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência, comportamento esse que só por uma pessoa particularmente negligente se mostra susceptível de ser assumido, revestindo as características da indesculpabilidade e da inutilidade ou desnecessidade, interpretação essa que, diga-se, no essencial, acolheu guarida no n.º 2 do art.º 8º do actual RLAT.
Exige ainda a al. b) do dito art.º 7º que essa negligência tenha sido causa exclusiva do acidente.
A existência de negligência grosseira deve ser apreciada em concreto, considerando, pois, o circunstancialismo próprio do caso em discussão.
E é de referir que, nos termos do n.º 2 do art.º 342º do CC, é sobre as entidades em princípio responsáveis pela reparação do acidente – no caso, os RR – que recai o ónus de prova dos factos integradores da descaracterização do acidente, uma vez que os mesmos assumem a natureza de factos impeditivos de tal responsabilização – vejam-se, nesse sentido, entre outros, os acórdãos deste STJ, 4ª Secção, 22.10.1997, em Ac. Dout. 435, p.400, e de 17.02.1999, em CJ-STJ, 1999, T. 1, p. 284).

Feitas estas considerações de enquadramento, vejamos o caso dos autos.
O acórdão recorrido entendeu que havia lugar à descaracterização do acidente, com a consequente absolvição dos RR. do pedido.
Fê-lo, com a seguinte fundamentação:
« Considerando que o falecido trabalhava como trolha para o réu marido que se dedicava à construção civil, e que os trabalhos se desenrolavam na reconstrução de uma casa, a ingestão pelo sinistrado de ácido de soldar (que, se não alegou ou provou tivesse algo a ver com o trabalho a realizar pelo dito sinistrado e/ou que o mesmo habitualmente manuseasse), produto esse que até pelo cheiro permitia detectar do que se tratava e da sua perigosidade, constitui, sem sombra de dúvida, um acto de uma temeridade, leviandade e perigosidade extremas. Com efeito, não é comum que se "meta à boca", tudo o que vem à mão, pois, obviamente, como resulta das regras da vida, nem tudo pode ser consumido pelo organismo humano, quanto mais tratando-se de um produto que até pelo seu odor permite detectar que se trata de um produto perigoso para a vida, como é o ácido em causa. E, essa temeridade é tão significativamente acentuada, quando se provou que a dita garrafa onde estava o ácido, tinha um rótulo com uma caveira desenhada (o que alerta para o perigo de vida), bem como dizeres relativos à perigosidade do seu conteúdo. Não nos esqueçamos que o sinistrado não era propriamente um aprendiz, já que trabalhava como regra na construção civil, onde se utilizam vários materiais e produtos que oferecem perigo para a vida dos seus utilizadores. O mesmo sabia ler, o que lhe permitia verificar que se tratava de líquido que a ser ingerível implicava perigo de morte. Conclui-se, assim, que o sinistrado ao ingerir o dito ácido de soldar nos termos supra referidos, o que lhe veio a causar a morte, configura um caso de comportamento grosseiramente negligente da sua parte.
Chegados a este ponto, a questão que se coloca agora é de saber, se, como o exige o citado art. 7, n.º 1, alínea b), da LAT, o acidente de trabalho em causa proveio exclusivamente da referida negligência grosseira do sinistrado. Ou, dito de outro modo, importa aquilatar se a conduta do sinistrado foi a causa única (exclusiva) do sinistro, se não houve concorrência de condutas culposas.
Esse elemento não pode deixar de conduzir-nos ao conceito de causalidade adequada que foi consagrado no nosso ordenamento jurídico.
Como escreveu Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 2.ª Edição Lisboa, pág. 405, "como causa adequada deve considerar-se, em princípio, toda e qualquer condição do prejuízo. Mas uma condição deixará de ser causa adequada tornando-se, pois juridicamente indiferente, desde que seja irrelevante para a produção do dano segundo as regras da experiência, dada a sua natureza e atentas as circunstâncias conhecidas do agente ou susceptíveis [de] ser conhecidas por uma pessoa normal no momento da prática da acção. E dir-se-á que existe aquela irrelevância quando, dentro deste condicionalismo, a acção não se apresente de molde a agravar o risco de verificação do dano.
Numa palavra, a acção que é condição ou pressuposto de um dano deixa de o ser e só deixa de ser, sua causa, sob o prisma do direito, quando com ela concorra para a produção desse dano uma circunstância anómala ou extraordinária sem a qual não haveria um risco maior do que o comum, de o prejuízo se verificar. Mas circunstância que o agente ignore e não tenha de conhecer à data da acção".
O art. 563 do Código Civil, consagrando a teoria da causalidade adequada, prescreve, por seu turno, que "a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão."
Causa adequada será aquela que agravando o risco de produção do prejuízo o torna mais provável.
Como refere Almeida Costa, Direito das Obrigações, Almedina, pág. 580, é necessário que o facto tenha sido em concreto condição sine qua non do dano, mas também que constitua em abstracto, segundo o curso normal das coisas, causa adequada à sua produção.
O princípio da causalidade adequada comporta duas vertentes: a vertente positiva que se pode definir pela adequação pela afirmativa, ao considerar-se que determinado facto é de molde a produzir certos efeitos; e a vertente negativa, da qual resulta a exclusão do âmbito da relação causal [d]os factos que se apresentem como indiferentes para a produção do efeito danoso. Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, pág. 858.
É sabido que um dos direitos do trabalhador é o de prestar trabalho em condições de higiene, segurança e saúde (art. 59, n.º 1, alínea c), da CRP). E que, por força do preceituado no DL 441/91, de 14.11, a entidade patronal está obrigada a assegurar aos seus trabalhadores condições de segurança, higiene e saúde, em todos os aspectos relacionados com o trabalho, tendo em conta os princípios de prevenção a) proceder, na concepção das instalações dos locais e processos de trabalho à identificação dos riscos previsíveis, combatendo-os na origem, anulando-os ou limitando os seus efeitos, por forma a garantir um nível eficaz de protecção; b) integrar no conjunto das actividades da empresa estabelecimentos ou serviço e a todos os níveis a avaliação dos riscos para a segurança e saúde dos trabalhadores, com a adopção de convenientes medidas de prevenção (art. 8, n.º 1 e 2, alíneas a) e b).
Os trabalhadores devem, para além disso, dispor de informação actualizada sobre os riscos de para a saúde, bem como as medidas de protecção e prevenção e a forma como se aplicam, relativos quer ao posto de trabalho ou função, quer em geral, à empresa, estabelecimento ou serviço (art. 9, n.º 1, alínea a)).
Os trabalhadores devem receber formação adequada e suficiente no domínio da segurança, higiene e saúde no trabalho, tendo em conta as respectivas funções e posto de trabalho (art. 12, n.º 1).
Se é certo [que] são esses (alguns) dos princípios e regras sobre higiene, segurança e saúde a que se encontram adstritas as entidades empregadoras, não invocaram, ou demonstraram as autoras que regra em concreto sobre aquela temática teria o réu violado com a sua descrita actuação. No caso em apreço, o fatídico ácido encontrava-se na casa onde decorriam os trabalhos e se não se apurou a razão concreta de aí estar, não deve esquecer-se que o mesmo não se encontrava exposto ou colocado em local facilmente manuseável ou confundível com instrumento ou material de trabalho por parte do autor. O mesmo não estava no chão ou em cima de uma mesa, mas sim dentro de uma garrafa, num armário, sobre a banca da cozinha. Para além disso, não se encontrava guardado em qualquer garrafa, tipo cerveja ou outra, destinada ao consumo de bebidas alcoólicas ou outro tipo de líquidos bebíveis, que se pudesse confundir com elas. A garrafa onde estava acondicionado era a apropriada para o efeito, pois continha o desenho de uma caveira e vários dizeres relativos à perigosidade do seu conteúdo. A tudo isto acresce, nos termos já referidos a circunstância de o sinistrado já ter algum tipo de experiência como servente na construção civil e saber ler, não sendo, assim, de esperar que o réu pudesse prever como provável que o mesmo fosse meter à boca ou mesmo beber o referido ácido. É que não estamos a falar de uma criança, ou de um jovem adolescente inexperiente relativamente aos perigos do uso, contacto ou ingestão de substâncias tóxicas, mas sim de um homem, com alguma experiência de vida e de trabalho. Não se objecte que o facto de o autor bebidas alcoólicas poderia propiciar o manuseamento da garrafa na busca de ingerir álcool. É que, se o mesmo, assim procedia e não se tendo demonstrado que na altura estivesse alcoolizado ou em carência alcoólica, até seria de supor que distinguiria com nitidez que a garrafa e o cheiro proveniente da mesma não eram de álcool.
Assim não somente não se vislumbra em concreto, como se disse, que norma teria o réu violado com a sua actuação, como para além disso, se não configura que a sua atitude de deixar naquele local de trabalho a dita garrafa com o ácido seja causa adequada do acidente de trabalho que vitimou o sinistrado. Na verdade, na esteira dos considerandos que acima se fizeram, se é um dado que a existência do ácido naquele local é condição do dano (se lá não estivesse o sinistrado não o teria ingerido e não teria morrido dessa ingestão) não pode concluir-se, no contexto circunstancial descrito, que ocorre culpa do réu, nem tão pouco que se o sinistrado não tivesse assumido aquela postura grosseiramente negligente, o acidente sempre se verificaria. Não é comum, nem é previsível, que um ácido acondicionado, nos termos e local em que estava, pudesse originar aquele tipo de acidente. Apenas a circunstância anómala de o autor o ter ingerido, sem a qual não havia risco maior do que o comum* (e que decorrerá da directa proximidade e ou manuseamento desse material), é que deu origem ao acidente.
Isto para se concluir que a conduta do sinistrado, para além de se traduzir em negligência grosseira, deve qualificar-se como a exclusiva causadora do acidente de trabalho que o vitimou.
Procedem, pois, as conclusões de recurso, ficando prejudicadas as demais questões suscitadas » (Fim de transcrição).

Apreciando:
Subscrevemos, nos termos essenciais, a fundamentação transcrita e concordamos com o juízo de descaracterização do acidente de trabalho, nela firmado, o que nos dispensa de outras e mais alongadas considerações sobre a questão, pelo que nos limitaremos a focar ou sublinhar alguns aspectos relevantes, suscitados na alegação da revista e suas conclusões.
Assim, começaremos por referir que, nessa fundamentação, a Relação considerou assente que a garrafa que continha o ácido de soldar ingerido pelo sinistrado era a referida no facto 16, que tinha um rótulo com uma caveira desenhada, bem como dizeres relativos à perigosidade do seu conteúdo, o que traduz o recurso a uma ilação de facto, baseada em máximas da experiência, juízos correntes de probabilidade e princípios da lógica.
Ora, conforme posição que vem sendo perfilhada, este Supremo, dados os seus limitados poderes em matéria de facto, constantes dos art.ºs 722º, n.º 2 e 729º, n.º 2 do CPC, não pode censurar a ilação de facto tirada pela Relação -(4), contida no quadro de decorrência lógica da factualidade fixada pelo julgador de facto da 1ª instância - (5) .
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Diremos também que, pelas razões alargadamente explicitadas na fundamentação transcrita, é de concluir que houve negligência grosseira do EE ao ingerir o referido líquido, que o veio a vitimar.
Além do mais aí referido, é de relembrar que o líquido estava dentro de uma garrafa apropriada, com rotulagem claramente indicativa da perigosidade do respectivo conteúdo, garrafa que se encontrava num armário (o que inculca que estava dentro de um espaço fechado) existente sobre a banca da cozinha, sendo que o sinistrado sabia ler.
Acrescendo que, até pelo próprio cheiro, se detectava o conteúdo e perigosidade do líquido.
Nesse quadro e vista também a demais factualidade provada, é de considerar, como o fez o acórdão recorrido, que a ingestão do líquido pelo sinistrado traduziu um acto de uma temeridade, leviandade e perigosidade extremas.
Tratou-se de um acto voluntário que, no contexto apurado, teve na base uma situação de acentuada ou mesmo clamorosa desatenção, descuido ou distracção, em que só incorreria alguém extremamente descuidado e negligente.

Sendo que não tem virtualidade para afastar essa conclusão, o simples facto de o sinistrado ser pessoa que ingeria bastantes bebidas alcoólicas.
A este respeito, importa, antes de mais, fazer algumas precisões:
A primeira delas é a de que vem provado que o sinistrado “era uma pessoa que bebia bastantes bebidas alcoólicas” o que, apesar de tudo, é diferente de o mesmo ser um “alcoólico crónico”, como as AA. referem nas conclusões 6ª e 8ª, e indicia um grau inferior de dependência do álcool.
A segunda é a de que nada consente que se dê como assente que o R. soubesse que o sinistrado era um “alcoólico crónico” ou sequer que soubesse que este “bebia bastantes bebidas alcoólicas”.
Os factos dados como provados nas instâncias não o referem e não há elementos que permitam a este Supremo dá-lo como demonstrado.
Com efeito, mesmo a ser exacto que o sinistrado e o R. viviam em Vinhais, o que a matéria de facto não permite comprovar, o certo é que, em qualquer caso, esse simples dado não era de molde a que se pudesse considerar provado, como facto notório, nos termos do art.º 514º, n.º 1 do CPC, que o R. sabia que o sinistrado bebia bastantes bebidas alcoólicas.
Mesmo nesse pressuposto, nada permitiria concluir que esse dado fosse do conhecimento geral das pessoas residentes em Vinhais, incluindo o R..
Nada o suporta.
Por outro lado, não pode este Supremo socorrer-se de presunções judiciais para equacionar a possibilidade de dar como provado tal facto.
Na verdade, como se consignou, designadamente, no já referido acórdão deste Supremo, de 18.04.2007, no Rec. n.º 4473/06, desta 4ª Secção, é vedada ao Supremo a extracção de eventuais presunções decorrentes da factualidade dada como provada, tarefa que está reservada às instâncias por conhecerem de facto e poderem extrair da factualidade provada as ilações que dela sejam consequência lógica, na medida em que, ao fazê-lo, estão a conferir matéria factual que pode ser estabelecida por livre apreciação do julgador.

É também de referir que nada consente que este Supremo dê como assentes os factos ou inferências mencionados na conclusão 9ª da revista: de que, como alcoólico crónico e, por isso, alegadamente, como doente mental, o sinistrado se sentisse compelido a beber de qualquer garrafa que lhe parecesse conter uma bebida alcoólica e que uma garrafa guardada num armário da cozinha fosse por ele apercebida como uma garrafa contendo uma bebida alcoólica.
Desde logo porque já vimos que não vem demonstrada a alegada base das inferências – ser o sinistrado um alcoólico crónico –, sendo, por outro lado, que não vemos, minimamente, que o ser o sinistrado pessoa que bebia bastantes bebidas alcoólicas possa impor a fixação desses factos, seja no quadro dos factos notórios, seja a outro título.

Como dissemos acima, o facto de o sinistrado ser pessoa que bebia bastantes bebidas alcoólicas não tem a virtualidade de afastar a conclusão a que chegou o acórdão recorrido de que houve negligência grosseira do mesmo na produção do acidente.
Desde logo, porque não vem provado que estivesse sob o efeito do álcool quando ingeriu o ácido de soldar, não havendo, pois, razão para considerar que, nessa ocasião, a sua capacidade de discernimento e de entendimento estivesse afectada, em termos de se poder reduzir a censura do seu comportamento.
Aliás, afigura-se lícito retirar da regulamentação contida na al. c) do n.º 1 do art.º 7º da LAT que um menor discernimento ou entendimento do trabalhador-sinistrado devido à sua tendência para o consumo exagerado de bebidas alcoólicas, como situação que tem, na sua base, um comportamento voluntário, não é de molde, pelo menos, como regra, a afastar o preenchimento da figura da negligência grosseira prevista na sua al. b) nem a tornar mais exigente esse preenchimento.
Tenha-se presente que, de acordo com essa al. c) - (6). , não afasta a descaracterização do acidente de trabalho o facto de este ter resultado da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos da lei civil, que seja dependente da sua vontade.
O que vale por dizer que, no quadro apurado, o facto de o sinistrado EE ser pessoa que bebia bastantes bebidas alcoólicas não é um dado que inviabilize, nomeadamente por o tornar mais exigente, o preenchimento do conceito de “negligência grosseira”.

Nas conclusões 10ª a 15ª, as AA. vêm defender que houve culpa e violação de regras de segurança concorrentes e causais do acidente, por parte do R. empregador, o que conduziria a que não ocorresse a descaracterização do acidente de trabalho.
Ora, reapreciada a questão, concordamos com o acórdão recorrido na parte em que entendeu que houve negligência exclusiva da parte do sinistrado, isto é, que não se verificaram as apontadas culpa e violação concorrentes.
Abonamo-nos, para tal, na transcrita fundamentação do acórdão recorrido (acima feita nas páginas 14 e 15), cujos juízos parcelares e conclusivo final também subscrevemos, no essencial, e aqui damos por reproduzidos.
Como resulta desse aresto, não resultou demonstrada a violação, pelo R. – e menos ainda, a violação em termos causais do acidente – das normas ou regras de segurança, higiene ou saúde no trabalho aí indicadas [ou seja, as dos art.ºs 8º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b), 9º, n.º 1, al. a) e 12º, n.º 1, al. a) do DL n.º 441/91, de 14.11).
E também não se demonstra a violação de outras normas de segurança – que, aliás, as AA. não concretizaram, minimamente, nos autos, incluindo no corpo e conclusões da alegação da revista – designada e eventualmente previstas na invocada Portaria n.º 732-A/96, de 11.12 (que aprovou o Regulamento para a Notificação de Substâncias Químicas e para a Classificação, Embalagem e Rotulagem de Substâncias Perigosas), e seu Anexo I (que, aliás, se limita a conter uma lista de substâncias perigosas cuja classificação e rotulagem foram harmonizadas a nível comunitário, em conformidade com o procedimento definido no n.º 4 do art.º 5º do Regulamento).
Como bem se referiu, no acórdão recorrido, o acidente ocorreu numa casa cuja reconstrução o R., construtor civil, levava a efeito.
E o líquido corrosivo – ácido de soldar – não se encontrava exposto ou colocado em local facilmente manuseável ou em termos de se poder confundir com instrumento ou material de trabalho utilizável por parte do A..
Estava, num armário, dentro de uma garrafa com rótulo indicador de que continha líquido perigoso.
Como aí se disse, não estava, pois, guardado em garrafa, tipo cerveja ou outra, destinada ao consumo de bebidas alcoólicas ou outro tipo de líquidos bebíveis, que se pudesse confundir com elas e induzir, portanto, o sinistrado em erro sobre o exacto conteúdo da garrafa.
Nesse quadro, o risco estava identificado e havia aviso informador, claro e suficiente, do mesmo aos trabalhadores que pudessem, por qualquer motivo, vir a entrar em contacto com a garrafa, afigurando-se não ser exigível, atento todo o contexto apurado, que o R./empregador tivesse assumido precauções acrescidas – que, aliás, as AA. não concretizam – no acondicionamento e guarda do produto (ácido de soldar).
Assim sendo, não se demonstra a violação de regras de segurança, nem a actuação culposa do R., por violação de deveres gerais de cuidado e prevenção.
E resulta que o acidente se mostra descaracterizado por ter sido devido a negligência grosseira e exclusiva do sinistrado, com a consequente absolvição dos RR. do pedido.
Refira-se, a terminar, que o quadro fáctico apurado na presente acção é substancialmente, essencialmente diverso, no que respeita à questão da descaracterização do acidente, do que resultou assente na Revista n.º 59/97, desta 4ª Secção, em que foi proferido o acórdão de 25.06.1997, referido na conclusão 15ª da presente revista.
O que explica a divergência de soluções, sem que haja um afrontamento de posições teórico-jurídicas fundamentadoras.
Na verdade, nesse outro processo, a que foi aplicado o anterior regime jurídico dos acidentes de trabalho (constante da Lei n.º 2127, de 3.8.1965 e do respectivo Regulamento, aprovado pelo Decereto n.º 360/71, de 21.08) -(7), não se apuraram, ao contrário do que aqui sucedeu, a forma e as condições em que o sinistrado, trabalhador no Bar de um Hospital, ingeriu, no local e durante o tempo de trabalho, um produto de limpeza de natureza cáustica, que lhe veio a causar a morte.
Nessa conformidade, justificando a não descaracterização do acidente, escreveu-se aí:
“Ora, da matéria de facto não podem retirar-se os elementos acima referidos para a descaracterização do acidente.
Poderá, e certamente existiu, ver-se na actuação da vítima um acto [de] menos cuidado. Mas, o que fica sem se saber é se a vítima agiu por imprudência ou distracção, ou se o fez revelando uma imprudência ou temeridade inúteis essenciais para a descaracterização do acidente, ou se agiu com culpa grave. E, como acima se referiu, era à recorrente que competia provar os factos caracterizadores daquelas culpa grave, de uma acção com imprudência e temeridade inúteis.
Ora, a matéria de facto não suporta tal conclusão, não se sabendo, até, a forma como foi ingerido esse líquido, se directamente da vasilha, ou se foi colocado em copo ou chávena, e por quem. O que se apurou foi tão só que a vítima ingeriu aquele produto.
E fica-se sem se saber em que condições o fez, por forma a que a sua actuação se possa considerar como revestindo a requisitibilidade para a descaracterização do acidente. E, sendo à recorrente que competia provar os factos integradores da descaracterização, terá de ser ela a suportar as consequências dessa não prova”.
Situação, pois, bem diferente da verificada no presente caso, em que foi dado como assente que o sinistrado ingeriu o líquido (ácido de soldar) de uma garrafa que tinha um rótulo com uma caveira desenhada e dizeres também referentes à perigosidade do seu conteúdo.
Surge, assim, perfeitamente justificada a divergência de soluções, num e noutro caso, sobre a descaracterização do acidente de trabalho, na base do que, a propósito da natureza da culpa do sinistrado, se concluiu das respectivas factualidades assentes (no outro processo, entendeu-se estar indemonstrada a culpa grave e indesculpável do sinistrado; no presente acórdão, concluiu-se pela demonstração da negligência grosseira do sinistrado).


V – Assim, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o douto acórdão recorrido.
Sem custas, por delas estarem isentas as AA..

Lisboa, 22 de Abril de 2009

Mário Pereira (Relator)
Sousa Peixoto
Sousa Grandão

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(1) - Os art.ºs do CPC citados e os que o venham a ser sem outra menção são os da redacção desse Código vigente à data da participação do acidente (15.07.2002- fls. 2), data que marca a propositura da acção.
(2) - Veja-se, neste sentido, o acórdão do STJ de 09.10.2003, proferido na Revista n.º 1816/03, disponível em www.dgsi, processo 03B1816.
(3) - Norma segundo a qual “Não dá direito a reparação o acidente que provier exclusivamente de falta grave e indesculpável da vítima”
(4) - Ilação que, diga-se, não foi impugnada na revista.
(5) - Vejam-se, nesse sentido, os acórdãos desta Secção Social, de 15.01.2003, na Revista n.º 698/02, de 31.05.2005, no Rec. n.º 256/05, de 26.01.2006, no Rec. n.º 3228/05, de 28.09.2006, no Rec. n.º 1321/06, de
06.12.2006, no Rec. n.º 3208/06, de 14.12.2006, no Rec. n.º 2843/06, de 18.04.2007, no Rec. n.º 4473/06, e de 27.06.2007, no Rec. n.º 1050/07.
(6) - Dispõe-se aí : “1. Não dá direito a reparação o acidente: (...); c) que resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos da lei civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, ou for independente da vontade do sinistrado, ou se a entidade empregadora ou o seu representante, conhecendo o estado da vítima, consentir na prestação”.
(7) - Regime que, diga-se, era essencialmente idêntico ao actual, no que concerne à descaracterização do acidente por culpa do sinistrado.