Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
81/14.0TBORQ.E2.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
MATÉRIA DE DIREITO
DECISÃO SURPRESA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
APROPRIAÇÃO
PRÉDIO
FACTO ILÍCITO
Data do Acordão: 05/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. - Tendo os autores deduzido pedido de indemnização e articulado os factos em que baseiam esse pedido não carecem de configurar juridicamente esses factos como inclusivos da responsabilidade civil contratual ou extracontratual uma vez que “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” – art. 5º nº 3 do CPC.

II. - Realizando o tribunal a subsunção dos factos provados na previsão da responsabilidade civil extracontratual este conhecimento não exige prévio cumprimento do contraditório porque o mesmo ocorreu nos articulados.

III. - Tendo ficado provado que os réus se apropriaram indevida e consciente de ½ de um que pertencia aos autores e que, tendo-o registado em seu nome, dele desanexaram um outro que venderam, está matéria configura um facto ilícito gerador da obrigação de indemnizar.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



Relatório

AA, BB, CC, e marido DD, e EE, melhor, intentaram a presente ação declarativa comum contra FF, e mulher GG, HH e GG pedindo que: a) Se declare a nulidade dos atos praticados pelos RR. na Repartição de Finanças e dos Registos efetuados, ordenando-se a retificação, e condenando-se estes a entregar aos AA. 1/2 dos prédios acima identificados, livres de ónus ou encargos e a reconhecer o direito de propriedade dos AA. os mesmos, na referida meação, ou seja, dos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial ......, sob os nºs ……..91 e …….25 da freguesia ...............

Mais se ordene a anulação da desanexação operada pela Ap. 05/...225, pelo que o prédio ……...25 da freguesia de .............. deve voltar a integrar o prédio ……92.

b) Por fim, e caso o pedido principal não possa proceder, a título subsidiário, condenar os Réus, em solidariedade, no pagamento aos Autores de uma indemnização no valor de 49.737,275€ (quarenta e move mil setecentos e trinta e sete euros, duzentos e setenta e cinco cêntimos) ou seja, 7.500,00€ (sete mil e quinhentos euros) de privação de uso e 42.237,275€ (quarenta e dois mil duzentos e trinta e sete euros, duzentos e setenta e cinco cêntimos) de ½ de valor do terreno e ½ do valor do imóvel pré-existente e devidamente referenciados nesta ação.

Em qualquer dos casos:

c) Mais devem os RR. ser condenados solidariamente na sanção pecuniária compulsória de 100€ por cada dia de atraso na entrega da ½ dos prédios referidos, ou da indemnização.

Alegaram que o prédio urbano n.º …...13 foi deixado por testamento de JJ aos seus dois sobrinhos KK e LL, em partes iguais, sendo os Autores herdeiros legítimos de LL, e o Réu FF herdeiro de KK. Mais alegaram que após a morte de KK, o Réu FF foi habilitado por escritura notarial como o único herdeiro deste, tendo de seguida procedido ao registo a seu favor de ½ do prédio n.º ….13, por via da aquisição por sucessão “mortis causa”; cerca de 10 anos mais tarde, o mesmo Réu requereu à Conservatória do Registo Predial que fosse registado a seu favor a outra ½ do prédio n.º ….13, alegando que no primeiro registo foi cometido um lapso por apenas ter sido registado a seu favor ½ do prédio em vez da sua totalidade. A Conservatória atendeu ao pedido e registou a favor do Réu a outra metade do prédio n.º ......13, com base no mesmo título da sucessão “mortis causa”. Desta forma, todo o prédio ficou registado a favor do Réu FF.

Pela conduta descrita, os Autores acusam o Réu FF de se ter apropriado indevidamente de ½ do prédio, porquanto sabia que a mesma pertencia aos Autores, atuando assim com manifesta má-fé. Alegam, por fim, que após este segundo registo, uma parte do prédio foi desanexada (dando origem a um novo prédio) e depois vendida à Ré HH que, por sua vez, depois o vendeu à Ré GG, sendo que todos eles sabiam que ½ do prédio n.º …...13 pertencia aos Autores por sucessão “mortis causa” de LL.

Citados, os Réus GG e FF e mulher GG apresentaram as respetivas contestações.

A Ré GG defendeu ter comprado validamente o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo n.º ......26 (prédio que resultou da desanexação do prédio n.º …...13) e de as nulidades arguidas pelos Autores não poderem afetar a sua compra por força da proteção conferida pelo art. 291.º do Código Civil a terceiros adquirentes de boa-fé.

Os Réus FF e mulher GG também contestaram a ação, excecionando a ilegitimidade dos Autores por a ação não ter sido intentada pela herança jacente, como devia ter sido no presente caso. Negam que se tenham apropriado ilicitamente do prédio n.º ......13 pois o imóvel sempre pertenceu a KK, pai do Réu FF.

Os Réus FF e mulher GG também deduziram reconvenção, pedindo a condenação dos Autores/Reconvindos no reconhecimento do seu direito de propriedade, pleno e exclusivo, sobre o prédio urbano n.º ……13, bem como a condenação dos mesmos a absterem-se de praticar qualquer ato que possa violar o seu direito de propriedade. Alegam, para tanto, que o referido prédio adveio à posse e titularidade dos Réus/Reconvintes por sucessão “mortis causa” de KK, falecido em 1969, e que desde há mais de 50 anos que, por si e por intermédio dos seus ante possuidores, andam na posse do mencionado prédio, sem oposição de ninguém e ininterruptamente, pelo que o adquiriram por usucapião, e que os Réus nunca exerceram quaisquer atos de posse sobre o referido prédio.

Falecido o Autor EE, foram habilitados MM, NN e OO.

Instruídos os autos foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e em consequência:

1. Declarou a nulidade do registo de aquisição a favor do 1º R de ½ do prédio sito na Rua ........, inscrito na matriz urbana da freguesia ....... sob o art.º …. e descrito na Conservatória do Registo Predial de ...... sob o nº ……92 por sucessão da herança de KK, solteiro, maior, residente em .............., ......, correspondente à Ap. 02/...892;

2. Determinou a retificação do registo em conformidade com o ora decidido;

3. Condenou os Réus a reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre o referido prédio, na proporção de 1/2;

4. Absolveu os Réus do demais peticionado;

5. Absolveu as Rés GG e HH dos pedidos contra si deduzidos (2).

B) Julgou a reconvenção improcedente por não provada e consequentemente absolve os Autores de todos os pedidos formulados pelos Réus”.

Desta sentença interpuseram os réus FF e mulher GG, recurso de apelação e os autores contra-alegaram e apresentaram recurso subordinado.

O Tribunal da Relação julgou improcedente a apelação interposta pelos réus FF e GG, mantendo a sentença recorrida;

julgou parcialmente procedente o recurso subordinado interposto pelos autores, condenado os réus FF e GG, a pagar aos autores, até ao limite de € 27.273,34 (vinte sete mil duzentos e setenta e três euros e trinta e quatro cêntimos), o valor correspondente a metade do mencionado prédio desanexado - terreno com 260 m2 -, calculado à data da desanexação do prédio descrito sob o nº …92, a liquidar posteriormente.

Desta decisão interpuseram os réus FF e mulher, GG, recurso de Revista concluindo que:

“I - Nos presentes autos, discute-se a propriedade, o registo e a posse de metade (1/2) de dois prédios urbanos descritos na Conservatória do Registo Predial ......, o prédio urbano descrito sob o n.º …18 e o prédio urbano descrito sob n.º …25, que do anterior foi desanexado e sucessivamente vendido à 3º R e à 4ª R.

GG - Da recorribilidade do acórdão proferida pelo Tribunal da Relação……: Os Autores/Recorridos formularam vários pedidos contra os RR, distintos e subsidiários entre si.

O Tribunal Judicial da Comarca ……. julgou parcialmente procedente um pedido dos AA, condenando os 1º RR a reconhecerem o direito de propriedade dos mesmos sobre 1/2 do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial......, sob o n.º ……91.

Absolveu-os dos demais pedidos.

Julgou totalmente improcedente a Reconvenção dos 1º RR, não contestada pelos AA.

O Tribunal da Relação……. revoga, parcialmente, a decisão do Tribunal de 1.ª instância:

Condena os 1º RR a pagarem uma indemnização aos AA, até ao valor máximo de € 27.273,34, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual.

Pedido de que haviam sido absolvidos pelo identificado Tribunal de 1.ª instância. Mantém a condenação dos 1º RR, a reconhecerem o direito de propriedade dos AA sobre 1/2 do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ......, sob o n.º …91.

Absolve-os dos demais pedidos, mantendo, também nessa parte, decisão do Tribunal de 1.ª instância.

Julga, igualmente, totalmente improcedente a Reconvenção dos RR, não contestada pelos AA.

Do recurso de revista:

No que toca à decisão de condenar os RR a pagarem uma indemnização aos AA, até ao valor máximo de € 27.273,34, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual, o Tribunal da Relação ...…, nos termos expostos, decide de forma oposta ao Tribunal da 1.ª instância, que absolveu os 1º RR deste pedido, termos em que a douta sentença é recorrível, não existindo nesta parte da decisão, dupla conforme, nos termos do disposto no artigo 671º nº 1 e n.º 3, do C.P.C.

Do recurso de revista excecional:

Relativamente à decisão de condenar os 1º RR a reconhecerem o direito de propriedade dos AA sobre 1/2 do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ......, sob o n.º …91:

A mesma é recorrível, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 671º n.º 3 e 672º, n.º 1, al) c, todos do C.P.C. na medida em que existe outro acórdão, proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, transitado em julgado, que decidiu em sentido distinto sobre a mesma questão de Direito.

Trata-se do acórdão n.º 2378/08.... APELAÇÃO (que confirmou integralmente a decisão de 1ª instância, do Tribunal da Comarca……, no processo 123/05…), do Tribunal da Relação ……, cuja cópia se junta.

Está em causa a aquisição, por usucapião, de parte indivisa de um prédio, mais precisamente de 1/2, pedida em reconvenção e negada aos 1º RR.

GGI - Das alegações de recurso de revista excecional, relativamente à condenação dos 1º RR a reconhecerem o direito de propriedade dos AA sobre 1/2 do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ......, sob o n.º ……91 e a negarem provimento aos mesmos RR relativamente ao pedido de lhes reconhecerem o direito de propriedade sobre 1/2 do mesmo prédio, com fundamento no instituto da usucapião:

O Tribunal "a quo" julgou provados os factos que constam de fls. 9 e seguintes do douto acórdão, que aqui se dão por reproduzidos, para todos os legais efeitos.

Com base nos aludidos factos provados condenou os 1º RR a reconhecerem o direito de propriedade dos AA sobre 1/2 do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ......, sob os nº ………91, mantendo nesta parte, da decisão da 1ª instância:

Esta decisão está em contradição com outra decisão, proferida pelo mesmo Tribunal, no acórdão n.º 2378/08-3 APELAÇÃO, do Tribunal da Relação ……, transitado em julgado (que confirmou integralmente a decisão de 1ª instância, do Tribunal da Comarca ………, no processo 123/05……).

Nos termos do artigo 672º, nº 2, os recorrentes indicam:

a) As razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito:

Está em causa a aquisição por usucapião da quota parte ou quota ideal de um prédio.

No entender dos ora Recorrentes, os requisitos substantivos para a aquisição dessa quota ideal não podem ser diferentes dos exigíveis para a aquisição da totalidade do prédio.

No caso dos autos provou-se, que os AA, adquiriram do seu tio LL, ½ do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial...... sob o n.º …91 e que o 1º R adquiriu, por morte do seu pai, KK 1/2 do mesmo prédio.

Se o 1º R. nada tivesse adquirido por morte do seu identificado pai, então a sua reconvenção seria totalmente procedente e a ação dos AA improcedente, tendo em conta os factos provados supra descritos, designadamente, os relativos à posse do prédio, às suas características e durabilidade, que aqui se dão por reproduzidos e que preenchem, integralmente, todos os requisitos substantivos da aquisição do Direito de propriedade por usucapião (vide factos provados).

Vista a situação sob este prisma, exige-se, certamente, uma melhor e mais justa aplicação do Direito, que seja entendida pelos aos cidadãos, nomeadamente, por aqueles que recorrem à justiça para fazer valer os seus direitos.

A posse adquire-se "Pela prática, reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito." - artigo 1263º, al. a), do C.Civil.

Quem exerce poder de facto sobre a coisa, goza da presunção da posse, conforme dispõe o artigo 1252º, n.º 2 do C.Civil.

Prescreve este dispositivo que, em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, Presunção que foi objecto de Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ, de 14 de maio de 1996, nos termos do qual: "Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa». ..."

Desde então, de modo pacífico, está marcadamente instituído que quem tem o poder de facto, ou o “corpus”, está dispensado de provar que possui com intenção de agir como titular do direito real correspondente.

Esta linha de pensamento tem sido mantida pela nossa jurisprudência.

Ainda relativamente à posse, dispõe o artigo 1268 do C.Civil que: "O possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir a favor de outrém, presunção fundada em registo anterior ao início da posse".

Os Autores não têm o prédio registado em seu nome, nomeadamente, o 1/2 de que se arrogam proprietários, nem a posse do mesmo, sobre a qual nada alegaram.

Ao exercer sobre todo o prédio em causa nos autos, descrito sob o n° ……92, uma posse pacifica, pública, contínua e de boa-fé, que dura desde a data da morte do pai do 1º R, ocorrida a 19 de Julho de 1969, até à atualidade, ou seja 51 anos, o 1.º Réu adquiriu a sua propriedade por usucapião.

O douto acórdão violou, desta forma os artigos 1258º a 1263º, 1287º e 1294º a 1297º, todos do CCivil e decidiu contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça.

Vista a situação sob este prisma, exige-se, certamente, uma melhor e mais justa aplicação do Direito, que seja entendida pelos aos cidadãos, nomeadamente, por aqueles que recorrem à justiça para fazer valer os seus direitos.

b) As razões pelas quais os interesses são de particular relevância social:

A usucapião tem na sua base ponderosas razões de ordem económico-social, nomeadamente, a necessidade de tornar certa e estável a propriedade, e a utilidade de transformar uma situação de facto numa verdadeira situação de direito, a favor de quem mantém e exerce, ininterruptamente, a gestão económica da coisa, face à incúria do seu proprietário.

c) Os aspetos de identidade que determinam a contradição alegada:

Entendeu o Tribunal "a quo" que os 1º RR não podiam adquirir, por usucapião, metade indivisa do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ......, sob o n.º ……91, na medida em que não é possível a aquisição por usucapião, a parte indivisa de um prédio, a quota ideal de um prédio, sem invocar a inversão do titulo de posse, nos termos do artigo 1265° do C Civil, confirmando, nesta parte, a decisão da primeira instância.

Face à factualidade dada como provada, reproduzida nos presentes autos, dúvidas não restam que o 1.º R. exerceu sobre a totalidade do prédio descrito sob o n° ………92, incluindo a parte indivisa reivindicada pelos AA, 1/2 do prédio, atos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade, de forma reiterada, pública e pacífica, desde, pelo menos, a data da morte do pai, ocorrida a .. de Julho de 1969, até à atualidade, ou seja durante 51 anos.

Atos materiais são os que incidem diretamente sobre a coisa:

- O 1.º R, pelo menos, desde há 51 anos, que usa o prédio para passar as suas férias e os seus fins de semana, nele dormindo, comendo e recebendo amigos; - prédio que remodelou e restaurou, por duas vezes, aumentando-lhe, significativamente, o valor patrimonial, de 79,31€, para 29.927,87€;

- prédio do qual desanexou uma parte e vendeu à 3º R. HH, que por sua vez o vendeu à 4ª R. GG;

- O que sempre fez à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, incluindo os AA, privando-os do uso do mesmo, até à atualidade.

Para conduzir à aquisição da propriedade por via da usucapião, a posse tem de revestir duas características: tem de ser pública e pacífica.

Os restantes caracteres, ser de boa ou de má-fé, ser titulada não, têm influencia, apenas, no prazo: A posse não titulada e de má-fé só conduz à aquisição por usucapião, se for mantida por 20 anos, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1258º a 1263º, 1287º e 1294º a 1297º, todos do C Civil, que a douta sentença violou, como se explana de seguida:

O douto acórdão recorrido não deu qualquer relevância aos actos de posse, mais precisamente, aos actos materiais exercidos sobre o prédio, ao poder de facto exercido sobre todo o prédio, alegados e provados pelos 1º e 2ª RR, considerando que a posse exercida pelo 1.º R sobre o prédio é exercida em nome e representação dos Autores, uma mera detenção:

A Apelação cível n.º 2378/08.3, transitada em julgado, decidiu em sentido contrário relativamente à aquisição por usucapião, de parte indivisa de um prédio, indo de encontro às alegações dos RR/Recorrentes:

No processo 123/05……, que originou a Apelação cível n.º 2378/08.3, cuja cópia se junta, o Tribunal de 1ª instância, a Comarca …… e o Tribunal da Relação ……, deram razão aos AA PP e marido KK, que invocaram e adquiriram por usucapião, metade indivisa do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ……. sob o número ……85, da freguesia ......., concelho ……...

Decidiu o Tribunal da Relação ……, que é possível adquirir por usucapião, a parte indivisa de um prédio, a quota ideal de um prédio, sem invocar a inversão do título de posse, nos termos do artigo 1265° do C Civil.

Bastou a este Tribunal que estivessem preenchidos relativamente à parte indivisa do prédio, ou à quota ideal do mesmo prédio, os requisitos substantivos do instituto da usucapião:

Aplicando o Direito aos factos provados, reproduzidos nas alegações deste Recurso, a Apelação cível n.º 2378/08.3 do Tribunal da Relação ……... reconheceu os que AA supra identificados, eram donos de metade do prédio em questão nos autos pelo simples facto de o terem adquirido por usucapião: Relativamente ao instituto da usucapião a Apelação cível n.º 2378/08.3, do Tribunal da Relação ………, teceu as seguintes considerações:

" A usucapião assenta na posse durante um prazo mínimo pré-estabelecido; ou seja, uma alteração qualitativa da relação jurídica com a coisa - que, sendo em termos de facto (posse), passa a ser em termos de direito - motivada pela sua duração.

Daí que o art. 1287° CC defina a usucapião, prescrevendo que "a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação".

A actuação material correspondente à posse juridicamente relevante no caso em apreço iniciou-se em 1926, na sequência de um contrato de permuta formalmente inválido meramente verbal, a sua validade pressupunha escritura pública), através do qual os antecessores dos AA, ora recorridos, cederam a propriedade de terrenos (duas mãos de um prédio rústico) em contrapartida de metade do prédio urbano ora em disputa (mais concretamente um compartimento de habitação e a cavalariça).

Sendo este o título da posse invocada pelos AA. e entendendo-se por título o modo legítimo de adquirir o direito, independentemente do direito do transmitente e da validade substancial do negócio jurídico, logo se conclui que, relevando a invalidade formal do negócio para a qualificação da posse como titulada ou não (art. 518° do Cód. Seabra e 259° n° 1 CC), a posse dos AA e recorridos não é titulada.

A partir de então, investidos na posse de metade do prédio urbano, os antecessores dos AA., estes assumiram-se e apresentaram-se como comproprietários do mesmo, passando actuar (corpus) de acordo com esse estado de espírito (animus).

A plenitude e a exclusividade dos poderes e direitos de uso e de fruição da coisa, objecto do direito de propriedade - e que igualmente se manifestam na posse do respectivo direito, como sua aparência ou manifestação - que até então pertenciam a QQ, pai da Ré e tio da Autora, passaram a ser compartilhados entre ele e a mãe da Ré, sua irmã…" fls. 5 e 6 do douto acórdão;

IV -Temos então dois acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação ……, em contradição um com o outro, no âmbito da mesma questão fundamental de Direito, que é a seguinte:

A aquisição, por usucapião, da quota ideal de um prédio, sem a necessária invocação da inversão do título de posse.

Embora os contornos de cada uma das ações seja, naturalmente, diferente, a questão de fundo é a mesma, devendo o Venerando Supremo Tribunal de Justiça pronunciar-se sobre a mesma, perfilhando da posição assumida pelo Sr. Dr. Juiz Desembargador, Fernando Bento, Relator no douto acórdão n.º 2378/08-3 APELAÇÃO (que confirmou integralmente a decisão de 1ª instância, do Tribunal da Comarca ……, no processo 123/05……).

V - Das alegações de recurso de revista, relativamente à condenação dos 1º RR a pagarem aos AA uma indemnização, com fundamento na responsabilidade civil extracontratual:

O Tribunal "a quo" condenou, os 1º RR a pagarem uma indemnização aos AA, até ao valor máximo de € 27.273,34, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual, pedido de que tinham sido absolvidos pelo Tribunal da 1ª Instância.

O artigo 483° do Código Civil estabelece uma cláusula geral de responsabilidade civil subjectiva, fazendo depender a constituição da obrigação de indemnização a cargo do lesante, da verificação cumulativa de vários requisitos.

Tem de haver um facto ilícito, voluntário, praticado com culpa e nexo causal entre o facto e o dano.

O direito à indemnização por responsabilidade civil extracontratual, prescreve, ainda, no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 498.º do Cod. Civil.

Está em causa o fator da segurança jurídica que o legislador procurou acautelar.

VI - Nos presentes autos, os Autores nunca fundamentaram o seu pedido na responsabilidade civil extracontratual dos RR, esta não constitui, igualmente, a respetiva causa de pedir. Surge, apenas, com a decisão do Tribunal da Relação ……, de forma justificar, juridicamente, a condenação dos RR/Recorrentes.

VGG - Os RR nunca tiveram oportunidade de se defender de uma ação de responsabilidade civil extracontratual, uma ação que foi configurada "ex novo" pelo Tribunal da Relação de Évora, que com esta sua decisão violou o princípio da estabilidade da instância, plasmado no artigo 260º do Código de Processo Civil.

VGGI -Mesmo que assim não se entenda, o que não se concede, mas se alega em defesa dos direitos dos RR/Recorrentes, sempre se dirá que não se encontram preenchidos os requisitos da responsabilidade civil extracontratual.

Facto ilícito - Resultou provado que o prédio em causa nos autos, descrito na Conservatória do Registo Predial ...... sob o n° ………92, foi deixado em testamento por JJ, a seus sobrinhos, KK, residente em .............. e a LL, residente em Africa;

O R marido foi herdeiro do seu pai KK e os AA herdeiros do seu tio LL;

O testamento data de 12 de Fevereiro de 1959 e a JJ faleceu a 13 de Fevereiro de 1959;

Não foi provado, ou sequer alegado, que o LL alguma vez tivesse demonstrado qualquer interesse pelo prédio, que tivesse procurado o seu primo KK, pai do R. marido, ou sequer este;

O ascendente dos AA, beneficiário do testamento em causa nos autos, abandonou o legado da sua tia;

Os ora AA/Recorridos, seus descendentes, só em 2001 (ano em que foi intentado o processo n° 445/2001, de Morte Presumida/Inventário por óbito de LL), volvidos 42 anos sobre a morte da tia legatária, vêm reivindicar o seu legado, demonstrando ter amplo conhecimento do testamento, da conduta dos RR/Recorrentes e do novo prédio, entretanto surgido, modificado, reconstruído, em suma, apetecível!

No nosso modesto entender não existe qualquer conduta reprovável, ilícita, por parte dos RR, em reabilitar, rentabilizar, um imóvel abandonado pelo legatário de 1/2 do prédio pelos seus herdeiros, durante 42 anos.

Facto culposo - A culpa é apreciada em relação a cada caso concreto, tendo como padrão a diligência de um bom pai de família (artigo 487°, n.° 2 do Código Civil).

Tendo em conta os factos provados, supra descritos, seria exigível ao R marido que abandonasse o legado deixado ao seu falecido pai, ou melhor, seria possível, do ponto de vista prático, reabilitar metade de um prédio em ruínas?

Não será esse certamente, o comportamento a esperar um bom pai de família, relativamente à sua herança.

Para além disso, não podemos esquecer que todo o comportamento do R marido foi público, durante décadas, foi pautado pela convicção de que não estava a lesar qualquer Direito, na medida em que nunca ninguém tinha demonstrado qualquer interesse pelo prédio, como ficou provado:

O 1° R. usa o prédio para passar férias e fins-de-semana há cerca de 51 anos, isto é, desde a morte do seu pai, ocorrida a 19 de Julho de 1069;

Desde essa data nele dorme, toma refeições e recebe amigos;

Realizou obras no prédio tais como arranjos no telhado, colocação de duas portas de madeira exteriores e construiu uma casa de banho;

O que sempre fez à vista de toda a gente e sem a oposição de ninguém;

Após a desanexação de parte o do prédio, o 1° R. realizou obras de reconstrução e de reabilitação no mesmo;

Sem o seu comportamento, agora condenado pelo Tribunal, certamente não haveria prédio e não estaríamos aqui a discutir a questão.

Não havendo facto ilícito e culposo, não existe dano, nem nexo de causalidade.

Termos em que não podia o Tribunal "a quo" condenar os RR a pagar aos AA, uma indemnização por responsabilidade civil extracontratual, por não se verificarem os respetivos requisitos, ao fazê-lo violou o artigo 483º do Código Civil.

Prazo - O direito à indemnização por responsabilidade civil extracontratual, prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 498.º do Cod. Civil:

Tendo em conta que:

A 18 de Novembro de 1982 o 1.º R registou 1/2 do prédio ……82, através da apresentação Ap. 02/...182;

A 18 de Agosto de 1992, o 1.º R registou 1/2 do prédio ……...92, através da apresentação Ap. 2 de 1992/.../...;

A 25 de Fevereiro de 1999, o 1.º R desanexou 260 m2 do prédio ……...91, registando a desanexação através da Ap. 05/...225, dando origem ao prédio ………25;

Em 2001 os AA intentaram no Tribunal Judicial da comarca ...... o processo n° 445/2001, de Morte Presumida/Inventário (Herança) por óbito de LL relacionando como parte da herança o prédio ………89; Fizeram intervir no processo os RR. GG e marido FF, alegando que os mesmos eram detentores de um bem da herança, precisamente, o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ...... sob o n° …….92 ; Não deduziram qualquer pedido civil.

O pedido de indemnização civil teve lugar, apenas, nos presentes autos, a 10 de maio de 2017, com a sua petição inicial aperfeiçoada, apresentada no âmbito de um convite do Tribunal para o efeito, como supra descrito;

Termos em que não podia o Tribunal "a quo", também, por via do prazo prescricional plasmado no artigo n.º 1 do art.º 498.º do Cod. Civil, condenar os 1ºs RR a pagar aos AA uma indemnização por responsabilidade civil extracontratual.

Ao fazê-lo violou a citada disposição legal e o princípio da segurança jurídica que a mesma visa acautelar:

Entre 18 de Agosto de 1992 (data em que foi lavrado o registo anulado nos presentes autos) e 2017 (data do pedido de indemnização dos AA), ou entre 25 de Fevereiro de 1999 (data em que foi lavrado o registo da desanexação) e 2017, existe, notoriamente, um prazo superior a 3 anos, termos em que o direito dos AA, a existir, prescreveu.

Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis deve o Tribunal “ad quem”, a) Revogar o douto acórdão recorrido e reconhecer que o Réu FF, é dono e possuidor legítimo da totalidade do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial … ...... sob o n.º ……18;

b) Condenar os Autores a reconhecer a propriedade do mesmo Réu, sobre a totalidade do prédio, abstendo-se de realizar qualquer ato ou produzir qualquer documento que perturbe ou viole esse direito;

aa) Revogar o douto acórdão recorrido e absolver os 1º RR de pagarem indemnização aos AA, a qualquer título, designadamente, de pagarem aos AA, até ao limite de €27.273,34 (vinte sete mil duzentos e setenta e três euros e trinta e quatro cêntimos), o valor correspondente a metade do prédio desanexado do n.º ……18 - terreno com 260 m2 - , calculado à data da desanexação do prédio descrito sob o n° ……….92 , a liquidar em execução de sentença.”

… …

Os recorridos contra-alegaram concluindo que deveria ser rejeitado o recurso e manter-se integralmente o acórdão recorrido.

Por despacho do relator relativo à admissibilidade do recurso decidiu-se que no segmento da condenação dos réus FF e GG no pagamento aos autores da indemnização o recurso de revista era admissível nos termos do disposto no art. 674 nº 1 al.a) do CPC uma vez que, nessa parte, a decisão em primeira instância absolveu os recorrentes e a apelação, revogando a sentença, veio a condená-los nos termos sobreditos.

Quanto ao objecto do recurso interposto pelos réus relativo á declaração da nulidade do registo de aquisição a favor do 1º R de ½ do prédio e determinação da rectificação do registo por existir dupla conforme foram os autos enviados à Formação a que alude o art, 671 nº 3 do CPC que rejeitou a revista excepcional.

… …

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

… …

Fundamentação

Está provado nos autos que:

“1. Correu termos no então Tribunal Judicial da comarca de ...... o processo n° 445/2001, de Morte Presumida/Inventário (Herança) por óbito de LL, que também usava o nome de LL;

2. Foram reconhecidos herdeiros legítimos do falecido os autores;

3. Os RR. GG e marido FF, intervieram neste mesmo Inventário (Herança) como detentores do bem da herança, o prédio sito na Rua .............., inscrito na matriz urbana da freguesia ............. sob o art.º …. e descrito na Conservatória do Registo Predial ........ sob o nº …………92;

4. Este prédio proveio do art.º …13 da matriz urbana daquela freguesia encontrava-se descrito na Conservatória do Registo Predial ...... sob o nº …. a fls. 177 do Livro B-46;

5. Este prédio fora deixado em testamento por JJ aos herdeiros, seus sobrinhos, KK, solteiro, maior, ……, de 41 anos de idade, residente em .............., e LL, solteiro, ……, de 49 anos de idade, residente em Africa;

6. Os ora 1º e 2º RR. seguiram os termos do processo, estando presentes em diligências, constituindo mandatária forense e assistindo ao julgamento, sendo, inclusivamente, parte ativa no processo, contestando e indicando testemunhas.

7. JJ, solteira, faleceu em 13 de fevereiro de 1959, em .............., tendo disposto dos seus bens por testamento publico celebrado em 12 de fevereiro de 1959, tendo deixado “a seus sobrinhos KK e LL, filhos de seu irmão FF, em partes comuns e partes iguais, uma morada de casas que passou situada na Rua……, desta mesma aldeia, na condição dos mesmos nunca poderem vender”;

8. Nas Finanças ...... correu o Proc.4.242 do ano de 1959, tendo-se procedido às liquidações devidas com identificação dos prédios e seus titulares;

9. O 1º R. é herdeiro de KK cujo óbito ocorreu em .............., a 19 de julho de 1969, tendo procedido a habilitação de herdeiros por escritura de 15 de outubro de 1982 no Cartório Notarial de ......;

10. Pela Ap. 02/...182 encontra-se registada a favor do 1º R a aquisição de ½ do referido prédio por sucessão da herança de KK, solteiro, maior, residente em .............., ......;

11. Pela Ap. 02/...892 encontra-se registada a favor do 1º R a aquisição de ½ do referido prédio por sucessão da herança de KK, solteiro, maior, residente em .............., ......;

12. Do pedido de registo consta “Aquisição de ½ do prédio em virtude de o 1º registo ter sido apenas registado ½ por lapso, por óbito de KK, solteiro, e residente que foi na freguesia ..............”;

13. O 1º R. fez alterar para seu nome essas inscrições matriciais, no Serviço de Finanças ….......;

14. Do prédio descrito sob o nº ………92 foi desanexado o descrito sob o nº ……25 com a área de 260 m2, ficando o prédio modificado (Ap. 01/…1008 com a seguinte identificação: “urbano, sito na Rua ..................., composto por três quartos, uma sala de banho, corredor, cozinha, uma sala, sótão e quintal, com a área coberta de 155m2 e descoberta de 157m2. Matriz a destacar do art.º …… Destina-se a habitação”;

15. O prédio desanexado e descrito sob o art.º nº ……25 da Conservatória do Registo Predial ......, com a área de 260m2, rés do chão e 1.º andar, sito na Rua ...................., freguesia de .............., concelho de ......, inscrito na matriz predial urbana sob o art.º …, foi vendido pelos 1ºs RR. à 3.ª Ré HH (docs. Certidão da Caderneta Predial e da Conservatória do Registo Predial juntos com a p.i.);

16. A 3.ª Ré HH, por sua vez o vendeu, em 19/07/2010, pelo valor de €129.000,00, à 4.ª Ré GG (Ap. … de 2010/07/…) – doc. escritura pública junta em 26/05/23014 com a contestação;

16-A. O imóvel identificado em 16. tinha, em 2013, o valor patrimonial de € 59.213,65 – caderneta predial junta com a p.i

17. Os AA. têm estado até hoje privados do uso do imóvel;

18. Pelo menos desde a morte do pai o 1º R. usa o prédio para passar férias e fins-de-semana;

19. Nele dorme, toma refeições e recebe amigos;

20. O 1º R. realizou obras no prédio tais como arranjos no telhado, colocação de duas portas de madeira exteriores e a construção de uma casa de banho;

21. O que sempre fez à vista de toda a gente e sem a oposição de ninguém;

22. Após a desanexação o 1º R. realizou obras de reconstrução e de reabilitação do prédio;

23. O imóvel pré-existente (descrição ………92) tinha à data da Ap.03/...231 o valor patrimonial de 15.901$00 e à data de Ap. 01/…...1018 o valor de 29.927,87€.”

… …

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das Recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido nos arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

O conhecimento das questões a resolver, delimitadas pelas alegações, resume-se em apreciar se deve manter-se a condenação dos réus FF e GG, no pagamento aos autores, até ao limite de € 27.273,34 (vinte sete mil duzentos e setenta e três euros e trinta e quatro cêntimos).

… …

Alegam os recorrentes que os autores não apresentaram causa de pedir nem pedido para fundamentarem a responsabilidade civil extracontratual dos RR. e que, como assim, nunca tiveram oportunidade de se defender de uma ação de responsabilidade civil extracontratual, que foi configurada "ex novo" pelo Tribunal da Relação violando o princípio da estabilidade da instância do artigo 260º do Código de Processo Civil.

Neste âmbito, uma primeira observação vai para a circunstância de os recorrentes protestarem que o tribunal recorrido decidiu fora do pedido e da causa de pedir, isto é, sem atender ao pedido deduzido e à causa de pedir formulada, embora não concluam pela nulidade da decisão por ter havido pronúncia sobre questões que o tribunal não pudesse conhecer ou condenação em objecto diverso do pedido – art. 615 nº 1 al. d) e e) do CPC. Remetendo genericamente para a violação do princípio da estabilidade da instância do art. 260 do CPC, através do qual “citado o réu a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei”, os recorrentes limitam-se a reclamar que não tiveram oportunidade de se defender quanto a essa responsabilidade deixando subentendida, sem no entanto o afirmarem e arguirem que a decisão da Relação é nula por violação do princípio do contraditório.

Em síntese, os recorrentes defendem a revogação da decisão da apelação nesta parte sem indicarem em concreto o vício processual que a determinaria, ou seja, se a nulidade da decisão nos termos do art. 615 nº 1 do CPC, se a nulidade por violação do princípio do contraditório do art. 3 do CPC (que nem sequer é mencionado). Assim, mesmo a aceitar-se que a eventual alusão a este último (ao princípio, que não ao preceito) poderia configurar a invocação dessa nulidade, sempre teríamos de desconsiderar a procedência da invocação.

O princípio do contraditório encontra-se ínsito na garantia constitucional de acesso ao direito consagrada no artigo 20º da Constituição e traduz-se na possibilidade dada às partes de exercerem o seu direito de defesa e exporem as suas razões no processo antes de tomada a decisão, o que constitui um pilar essencial na concretização do princípio da igualdade das partes, encontrando ambos expressão na lei ordinária nos artigos 3º nº 3 e 4º do Código de Processo Civil. Manifestando-se em diversos planos ao longo do processo, (Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, 1999, vol. 1º, págs. 8/9), no domínio das questões de direito, sejam processuais sejam materiais, o princípio do contraditório proíbe as chamadas decisões-surpresa, ou seja, impede que o tribunal tome conhecimento de questões, ainda que de apreciação oficiosa, sem que as partes tenham tido prévia oportunidade de sobre elas se pronunciarem, a não ser que a sua audição se revele manifestamente desnecessária.

A arguição de nulidade de uma decisão por se constituir surpresa ocorre apenas quando a solução escolhida pelo tribunal se desvincule totalmente do alegado pelas partes, na sua substancialidade ou na sua adjectividade. As partes apenas terão direito a insurgir-se contra uma decisão se a via nela seguida não se contiver com um mínimo de relação com o que tenha sido alegado e sufragado pelas partes durante o curso do processo. Assim, se as partes não tiveram hipótese de aportar e debater factos novos e que poderiam trazer alguma luz sobre a via oficiosamente assumida pelo tribunal, então terão o direito de tentar refazer a actividade do tribunal de modo a adequar a estrutura do processo ao resultado decisório.

No caso em decisão observamos sem esforço interpretativo que os autores, na petição inicial, pediram a condenação dos réus no pagamento de uma indemnização no valor de 49.737,275€ (quarenta e move mil setecentos e trinta e sete euros, duzentos e setenta e cinco cêntimos) referente, 7.500,00€ (sete mil e quinhentos euros) à privação de uso e 42.237,275€ (quarenta e dois mil duzentos e trinta e sete euros, duzentos e setenta e cinco cêntimos) de ½ de valor do terreno e ½ do valor do imóvel pré-existente, indicando factos praticados pelos réus de onde decorreria essa condenação e que se podem resumir em terem agido de forma a apropriar-se da parte que correspondia aos autores nesses prédios.

Assim, é evidente que as partes não podiam deixar de perspectivar como solução plausível do litígio a condenação dos réus em indemnização em razão dos factos que se diziam praticados por si. E não podiam deixar de o fazer pela óbvia razão de nem sequer se tratar de configurar a partir do expresso o que seria implícito porque, no caso, esse pedido de condenação fazia parte, quer do pedido, quer da causa de pedir r dos factos descritos que a compunham, era ele mesmo parte do objecto directo do mérito da causa.

Nesta afirmação de que a condenação dos réus em indemnização fazia parte integrante da causa de pedir e do pedido, abordamos o segundo momento da argumentação dos recorrentes quando sustentam que a responsabilidade civil extraprocessual não foi invocada pelos autores.

Próximo dos arts. 3 e 4 do CPC antes citados, o subsequente, o 5º, estabelecendo no nº 3 que “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”, deixa esclarecido que, se às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiem as excepções invocadas - nº 1-, a liberdade judicativa do juiz não sofre restrição quanto à subsunção da realidade apurada ao direito. Ainda que o demandante não epigrafe os factos que alegue numa designação como a de “responsabilidade civil contratual ou extra contratual”, desde que exponha os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões que servem de fundamento à acção e formule o pedido – art. 552 nº 1 al.d) e e) do CPC, realiza o que é necessário para que o tribunal possa conhecer do mérito.

No caso em decisão, como antes anotámos, é pacifico que os autores deduziram pedido de condenação em indemnização contra os réus e fizeram assentar esse pedido nos factos que articularam na petição inicial, designadamente naqueles de onde decorria uma actuação voluntária e consciente dos réus lesiva dos direitos que queria ver reconhecidos.

Assim, improcedem as conclusões de recurso na parte em que os recorrentes sustentam que o tribunal conheceu de matéria de que não podia conhecer ou que não tiveram os recorrentes oportunidade de se pronunciarem sobre a questão indemnizatória decidida.

 Quanto a este pedido de indemnização os recorrentes vieram alegar nas suas conclusão que o mesmo se encontra prescrito, mas a invocação da prescrição de direitos  constitui um excepção peremptória cuja procedência importa a absolvição total ou parcial do pedido - conforme a situação em apreço -, já que o seu beneficiário tem a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito (cfr. art. 493, nºs 1 e 3, do CPC e art. 304, nº 1, do CC).

Tem-se igualmente presente que a prescrição não é de conhecimento oficioso, sendo necessária a sua invocação pela parte que dela beneficia, para que o tribunal a possa conhecer, (cfr. artºs 303 do CC, e 579 do CPC), estabelecendo o artº 573 do CPC que “toda a defesa deve ser deduzida na contestação, exceptuados os incidentes que a lei manda deduzir em separado” (nº 1) e que “depois da contestação só podem ser deduzidas as excepções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou que se deva conhecer oficiosamente.”(nº 2). Consagra este normativo o princípio da preclusão, significando, como escreve o prof. Lebre de Freitas (in “Código de Processo Civil Anotado, 2º Vol. Pág. 295), que “o réu tem o ónus de, na contestação, impugnar os factos alegados pelo autor, alegar os factos que sirvam de base a qualquer excepção dilatória ou peremptória (com a única excepção das que forem supervenientes) e deduzir as excepções não previstas no artº 289, nº 2. Se o não fizer, preclude a possibilidade de o fazer”

De acordo com estas observações normativas verificamos que no caso, os réus, confrontados com o pedido e a causa de pedir de onde constava, o de condenação em indemnização com base nos factos articulados, não deduziram a excepção de prescrição desse direito a indemnização reclamado pelos autores. Aliás, só nas conclusões de revista e quando confrontados com a condenação em indemnização em que tinham sido absolvidos na sentença, vieram fazer essa invocação. Assim, a mesma é manifestamente extemporânea, tanto mais que não ocorre, no caso, nenhuma das situações de excepção de que atrás falámos e que se encontram previstas no citado art. 573 nº 2 do CPC.

Não se se tratando a prescrição de uma situação que o tribunal possa conhecer oficiosamente, julga-se improcedente nesta parte as conclusões de recurso.

Por último, defendem os recorrentes que não se encontram provados os pressupostos da responsabilidade civil, designadamente, não se fez prova da prática de qualquer acto ilícito. Mais concretamente, referem que a prova revela que o prédio discutido foi deixado a KK e a LL, residente em Africa, sem que tivesse ficado provado que este último alguma vez tivesse demonstrado qualquer interesse pelo prédio pelo que se deveria entender que o autor beneficiário do testamento em causa nos autos “abandonou o legado da sua tia.” o que tornava lícitas as actuações dos réus em reabilitar e rentabilizar um imóvel abandonado pelo legatário de 1/2 do prédio e pelos seus herdeiros, durante 42 anos.

Acontece que estas conclusões que partem de uma predicação “moral”, remetendo para o injusto de alguém que recebeu parte de um prédio em herança não se interessar por ele, enquanto os restantes beneficiários se interessam, apenas poderiam invocadas como leitura de resultado, se o direito aplicável lhes desse razão, mas não valem como argumentos para que se lhes venha a dar razão contra o que o direito aplicado determina e a decisão judicial transitada em julgado determinou.

Encontra-se decidida definitivamente (por existência de dupla conforme e rejeição da revista excepcional) “a nulidade do registo de aquisição a favor do 1º R de ½ do prédio sito na R. .............., inscrito na matriz urbana da freguesia .............. sob o art. ……13 e descrito na CRP ...... sob o nº …….92  por sucessão da herança de KK, solteiro, maior, residente em .............., ......, correspondente à Ap. 02/...892”; “ a retificação do registo em conformidade com o decidido” e a condenação dos “RR. a reconhecer o direito de propriedade dos AA. sobre o referido prédio, na proporção de ½”

Esta decisão confirmada judicialmente desmente qualquer relevância quanto ao interesse ou desinteresse que um dos herdeiros possa ou não ter demonstrado pelo que lhe coube em herança, entendido esse interesse como hábil para transformar em lícitos os factos praticados pelos réus de forma voluntária e consciente e lesivos dos direitos reconhecidos aos autores. O que resulta provado revela, por parte dos réus, a apropriação indevida e consciente de ½ do prédio descrito sob o nº …………92  e desanexação deste do prédio, dando origem ao prédio descrito sob o nº ………25, com a área de 260m2, modificando esse prédio, sendo que o prédio desanexado (com a área de 260m2), deu lugar à implantação de um prédio urbano - rés do chão e 1.º andar, sito na Rua ....................., freguesia ............., concelho ......, inscrito na matriz predial urbana sob o art.º …., que depois foi vendido à 3.ª Ré HH e esta, por sua vez, em 19/07/2010, pelo valor de €129.000,00, vendeu à 4.ª Ré GG (Ap. … de 2010/07/..). E tudo isto foi deixado expresso na decisão recorrida e que censura alguma merece.

Encontram-se assim provados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual conforme decidido porque, como aí se afirma “os Réus apropriaram-se indevidamente de ½ do valor desse prédio desanexado, no caso, um terreno com 260 m2.

Por isso, não obtendo os autores a procedência total do seu pedido principal, têm direito a receber dos réus o valor correspondente a ½ do valor desse terreno e que consubstancia o prejuízo por eles sofrido, nele não se incluindo, naturalmente, o valor da construção nele implantado posteriormente e que foi vendido, porquanto os autores não alegaram, nem demonstraram, ter suportado parte das despesas de construção/reconstrução.

O valor a receber pelos autores não pode ultrapassar o montante de € 27.273,34 (correspondente ao peticionado, a esse título).

Porque inexistem elementos de facto que permitam determinar o valor do terreno e seu estado (com eventual construção) à data da desanexação e, em consequência, o montante a pagar aos autores, deve ser relegado para posterior liquidação, nos termos dos art.º 609.º/2 e 358.º e segs. do C. P. Civil.”

Não merecendo censura alguma a decisão recorrida, improcedem na totalidade as conclusões de recurso.

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 Síntese conclusiva

- Tendo os autores deduzido pedido de indemnização e articulado os factos em que baseiam esse pedido não carecem de configurar juridicamente esses factos como inclusivos da responsabilidade civil contratual ou extracontratual uma vez que “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” – art. 5º nº 3 do CPC.

- Realizando o tribunal a subsunção dos factos provados na previsão da responsabilidade civil extracontratual este conhecimento não exige prévio cumprimento do contraditório porque o mesmo ocorreu nos articulados.

- Tendo ficado provado que os réus se apropriaram indevida e consciente de ½ de um que pertencia aos autores e que, tendo-o registado em seu nome, dele desanexaram um outro que venderam, está matéria configura um facto ilícito gerador da obrigação de indemnizar.

… …

Pelo exposto acorda-se em julgar improcedente a revista e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelos réus.

Lisboa, 20 de maio de 2021

… …

Nos termos e para os efeitos do art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 20/2020, verificada a falta da assinatura dos Senhores Juízes Conselheiros adjuntos no acórdão proferido, atesto o respectivo voto de conformidade da Srª. Juiz Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza e do Sr. Juiz Conselheiro Tibério Silva.


Manuel Capelo (relator)