Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
93/15.6T8GRD.S1
Nº Convencional: 1ª. SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
CONTRATO DE TRABALHO
TRIBUNAL COMUM
TRIBUNAL DO TRABALHO
Data do Acordão: 06/28/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - TRIBUNAL / GARANTIAS DA COMPETÊNCIA.
ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA - TRIBUNAIS JUDICIAIS / COMPETÊNCIA / TRIBUNAIS JUDICIAIS DE PRIMEIRA INSTÂNCIA / TRIBUNAIS DO TRABALHO / COMPETÊNCIA CÍVEL.
Doutrina:
- Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1979, 91.
- Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho, Parte I – Dogmática Geral, Almedina, Coimbra, 2009, 486-487.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 334.º E 236.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 96.º, ALÍNEA A), 97.º, 99.º, N.º 2.
LEI N.º 62/2013, DE 26 DE AGOSTO: - ARTIGOS 37.º, N.º1, 40.º, 126.º, N.º1, AL. B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 27-9-94, PROCESSO N.º 858/94.
-DE 10-10-2007 (PROCESSO N.º 07S1258), DE 12-09-2013 (PROCESSO N.º 204/11.0TTVRL.P1.S1), AMBOS DA SECÇÃO SOCIAL, E AINDA NO ACÓRDÃO DE 1-12-2015 (2141/13.5TVLSB.L1.S1) DA 1.ª SECÇÃO.
-DE 16-11-2010, PROCESSO N.º 981/07.3TTBRG.S1.
-DE 5 DE MAIO DE 2011 (PROCESSO 029/10), DE 01-10-2015, (PROCESSO N.º 08/14) E DE 09-03-2004 (PROCESSO N.º 0375/04).
-DE 12-09-2013, RECURSO N.º 842/09.1TTMTS.P1.S1 - 4.ª SECÇÃO, DE 19-02-2013, PROC. N.º 73/08.8TTBGC.P1.S1, 4.ª SECÇÃO), E DE 14-02-2013, PROC. N.º 61/06.9TTLSB.L1.S1, 4.ª SECÇÃO.
Sumário :
I – A competência material do tribunal afere-se pelos termos em que a ação é proposta e pela forma como se estrutura o pedido e os respetivos fundamentos, atendendo-se aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja, à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados.

II – A competência dos tribunais de comarca determina-se por um critério residual, sendo-lhes atribuídas todas as matérias que não estiverem conferidas aos tribunais de competência especializada.

III – No presente processo, discutem-se direitos e obrigações decorrentes para as partes de um contrato individual de trabalho: o direito da trabalhadora a exercer funções em horário flexível em virtude de ter de cuidar de um filho menor, bem como deveres de informação e de correcção desta, que alegadamente não terão sido cumpridos; e o direito da entidade empregadora perante a alegada resolução do contrato de trabalho pela trabalhadora, que lhe terá causado prejuízos sérios.

IV – Tratando-se de um litígio emergente de uma relação de trabalho subordinado e tendo em conta as especificidades do contrato de trabalho em face dos contratos civis, a lei atribui a competência aos tribunais de trabalho e não aos tribunais comuns (art. 126.º, n.º 1, al. b) da Lei 62/2013, de 26 de agosto).

Decisão Texto Integral:


 

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I

AA, LDA, também denominada comercialmente "AA", NIF …011, com sede na Rua … //0000-000 …, veio interpor a presente ação contra BB, com domicílio na Praça …, 0000-000 ...

A autora requereu a intervenção acidental de Instituto da Segurança Social, IP, com sede na Avenida Doutor António José Almeida, 143510-042 Viseu, e peticiona que este Tribunal declare:

I. Procedente, por provado, que a Ré não esclareceu a sua entidade patronal como devia ter feito, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 56º (Horário flexível de trabalhador com responsabilidades familiares) e 57º (Autorização de trabalho a tempo parcial ou em regime de horário flexível) do Código do Trabalho, sobre a prestação de trabalho, a forma de o prestar e retribuição e, ainda, a efetiva indisponibilidade do progenitor para cuidar do menor, e nem sequer solicitou junto do ATL a possibilidade deste para tomar conta do menor.
II. Que a Ré não tinha qualquer contrato individual de trabalho ao abrigo da Lei n.º 23/2004, sendo o seu contrato de trabalho precário e anterior à aquisição desta entidade comercial pela Autora.
III. Procedente, por provado, que a Ré teve conhecimento do encerramento definitivo do local de trabalho da autora na …, pelo menos desde o dia 20 de Junho de 2013 e, que, desde essa data, que a Autora iria deslocalizar em definitivo o posto de trabalho da Ré e de todos os funcionários para o …. 
IV. Procedente, por provado, que a Ré, desde 20 de Junho de 2013, passou a ter instruções de cariz técnico e a exercer funções no … na entidade denominada "CC, Lda", entidade esta que é pertença exclusiva da legal representante da Autora e que estas funções tinham em vista a deslocalização da "AA" para o ….
V. Procedente, por provado, que com o seu comportamento premeditado, nomeadamente as denúncias e a rescisão sem qualquer aviso prévio (bem sabendo a Ré que por causa das férias do Diretor Técnico, o Dr. DD, a Autora ficaria sem poder funcionar), procurou e procura causar prejuízos sérios, a quem desde sempre manteve a unidade económica em funcionamento.
VI. Procedente, por provado, que a Ré apenas mantém contrato de trabalho com a Autora desde o dia 20 de Junho de 2013.
 
O Instituto de Segurança Social veio arguir a incompetência absoluta do Tribunal, alegando, em suma, que, em face da descrição dos factos e pedidos formulados na presente ação, o litígio que a autora pretende que seja apreciado e submetido a decisão judicial se prende exclusivamente com questões emergentes de relações de trabalho e contrato individual do trabalho, pertencendo tal competência à jurisdição laboral.

Por seu turno, concluiu a Ré que a causa de pedir e o pedido são do foro laboral, tratando-se de questões estritamente laborais.

Respondeu a Autora, pugnando pela improcedência da exceção invocada.

O Tribunal de 1.ª instância declarou-se incompetente para a apreciação do litígio dos autos, em face da matéria sub judice e, consequentemente, absolveu as rés da instância, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 99.° do Código de Processo Civil.

Inconformada, a Autora interpõe recurso de revista per saltum para este Supremo Tribunal de Justiça, terminando a sua alegação com as conclusões exaradas a fls. 220 a 223, que aqui se consideram integralmente reproduzidas.

A autora conclui, em síntese, na alegação de revista, que a competência para conhecer do litígio pertence ao Tribunal de Comarca da Guarda.

Para o efeito, alega que o Tribunal de Comarca da Guarda entendeu e mal que a ação declarativa interposta pretendia aquilatar sobre questões relacionadas com os contratos de trabalho, quando, na verdade, as questões colidiam com os comportamentos da ré, os quais embora com efeitos sobre os contratos de trabalho, não estão com este conexionados.

Entende a recorrente que o instituto da “desconsideração da personalidade jurídica das sociedades”, por si invocado na petição inicial, é um instituto de direito civil que decorre do art. 334.º do Código Civil. 

Invoca que o que está em causa não é a relação laboral, mas sim o comportamento doloso da ré e as relações do seu comportamento com outro tipo de matérias que não as de competência laboral, mas de cariz administrativo e pessoal/particular.

A autora alega pretender apenas a apreciação do comportamento doloso da ré, à luz do art. 236.º do Código Civil, que consagra a teoria da impressão do declaratário como critério de interpretação das declarações negociais, e não a pura observância, ou não, dos normativos laborais contratuais.

A ré não apresentou contra-alegações.

Sabido que o objeto do recurso é delimitado pelas respetivas conclusões, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, daí resulta que a questão a apreciar se cinge, apenas, a saber se é ao tribunal do trabalho que cabe a competência material para apreciar e decidir o litígio emergente dos autos ou se essa competência deve ser atribuída aos tribunais comuns.

           

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – Fundamentação de direito

1. Na apreciação da questão atinente ao tribunal materialmente competente para julgar a presente demanda entendeu o tribunal de 1.ª instância, julgando procedente a exceção da incompetência absoluta do tribunal comum invocada pelo Instituto de Segurança Social, que o tribunal competente para o conhecimento da presente causa é o Tribunal do Trabalho.

2. A competência material integra um pressuposto processual cuja apreciação deve necessariamente preceder a do fundo da causa.

É pacífico que esse pressuposto se afere pela forma como o autor configura a ação, sendo esta definida pelo pedido, pela causa de pedir e pela natureza das partes, sem embargo de não estar o tribunal adstrito, neste domínio, às qualificações que a autora e/ou ré tenham produzido para definir o objeto da ação.

Por isso se diz que a fixação da competência do tribunal, em razão da matéria, deve atender «…à natureza da relação jurídica material em debate na perspectiva apresentada em juízo» (acórdão deste Supremo Tribunal, de 27-9-94, processo n.º 858/94).

Na definição da competência do tribunal, a lei atende à matéria em causa, quer dizer, ao seu objeto, encarado sob um ponto de vista qualitativo – o da natureza da relação substancial pleiteada.

Para este efeito, como dizia Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1979, p. 91; acórdão do STJ, de 16-11-2010, proferido na Revista n.º 981/07.3TTBRG.S1), importará considerar, em suma, os termos em que a ação se acha proposta – seja quanto aos seus elementos subjetivos (identidade das partes), seja quanto aos seus elementos objetivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se reclama a tutela judiciária, o ato ou o facto de onde terá dimanado esse direito e, enfim, a qualificação dos bens em disputa).

3. A autora configura o vínculo estabelecido com a ré como um vínculo precário desde 2 de janeiro de 2002 (por contrato a termo celebrado com IPSS – Instituto de S. Miguel, regulada no âmbito do setor administrativo do Estado) e como relação laboral estável a partir de 02 de junho de 2013 por ingresso no setor privado, tendo sido esta funcionária e todos os outros avisados, em junho de 2013, que passariam a ter um emprego e um contrato de trabalho sem termo, sujeito ao regime normal/privado de contratação, e que iriam ser deslocados para o …, para instalações que estavam a ser preparadas para o efeito.

Alega, também, que, desde 20 de junho de 2013 a abril de 2014, data da transferência definitiva do posto de trabalho, todos os funcionários da AA passaram a integrar os quadros da autora e a operar no … na denominada “CC, Lda”.

Alega que a ré, tendo conhecimento destes factos e tendo colaborado com a autora na transferência e assim manifestando, aparentemente, vontade de anuir à transferência da entidade empregadora e à contratação sem termo, posteriormente alegou total desconhecimento dos factos e exigiu direitos que sabia não ter, passando a faltar injustificadamente ao serviço, afirmando não poder cumprir os horários por não ter a quem deixar o seu filho menor e acabando por rescindir, unilateralmente e sem qualquer fundamento, o contrato de trabalho.

A petição inicial, contudo, invocando prejuízos sofridos pela farmácia causados pela resolução do contrato de trabalho pela funcionária, que ora ocupa a posição de ré, não termina com a formulação de um pedido indemnizatório nem com a fixação do seu quantitativo.

A presente causa versa sobre um litígio entre uma entidade empregadora e uma trabalhadora, em torno do direito invocado por esta de trabalhar em horário flexível em virtude de ter de cuidar de um filho menor. O facto de a trabalhadora ter invocado este direito gerou um conflito com a entidade empregadora que a acusa de não ter prestado os esclarecimentos necessários e de ter faltado ao trabalho, bem como de ter resolvido, unilateralmente e sem fundamento, o contrato de trabalho, causando prejuízos sérios na gestão da farmácia.

4. Em matéria cível, a competência dos Tribunais do Trabalho abrange as questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho.

Dispõe o n.º 1 do art. 37.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto que “Na ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos Tribunais Judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território”.

O art. 40.º da citada lei estipula que “1- Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional. 2 - A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os tribunais judiciais de primeira instância, estabelecendo as causas que competem às secções de competência especializada dos tribunais de comarca ou aos tribunais de competência territorial alargada”.

Com interesse, importa atentar na competência cível das Secções do Trabalho, que o art. 126.º do diploma legal supra referido enumera.

Assim, “Compete às secções do trabalho conhecer, em matéria cível:

(. . .)

b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho.

(. . .)."

A violação de tal regra determina a incompetência absoluta do Tribunal e pode ser arguida pelas partes, devendo ser oficiosamente conhecida pelo tribunal, em qualquer estado do processo enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa – arts. 96.º, alínea a) e 97.º, ambos do CPC.

5. Impõe-se agora apreciar concretamente a competência material da Comarca da Guarda, enquanto Tribunal comum, para o julgamento e consequente decisão da presente ação.

A apreciação da competência dum tribunal tem de resolver-se face aos termos em que a ação é proposta, aferindo-se portanto pelo "quid disputata", ou seja, pelo pedido do autor e respetiva causa de pedir, sendo irrelevantes as qualificações jurídicas alegadas pelas partes ou qualquer juízo de prognose que possa fazer-se quanto à viabilidade ou inviabilidade da pretensão formulada pela autora.

 

Das alegações da autora, resulta que aquilo que ela pretende é que se faça prova e, a final, se reconheça e declare a natureza da relação entre si e a ré e que se faça a aferição de elementos intrínsecos da relação laboral estabelecida.

Como se extrai da petição inicial, a autora alega que adquiriu a uma IPSS a AA, mais alegando que a Ré não tinha qualquer contrato individual de trabalho ao abrigo da Lei n° 23/2004, assumindo o contrato de trabalho anterior à aquisição desta entidade pela Autora uma natureza precária.

Mais invoca que a ré não informou, nos termos imposto pelo artigo 56.° e 57.° do CT sobre a prestação de trabalho, a forma de o prestar e retribuição e, ainda, da efetiva indisponibilidade do progenitor para cuidar do menor e que nem sequer solicitou junto do ATL a possibilidade deste para tomar conta do menor, seu filho.

 

Assim, e atentando na alínea b) do citado artº126º, resulta que, nos autos, estamos perante questões emergentes de relações de trabalho subordinado, pelo que a competência caberá aos Tribunais do Trabalho e não aos Tribunais Cíveis.

A competência dos tribunais de comarca determina-se por um critério residual, sendo-lhes atribuídas todas as matérias que não estejam conferidas aos tribunais de competência especializada.

A competência do Tribunal do Trabalho afere-se em função do direito que em concreto se pretende ver acautelado, sendo necessário que ele provenha da violação de obrigações decorrentes de uma relação jurídica laboral.

Ora, a autora reconhece que a ré é sua funcionária, em regime de contrato individual de trabalho, desde junho de 2013.

No presente processo, discutem-se direitos e obrigações decorrentes para as partes de um contrato individual de trabalho: o direito da trabalhadora a exercer funções em horário flexível em virtude de ter de cuidar de um filho menor, bem como deveres de informação e de correção desta, que alegadamente não terão sido cumpridos; e o direito da entidade empregadora perante a alegada resolução unilateral do contrato de trabalho que lhe terá causado prejuízos sérios.

O facto de a autora, na alegação de revista, invocar a aplicação de normas de direito civil para aferir o significado do comportamento da trabalhadora (art. 236.º do Código Civil relativo aos critérios de interpretação da declaração negocial) e a sua valoração ético-jurídica à luz de institutos de direito civil, como o abuso do direito (art. 334.º do CC) e a desconsideração da personalidade jurídica, não se repercute na questão da competência material do tribunal nem retira a adjudicação do litígio ao tribunal de trabalho, enquanto tribunal de competência especializada.

Na verdade, as normas de direito civil são normas subsidiárias, em relação às normas de direito do trabalho e podem aplicar-se conjuntamente com estas, desde logo porque as normas e institutos jurídicos invocados pela recorrente resultam de princípios gerais de direito, como o princípio da boa fé, que integra todos os ramos do direito.

Nos litígios de direito laboral, os tribunais de trabalho recorrem, para dirimir os conflitos que lhes são colocados, a normas que consagram o abuso do direito (acórdão de 12-09-2013, Recurso n.º 842/09.1TTMTS.P1.S1 - 4.ª Secção), o instituto da desconsideração da personalidade jurídica (cf. acórdão de 19-02-2013, proc. n.º 73/08.8TTBGC.P1.S1, 4.ª Secção) e a norma do art. 236.º do Código Civil para interpretar declarações negociais do trabalhador ou da entidade empregadora (cf. acórdão de 14-02-2013, proc. n.º 61/06.9TTLSB.L1.S1, 4.ª Secção).

Os artigos 334.º e 236.º do Código Civil são normas que integram a Parte Geral do Código e que apresentam potencialidade aplicativa em todos os ramos do direito. O instituto da desconsideração da personalidade jurídica, sendo uma figura criada pela doutrina e pela jurisprudência, baseia-se em considerações éticas, comuns a todos os ramos do direito, e que são compatíveis com a especificidade do direito laboral.

O Direito do Trabalho tem autonomia dogmática em face do Direito Civil e desenvolveu-se a partir do início do século XX, centrando-se no princípio da proteção dos trabalhadores subordinados e pondo em causa alguns dogmas do direito privado como o dogma da igualdade entre os entes jurídicos privados e o dogma da liberdade contratual.

Não é, portanto, compatível com esta especificidade atribuir competência a um tribunal comum para resolver conflitos emergentes de um contrato, como o contrato de trabalho, marcado por uma desigualdade profunda entre as partes.

Na resolução dos litígios emergentes destes contratos, deve ser tida em conta a disparidade de poder entre as partes gerada pela circunstância de a relação de trabalho ser uma relação caracterizada pela subordinação jurídica e económica do trabalhador, que necessita de uma retribuição para a sua sobrevivência e da sua família.

Como afirma a doutrina juslaborista, «A singularidade dos contratos de trabalho no universo dos contratos privados decorre de dois factores: a sua complexidade interna, que se evidencia na conjugação da componente obrigacional com as componentes de pessoalidade e organizacional e na sua essência dominial; a forma peculiar como, no seu seio, se equilibram os interesses das partes, e que passa pela normalidade do sacrifício do acordo negocial tanto a interesses de gestão do empregador como a interesses extra-contratuais do trabalhador. (…) a componente dominial do contrato de trabalho – que se manifesta na subordinação do trabalhador e nos poderes laborais – denota o fraco vigor do princípio da igualdade formal dos contraentes». (cf. Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho, Parte I – Dogmática Geral, Almedina, Coimbra, 2009, pp. 486-487).

Em consequência, tendo-se em conta os termos da pretensão da autora e respetivos fundamentos, bem como as especificidades do contrato de trabalho em face dos contratos civis, a competência para a causa incumbe aos tribunais do trabalho.

Neste sentido, se tem pronunciado a jurisprudência deste Supremo Tribunal, designadamente nos acórdãos, de 10-10-2007 (processo n.º 07S1258), de 12-09-2013 (processo n.º 204/11.0TTVRL.P1.S1), ambos da secção social, tendo sido este último relatado pela relatora do presente acórdão, e ainda no acórdão de 1-12-2015 (2141/13.5TVLSB.L1.S1) desta 1.ª Secção.

A mesma solução tem adotado o Tribunal de Conflitos, remetendo para o tribunal do trabalho os conflitos emergentes de contratos de trabalho, por exemplo, os acórdãos, de 5 de Maio de 2011 (processo 029/10), de 01-10-2015, (processo n.º 08/14) e de 09-03-2004 (processo n.º 0375/04).

                         

Improcedem, portanto, todas as conclusões da alegação de recurso da autora e declara-se a incompetência absoluta do tribunal de comarca da Guarda para conhecer do litígio dos autos, sem prejuízo de a autora requerer a remessa do processo para o tribunal do trabalho competente e o aproveitamento dos articulados (art. 99.º, n.º 2 do CPC).

 

IV – Decisão

Em face do exposto, nega-se a revista e confirma-se a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 28 de junho de 2016

Maria Clara Sottomayor

Roque Nogueira

Alexandre Reis