Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07S923
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA PEIXOTO
Descritores: DEPOIMENTO DE PARTE
CASO JULGADO
DECISÃO IMPLÍCITA
Nº do Documento: SJ200709120009234
Data do Acordão: 09/12/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Sumário : 1. Em princípio, compete à sociedade anónima, e não à parte que requereu o depoimento de parte da sociedade, indicar a pessoa que deve prestar esse depoimento.
2. Tendo o autor requerido o depoimento pessoal da ré (sociedade anónima) na pessoa do presidente do seu conselho de administração e tendo-se limitado o juiz a admitir o depoimento de parte, sem fazer qualquer referência à pessoa que o devia prestar, o caso julgado formal que sobre aquele despacho se formou não abrange a pretensão por ele requerida de que o depoimento fosse prestado pelo presidente do conselho de administração da ré.
3. Decisão implícita é aquela que está subentendida numa decisão expressa e tal só acontece quando a solução da questão sobre que recaiu a decisão expressa pressupõe a prévia resolução de uma outra questão que, todavia, não foi expressamente assumida.
Decisão Texto Integral: Acordam na secção social do Supremo Tribunal de Justiça:

1. "AA" propôs no Tribunal do Trabalho de Lisboa a presente acção contra Companhia de Seguros Empresa-A pedindo, além do mais, que fosse reconhecido que se encontrava ligado à ré mediante contrato de trabalho sem termo, desde Junho de 1993.

Na petição inicial, o autor requereu o “[d]epoimento de parte da Ré na pessoa do seu legal representante, a saber o Presidente do Conselho de Administração, à matéria dos nºs 1º a 54º desta petição”.

Pronunciando-se sobre aquele requerimento, o M.mo Juiz proferiu o seguinte despacho (fls. 232):
“Vai admitido o depoimento de parte da Ré, nos termos dos artigos 552.º e seguintes do Código de Processo Civil e com o âmbito indicado pelo Autor.
Notifique (nomeadamente o legal representante da Ré para comparecer na data designada para audiência de discussão e julgamento, a fim de prestar o depoimento de parte agora admitido)”.

Depois daquele despacho ter transitado em julgado (2), a ré veio requerer, em 11.4.2006 (fls. 252), que o depoimento de parte fosse prestado pela pessoa que o seu Conselho de Administração viesse a indicar, alegando o seguinte:
- o autor não tinha identificado uma pessoa determinada para prestá-lo nem tinha explicitado o motivo por que havia sugerido que o mesmo fosse prestado pelo Presidente do Concelho de Administração;
- nos termos do n.º 2 do art.º 405.º do Código das Sociedades Comerciais, cabem ao Conselho de Administração os poderes exclusivos de representação da sociedade e bem assim os poderes exclusivos em matéria de deliberações designativas dos seus representantes, para determinados actos;
- o presidente do Conselho de Administração em exercício fora designado em data posterior àquela em que os factos em apreço ocorreram, nada podendo, por isso, pessoalmente esclarecer sobre eles.

Depois de ter ouvido o autor, o M.mo Juiz indeferiu o requerido pela ré, com o fundamento de que é a parte que requer o depoimento que tem a faculdade de designar o legal representante que deve prestar o depoimento (despacho de fls. 321).

A ré agravou deste despacho, mas o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, com o fundamento de que o despacho de fls. 232 havia transitado em julgado e que a força do caso julgado formal sobre ele formado abrangia a questão colocada no requerimento da ré, “uma vez que o referido despacho deferiu ao requerido depoimento de parte, sem qualquer restrição como resulta da referência feita ao n.º 2 do art.º 552.º do CPC” e uma vez que “embora não referisse expressamente que o legal representante da ré a prestar o depoimento fosse o presidente do conselho de administração, essa discriminação estava implícita no próprio despacho, pois assim tinha sido requerido pelo Autor”. E, caso assim não se entendesse, acrescentou a Relação, a ré não teria razão, por ser àquele que requer o depoimento que compete indicar a pessoa que o deve prestar, uma vez que este meio de prova está na disponibilidade de quem o requer.

Inconformada com a decisão da Relação, a ré interpôs recurso de agravo, formulando extensas conclusões (3) que em termos úteis se resumem no seguinte:
- o trânsito em julgado do despacho de fls. 232, que admitiu o depoimento de parte da ré, não tem o alcance que lhe foi dado no acórdão recorrido, uma vez que dele não resulta, sequer implicitamente, que o depoimento devia ser prestado pelo Presidente do Conselho de Administração da ré;
- o depoimento de parte visa obter a confissão de determinados factos;
- o Presidente do Conselho de Administração da ré não é legal representante da ré, uma vez que só por si não tem poderes para a vincular, não podendo, por isso, confessar o que quer que seja;
- o Presidente do Conselho de Administração da ré iniciou funções em 20 de Janeiro de 2005, portanto, em data posterior à ocorrência dos factos sobre os quais o depoimento deve recair e o depoimento de parte só pode ter por objecto factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento;
- a parte que presta depoimento de parte deve prestá-lo por meio de pessoa por si própria indicada, com conhecimento pessoal dos factos a que o depoimento foi requerido, sendo certo que, se for prestado por pessoa indicada pela parte que requereu o depoimento, permitir-se-á que a belo prazer da parte que requereu o depoimento, fique a outra parte onerada com as consequências previstas no art.º 357.º, n.º 2, do C.C., designadamente se responder “nada sabe”, apreciando o tribunal o valor da conduta da parte;
- o depoimento de parte é incompatível com o depoimento de alguém que – não podendo, psicologicamente, ter, nem tendo a obrigação de ter, conhecimento directo dos factos, desde logo, por o não ligar à parte/pessoa colectiva qualquer vínculo, ao tempo dos factos em discussão – vai, contudo, a juízo depor, por ter sido a pessoa unilateralmente indicada pela parte contrária, como se a própria parte fosse, com as consequências decorrentes para aquela que não a escolheu para a representar;
- por isso, sob pena de total e intolerável subversão da natureza das coisas, da essência e da razão de ser do fim do depoimento de parte e do fim do processo, é a própria parte, pessoa colectiva, quem deve prestar depoimento de parte, só ela própria, como tal, podendo assumir a responsabilidade de designar o seu representante legal para esse fim;
- a interpretação acolhida na decisão recorrida, no sentido de que cabe à contraparte indicar a pessoa que a parte contrária, sendo uma sociedade comercial, deve fazer comparecer em audiência de julgamento, ofende o fim do depoimento de parte, o fim do processo e, por essa via, os desideratos da descoberta da verdade material e da realização da justiça, o que é incompatível, designadamente, com o disposto nos artigos 20.º, n.º 1 e 202.º, n.º 2, ambos da CRP;
- de harmonia com os Estatutos da ré, a sociedade ré obriga-se com a intervenção de dois administradores ou a intervenção de um, nos limites da delegação prevista no art.º 20.º do contrato social;
- assim, o Presidente do Conselho de Administração da ré não tem poderes para obrigar a sociedade nos termos e para os efeitos previstos no n.º 2 do art.º 553.º do CPC;
- o n.º 2 do art.º 553.º do CPC, ao estipular que o depoimento só tem valor de confissão nos precisos termos em que os representantes das sociedades possam obrigar estas, impõe que quem preste o depoimento tenha, necessariamente, que ser representante legal com poderes para obrigar a sociedade, podendo ser um terceiro a quem tal poder seja concedido;
- deste modo, não poderá deixar de ser a ré a escolher a pessoa que a deverá representar em juízo, para a prestação do depoimento de parte, devendo, naturalmente, essa escolha incidir sobre a pessoa que se mostrar mais habilitada quanto ao conhecimento da matéria de facto sobre que versará o depoimento;
- foi este o entendimento perfilhado pelo tribunal da Relação de Lisboa no seu acórdão de 17.6.1999, sumariado em www.dgsi.pt;
- conferir à outra parte – no caso ao autor – o poder de escolher a pessoa que deverá representar a ré no depoimento de parte é violar o instituto da representação das pessoas colectivas;
- o decidido no acórdão recorrido está em oposição com o decidido no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.6.99, já referido.

O autor contra-alegou defendendo a manutenção do julgado e, neste Supremo Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no mesmo sentido, em “parecer” a que as partes não reagiram.

Colhidos os vistos dos juízes conselheiros adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

2. Os factos
Os factos relevantes para conhecer do objecto do recurso são aqueles que supra já foram referidos.

3. O direito
As questões suscitadas no recurso (cuja admissibilidade, apesar de se tratar de um agravo continuado, não é posta em causa, uma vez que tem por fundamento a ofensa de caso julgado e a oposição de julgados e o valor da causa excede a alçada do Tribunal da Relação – artigos 678.º, n.º 2 e 754.º, n.º 2, segunda parte, do CPC) são as seguintes:
- saber qual o alcance do caso julgado formado sobre o despacho de fls. 232;
- saber se o decidido no acórdão recorrido está em oposição com o decidido no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.6.99 referido nos autos;
- saber se compete ao autor ou à ré indicar a pessoa que deve prestar o depoimento de parte da ré;
- saber se a decisão recorrida viola o disposto nos artigos 20.º, n.º 1 e 202.º, n.º 2, ambos da CRP.

3.1 Do alcance do caso julgado formado sobre o despacho de fls. 232
Como é sabido, o caso julgado ocorre quando a respectiva decisão já não é susceptível de recurso ordinário ou de reclamação, ou seja, quando tenha transitado em julgado (art.º 677.º do CPC). E, como também é sabido, o caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (art.º 497.º, n.º 2, do CPC), salvaguardando, assim, o prestígio dos tribunais, a necessidade de certeza do direito e da segurança nas relações jurídicas e, consequentemente, a paz social. E se, por qualquer razão, houver duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumprir-se-á a que passou em julgado em primeiro lugar, mesmo que a contradição diga respeito a duas decisões proferidas no mesmo processo sobre a mesma questão concreta da relação processual (art.º 675.º do CPC).

Ora, para obter aquele desiderato, basta que a força do caso julgado se estenda à parte dispositiva da decisão, ou seja, à decisão propriamente dita, deixando de fora a respectiva motivação. E foi essa a opção tomada pelo nosso legislador, ao estatuir que “[a] sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga” (art.º 673.º do CPC).

Como dizem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (4):
“O caso julgado forma-se directamente sobre o pedido, que a lei define como o efeito jurídico pretendido pelo autor (ou pelo réu, através da reconvenção). A ordem pela qual, compreensivelmente, a lei enumera as três identidades caracterizadoras do caso julgado (a identidade do pedido antes da causa de pedir) mostra que é sobre a pretensão do autor, à luz do facto invocado como seu fundamento, que se forma o caso julgado.
É a resposta dada na sentença à pretensão do autor, delimitada em função da causa de pedir, que a lei pretende seja respeitada através da força e autoridade do caso julgado.
A força do caso julgado cobre apenas a resposta dada a essa pretensão e não o raciocínio lógico que a sentença percorreu, para chegar a essa resposta.”

É pelo próprio teor da decisão, como já dizia A. Reis (5), citando Manuel de Andrade, que se mede a extensão objectiva do caso julgado, “Se ela não estatuir de modo exaustivo sobre a pretensão do autor (o thema decidendum), não excluindo portanto a possibilidade de outra decisão útil, essa pretensão poderá ser novamente deduzida em juízo (...) Se a sentença não esgotou o thema decidendum, se uma parte da pretensão ficou ainda em aberto, não há dúvida de que essa parte pode, de novo, ser submetida à consideração do tribunal.”

No caso em apreço, não há dúvida de que o despacho que admitiu o depoimento de parte da ré transitou em julgado, uma vez que não foi objecto de recurso ordinário (art.º 677.º do CPC) e também não há dúvida de que se trata de um despacho que nada tem a ver com o mérito da causa, mas sim de um despacho que se prende apenas com a relação processual. Por outro lado, não sendo um despacho de mero expediente nem um despacho que foi proferido no uso legal de um poder discricionário, o mesmo passou a ter força obrigatória dentro do processo, por força do disposto no art.º 672.º do CPC, o que vale por dizer que sobre ele se formou caso julgado formal, o que implica que as pretensões nele apreciadas não podiam ser objecto de nova apreciação no decurso do processo.

A questão que se coloca é a de saber se no despacho em causa foi decidido que o depoimento de parte da ré devia ser prestado pelo Presidente do seu Conselho de Administração.

Como já foi referido, na decisão recorrida entendeu-se que sim, mas tal decisão não merece o nosso aplauso, pois, como decorre do teor do despacho em apreço, o M.mo Juiz limitou-se a admitir o depoimento de parte da ré, “nos termos dos artigos 552.º e seguintes do Código de Processo Civil e com o âmbito indicado pelo Autor”.

Aquele despacho é totalmente omisso no que toca à identificação do representante da ré que devia prestar o depoimento. De facto, nele não existe qualquer referência expressa à pessoa que devia prestar o depoimento, mais concretamente nele não existe qualquer referência ao Presidente do Conselho de Administração da ré e, ao contrário do que se diz na decisão recorrida, também não vislumbramos que o aludido despacho comporte uma decisão implícita a esse respeito, pelo facto de ter admitido o depoimento sem qualquer restrição e pelo facto de ter feito referência aos artigos 552.º e seguintes do CPC.

Na verdade, como resulta do significado etimológico da palavra, decisão implícita é aquela que está subentendida noutra, é aquela que, apesar de não ser claramente expressa, está tacitamente contida noutra decisão (expressa). E sendo assim, para que se possa falar de decisão implícita é necessário que a solução da questão sobre que recaiu a decisão expressa pressuponha a resolução prévia de uma outra questão, ou seja, é necessário que a resolução de determinada questão esteja dependente da resolução dada a outra que constitui um seu antecedente lógico.

Ora, a admissão do depoimento de parte de uma pessoa colectiva não está, de forma alguma, dependente da indicação da pessoa do representante que deve prestar o depoimento, uma vez que o depoimento pode ser perfeitamente admitido, antes de se determinar qual a pessoa que o deve prestar. A determinação do representante legal que deve prestar o depoimento pressupõe naturalmente que o depoimento de parte tenha sido já admitido, mas a admissão do depoimento em si não pressupõe que o representante esteja previamente determinado.

Deste modo, a admissão do depoimento de parte (pessoa colectiva ou sociedade) e a determinação da pessoa que o deve prestar são questões diferentes, a que correspondem também pretensões diferentes. Por isso, in casu, não se pode afirmar que a decisão que admitiu o depoimento pessoal da ré contém implícita a decisão de que esse depoimento devia ser prestado pelo Presidente do seu Conselho de Administração.

E o facto de no despacho em análise se ter dito que o depoimento era admitido nos termos dos artigos 552.º e seguintes do CPC também não permite concluir naquele sentido, uma vez que aqueles artigos nada estipulam acerca da determinação do representante legal (havendo vários) que deve ir a tribunal prestar o depoimento de parte. O único artigo que se refere ao depoimento de parte das pessoas colectivas ou sociedades é o art.º 553.º, n.º 2, mas o mesmo limita-se a dizer que “[p]ode requerer-se o depoimento de inabilitados, assim como de representantes de incapazes, pessoas colectivas ou sociedades (...)”.

Neste contexto, não podemos deixar de concluir que M.mo Juiz não chegou a apreciar, implicitamente que fosse, a pretensão formulada pelo autor de que o depoimento de parte da ré fosse prestado “na pessoa do seu legal representante, a saber o Presidente do Conselho de Administração”. O M.mo Juiz limitou-se a apreciar a pretensão referente à admissão do depoimento de parte da ré “à matéria dos nºs 1º a 54º” da petição inicial, como havia sido requerido pelo autor (é este o sentido da frase contida no despacho: “no âmbito indicado pelo Autor”), deixando por apreciar a outra pretensão formulada pelo autor de que esse depoimento fosse prestado pelo Presidente do Conselho de Administração da ré, como, aliás, decorre da segunda parte do despacho, que ordena a notificação do despacho, nomeadamente ao legal representante da ré, sem, todavia, se especificar que o representante a notificar era o seu Presidente do Conselho de Administração, como seria curial que se dissesse se a decisão contida na primeira parte do despacho tivesse tido o âmbito que, na decisão recorrida, lhe foi dado.

Concluindo, diremos que o âmbito do caso julgado formal formado sobre o despacho em causa não abrange a questão colocada pela ré no requerimento de fls. 252, por ela apresentado em juízo em 11 de Abril de 2006.

3.2 Saber se há oposição de julgados
No acórdão recorrido decidiu-se que competia ao requerente do depoimento de parte indicar o nome do representante da pessoa colectiva que deve ir prestar esse depoimento. Segundo a recorrente, o assim decidido está em oposição como que foi decidido no acórdão de 17 de Junho de 1999, do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo n.º 1000/96, da 2.ª Secção, que, devidamente certificado, se encontra junto a fls. 668 e seguintes dos autos.

E, analisando o teor do referido acórdão, verifica-se que a referida oposição é por demais evidente.

No caso em apreço no aludido acórdão da Relação de Lisboa, a ré requereu o depoimento pessoal de parte da autora (que era uma sociedade anónima) “a prestar pelo seu legal representante”. Tal requerimento foi indeferido pelo facto da ré não ter identificado a pessoa que devia prestar o depoimento. A ré agravou desse despacho, tendo a Relação revogado o despacho com o fundamento de que a ré não era obrigada a indicar o nome do representante legal da autora, devendo ser a própria sociedade a indicar qual a pessoa, para a hipótese da haver vários representantes, que deve prestar o depoimento.

Embora a situação em apreço naquele processo não seja exactamente igual à que estava em apreço nos presentes autos, a verdade é que ambos os acórdãos acabaram por decidir a mesma questão de direito em sentidos opostos: no acórdão recorrido decidiu-se que competia à parte que requereu o depoimento indicar a pessoa que o devia prestar; no acórdão fundamento decidiu-se que era à sociedade que incumbia essa indicação.

Por outro lado, ambos os acórdãos foram proferidos no domínio da mesma legislação e não há notícia de que o Supremo tenha proferido acórdão de uniformização relativamente àquela questão.

E, sendo assim, nada obsta a que se conheça do agravo, face ao disposto no n.º 2 do art.º 654.º do CPC, nos termos do qual “[n]ão é admitido recurso do acórdão da Relação sobre decisão da 1.ª instância, salvo se o acórdão estiver em oposição com outro, proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo tribunal de Justiça ou por qualquer Relação, e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 732.º-A e 732.º-B, jurisprudência com ele conforme”.


3.3 Saber se compete ao autor ou à ré indicar a pessoa que deve prestar o depoimento de parte da ré
Conforme se constata da certidão da Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, 1.ª Secção, junta a fls. 360-387, a ré é uma sociedade anónima e, nos termos do art.º 18.º dos seus Estatutos, juntos a fls. 389-395, a sua administração incumbe a um conselho de administração composto por um número ímpar de membros, no mínimo de três e no máximo de quinze, eleitos em assembleia geral (art.º 18.º), ao qual cabem os mais amplos poderes legalmente permitidos, competindo-lhe em exclusivo a representação da sociedade, tudo em conformidade com as disposições legais (art.º 19.º).

Por sua vez, o conselho de administração pode confiar a algum ou alguns administradores matérias devidamente especificadas, bem como criar, nos termos do art.º 407.º, n.ºs 3 e 4, do Código das Sociedades Comerciais, uma comissão executiva formada por um número ímpar de administradores à qual pertencerá a gestão corrente da sociedade (art.º 20.º dos Estatutos).

E, nos termos do n.º 1 do art.º 21.º dos referidos Estatutos, a sociedade fica obrigada pela assinatura de dois administradores, podendo, embora, constituir mandatários, cujos poderes de representação correspondem ao estabelecido na lei. Bastará, todavia, a assinatura de um administrador quando se trate de assuntos de mero expediente (n.º 3 do art.º 21.º), o mesmo acontecendo no que toca à gestão corrente da sociedade se o conselho de administração tiver constituído uma comissão executiva para esse efeito (art.ºs 20.º e 21.º, n.º 1, dos Estatutos).

Como resulta do art.º 19.º dos Estatutos da ré, em consonância, aliás, com o que estipula o art.º 405.º, n.º 3, do CSC, o poder de representação da sociedade ré cabe em exclusivo ao conselho de administração, o que significa que o presidente do conselho de administração não tem capacidade, só por si, para representar a sociedade ré.

Deste modo, a representação da sociedade em juízo há-de ser feita por dois administradores ou pela pessoa que o conselho de administração designar para o efeito, nos termos do art.º 163.º do Código Civil, aqui aplicável, por analogia, nos termos do disposto no art.º 157.º do mesmo Código.
Ora, do que fica dito, facilmente se infere que só o conselho de administração tem competência legal para indicar a pessoa que deve representar a sociedade para efeitos da prestação de depoimento de parte. A tese sustentada no acórdão de que essa indicação pertence à parte que requereu o depoimento, para além de não ter qualquer suporte legal, atenta manifestamente contra as disposições legais e estatutárias que supra foram referidas, o que implica a revogação do despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que defira o requerido pela ré a fls. 252 dos autos.

3.4 Saber se a decisão recorrida viola o disposto nos artigos 20.º, n.º 1 e 202.º, n.º 2, ambos da CRP
A apreciação da questão em epígrafe ficou prejudicada face à solução dada à questão anterior.

4. Decisão
Nos termos expostos, decide-se julgar procedente o recurso e, consequentemente, revoga-se o despacho recorrido, devendo o M.mo Juiz substitui-lo por outro que conceda deferimento ao requerido pela ré no seu requerimento de fls. 252.
Custas pelo recorrido.

Lisboa, 12 de Setembro de 2007
Sousa Peixoto (Relator)
Sousa Grandão
Pinto Hespanhol
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(1) - Relator: Sousa Peixoto (R.º 191); Adjuntos: Sousa Grandão e Pinto Hespanhol.
(2) - O despacho foi proferido em 5.1.2006 e foi notificado às partes por registo postal expedido em 9.1.2006.
(3) - São 55 conclusões e ocupam mais de 11 páginas.
(4) - Manual de Processo Civil, 2.ª edição, p. 712.
(5) - Código de Processo Civil anotado, vol. V, p. 174, Coimbra Editora 1981, reimpressão.