Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8060/18.1T8ALM.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ROSA TCHING
Descritores: CONTRATO DE COMODATO
PRAZO CERTO
RESTITUIÇÃO DE BENS
DENÚNCIA
CABEÇA DE CASAL
HERANÇA INDIVISA
ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA
DESPACHO SANEADOR
CASO JULGADO FORMAL
LEGITIMIDADE
Apenso:
Data do Acordão: 12/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. O cabeça de casal goza, na qualidade administrador da herança indivisa, de legitimidade ativa para exigir de terceiros a entrega de bens da herança, posto que esta exigência constitui, nos termos do artigo 2087, nº 1, do Código Civil, um ato de administração e é expressamente consentida pelo disposto no artigo 2088º, nº 1, do mesmo código.  

II. Tendo o Tribunal de 1ª Instância, oficiosamente e em sede de despacho saneador, se pronunciado concretamente sobre a legitimidade das partes, o caso julgado formal formado por esta decisão obsta, nos termos do disposto no artigo 595º, nº 3, do Código de Processo Civil, a que, em sede de revista, se possa alterar o que nele já foi decidido.   

III. Num contrato de comodato, o uso da coisa emprestada só é determinado se o for também por tempo determinado ou, pelo menos, determinável.

IV. Assim, para que haja lugar à aplicação do regime estabelecido no nº 1 do artigo 1137º, do Código Civil, torna-se necessário que o uso da coisa emprestada esteja delimitado temporalmente.

V. O contrato de comodato em que não se estipulou prazo certo para a restituição da coisa, nem delimitou temporalmente o uso da coisa emprestada, considera-se como sendo um contrato de duração indeterminada, tendo o comodante direito a denunciar o contrato e a exigir, a todo o momento, a restituição da coisa, ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo1137º, do Código Civil.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL




***


I. Relatório


1. AA propôs, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de seus pais, a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra BB, pedindo a condenação do réu a:

- reconhecer que o prédio composto de terreno para construção, com a área de 574,2250 m2, sito (…), descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ... sob o número (…), integra o referido acervo hereditário e que, por isso, o direito de propriedade sobre esse imóvel pertence aos seus únicos herdeiros;

- restituir esse prédio ao autor, livre e devoluto de pessoas e bens;

- pagar à herança administrada pelo autor a quantia mensal de € 2.000,00 por cada mês em que ilicitamente continuar a ocupar o identificado prédio contabilizados desde a citação e até à efetiva entrega do prédio devoluto de pessoas e bens.

Alegou, para tanto e em síntese, que o réu ocupa o prédio, nele explorando uma oficina de ......., sem que detenha qualquer direito sobre o mesmo prédio, devendo-se tal ocupação à mera tolerância dos proprietários, que nunca autorizaram a ocupação.

Pretendendo instalar no terreno um parque de estacionamento, diligenciou para que o réu desocupasse o prédio, mas este recusa-se a fazê-lo, o que causa prejuízos, pois a utilização do terreno como parque de estacionamento geraria um rendimento de € 2.000 euros mensais.


2. Contestou o Réu, não impugnando a pertença do prédio à herança, mas pugnando pela improcedência da restituição, visto que ocupa parte do referido prédio ao abrigo de um contrato de comodato celebrado entre ele e os pais do autor que lhe cederam, gratuitamente e temporariamente, um espaço de 50 metros quadrados do prédio, onde explora, de modo ininterrupto há mais de vinte e dois anos, uma oficina.


3. Respondeu o autor, sustentando a inexistência de autorização para tal ocupação e a cessação do uso do espaço pelo réu.


4. Proferido despacho saneador, foi fixado o objeto do litígio e enunciados os factos admitidos por acordo e os temas da prova.


5. Procedeu-se à realização de audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a presente ação e consequentemente:

a) Declarou que o prédio, composto de terreno para construção, com a área de 574,2250 m2, sito na Rua ...... ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ….14 na freguesia do ... e inscrito na matriz sob o artigo …..43 da União de freguesias de ..., ..., ... e ... integra o acervo hereditário dos falecidos CC e DD;

b) Condenou o réu a reconhecer que o prédio, composto de terreno para construção, com a área de 574,2250 m2, sito na Rua ...... ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ...14, na freguesia do ... e inscrito na matriz sob o artigo ...43 da União de freguesias de ..., ..., ... e ... integra o acervo hereditário dos falecidos CC e DD;

c) Absolveu o réu dos restantes pedidos formulados pelo Autor enquanto cabeça de casal.


6. Inconformado com esta decisão, dela apelou o autor para o Tribunal da Relação .... que, por acórdão proferido em 17 de junho de 2021, julgou procedente o recurso e, consequentemente,  revogou a sentença recorrida na parte em que absolveu o réu do pedido de restituição do prédio composto de terreno para construção, com a área de 574,2250 m2, sito na Rua ...... ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ...14, na freguesia do ... e inscrito na matriz sob o artigo ...43 da União de freguesias de ..., ..., ... e ..., e  condenou o réu a restituir ao autor, na qualidade de cabeça de casal da herança de seus pais, o referido prédio.


7. Inconformado com esta decisão, o réu dela interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1. Com o devido respeito pela opinião em contrário, não pode o Réu, ora Recorrente, concordar com a argumentação e fundamentação do Venerando Tribunal da Relação .... que o levou a revogar a sentença proferida em 1ª Instância. Senão vejamos,

2. A Mmª. Juiz do Tribunal “a quo”, não só ouviu as testemunhas e o Autor, mas também analisou a sua postura e forma como responderam em audiência de julgamento, tomou o conhecimento directo da situação e, com toda a clareza apercebeu-se dos contornos do litígio, decidindo em conformidade com a convicção que formou na audiência de discussão e julgamento, face à prova produzida, documental e testemunhal, mas também de acordo com os preceitos legais, com os fundamentos que a sentença acolheu e aderiu.

3. Antes de mais, e muito importante, é apreciar a questão da Ilegitimidade do Autor: respeitam os presentes autos uma acção declarativa de condenação, que segue os termos do processo comum, na qual o Autor intervém na qualidade de Cabeça-de-casal das heranças abertas e indivisas de DD e de CC, contra BB, com vista a condenar-se o Réu a restituir um prédio ao Autor livre e devoluto de pessoas e bens.

4. O referido prédio, composto de terreno para construção, com a área de 574,2250 m2, sito na Rua ...... ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ....14, na freguesia do ... está registado em nome de CC e sua mulher DD, e encontra-se inscrito na matriz sob o artigo ….43 da União de freguesias de ..., ..., ... e ..., e faz parte do acervo hereditário dos falecidos CC e mulher DD, que deixaram como seus únicos herdeiros, os seus filhos: AA; EE; FF, sendo que as funções de cabeça de casal são exercidas pelo Autor.

5. Pelo que, no direito substantivo, o conceito de legitimidade reporta-se à relação entre o sujeito e o objecto do ato jurídico, postulando em regra a coincidência entre o sujeito do ato jurídico e o titular do interesse por ele posto em jogo.

6. Como pressuposto processual (geral), ou condição necessária à prolação de decisão de mérito, no direito adjectivo o mesmo conceito exprime a relação entre a parte no processo e o objecto deste (a pretensão ou pedido) e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o.

7. Tal como no direito substantivo, haverá que a aferir, em regra, pela titularidade dos interesses em jogo (no processo), de acordo com o critério enunciado no n.º 1 e n.º 2 do art. 30.º do CPC, ou seja, em função do interesse directo em demandar, expresso pela vantagem jurídica que resultará para o autor da procedência da acção, e do interesse directo em contradizer, expresso pela desvantagem jurídica que resultará para o réu da sua perda.

8. Dispõe o n.º 3 do artigo 30.º do CPC: “Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.

9. Os pedidos apresentados na acção aqui em discussão configuram-se como pedido típicos de uma acção de reivindicação (art. 1311º do CC). Ora, daqui resulta a evidência que a actuação em juízo de uma herança indivisa pressupõe a intervenção de todos os herdeiros, correspondendo a uma situação de litisconsórcio necessário, decorrente do artigo 2091º, nº 1 do CC.

10. No caso de uma acção de reivindicação de bens pertencentes a uma herança – o que o Autor configura na sua petição inicial peticionando a restituição da posse/reivindicação de propriedade - diversamente do que sucede com a chamada petição de herança, não tem aplicação o disposto no artigo 2078º do CC, funcionando, no que respeita à legitimidade, a regra do artigo 2091º, nº 1 do CC.

11. A actuação do cabeça de casal deverá estar contida nos poderes (e correspondentes deveres) de administração ordinária que a lei atribui ao cabeça-de-casal, enquanto administrador da herança, como se tem retirado do regime desenhado pelos artigos 2079º, 2089º, 2090º e 2091º do Código Civil.

12. Para se determinar se determinados actos se devem considerar como de administração ordinária, para o efeito de saber se estão compreendidos no âmbito dos poderes de administração da herança por parte do cabeça-de-casal, cumpre saber qual a repercussão que têm no contexto da herança, nomeadamente quanto aos encargos que geram (cfr. Ac. do STJ de 21-05-2009, proferido no proc. 08B2707, versão integral em www.dgsi.pt).

13. A administração da herança, até à liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal, nos termos do artº. 2079º do Código Civil, podendo incluir-se nos actos de administração a praticar pelo cabeça-de-casal aqueles que sejam necessários à conservação e reparação do património em partilha, por forma a que este não se deteriore ou fique destruído pelo decurso do tempo.

14. Ora, no caso em concreto – terreno para construção – é um prédio, não é um bem perecível, não tem qualquer destino concreto, não é passível de ser rentabilizado, pelo que facilmente se conclui que não existe risco de destruição pelo decurso do tempo.

15. Saliente-se a vasta opinião na jurisprudência de que a actuação em juízo de uma herança indivisa pressupõe a intervenção de todos os herdeiros, correspondendo a uma situação de litisconsórcio necessário, decorrente do artigo 2091º, nº 1 do CC.

16. No caso de uma acção de reivindicação de bens pertencentes a uma herança, diversamente do que sucede com a chamada petição de herança, não tem aplicação o disposto no artigo 2078º do CC, funcionando, no que respeita à legitimidade, a regra do artigo 2091º, nº 1 do CC.

17. Nestes casos (acção de reivindicação) (o mesmo se dizendo “face à natureza da presente execução e do respectivo direito de crédito que se pretende cobrar dos seus devedores…), quando o acto ofensivo do direito de propriedade do património hereditário indiviso for subjectivamente atribuído a um co-herdeiro (em confronto com os outros co-herdeiros reivindicantes) já preenche plenamente o fim que preside à imposição do litisconsórcio (artigo 28º, nºs 1 e 2 do CPC – 33º NCPC).

18. A herança jacente – herança aberta, mas ainda não aceite nem declarada vaga para o Estado – é coisa diversa da herança que, não obstante permanecer ainda em situação de indivisão (por não ter sido efectuada a partilha), já foi aceite pelos sucessíveis que foram chamados à titularidade das relações jurídicas que dela fazem parte, sendo que só a primeira detém personalidade judiciária.

19. A herança ilíquida e indivisa já aceite pelos sucessíveis (não jacente) não tem personalidade judiciária, pelo que terão que ser os herdeiros ou o cabeça de casal, se a questão se incluir no âmbito dos seus poderes de administração, a assumir a posição (activa ou passiva) no âmbito de uma acção judicial em que estejam em causa interesses do acervo hereditário. - Neste sentido, vide o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26.02.2019, Proc. 1222/16.8T8VIS-C.C1, Relator António Carvalho Martins, disponível em www.dgsi.pt.

20. No caso em concreto podemos considerar também mutatis mutandis, o que decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão de 13.11.2003, Proc. 6410/2003.8 (Relator Salazar Casanova), disponível em www.dgsi.pt., no seguinte: “- A instauração de despejo visando a declaração de caducidade de arrendamento respeitante a imóvel pertencente a herança indivisa constitui acto de administração da competência do cabeça-de-casal. II- A acção não pode ser proposta apenas por um dos herdeiros. III- Podem todos os herdeiros propor acção de despejo visto que a competência do cabeça-de-casal, mesmo considerados os actos para os quais ele dispõe de poderes de administração, não exclui nem sobreleva a competência conjunta de todos os herdeiros.”

21. Assim, salvo melhor entendimento, o Autor, desacompanhado dos demais herdeiros, carece de legitimidade para peticionar todos os pedidos constantes nesta acção e, em consequência, deverá ser declarado parte ilegítima, por preterição de litisconsórcio necessário activo, o que deverá conduzir à absolvição do Réu da instância.

22. Relativamente à relação contratual existente de Comodato dir-se-á que a reapreciação que aqui se requer feita por V.Exa.s Juizes Conselheiros, não conduzirá certamente a uma solução diferente da havida pelo tribunal “a quo” no julgamento que fez da matéria de facto trazida aos autos.

23. A utilização/cedência do terreno aqui em discussão foi autorizada e cedida ao Recorrente – o que foi confirmado, com certeza e segurança, na prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento através dos depoimentos de GG, FF e EE– a título gratuito, sem limitação de tempo (temporariamente), nem limitação de actividade profissional, sendo certo que é ali que o Réu instalou a sua oficina e exerce a sua actividade e presta os seus serviços de .....

24. Aquando a cedência do terreno, nunca lhe foi exigido que ali instalasse uma oficina, com funcionários e aberta ao público, sendo indiferente, para o efeito, se presta todos e quaisquer serviços de ...., se tem muitos ou poucos clientes ou se aufere rendimentos consideráveis decorrentes desta actividade.

25. Ou seja, não assume qualquer relevância para a cedência do terreno aqui em causa se o Réu, naquele espaço, efectua ....., sem qualquer complexidade e sem a exigência de ter uma oficina montada e que apenas funciona com um gerador.

26. Quer se queira quer não, esta é a sua forma de laborar e nunca foi exigido ao Réu que desenvolvesse a sua actividade noutras condições ou que tivesse uma oficina como o Autor idealizou.

27. Tanto mais que é o próprio Autor que não se opõe – conforme referiu em sede de depoimento de parte – à permanência e utilização do ora Recorrente naquele terreno, esvaziando por completo a obrigação de restituição do imóvel.

28. Na verdade, o Autor acabou por admitir pretender obter dinheiro com aquele local, ainda que admitindo que tal não é possível no estado em que se encontra, bem sabendo que os seus pais emprestaram este terreno ao Réu, a título gratuito e para ali exercer a sua actividade de ....... (fossem muitas ou poucas, complexas ou básicas), motivo pelo qual o Tribunal a quo de forma cristalina enquadrou esta relação contratual como um contrato de comodato e a decisão respeitou a vontade dos demais herdeiros.

29. Acresce sublinhar que o Autor não demonstrou junto do Tribunal “a quo” necessitar do prédio, condição acordada entre o Réu e os Pais do Autor, a respeito da restituição do imóvel a estes últimos.

30. Inexistem dúvidas que esta relação configura um contrato de comodato tal como definido no Artigo 1129.º, do Código Civil. “Comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir”.

31. A respeito do contrato de comodato importa desde já salientar que o mesmo não está sujeito a forma escrita, considerando-se celebrado pelas declarações negociais das partes (comodante e comodatário) e pela entrega da coisa móvel ou imóvel, pelo comodante, ao comodatário (contrato real quoad constitutionem, ou seja, quanto à constituição).

32. “O contrato de comodato é um negócio não formal – mesmo que respeite a bens imóveis – que confere ao comodatário um direito pessoal de gozo sobre o objecto do contrato.” – neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 21 de Junho de 2012, Processo 265/03.6 TBRMR.l1.S1, Relator Granja da Fonseca, disponível in www.dgsi.pt.

33. Com efeito, importa sublinhar que no acordo firmado entre os Pais do Autor e o Réu, através do qual cederam a título gratuito o uso de parte do terreno para construção, não ficou estabelecido qualquer prazo certo para a restituição da coisa. - Nos termos do artigo 1137.º, n.º 1 do Código Civil: “Se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação”.

34. No caso vertente, o uso de parte do imóvel pelo Réu, aqui comodatário, ainda não findou, ou seja, naquele terreno, desenvolve a sua atividade de ........ – o que foi confirmado por todas as testemunhas em sede de audiência de julgamento.

35. Consequentemente não existe a obrigação de proceder à restituição do imóvel.

- Neste mesmo sentido leia-se o douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, através do qual se concluiu o seguinte: “I - Se o comodato tiver prazo certo, a restituição deverá ser realizada até ao termo do prazo previsto; não tendo o comodato prazo, a restituição deve ocorrer logo que finde o uso do prédio. II – Tratando-se de comodato sem prazo e para uso de habitação familiar, não há obrigação de restituir o andar, enquanto continuar a ter esse uso. III – A necessidade de protecção familiar pode estender-se à casa objecto de um contrato de comodato, para habitação. IV – Continuando a servir-se do prédio, por efeito do contrato de comodato, o comodatário possui título legítimo para a ocupação do prédio”. Acórdão proferido pelo S.T.J., por unanimidade, em 05-06-2018, Juiz Relator Olindo Geraldes, 7.ª Secção, Processo n.º 1281/13.5 TBTMR.E1.S1, disponível in www.dgsi.pt.

36. Tipificado que está o contrato de comodato, tal como definido no artigo 1129.º, do CC não obstante o carácter temporário do contrato de comodato, não foi convencionado, no entanto, um prazo certo para a restituição, mas destinando-se a cedência do prédio e a exploração à actividade de ... pelo Réu, ficou demonstrado através de prova testemunhal que a sua restituição teria lugar e o comodato terminava quando fosse dado um destino ao terreno, sendo necessário avisar o Réu apenas com dois meses de antecedência sobre o seu termo. - O que ainda não ocorreu!

37. Assim, a duração do comodato depende pois, do termo do prazo estipulado ou de findo o uso determinado, sendo irrelevante, para a sua vigência, a motivação presente no momento da sua celebração.

38. Tratando-se no caso de contrato sem prazo e para uso de oficina ......., não há obrigação de restituir enquanto continuar a ter esse uso, atento o disposto no artigo 1137.º, n.º 1 do Código Civil.

39. Assim dispondo o comodatário, Réu na presente lide, ora Recorrente, do direito de continuar a servir-se do terreno por efeito do contrato de comodato, que se mantem em vigor, sendo que possui título legítimo para a utilização do prédio, o que se espera ver declarado pelo Venerando Tribunal.

40. De resto o uso que o Recorrente faz do terreno que lhe foi emprestado pelos pais do Autor, foi sempre o mesmo, só tendo diminuído a sua actividade fruto, entre outros, da menor procura dos seus serviços de ...., não havendo obrigação alguma de restituição do terreno, com esse fundamento».


Termos em que requer seja revogado o acórdão recorrido e mantida a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância.


8. O autor respondeu, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões que se transcrevem:

«1.ª Em suma, o R. traz aos autos, pela primeira vez (sendo, assim, questão nova), a alegada preterição de litisconsórcio necessário da parte ativa, o que, como é consabido, constitui exceção dilatória, prevista nos artigos 576.º, n.º 1, e 577.º, alínea e), do CPC;

2.ª Apesar de a legitimidade constituir matéria de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso continua vinculado aos factos que as partes apresentaram nos autos e é com base nesses elementos que pode apreciar do pressuposto processual, em obediência ao princípio do dispositivo (Cfr. artigo 5.º do CPC);

3.ª E a posição do R. foi a de admitir, no momento processual próprio (ou seja, em sede de Contestação) que o A., na qualidade de cabeça-de-casal da herança, não carecia de estar acompanhado dos demais herdeiros para peticionar a restituição do prédio à herança, tanto que alegou, inclusivamente, que o A., desacompanhado dos demais herdeiros, o abordou para entregar o terreno (Cfr. artigo 36.º da Contestação), nada tendo o R. alegado que colocasse em causa a legitimidade do A. para solicitar a restituição do imóvel à herança;

4.ª Termos em que, por força do princípio da preclusão, sempre deverá rejeitar-se o recurso no que tange à inovatória invocação da exceção dilatória da legitimidade, nos termos e para os efeitos dos artigos 573.º, n.º 2, 574.º, n.ºs 1 e 2, e 632.º do CPC.

SEM PRESCINDIR

5.ª Ainda que se considere a exceção da ilegitimidade ativa invocável em sede de Revista, sempre se dirá que a mesma é manifestamente improcedente, tanto que o Recorrente descuida que o Recorrido é o cabeça-de-casal da herança;

6.ª Sendo o Recorrido o cabeça-de-casal, a herança e, necessariamente, os bens que a constituem, são administrados pelo Recorrido até à partilha, de acordo com o disposto no artigo 2079.º do CC; Assim, e de acordo com a norma do artigo 2078.º do CC, é ao Recorrido que assiste o direito de defesa e proteção dos bens da herança contra terceiros.

7.ª Sendo que o artigo 2088.º permite ao cabeça-de-casal pedir os bens que deva administrar “aos herdeiros ou a terceiros”;

8.ª Logo, cremos, importa, de novo, salientar a intenção do Recorrido em reaver para o acervo hereditário o prédio dos autos, considerando a ocupação do prédio pelo Recorrente como não autorizada;

9.ª De facto, e porque o cabecelato compete ao Recorrido, é a este que cabe a administração e direito de defesa dos bens da herança (Cfr. artigos 2078.º e 2079.º do CC), sendo que cabe ao Recorrido, em exclusivo e não carecido de qualquer autorização dos demais herdeiros, a referida administração;

10.ª Efetivamente, na herança indivisa, como sucede in casu, estamos perante uma universalidade composta por património autónomo, em que os herdeiros não detêm direitos próprios sobre cada um dos bens hereditários e nem sequer são comproprietários desses bens, mas apenas titulares em comunhão de tal património, e, por isso, é em razão de tal comunhão que compete ao cabeça-de-casal, independentemente da vontade dos demais interessados, administrar e velar pela boa administração dos bens da herança;

11.ª Pelo que, necessariamente, e ao contrário do que alega o Recorrente, à luz das  normas dos artigos 2078.º e 2079.º do CC, o Recorrido tem legitimidade e até a obrigação (dever de boa administração) de exigir ao Recorrente a restituição do imóvel dos autos;

12.ª Termos em que improcede a alegada exceção da ilegitimidade ativa por putativa preterição de litisconsórcio necessário com os demais herdeiros;

13.ª Conclui ainda o Recorrente que, ao abrigo do contrato de comodato, poderá eternizar-se no terreno enquanto lhe der uso, mas não tem razão…

14.ª É que, como salientado no douto Acórdão recorrido, o comodato não pode subsistir indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por estar associado a um uso de duração incerta, sendo incompatível com esta figura jurídica um uso genérico e abstrato, que subsista indefinidamente ou não tenha termo certo;

15.ª Antes de mais, relembre-se que o empréstimo de cerca de 50 m2 do imóvel dos autos foi concretizado, em 1996/1997, para o Recorrente “explorar e aí desenvolver a sua atividade de ......” (Cfr alínea M) dos Factos Provados) sem convenção de prazo de restituição, mas definindo-se que a cedência era meramente temporária (Cfr. alteração do julgamento da matéria de facto, decidida pelo douto Acórdão recorrido);

16.ª Importa, por isso, relembrar a norma do artigo 1137.º, n.º 2, do CC, onde se estabelece que é legalmente admissível a restituição ad nutum, se não tiver sido convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa;

17.ª Ora, in casu, avulta que a coisa foi emprestada temporariamente sem que tenha sido fixado um prazo para a restituição (inclusivamente, o próprio Recorrente admite tal circunstância no artigo 17.º da sua Contestação!);

18.ª Necessariamente, face ao caráter temporário do contrato, o réu, enquanto comodatário, está obrigado a restituí-lo logo que lhe seja exigido, de harmonia com o preceituado no n.º 2 do artigo 1137.º do CC.

19.ª Em razão dessa nota de temporalidade, assumida como traço essencial do comodato, a jurisprudência desse Venerando Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que o «uso determinado», a que se alude no artigo 1137.º do CC, pressupõe uma delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não podendo considerar-se como determinado o uso de certa coisa se não se souber, quando aquele uso não vise a prática de atos concretos de execução isolada mas antes atos genéricos de execução continuada, por quanto tempo vai durar, caso em que se deve haver como concedido por tempo indeterminado. Assim, o uso só é determinado se o for também por tempo determinado ou, pelo menos, determinável; – Cfr. entre muitos outros, os Acórdãos desse Venerando Tribunal ad quem, de 13 de maio de 2003, no processo n.º 1323/03, de 27 de maio de 2008, no processo n.º 1071/08, de 31 de março de 2009, no processo n.º 359/09, e de 16 de novembro de 2010, no processo n.º 7232/04.0TCLRS.L1.S1, in www.dgsi.pt

20.ª Realmente, não seria de aceitar um comodato que subsistisse indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por ele ter sido associado a um uso genérico, de tal modo que o comodatário pudesse manter gratuitamente e sem limites o gozo da coisa; – Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de março de 2019, no processo n.º 2/16.5T8MGL.C1.S1, in www.dgsi.pt

21.ª Dir-se-á, finalmente, que, a vingar a tese vertida nas alegações de Revista, i. é, de que a restituição apenas será devida quando o Recorrido tiver um fim concreto para o imóvel, criar-se-á o efeito pernicioso de atribuir ao comodatário uma posição bem mais sólida e favorável do que se tivesse, por exemplo, celebrado um contrato de arrendamento, já que poderá votar ao abandono o imóvel (circunstância que não é permitida na relação de arrendamento, que obriga ao uso do locado – Cfr. artigo 1072.º do CC), solução que, salvo o devido respeito, a ordem jurídica não poderia tolerar;

22.ª Consequentemente, é de concluir como, e bem, decidiu o Tribunal recorrido que, não se estipulando prazo, nem se delimitando a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, o comodante (neste caso o cabeça-de-casal da herança aberta por óbito daquele) tem direito a exigir, em qualquer momento, a restituição do imóvel, denunciando o contrato, ao abrigo do disposto no n.º 2 do citado artigo 1137.º do CC;

23.ª Nestes termos, salvo melhor opinião, deverá, necessariamente, improceder a Revista, confirmando-se o douto Acórdão recorrido».


9. Após os vistos, cumpre apreciar e decidir.



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II. Delimitação do objeto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação dos recorrentes, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].


Assim, a esta luz, as questões a decidir consistem em saber se:


1ª - o autor, na sua qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito dos respetivos pais, tem legitimidade para desacompanhado dos demais herdeiros, propor a presente;


2ª - o réu está obrigado a restituir ao autor, na qualidade de cabeça de casal, o terreno que faz parte do acervo hereditário dos seus falecidos pais.


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IV. Fundamentação


3.1. Fundamentação de facto


Factos provados


O Tribunal de 1ª Instância considerou provados os seguintes factos:

A) O prédio, composto de terreno para construção, com a área de 574,2250 m2, sito na Rua ...... ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ...14, na freguesia do ... está registado em nome de CC e sua mulher DD.

B) Tal prédio encontra-se inscrito na matriz sob o artigo ...43 da União de freguesias de ..., ..., ... e ....

C) DD faleceu em 12 de Novembro de 1996 e CC faleceu em 17 de Maio de 1997.

D) O prédio a que alude a alínea A) faz parte do acervo hereditário dos falecidos CC e mulher DD.

E) CC e sua mulher DD deixaram como seus únicos herdeiros, os seus filhos:

- AA;

- EE;

- FF.

F) Por óbito de CC e sua mulher DD corre termos processo de inventário sob o número 2747/14.... no Juiz ... do Juízo Local Cível de ....... do Tribunal Judicial da Comarca de ......

G) No âmbito dos autos de inventário a que alude a alínea F) as funções de cabeça de casal são exercidas pelo aqui Autor.

H) No dia 14 de Novembro o Agente de Execução HH, de forma, procedeu à notificação do Réu para que este, no prazo de 15 dias, abandonasse o prédio a que alude a alínea A), o qual se recusou a assinar, tudo conforme documento junto a folhas 13 verso e 14 verso dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

I) O imóvel a que alude a alínea A) é explorado pelo Réu, que aí desenvolve actividade de .... [Nova redação dada pelo Tribunal da Relação]

J) O Autor, apenas no exercício da administração da herança, o que ocorreu após o dia 08 de Novembro de 2017, é que teve conhecimento do constante da alínea I), bem como que o Réu ocupava o imóvel.

L) Na zona do prédio a que alude a alínea A) existem vários restaurantes.

M - Os falecidos pais do Autor, há cerca de 22 anos, no ano de 1996/1997, emprestaram ao Réu, sem qualquer custo, 50m2 do imóvel a que alude a alínea A) para exploração e aí desenvolver a sua actividade de .....

N - O constante da alínea M) sempre mereceu e merece a concordância dos herdeiros EE e FF.

O - E desde então o Réu exerce actividade de .... sempre que é contactado pelos seus clientes para o exercício dessa actividade.


Factos não provados:

1 - O Réu ocupa o imóvel sem qualquer autorização;

2 - O Réu, com a ocupação e exploração, impede o Autor, na qualidade de cabeça de casal, de explorar o terreno como parque de estacionamento, dado que na zona onde se situa o prédio a que alude a alínea A) não existe zona de estacionamento, causando à herança um prejuízo mensal de € 2.000,00 (dois mil euros).


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3.2. Fundamentação de direito


Conforme já se deixou dito, o objeto do recurso interposto pela autora prende-se, essencialmente, com as questões de saber se o autor, na sua qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito dos respetivos pais, tem legitimidade para, desacompanhado dos demais herdeiros, propor a presente e se o réu está obrigado a restituir ao autor, na qualidade de cabeça de casal, o terreno que faz parte do acervo hereditário dos seus falecidos pais.



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3.2.1. Ilegitimidade ativa


Quanto a esta questão, sustenta o réu que, estando-se no âmbito de uma ação de reivindicação de prédio rústico da herança, de harmonia com o disposto no art. 2091º, nº 1, do C. Civil, e 33º, nº 1, do C.P. Civil, verifica-se uma situação de litisconsórcio necessário ativo, pelo que o autor, na qualidade de cabeça de casal, carece de legitimidade para, desacompanhado dos demais herdeiros, propor a presente ação.


Ora, se é certo tratar-se de questão só, agora, suscitada pelo réu, seguro é também que nenhum obstáculo existe à sua apreciação, em sede de recurso de revista, pois, como é consabido estamos perante uma exceção de conhecimento oficioso, relativamente à qual os arts. 577º, al. e) e 578º, ambos do CPC, em desvio a um eventual efeito preclusivo decorrente do estipulado no art. 573º, nº 2, do mesmo código, impõe ao juiz o dever dessa apreciação sem qualquer limitação temporal o até à decisão final.

Assim e tomando posição  sobre esta questão, diremos, desde logo, que, tendo o Tribunal de 1ª Instância afirmado, no despacho saneador, que as  partes «são legítimas ( uma vez que o Réu aceita a titularidade da propriedade do imóvel)», a questão que se nos coloca não é tanto a de saber se o autor, na qualidade de cabeça de casal, tem, ou não, legitimidade para, desacompanhado dos demais herdeiros, reivindicar um prédio da herança, mas, sim, a de determinar se uma tal  afirmação, deve ser entendida como sendo uma “afirmação tabelar” ou se traduz, antes, uma apreciação concreta da questão da legitimidade para efeitos de se lhe atribuir, ou não, força de caso julgado, nos termos do disposto no art. 595º, nº 3, do CPC.

E a este respeito, diremos, desde logo, que, não obstante a escassez da fundamentação, temos por certo que a afirmação de que as partes «são legítimas (uma vez que o Réu aceita a titularidade da propriedade do imóvel)», não se reconduz a uma mera afirmação tabelar, de natureza genérica, sobre a legitimidade das partes, significando, antes, que o Tribunal pronunciou-se concretamente sobre essa questão.

Com efeito, interpretando o sentido a dar a este segmento do despacho saneador, o que dele ressalta é que o Tribunal de 1ª Instância, considerando não ter o réu impugnado que o prédio em causa “faz parte do acervo hereditário dos falecidos CC e mulher, DD” [ cfr. alínea D) dos factos admitidos por acordo], reconheceu ao autor, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito dos seus pais, legitimidade para, desacompanhado dos demais herdeiros,  demandar o réu com vista a obter a extinção do comodato e exigir dele a restituição do terreno em causa bem como a sua condenação no pagamento de indemnização pelos danos que continuar a causar com a respetiva ocupação e reconheceu, de igual modo, a legitimidade passiva do réu, atento o seu interesse em contradizer tais pedidos.

E ainda que se pudesse suscitar a questão de saber se este juízo feito relativamente à legitimidade ad causum do autor era, ou não, correto, a verdade é que o réu não impugnou, nesta parte, o despacho saneador, que transitou em julgado.

Vale tudo isto por dizer, tal como resulta do disposto no art. 595º, nºs 1, al. a) e 3, do CPC, que, relativamente à exceção dilatória da legitimidade (ativa) do autor para, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito dos seus pais e desacompanhado dos demais herdeiros, propor a presente ação, o despacho saneador produz efeito de caso julgado formal, obstando  a que  na presente ação se possa alterar  o que nele já foi decidido.   

De qualquer modo sempre se dirá que, contrariamente ao defendido pelo recorrente, o cerne do litígio a dirimir nos presentes autos não corresponde a uma ação de reivindicação, mas, antes, ao exercício de um direito de reaver do comodatário um bem, cujo direito de propriedade não é sequer questionado.

E sendo assim, inexistem quaisquer dúvidas sobre a legitimidade ativa do autor para, na qualidade de administrador de herança indivisa, exigir de terceiros a entrega de bens da herança, posto que esta exigência constitui, nos termos do art. 2087, nº 1, do Código Civil, um ato de administração e é expressamente consentida pelo disposto no art. 2088º, nº 1, do mesmo código.    


Improcede, por isso, a ora invocada exceção de ilegitimidade do autor, carecendo de fundamento a pretendida absolvição do réu da instância.


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3.2.2. Do comodato e da restituição do prédio


Resulta dos factos provados e supra descritos no ponto 3.2.1 que no ano de 1996/1997 os pais do autor, CC e sua mulher DD, entretanto falecidos, no ano de 1996/1997, emprestaram ao réu, sem qualquer custo, 50m2 do prédio, composto de terreno para construção, com a área de 574,2250 m2, sito na Rua ...... ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de ... sob o número …..14, na freguesia do ... e registado em nome deles, para o réu aí explorar e desenvolver a sua atividade de .......

Sem questionar a qualificação jurídica deste contrato como sendo um contrato de comodato, sujeito à disciplina dos arts. 1129º e segs do C. Civil, persiste, porém, o réu na defesa de que, contrariamente ao decidido no acórdão recorrido, não está obrigado a restituir o terreno em causa, quer porque o autor não demonstrou necessitar do mesmo, quer porque, não tendo sido estabelecido prazo certo para a sua restituição, não findou o uso para que o terreno foi emprestado, tal como resulta do disposto no art. 1137º, nº 1, do C. Civil e decidiu o Tribunal de 1ª Instância.  


Mas, em nosso entender, não lhe assiste qualquer razão.

Senão vejamos.

Está em discussão nos autos um contrato de comodato celebrado entre os pais do autor e o réu, que o art. 1129º, do C. Civil define como sendo «o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir», e que está sujeito à disciplina dos arts. 1130º a 1141º, do mesmo código.

Trata-se de um contrato que, por só se concluir validamente com a entrega da coisa ao comodatário, reveste a natureza de um contrato real quoad constitutionem.

Não sendo um contrato translativo da propriedade, o comodatário só tem a qualidade de detentor do bem dado em comodato, nos termos do disposto no art. 1253º, al. a), do C. Civil, estando obrigado, nos termos do art. 1135º, al. h), do C. Civil, a «restituir a coisa findo o contrato».

Face a esta obrigação de restituição que impende sobre o comodatário, torna-se, assim, evidente o carácter temporário do contrato, pois de outro modo e como sublinha Rodrigues Bastos[2], estar-se-ia a «desrespeitar a função social preenchida por este contrato, cuja causa é sempre uma gentileza ou favor, não conciliável com o uso muito prolongado do imóvel».

Daí estabelecer o art.º 1137º, n.º 1, do C. Civil,  que «se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação», acrescentando, no seu  n.º 2, que «se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida», ou seja, quando para tal for interpelado.

Ora, resultando claro dos factos provados  que os pais do autor, há cerca de 22 anos,  emprestaram gratuitamente ao réu o referido terreno sem indicação de prazo certo para a sua  restituição, sendo a finalidade da entrega a de utilização do terreno em questão para aí explorar e  desenvolver a atividade de ..., evidente se torna que a solução a dar ao presente litígio há-de ser encontrada  no disposto no citado art.º 1137º , para o que impõe-se, desde logo,  determinar  o sentido a dar à expressão  “ uso determinado” contida no seu nº 1.

E a este respeito diremos, em consonância com a jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal, que « a determinação do uso envolve a delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não podendo em consequência considerar-se como determinado o uso de certa coisa se não se souber, quando aquele uso não vise a prática de actos concretos de execução isolada mas de actos genéricos de execução continuada, por quanto tempo vai durar, isto é, se for concedido por tempo indeterminado. Portanto, o uso só é determinado se o for também por tempo determinado ou, pelo menos, determinável»[3].

Vale tudo isto por dizer, na expressão do recente Acórdão do STJ, de 26.11.2020  ( processo nº 3233/18.0T8FAR.E1.S1)[4], que, para que haja lugar à aplicação do regime estabelecido no nº 1 do citado  art. 1137º, necessário se torna  a delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, pelo que, não se estipulando prazo certo para a restituição da coisa emprestada, nem existindo aquela delimitação, o comodante tem direito a exigir a todo o momento a restituição da coisa, denunciando o contrato, ao abrigo do disposto no nº 2 daquele mesmo artigo, que visa precisamente impedir, nestes casos, a perpetuação das relações obrigacionais de comodato[5].     

Trata-se de orientação que se acolhe pelas mesmas razões invocadas naquele mesmo acórdão, ou seja, por ser a interpretação mais consentânea, quer com o carácter temporário do contrato de comodato, quer com o princípio geral emanado do art. 237º, do CC, segundo o qual, em caso de dúvida, nos contratos gratuitos deve prevalecer o sentido da declaração menos gravoso para o disponente.

Daí que, não tendo, no caso dos autos, sido estipulado prazo certo para a restituição do terreno emprestado nem estando o uso do terreno “cedido” para o réu aí explorar e desenvolver a atividade de ... temporalmente definido nem limitado, seja de considerar   o contrato de comodato em causa como sendo um contrato de duração indeterminada e, por conseguinte, sujeito à regra da cessação ad nutum prevista no nº 2 do art. 1137º, do C. Civil.

Assim sendo e porque, contrariamente ao defendido pelo réu, a falta de prova pelo autor da   necessidade do terreno objeto do contrato de comodato não constitui obstáculo a que a restituição seja exigida em qualquer momento ao comodatário, dúvidas não restam estar o réu obrigado a restituir ao autor o terreno em causa.

De salientar, à semelhança do que já foi feito no supra citado Acórdão do STJ, de 26.11.2020, que no caso apreciado no Acórdão do STJ, de 05.06.2018 (processo nº 1281/13.5TBTMR.E1.S1)[6], ora invocado pelo recorrente em prol da sua pretensão, estava em causa um diferendo em que um dos autores, sucedendo na posição de um dos comodantes, entretanto falecido, pretendia que a ré, de quem se divorciara, restituísse a habitação na qual residia ao abrigo do acordo celebrado entre o autor e a ré quanto ao destino da casa de morada de família.

Ou seja, estávamos perante uma situação em que a decisão de não obrigar à restituição da coisa foi proferida no âmbito das relações entre ex-cônjuges, assentando, por isso, em factualidade e enquadramento jurídico específicos, que determinaram uma solução jurídica distinta da ora adotada.


Daí improcederem todas as razões invocadas pelo recorrente.



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IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em julgar improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas desta revista ficam a cargo o réu, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário, que lhe foi concedido.

Notifique.


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Supremo Tribunal de Justiça, 9 de dezembro de 2021

Maria Rosa Oliveira Tching (relatora)

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira

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[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[2] In “Notas ao Código Civil”, Vol. IV. Almedina, págs. 242 e 243
[3] Cfr.  Acórdão do STJ de 13.5.2003 (processo n.º 1323/03). No mesmo sentido, cfr., entre muitos outros, Acórdãos do STJ, de 27.5.2008 (processo n.º 1071/08); de 31.03.2009 (processo n.º 359/09); de 16.11.2010 (processo nº 7232/04.0TCLRS.L1.S1), de 21.03.2019 (processo nº 2/16.5T8MGL.C1.S1) e de  26.11.2020 (processo nº 3233/18.0T8FAR.E1.S1), todos acessíveis in www.dgsi/stj.pt.
[4] Relatado pela Senhora Conselheira Graça Trigo e assinado pela ora relatora e pela Senhora Conselheira Catarina Serra, na qualidade de primeira e segundas adjuntas, respetivamente, e acessível in www.dgsi/stj.pt.
[5] Neste mesmo sentido, cfr. Menezes Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil”, vol. XII- Contratos em especial, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, págs. 167 e segs.
[6] Acessível in www.dgsi/stj. pt.