Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1516/15.0T8STS-G.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: RAIMUNDO QUEIRÓS
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
DEVER DE INFORMAÇÃO
QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
OFENSA DO CASO JULGADO
Data do Acordão: 10/29/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – INCIDENTES DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA / INSOLVÊNCIA CULPOSA – DISPOSIÇÕES ESPECÍFICAS DA INSOLVÊNCIA DE PESSOAS SINGULARES / EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE / INDEFERIMENTO LIMINAR.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E RECUPERAÇÃO DE EMPRESA (CIRE): - ARTIGOS 186.º, N.º S 1 E 2, ALÍNEAS. A), D), I) E N.º4 E 238.º, N.º 1, ALÍNEA G).
Sumário :
I - É liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo restante se o devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultem do CIRE, no decurso do processo de insolvência – art. 238.º, n.º 1, al. g) do CIRE.

II - O insolvente que, depois de lhe ter sido concedido o benefício de se manter na habitação apreendida nos autos, retirou bens que dela faziam parte, levando a que fosse anulada a venda já concretizada nos autos de insolvência, viola os referidos deveres, nos termos do n.º 1, al. g) do art. 238.º do CIRE, pelo que deve ser indeferido o pedido de exoneração do passivo restante.

III - Não existe contradição, nem violação do caso julgado, entre a decisão do indeferimento deste pedido e a decisão de qualificação da insolvência como fortuita, por não verificação do disposto nos arts. 186.º, n.os 1 e 2, als. a), d), i) e 4 do CIRE, por falta de cumprimento dos requisitos temporais normativamente assinalados.
Decisão Texto Integral:   

   

 Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

         I- Relatório

No processo de insolvência, a correr termos na comarca do Porto, Santo Tirso - Inst. Central -1ª secção Comércio, Juiz 1, vieram os insolventes AA e BB deduzir incidente de exoneração do passivo restante.

  Com data de 08/01/2019, foi proferida sentença do seguinte teor:

“Vieram os insolventes deduzir incidente de exoneração do passivo restante.

Pronunciaram-se negativamente os credores CC (fls.320v) DD (fls. 330 e ss.)

Resulta documentalmente dos autos que:

Os insolventes requereram autorização ao Tribunal para se manterem a residir no imóvel apreendido até à concretização da venda daquela que era a sua habitação, nada tendo sido oposto pelo AI.

Por despacho de 02/03/2016 foi o requerido autorizado.

Por requerimento de 18/05/2016 e de 15/06/2016, o AI informou os autos que notificou o insolvente para entregar o bem, e, recebendo, faltavam os móveis de cozinha, loiças e torneiras de casa de banho, radiadores e quatro focos.

Tinha sido apresentada uma proposta de aquisição do imóvel pela EE, s.a., no valor de €131.680,00 a qual tinha sido aceite e adjudicado o bem.

O valor da reparação e substituição dos bens foi avaliada em €17.271,00, acrescido de IVA.

O insolvente não repôs a situação anteriormente existente, nem restituiu os bens nem procedendo a qualquer reparação, não obstante ter sido interpelado pelo AI para o efeito.

A sociedade EE, invocando a situação descrita, veio pedir a redução do valor de venda, o que não foi aceite pelo credor hipotecário, e, nessa sequência, declarando-se nula a venda por decisão de 11/10/2016.

Na sequência de queixa-crime apresentada pela Massa Insolvente contra incertos, foi instaurado inquérito crime contra os insolventes que seguiu termos pelo DIAP deste Tribunal, sob o n.° 2876/16.0T9MTS, tendo os autos sido arquivados relativamente à insolvente, nos termos do disposto no art. 277/2 do CPP e, na sequência da confissão dos factos que lhe tinham sido imputados e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais, designadamente a autoria na retiradas dos móveis da cozinha, loiças, torneiras de casa de banho, 5 radiadores e 4 focos do teto do imóvel, com violação do disposto no art. 355.s do Código Penal, foram os autos suspensos, provisoriamente, pelo período de 12 meses, mediante o cumprimento pelo insolvente ali arguido de 200h de trabalho a favor da comunidade e ausência de prática de crime doloso contra a autoridade pública.

Por decisão de 09/05/2018, transitada em julgado, foi a insolvência foi qualificada como fortuita, por não verificação do disposto nos arts. 186/1, 2 a), d), i), 4 e 5 do CIRE, por falta de cumprimento dos requisitos temporais normativamente assinalados.

E liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo restante se o devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração quer para ele resultem do CIRE, no decurso do processo de insolvência - art. 238º, nº1 g) do CIRE.

Resulta dos autos que o insolvente, depois de lhe ter sido concedido o benefício de se manter na habitação apreendida nos autos, retirou bens que dele faziam parte, levando a que fosse anulada a venda já concretizada nos autos de insolvência, não obstante o pedido efetuado pelo AI para que o insolvente repusesse a situação do bem.

Neste contexto, resulta que o devedor com a sua conduta violou culposamente a sua obrigação de colaboração com o AI, não restituindo o bem imóvel conforme se encontrava à data da apreensão, nem procedendo à reposição do imóvel conforme se encontrava antes da retirada dos bens que dele faziam parte, prejudicando, desse modo, o ato de venda já concretizado, levando à sua anulação.

Impõe-se, deste modo, nos termos do disposto no art, 238°, n.s 1 g) do CIRE, indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelo insolvente AA.

Não foi apresentada, porém, relativamente à devedora BB qualquer oposição ao pedido de exoneração de passivo restante que tenha o alcance fundamentado para indeferir liminarmente o mesmo, cumprindo assim ao tribunal proferir despacho a que alude o n.º 2 do art. 239º do CIRE.

Assim, nos termos do art. 239º, ns. 1 e 2 do CIRE, o tribunal determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (art. 230° CIRE), o rendimento disponível que o devedor venha a auferir, i.e., todos os rendimentos que advenham ao insolvente, com exclusão dos previstos nas al.s a) e b) do n.°3 do art. 239º, se considera cedido ao sr. Administrador de Insolvência destes autos, na qualidade de fiduciário, ficando salvaguardado para o/a devedor/a, durante o período de cessão - os referidos cinco anos após o encerramento do processo, início que tem lugar com a prolação deste despacho -art. 237 b) do CIRE, a quantia a fixar em conformidade com despacho que seguirá, na sequência de convite endereçado à insolvente para esclarecer a sua situação económico-social ficando o/a mesmo/a obrigado/a a observar as imposições previstas no n.s 4 do art. 239.- do CIRE.

Fica o/a/s devedor/a/s advertido/a/s para o facto de a exoneração do passivo ser revogada no caso de se verificarem as circunstâncias previstas nas als.b) e ss. do n°1 do art. 238º.- ou violar dolosamente as suas obrigações durante o período de cessão, e por algum desses motivos tenham prejudicado de forma relevante a satisfação dos credores da insolvência.

Qualquer alteração de morada deve ser comunicada ao Fiduciário e aos autos.

 (…)”

Desta decisão apelou o insolvente AA para o Tribunal da Relação do Porto, relativamente ao indeferimento do seu pedido de exoneração do passivo restante.

Este Tribunal, por acórdão de 10/07/2019, julgou improcedente o recurso, mantendo integralmente a sentença recorrida, com base na seguinte factualidade e fundamentação:

a) “Os insolventes requereram autorização ao Tribunal para se manterem a residir no imóvel apreendido até à concretização da venda daquela que era a sua habitação, nada tendo sido oposto pelo AI;

b) Por despacho de 02/03/2016 foi o requerido autorizado;

c) Por requerimento de 18/05/2016 e de 15/06/2016, o AI informou os autos que notificou o insolvente para entregar o bem, e, recebendo, faltavam os móveis de cozinha, loiças e torneiras de casa de banho, radiadores e quatro focos;

d) Tinha sido presentada uma proposta de aquisição do imóvel pela EE …, S. A., no valor de € 131.680,00 a qual tinha sido aceite e adjudicado o bem;

e) O valor da reparação e substituição dos bens foi avaliado em € 17.271,00, acrescido de IVA;

f) O insolvente não repôs a situação anteriormente existente, nem restituiu os bens nem procedendo a qualquer reparação, não obstante ter sido interpelado pelo AI para o efeito;

g) A sociedade EE, invocando a situação descrita, veio pedir a redução do valor de venda, o que não foi aceite pelo credor hipotecário, e, nessa sequência, declarando-se nula a decisão de 11/10/2016;

h) Na sequência de queixa-crime apresentada pela Massa Insolvente contra incertos, foi instaurado inquérito crime contra os insolventes que seguiu termos pelo DIAP deste Tribunal, sob o n.º 2876/16.0T9MTS, tendo os autos sido arquivados relativamente à insolvente, nos termos do disposto no art. 277/2 do CPP e, na sequência da confissão dos factos que lhe tinham sido imputados e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais, designadamente a autoria na retirada dos móveis da cozinha, loiças, torneiras de casa de banho, 5 radiadores e 4 focos de teto do imóvel, com violação do art.º 355.º do Código Penal, foram os autos suspensos, provisoriamente, pelo período de 12 meses, mediante o cumprimento pelo insolvente ali arguido de 200h de trabalho a favor da comunidade e ausência de prática de crime doloso contra a autoridade pública;         

i) Por decisão de 09/05/2018, transitada em julgado, foi a insolvência qualificada como fortuita, por não verificação do disposto nos arts. 186/ 1, 2 a), d), i), 4 e 5 do CIRE, por falta de cumprimento dos requisitos temporais normativamente assinalados;

j) Resulta dos autos que o insolvente, depois de lhe ter sido concedido o benefício de se manter na habitação apreendida nos autos, retirou bens que dela faziam parte, levando a que fosse anulada a venda já concretizada nos autos de insolvência, não obstante o pedido efetuado pelo AI para que o insolvente repusesse a situação do bem;

 k) Neste contexto, resulta que o devedor com a sua conduta violou culposamente a sua obrigação de colaboração com o AI, não restituindo o bem imóvel conforme se encontrava à data da apreensão, nem procedendo à reposição do imóvel conforme se encontrava antes da retirada dos bens que dele faziam parte, prejudicando, desse modo, o ato de venda já concretizado, levando à sua anulação.”

(…)

Ora a situação fáctica descrita nos autos integra uma violação grave dos deveres de colaboração com o tribunal. Ao devedor foi-lhe concedido o direito de habitar a casa que se encontrava apreendida. Durante esta ocupação retirou móveis da cozinha, torneiras e os demais constantes dos factos. Apesar de notificado para proceder à rectificação e emendar o que fez, não repôs a situação ao estado original. A venda veio a ser anulada em consequência desta actuação do devedor por a actuação do devedor sobre o imóvel, o desvalorizar. O devedor não só não colaborou com o tribunal, como embaraçou o processo de liquidação.

O incidente de qualificação de insolvência e a exoneração do passivo exigem requisitos autónomos e não se confundem entre si.”

Deste acórdão veio o Recorrente AA interpor recurso de revista, formulando as seguintes conclusões:

“I - Dá-se aqui por reproduzida, por uma questão de economia processual, toda a matéria de facto dada por provada no douto Acórdão Recorrido, e constante das alíneas do artigo 4.º destas Alegações;

II - Por isso, haverá que levar em sobreponível conta o facto dado como provado no douto Acórdão Recorrido constante da alínea i) do item 4.5 destas alegações em que, “Por decisão de 09/05/2018, transitada em julgado, foi a insolvência qualificada como fortuita, por não verificação do disposto nos arts. 186/ 1, 2 a), d), i), 4 e 5 do CIRE, por falta de cumprimento dos requisitos temporais normativamente assinalados.”

III - Assim, tendo em conta tal Decisão proferida no incidente da qualificação da insolvência, com trânsito em julgado, devemos ter como adquirido, entre outros, que o devedor não destruiu, danificou, inutilizou, ou fez desaparecer, no todo ou em parte considerável o seu património (alínea a) do n.º 2 do art.º 186.º do C. I. R. E.), nem incumpriu, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nº 2 do artigo 188º (alínea i) do nº 2 do citado art.º 186º), conforme resulta da citada Sentença de Qualificação da Insolvência.

IV - O Parecer referido no n.º 2 do art.º 188.º do C. I. R. E., que é o Parecer da Administradora da Insolvência sobra a Qualificação da Insolvência, no caso dos presentes autos, foi junto aos autos em 28/03/2017, ou seja, posteriormente à data dos factos referidos nas alíneas a), b), c), d), e), f), g) e h) do item 2.º destas alegações, pelo que sendo a insolvência do devedor declarada como fortuita “já que não se julga verificada qualquer situação que permita qualificar a insolvência como culposa”, conforme parte final e decisória da douta Sentença de Qualificação da Insolvência, demonstrado ficou que a situação da insolvência não foi criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave do devedor.

V - Por outro lado, nos termos do n.º 1 do art.º 238.º do C. I. R. E., o pedido de exoneração do passivo restante é liminarmente indeferido se, entre outras, o devedor tiver violado as alíneas b), d), e) e g) daquela normativo, que aqui nos escusamos de reproduzir.

VI - Ora, dada a similitude dos factos apreciados na Sentença de Qualificação da Insolvência com os factos fundamentadores da apreciação deste incidente de exoneração do passivo restante, sendo estes, aliás, em parte, uma reprodução fiel daqueles, seria contraditório negar em sede de exoneração do passivo restante o que foi afirmado no incidente da qualificação da insolvência, sob pena de existirem julgados contraditórios dentro do mesmo processo.

VII - Por isso, como na sentença que considerou a insolvência como fortuita, este Tribunal já apreciou os mesmos factos, então já decorridos e conhecidos, pretender-se que agora sejam fundamentadores do indeferimento da exoneração do passivo restante, seria violador da força do caso julgado anterior.

VIII - Ora, tendo em conta o atrás demonstrado e que resulta documentalmente dos autos, o decidido pelo presente Acórdão está em oposição com o identificado Acórdão Fundamento, pois, “estando já decidido neste processo (com trânsito em julgado) que a insolvência foi fortuita, está afastada a possibilidade de vir a decidir, no mesmo processo, embora num incidente diverso, que (o) insolvente incumpriu, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º …”, conforme n.º 3 do Sumário do citado Acórdão Fundamento.

IX- Assim, ao julgar diversamente, o Acórdão Recorrido, por oposição ao Acórdão Fundamento violou, por erro de interpretação e aplicação, os artigos 185.º e 238.º, n.º 1, al. g) todos do C. I. R. E., e 619.º do C. P. C., ex vi art.º 17.º do C. I. R. E.” 

II- Apreciação do Recurso
A- Questão Prévia da admissibilidade do Recurso de Revista

 O regime de recurso estabelecido no artigo 14.º, n.º 1, do CIRE é um regime especial, aplicável no âmbito do processo de insolvência e do PER, que afasta definitivamente, nos casos por ela abrangidos, a revista excepcional.

Dispõe-se na norma que “não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ela conforme”.

A interposição de recurso ao abrigo desta norma não prescinde, naturalmente, dos pressupostos gerais de admissibilidade de recurso (cfr., designadamente, os artigos 629.º e 671.º do CPC) e depende sempre da demonstração de uma oposição de julgados.

O artigo 14.º, n.º 1, do CIRE permite que, excepcionalmente (mas independentemente da dupla conforme), haja lugar a revista quando o acórdão da Relação esteja em oposição com outro, proferido por alguma das Relações ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme.

O recorrente cumpriu o ónus de tentar demonstrar a similitude das hipóteses a que respeitam os acórdãos em confronto e a diversidade de decisões proferidas, que revelem uma divergente aplicação das mesmas normas a idênticos problemas jurídicos, à luz do mesmo quadro legal. Apesar da similitude das decisões, a divergência é mais aparente do que real.

No entanto, para se concluir pela inexistência da contradição de julgados, importará apreciar a fundamentação do recurso, pelo que se admite o recurso.

 

B- Objecto do Recurso

 Admitido o recurso, importa fixar o seu objecto.

 O recurso está delimitado pelas conclusões das alegações.

A única questão que importa apreciar consiste em saber se, no caso dos autos, a decisão de indeferimento da exoneração do passivo restante, está em contradição com a classificação da insolvência como fortuita e se aquele indeferimento violou as regras do caso julgado.

III- Fundamentação:

A factualidade provada é a constante do relatório.

III- O Direito

O presente recurso incide sobre o acórdão da Relação do Porto que, mantendo a decisão de primeira instância, indeferiu o requerido incidente de exoneração do passivo restante com fundamento na alínea g) do nº l do artº 238º do C I. R. E.

Alega o recorrente que “Por decisão de 09/05/2018, transitada em julgado, foi a insolvência qualificada como fortuita, por não verificação do disposto nos arts. 186º, nºs 1 e 2, alíneas a), d), i), 4 e 5 do CIRE, por falta de cumprimento dos requisitos temporais normativamente assinalados

Assim, tendo em conta tal decisão proferida no incidente da qualificação da insolvência, com trânsito em julgado, “devemos ter como adquirido, entre outros, que o devedor não destruiu, danificou, inutilizou, ou fez desaparecer, no todo ou em parte considerável o seu património (alínea a) do n.º 2 do artº 186º do C. I. R. E.), nem incumpriu, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nº 2 do artigo 188º (alínea i) do nº 2 do citado artº 186º), conforme resulta da citada sentença de qualificação da insolvência.”

Concluindo que, como na sentença que considerou a insolvência como fortuita, este Tribunal já apreciou os mesmos factos que depois serviram de fundamento para indeferir o pedido de exoneração do passivo restante, esta decisão é violadora da força do caso julgado.

Vejamos se assiste razão ao Recorrente:

  Dispõe o artigo 238º do CIRE:

1 - O pedido de exoneração ê liminarmente indeferido se:

a)      For apresentado fora de prazo;

b)      O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;

c)       O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores a data do início do processo de insolvência;

d)      O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;

e)       Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186°;

f)       O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227º- a 229º- do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;

g)      O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência. (sublinhado nosso)

2 - O despacho de indeferimento liminar é proferido após a audição dos credores e do administrador da insolvência na assembleia de apreciação do relatório, excepto se este for apresentado fora do prazo ou constar já dos autos documento autêntico comprovativo de algum dos factos referidos no número anterior.

A decisão recorrida indeferiu o incidente de exoneração do passivo restante com fundamento na alínea g) do nº 1, por violação dos deveres de colaboração no decurso do processo de insolvência, com base na seguinte factualidade:

“Resulta dos autos que o insolvente, depois de lhe ter sido concedido o benefício de se manter na habitação apreendida nos autos, retirou bens que dele faziam parte, levando a que fosse anulada a venda já concretizada nos autos de insolvência, não obstante o pedido efetuado pelo AI para que o insolvente repusesse a situação do bem”.

E neste contexto, entendeu a Relação (bem como a 1ª instância) que “o devedor com a sua conduta violou culposamente a sua obrigação de colaboração com o AI, não restituindo o bem imóvel conforme se encontrava à data da apreensão, nem procedendo à reposição do imóvel conforme se encontrava antes da retirada dos bens que dele faziam parte, prejudicando, desse modo, o ato de venda já concretizado, levando à sua anulação”.

Argumenta o Recorrente que, antes desta decisão de indeferimento de exoneração do passivo restante, por decisão de 09/05/2018, transitada em julgado, foi a insolvência qualificada como fortuita, por não verificação do disposto nos arts. 186º, nºs 1 e 2, alíneas a), d), i), 4 e 5 do CIRE, por falta de cumprimento dos requisitos temporais normativamente assinalados.

Assim, alega o Recorrente, “tendo em conta tal decisão proferida no incidente da qualificação da insolvência, com trânsito em julgado, “devemos ter como adquirido, entre outros, que o devedor não destruiu, danificou, inutilizou, ou fez desaparecer, no todo ou em parte considerável o seu património (alínea a) do n.º 2 do artº 186º do C. I. R. E.), nem incumpriu, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nº 2 do artigo 188º (alínea i) do nº 2 do citado artº 186º), conforme resulta da citada sentença de qualificação da insolvência.

Todavia, a argumentação do Recorrente não poderá ser acolhida.

Com efeito, bastará analisar a decisão relativa à classificação da insolvência como fortuita para se concluir que o motivo que levou a esta classificação foi, apesar de se ter provado, por parte do Recorrente uma actuação inadequada e violadora do disposto nas alíneas a), d) e i) do nº 2 do artº 186º, do CIRE, a insolvência não foi considerada culposa, por falta de cumprimento do requisito temporal.

 Ou seja, no incidente de classificação da insolvência resultaram provados os factos violadores das regras de colaboração e integradores da classificação da insolvência como culposa. E esta só não veio a ser classificada como tal por falta do requisito temporal previsto no nº 1 do artº 186º do CIRE. Vejamos a decisão proferida pelo Juízo de Comércio de Santo Tirso nesse incidente:

“ Resultam provados os seguintes factos:

1. (…)

14. Por requerimento de 18/05/2016, veio a AI informar que solicitou a entrega do imóvel ao insolvente e que, quando recebeu as chaves do mesmo constatou que tinham sido retirados da cozinha e do WC bens, os quais eram parte integrante do imóvel, tendo a mesma aprestado queixa-crime e que o insolvente não colaborou com a signatária, não tendo exposto os motivos da remoção dos bens, bem como se negou a repor a situação existente.

 15. Os bens retirados do imóvel foram os móveis de cozinha, loiças e torneiras de casa de banho, cinco radiadores e quatro focos de teto, cujo valor de reposição ascende a €17.271,00 mais IVA.

(…)

21. Por decisão de 15/11/2016, foi o processo-crime n.° 2876/16.0T9MTS, em que foram constituídos como arguidos os aqui insolventes, foi o mesmo Arquivado em relação à insolvente nos termos do disposto no art. 277/2 do CPP, por inexistência de indícios suficientes da prática do crime pela mesma.

22. Por decisão de 28/11/2016, foi aplicada ao insolvente, ali arguido, pela prática do crime de descaminho p. e p. pelo art. 355.° do C. Penal, a suspensão provisória do processo, pelo prazo de 12 meses, mediante a cominação do disposto no art. 282.° do CPP, a prestação de 200h de trabalho a favor da comunidade e a não prática, nesse período, de qualquer crime doloso, nomeadamente contra autoridade pública, assente nos fundamentos descritos na decisão mencionada em 21) que aqui se dão por integralmente reproduzidos, designadamente:”

(…)

Do Direito

(…)

Vejamos agora se se verifica a integração das apontadas condutas alguma das situações previstas no art. 186°,ns. 1 e 2 als. a), d) e 1) e n° 3 al. a) do CIRE.

 Ora, já vimos que, e no que concretamente se refere às situações mencionadas nas alíneas a) e d) do n.°2 do art. 186.° do C.RE, para a qualificação da insolvência como culposa exige-se a verificação do limite temporal determinado no nº 1, i.e.,  que o facto tenha sido praticado nos três anos anteriores à data do inicio do processo de insolvência. Assim, sabendo que o início do processo de insolvência se reportou ao dia 30/04/2015 e que o que está em causa são factos ulteriores a esta data, a relevância jurídica que os mesmos possam assumir inexiste no âmbito deste incidente porque não se verifica um dos requisitos cumulativos vistos no n.°1 da mencionada norma, no caso, o requisito temporal.

(…) Deste modo, a factualidade que fundamenta o parecer como violando as als. a), d) e i) do nº 2 do art. 186º do CIRE, por falta de cumprimento do requisito temporal, impede a verificação dos comportamentos como integradores de qualificação da insolvência como culposa.”

Da leitura da decisão, não restam dúvidas de que o Recorrente praticou factos violadores do disposto nas alíneas a), d) e i) do nº 2 do artº 186º do CIRE. Com efeito, esses factos constam da factualidade dada como provada e só não conduziram à classificação da insolvência como culposa por falta do requisito temporal.

Por isso, não assiste razão ao Recorrente quando alega que esses factos foram dados como não provados, pelo que tendo a sentença transitado em julgado a decisão sobre esta factualidade, mostra-se intocável. O silogismo argumentativo do Recorrente parte de uma premissa errada.

Foi precisamente com base nesta factualidade que o Juízo de Comércio de Santo Tirso veio a proferir a decisão, confirmada pela Relação, no sentido de indeferir o pedido de exoneração do passivo restante, com fundamento na violação por parte do devedor dos deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do CIRE, no decurso do processo de insolvência – art. 238.°, n.°1, al. g) do CIRE. Tal como decorre da leitura do acórdão da Relação:

“É liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo restante se o devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultem do CIRE, no decurso do processo de insolvência – art. 238.º, n.º 1  g) do CIRE.

Resulta dos autos que o insolvente, depois de lhe ter sido concedido o benefício de se manter na habitação apreendida nos autos, retirou bens que dele faziam parte, levando a que fosse anulada a venda já concretizada nos autos de insolvência, não obstante o pedido efetuado pelo AI para que o insolvente repusesse a situação do bem.

Neste contexto, resulta que o devedor com a sua conduta violou culposamente a sua obrigação de colaboração com o AI, não restituindo o bem imóvel conforme se encontrava à data da apreensão, nem procedendo à reposição do imóvel conforme se encontrava antes da retirada dos bens que dele faziam parte, prejudicando, desse modo, o ato de venda já concretizado, levando à sua anulação.

Impõe-se, deste modo, nos termos do disposto no art. 238.º, n.º 1 g) do CIRE, indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelo insolvente AA.”  

Assim, do confronto entre a decisão recorrida e o acórdão- fundamento, evidencia-se a inexistência de julgados contraditórios.

Com efeito, no acórdão-fundamento proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, a situação é diversa da dos presentes autos. Naquele acórdão, no incidente de qualificação de insolvência não ficaram provados quaisquer factos integradores da qualificação da insolvência como culposa (cfr p. 11: “Só que, como também já adiantámos, na sentença que considerou a insolvência como fortuita o Tribunal já apreciou esta questão. E concluiu pela não verificação desta, ou de qualquer outra, causa de qualificação da insolvência como culposa. Essa decisão transitou em julgado. Logo, por todas as razões supra indicadas, não podia agora o Tribunal a quo desdizer-se e decidir o oposto, para efeito de exoneração do passivo restante. E a mesma regra se impõe a esta Relação).”

Ao invés, no acórdão recorrido, a factualidade provada, no incidente de qualificação da insolvência, demonstra a existência de um comportamento violador por parte do devedor dos deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do CIRE, no decurso do processo de insolvência. Factualidade que, obviamente, teria de ser usada e confirmada no incidente de exoneração do passivo restante, como efectivamente o foi, levando ao indeferimento da exoneração do passivo restante com fundamento no disposto no artº 238º, nº 1, al. g) do CIRE. Decidir no sentido pugnado pelo Recorrente, é que seria contradizer a factualidade provada e violar a intangibilidade do caso julgado.

IV- Decisão

Nestes termos, acorda-se em negar provimento ao recurso

Custas pelo Recorrente

Lisboa, 29 de Outubro de 2019

Raimundo Queirós (Relator)

Ricardo Costa

Assunção Raimundo