Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6132/08.OTBBRG-J.G1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
CONTRATO-PROMESSA OBRIGACIONAL
TRADITIO
NEGÓCIO EM CURSO
ADMINISTRADOR
RECUSA DE CUMPRIMENTO
CONSEQUÊNCIAS
PROMITENTE-COMPRADOR NÃO CONSUMIDOR
Data do Acordão: 06/14/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES - INSOLVÊNCIA
Doutrina: - Antunes Varela, na RLJ, Ano 124, pág. 348.
- Calvão da Silva, “Sinal e Contrato-Promessa”, 11ª, 2006, 176.
- L. Miguel Pestana de Vasconcelos, “Direito de Retenção, contrato-promessa e insolvência” , in “Cadernos de Direito Privado”, nº33 – Janeiro/Março de 2011.
- Menezes Leitão, in “Direito da Insolvência” – Janeiro 2009 – pág. 173.
- Oliveira Ascensão, “Insolvência: Efeitos sobre os Negócios em Curso”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 65, Setembro de 2005; Revista Themis, da Faculdade de Direito da UNL, Edição Especial, 2005, págs. 125.
- Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, pág.722; Vol. III, 2ª ed., pág. 6.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 10.º, 410.º, N.º1, 413.º, 442.º, N.º 2, 754.º, 755º, Nº1, F), 799.º, N.º1, 1251.º, 1253.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 684.º-A, 713.º, N.º 7.
DL Nº 52/2004, DE 18-3, ACTUALIZADO PELO DL Nº 200/2004, DE 18-08, E PELO DL Nº 282/2007, DE 7.8 (CIRE): – ARTIGOS 102.º, 103.º, 106.º, N.º1, 118.º, 119.º.
LEI N.º 24/96 DE 31 DE JULHO, ALTERADA PELO DL 67/2003, DE 8 DE ABRIL: - ARTIGO 2.º, N.º1.
Sumário : I) - O princípio geral quanto aos negócios bilaterais ainda não cumpridos à data da declaração de insolvência é que o “cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento” – art. 102º, n°1, do CIRE.

II) – Compete ao administrador da insolvência, no interesse dos credores da insolvência, decidir se é mais vantajoso o cumprimento ou incumprimento do negócio em curso, e logo aqui se pode entrever a afloração de uma diferente filosofia em razão do fim primordial do regime da insolvência; enquanto no revogado CPEREF se visava a recuperação do falido, no CIRE, pese embora esse objectivo não ter sido desconsiderado, o interesse que emerge como principal é o da protecção dos credores afectados com a declaração de insolvência.

III) – Daí os poderes latos conferidos ao administrador da insolvência que se manifestam na opção de executar ou recusar cumprir os contratos em curso, (de notar, por exemplo, que no contrato-promessa de compra e venda com eficácia real e traditio, o cumprimento é imperativo por parte do administrador), o CIRE atribuiu, assim, ao administrador da insolvência uma alternativa que, potestativamente, pode exercer: ou cumpre ou não cumpre o contrato que estava em curso.

IV) No regime do Código Civil, o incumprimento do contrato-promessa de compra e venda e a sanção do mecanismo do sinal – art. 442º, nº2, do Código Civil – estão ligados à imputabilidade do incumprimento. Se tal imputabilidade for do promitente-vendedor este deve restituir o sinal recebido em dobro. Se for do promitente -comprador, perde ele a favor do promitente-vendedor o sinal prestado.

V) O Senhor Professor Oliveira Ascensão considera que a opção dada ao administrador de executar ou não o “contrato em curso”, nos casos em que isso lhe é consentido, não implica a sua revogação, importando falar em “reconfiguração da relação”.

VI) A recusa do administrador em executar o contrato não exprime incumprimento mas “reconfiguração da relação”, tendo em vista a especificidade do processo insolvencial, não sendo aplicável o conceito do art. 442º, nº2, do Código Civil – “incumprimento imputável a uma das partes” – que pressupõe um juízo de censura em que se traduz o conceito de culpa – (neste caso ficcionando que a parte que incumpre seria o administrador da insolvência na veste do promitente ou em representação dele), pelo que não se aplica o regime daquele normativo e, como tal, não tem o promitente-comprador direito ao dobro do sinal até por força do regime imperativo do art. 119º do CIRE.

VII) O promitente-comprador de coisa imóvel que obteve a traditio, não goza, no actual direito insolvencial (CIRE), dos direitos reconhecidos pelo Código Civil, no caso de ser imputável ao promitente-vendedor o incumprimento definitivo do contrato-promessa, não sendo aplicável na insolvência o art. 442º, nº2, do Código Civil, e por isso, também não dispõe o promitente-comprador do direito de retenção, nos termos do art. 755º, nº1, f) do Código Civil.

VIII) Em caso de recusa pelo administrador da insolvência em cumprir o contrato-promessa de compra e venda, só no caso do promitente-comprador tradiciário ser um consumidor é que goza do direito de retenção e tem direito a receber o dobro do sinal prestado; não sendo consumidor não lhe assiste tal direito, sendo um credor comum da insolvência.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


         AA, Ldª intentou, em 16.3.2010, acção sumária, ao abrigo do art. 146º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) e por apenso aos autos da Insolvência de BB, pendentes no 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Braga, contra:

 Massa Insolvente de BB.

Credores da Massa Insolvente, e;

BB e mulher CC.

 Pedindo que fosse reconhecido a seu favor, para ser graduado no lugar devido, o crédito de € 60.000,00, bem como que fosse reconhecido direito de retenção sobre o prédio que indica.

Alegou para o efeito, em síntese, que o insolvente e mulher lhe prometeram vender a fracção autónoma que especificam, cuja posse lhes foi conferida, tendo sido passado o sinal de €30.000,00.

Sucede que o promitente vendedor veio a ser declarado insolvente e o Administrador da Insolvência decidiu não cumprir o contrato.

 O incumprimento da promessa implica a devolução à Autora do dobro da quantia do sinal prestado e confere direito de retenção sobre a coisa.

Os demandados foram citados, sendo os credores por via edital conforme o estabelecido no nº 1 do art. 146º do CIRE.

Não foi apresentada qualquer oposição.

Foi proferida sentença que julgou procedente o pedido.

Inconformada, a credora DD, S.A., recorreu para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, por Acórdão de 14.12.2010 – fls. 183 a 197 –, julgou parcialmente procedente a apelação, apenas reconhecendo à Autora o crédito de € 30.000,00 sobre a Ré Massa Insolvente, a graduar oportunamente como crédito comum.

           Inconformada, a Autora recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

            1) – Os efeitos da insolvência no contrato promessa de compra e venda com tradição da coisa são a suspensão do seu cumprimento e o direito de escolha do seu cumprimento por parte do administrador de insolvência;

2) - A recusa do cumprimento do contrato promessa de compra e venda por parte do administrador de insolvência provoca a extinção do contrato;

3) – Essa recusa de cumprimento equivale a um incumprimento do insolvente, pois deve entender-se que o insolvente foi quem deu causa à insolvência, nos termos do art. 20° do CIRE;

4) - O crédito do promitente-comprador cujo contrato o administrador de insolvência se recusa a cumprir é um crédito sobre a insolvência.

5) - O critério específico do art. 104°, nº5, do CIRE destina-se às situações de recusa do administrador, que existem quando o comprador a prestações (ou locatário financeiro) não tem o direito de exigir o cumprimento (o art. 104° do CIRE trata em exclusivo das vendas com reserva de propriedade e operações semelhantes), por esse motivo o art. 104º do CIRE é uma regra que pressupõe a não entrega de uma coisa, sendo por isso inaplicável ao caso dos autos, pois neste foi entregue uma coisa e houve um pagamento substancial a titulo de sinal.

6) - Ora não sendo aplicável ao caso dos autos o n°5 do art. 104° do CIRE, também não o é a remissão para o n°2 do art. 102° do CIRE;

7) – O art. 119° do CIRE só atribui natureza imperativa à normas do art. 102° ao art. 118º do CIRE quanto a convenções das partes que pretendam excluir ou limitar o alcance dessas mesmas normas.

 Mas não quanto a outras normas jurídicas, não admitindo a letra do preceito outra interpretação.

8) – Por esse motivo o regime aplicável ao incumprimento do contrato promessa de compra e venda de imóvel por parte do Administrador de insolvência é o do art. 442° do Código Civil, e não o do art. 102°,n°2, do CIRE.

9) - Os pressupostos do direito de retenção previsto no artigo 755°, n°1, al. f) do Código Civil, são a existência de uma promessa de transmissão ou de constituição de direito real; a entrega da coisa ou objecto do contrato promessa; e a titularidade por parte do beneficiário de um crédito sobre a outra parte, decorrente do incumprimento definitivo do contrato promessa.

10) – No caso dos autos o incumprimento do contrato é imputável quer ao insolvente quer à massa insolvente representada pelo seu respectivo administrador, quer porque o insolvente se colocou em posição de não poder cumprir, quer porque foi dada à massa insolvente a possibilidade de poder cumprir o que esta recusou, e independentemente de tal facto porque assim resulta do disposto no art. 799°, n°1, do Código Civil.

11) - O regime regra do art. 759° do Código Civil não é alterado pelo processo de insolvência e de toda a forma o art. 102° do CIRE nada diz acerca das garantias dos créditos, pelo que não pode haver outros efeitos sobe os créditos e suas garantias para além dos que a lei expressamente prevê.

12) – O n°2 do art. 759° do Código Civil estipula claramente que o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, mesmo que esta tenha sido registada anteriormente, não permitindo a letra da lei outras interpretações.

Termos em que o recurso de revista ser julgado totalmente procedente e improcedente com as legais consequências, sendo julgado verificado o crédito da Recorrente no montante de € 60.000,00, a graduar, como crédito garantido por direito detenção sobre a verba n°2 do auto de apreensão, sendo assim revogado o douto acórdão recorrido, e dado provimento à douta sentença do Juiz de 1ª instância.

A recorrida DD contra-alegou, juntando o douto Parecer de fls.106 a 146 – subscrito por dois eminentes Professores de Direito.

 Ampliou o objecto do recurso no termos do art. 684º-A do Código de Processo Civil, formulando a respeito, as seguintes conclusões:

Da ampliação do âmbito do recurso.

34[1]. O direito de retenção do beneficiário de promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido foi introduzido no nosso ordenamento jurídico pelo DL.n°236/80, de 18 de Julho (que modificou a redacção dos arts. 413°, 442º e 830° do Código Civil) e definitivamente consagrado pelo DL. nº 379/86, de 11 de Novembro (que aditou a actual alínea f) ao n° 1 do art. 755º do Código Civil)

35. A consagração deste direito de retenção constituiu uma excepcional medida de protecção do direito à habitação e à família, em circunstâncias sociais e económicas muito específicas, crise, com uma inflação galopante e uma forte especulação imobiliária, o construtor ou promotor imobiliário não raras vezes obtinha vantagem patrimonial no não cumprimento dos contratos-promessa de compra e venda, ainda que devolvendo em dobro o sinal ao promitente comprador, que assim se via despojado da habitação que já ocupava.

36. Este excepcional contexto económico e social está há muito ultrapassado, razão pela qual vem sendo cada vez mais pacífico de entre a doutrina a necessidade de remover do nosso ordenamento jurídico um instituto cuja ratio se esvaneceu, constituindo hoje não só urna subversão às regras de publicidade e proibição de ónus ocultos nos direitos reais, como também uma poderosa arma destinada ao exercício da fraude, a coberto da lei, uma vez que a preferência conferida ao direito de retenção sobre a hipoteca é frequentemente utilizada pelos construtores promitentes vendedores (com dificuldades na solvência dos seus encargos) como um meio de pressão sobre a entidade financiadora garantida, mediante a permissão da ocupação de fracções em vias de acabamento pelos respectivos promitentes compradores.

37. As generalizadas reservas doutrinais ao direito de retenção do promitente comprador com traditio e a sua prevalência sobre outros direitos de natureza real anteriormente constituídos e sujeitos a registo, mormente a hipoteca, decorrem exactamente da circunstância da aplicação da norma constante da alínea f) do nº1 do art. 755º do Código Civil resultar na introdução no comércio jurídico de um ónus oculto e incontrolável, que de modo inopinado posterga para segundo plano garantia real anteriormente constituída e a que foi dada a competente publicidade por via registral.

38. À primazia conferida ao banco financiador através da constituição de hipoteca sobre o prédio é dada a competente publicidade por via registral, de modo a que qualquer pessoa ou entidade que possua qualquer interesse sobre aquele bem em concreto considerado possa tornar conhecimento do ónus que sobre o mesmo impende, formando assim, com certeza e segurança jurídicas, a sua vontade em contratar.

39. O princípio da tipicidade dos direitos reais e a sua necessária subsunção às regras do registo predial visam exactamente impedir, no âmbito do comércio jurídico imobiliário, o aparecimento direitos atípicos e inopinados, que perturbem a segurança e o fiabilidade das operações sobre imóveis.

40. Excepção a regra da presunção registral e do trato sucessivo são as situações de facto públicas, pacíficas, duradouras e de boa fé, que pela sua natureza ostensiva e de perduração no tempo legitimam a constituição de direitos reais com quebra do trato sucessivo. É manifestamente o caso da aquisição do direito de propriedade por usucapião.

41. O direito de retenção tem na sua génese essa componente de publicidade e de latitude temporal, por referência ao negócio jurídico a que serve de garantia. Existe uma correspectividade temporal entre a detenção da coisa retida e o negócio jurídico que origina e legitima o direito de retenção, o que confere ao direito de retenção um elemento de publicidade de facto, que o torna perceptível por (e oponível a) terceiros.

42. E é nesta medida que deverá ser interpretado o conteúdo do art. 759°, n°2, do Código Civil, quando refere que o direito de retenção sobre imóvel prevalece sobre hipoteca, ainda que esta tenha sido constituída anteriormente.

43. Quando o direito de retenção é exercido por promitente comprador com traditio, nos termos preceituados na alínea f) do n°1, do art. 755°, ele (direito de retenção) nasce com o não cumprimento imputável à contraparte, mas alicerça-se numa situação de facto (a detenção) a montante desse incumprimento e que, publicamente, à vista de toda a gente e de boa fé, perdura desde a traditio.

44. Se credor hipotecário registar a sua hipoteca sobre determinado prédio (ou fracção dele) antes de consubstanciado o direito de retenção de promitente-comprador desse prédio (ou fracção) mas já depois de verificada a traditio (no âmbito de uma promessa em cumprimento), o seu direito hipotecário de garantia terá necessariamente de sucumbir perante o posterior direito do retentor.

45, Porém, no caso dos autos a constituição da hipoteca em benefício da DD ocorre muito antes da celebração do contrato-promessa sobre a fracção em apreço, bem como (e obviamente) muito antes da respectiva traditio. Por isso, a situação de facto (tradição da coisa) que legitima o promitente-comprador a exercer direito de retenção é substancialmente posterior à constituição e registo das garantias hipotecárias da DD.

46. É esta ideia de certeza e fiabilidade dos institutos jurídicos que, por violação do princípio da segurança e protecção da confiança jurídicas, ínsito no princípio do Estado e Direito Democrático, consagrado pelo art. 2° da CRP, leva à inconstitucionalidade da norma constante do n° 2 do art. 759° do Código Civil, conjugada com a norma constante da alínea f), do n°1 do art. 755° do mesmo diploma legal, quando interpretada no sentido de que o direito de retenção do promitente comprador com traditio prefere ao credor hipotecário mesmo quando essa traditio seja comprovadamente posterior à constituição e registo da hipoteca.

47. Nos termos do preceituado na última parte do n°1 do art. 146° do CIRE, a citação dos credores em sede de acção de verificação ulterior de créditos é efectuada por via de éditos de 10 dias, sendo apenas pessoalmente citados a massa insolvente e o devedor.

48. A razão de ser da citação pessoal da massa insolvente e do devedor prende-se com a particular relevância que a acção de verificação ulterior assume para estas partes processuais.

49. O devedor é o primeiro e principal lesado com o reconhecimento de mais um crédito, pelo que, nessa medida, não só deverá figurar como réu como terá de ser pessoalmente citado por forma a que se assegure de modo pleno o princípio geral do contraditório.

50. A citação pessoal da massa insolvente decorre da especial posição conferida ao administrador de insolvência pelo CIRE.

51. As restantes partes rés na acção de verificação ulterior (os credores) são citados editalmente, porquanto, à partida, a acção em apreço apenas os atinge reflexamente, no âmbito do rateio a efectuar em sede de liquidação.

52. A invocação de direito de retenção sobre imóvel onerado com hipoteca contende directamente com o direito do respectivo credor hipotecário, fragilizando esse direito, na exacta medida da diminuição do valor da garantia hipotecária, em virtude da sobreposição do crédito que goze de retenção.

53. Quando em sede de acção de verificação ulterior de créditos seja requerido o reconhecimento de direito de retenção sobre imóvel onerado com hipoteca, o credor hipotecário deve, para esse efeito, ser equiparado ao devedor, sendo pessoalmente citado, exercendo assim, de forma plena, a defesa dos seus interesses legalmente protegidos.

54. A norma constante da última parte do n° 1, do art. l46º do CIRE, que contempla a mera citação edital dos credores réus, contende com imperativos de ordem constitucional, por violação dos princípios da proporcionalidade, da protecção jurídica, das garantias processuais e da tutela jurisdicional efectiva, consagrados pelos arts. 2° e 20° da CRP, quando interpretada no sentido da sua aplicabilidade ao réu credor hipotecário, nos casos em que a acção proposta contenda directamente com o direito desse credor, mormente quando ali se peticiona o reconhecimento de um direito de retenção que se sobrepõe à garantia hipotecária.

Termos em que deverá julgar-se improcedente a revista, mantendo-se a decisão recorrida. Sem prescindir e subsidiariamente, devera conhecer-se das inconstitucionalidades invocadas, assim se contribuindo para a melhor aplicação da Lei e realização da Justiça.

A recorrente respondeu à ampliação do pedido – art. 685º,nº8, do Código de Processo Civil, na redacção do DL.303/2007, de 24.8, aqui aplicável – sustentando que inexistem as apontadas inconstitucionalidades.

            Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

1) - A Autora celebrou, em 17 de Novembro de 2007, através do escrito de fls. 12 e 13, um contrato com os RR. BB e CC, nos termos do qual estes lhe prometeram vender um armazém com 600 m2, sito na Rua …, rés-do-chão direito frente, correspondente à fracção “B” do prédio descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Braga, sob o nº…, pelo preço de € 160.000,00.

2) - Tal preço era a pagar nas seguintes condições: € 25.000,00 foram entregues no momento da outorga do contrato; o resto do preço seria pago na data de escritura de compra e venda.

3) - Na mesma data os RR. entregaram à Autora a fracção, que imediatamente a tomou, passando a ocupar o referido imóvel pacífica e publicamente.

4) - Desde então a Autora passou a utilizar o armazém para guardar bens que lhe pertencem e que lá se encontram.

5) - Foi acordado também que a escritura de compra e venda seria outorgada em dia, hora e cartório notarial a indicar pelos RR., logo que toda a documentação se encontrasse em ordem, devendo os RR. avisar a Autora para tal outorga com dois dias de antecedência.

6) - Entretanto, em 30 de Maio de 2008 a Autora entregou aos RR. mais a quantia de € 5.000,00 a título de sinal.

7) - Em Maio de 2009, a Autora tomou conhecimento de que o Réu fora declarado insolvente.

8) - Por carta datada de 1 de Março de 2010 o Administrador comunicou à Autora que não iria cumprir o contrato.

9) - Em 23 de Dezembro de 2002 foi registada sobre o prédio de que faz agora parte a dita fracção autónoma hipoteca voluntária a favor de DD, S.A.

            Fundamentação:

            Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se o promitente-comprador de um imóvel (no caso um armazém), declarada a insolvência do promitente-vendedor, ante a declaração do administrador da insolvência de que não irá cumprir o contrato, tem direito à restituição do sinal em dobro e direito de retenção sobre a massa insolvente sobre esse seu crédito.

            Vejamos.

            A questão decidenda é alvo de profunda divergência doutrinal e jurisprudencial sobretudo, com a entrada em vigor do CIRE  - Dec-Lei nº52/2004, de 18.3, actualizado pelo DL. 200/2004, de 18/08, e pelo DL 282/2007, de 7.8 - quando em confronto com o precedente regime legal previsto no revogado CPEREF (DL.132/93, de 23.4),  tendo em conta a regulação do incumprimento do contrato-promessa na perspectiva do direito insolvencial, no confronto com o regime legal do Código Civil.

            No caso, estamos perante um contrato-promessa bilateral de compra e venda – art. 410º, nº1, do Código Civil – tendo por objecto mediato uma fracção autónoma (um armazém), prometido comprar a uma sociedade que o prometeu vender, tendo havido traditio antes da celebração do contrato prometido, entretanto tornada inviável por parte do promitente-vendedor por via da declaração de insolvência.

            Ao contrato não foi atribuída eficácia real, é, pois, um contrato de eficácia meramente obrigacional.

            Ao tempo da declaração de insolvência era um negócio em curso, porque ainda não estava cumprido, nem definitivamente incumprido.

            O princípio geral quanto aos negócios bilaterais ainda não cumpridos à data da declaração de insolvência é que o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento – art. 102º, n°l do CIRE.          

Compete, assim, ao administrador da insolvência, no interesse dos credores do insolvente, decidir se é mais vantajoso o cumprimento ou incumprimento, e logo aqui se pode entrever a afloração de uma diferente filosofia em razão do fim primordial do regime da insolvência; enquanto no precedente CPEREF se visava a recuperação do falido, no CIRE, pese embora esse objectivo não ter sido desconsiderado, o interesse que emerge como principal é o da protecção dos credores afectados com a declaração de insolvência.

 Daí os poderes latos conferidos ao administrador da insolvência que se manifestam na decisão de cumprir ou não cumprir os contratos, onde a lei insolvencial lhe dá essa opção, (de notar, por exemplo, que no contrato-promessa de compra e venda com eficácia real e traditio o cumprimento é imperativo por parte do administrador).

Portanto, o CIRE atribuiu ao administrador da insolvência duas alternativas que, potestativamente, pode exercer; ou cumpre ou não cumpre o contrato que estava em curso.

Importante e abrindo portas para saber se a noção de incumprimento do Código Civil, particularmente do contrato-promessa – art. 442º do Código Civil – está o facto de, durante esse período de opção, não existe qualquer sanção mormente ligada à mora ou indemnização de prejuízos decorrentes da suspensão.

Pode, no entanto, o promitente-comprador exigir que a decisão seja tomada em prazo razoável findo o qual se considera existir recusa de cumprimento – nº2 do art. 102º do CIRE.

As consequências da recusa estão, como regra tendencial, expressas no nº3 do art. 102º.

O art. 106º do CIRE que se refere à promessa de contrato, estatui:

1 - No caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento de contrato-promessa com eficácia real, seja tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador.

2 - A recusa de cumprimento de contrato-promessa de compra e venda pelo administrador da insolvência é aplicável o disposto no n.° 5 do artigo 104.°, com as necessárias adaptações, quer a insolvência respeite ao promitente-comprador quer ao promitente-vendedor.

[Revogado.]”

O CIRE regulou a hipótese de ao contrato-promessa ter sido atribuída eficácia real e ter havido traditio – art. 106º, nº1, estabelecendo que o administrador não pode recusar o cumprimento, tendo que outorgar o contrato prometido, o que se compreende, considerando a eficácia “erga omnes” do contrato – art. 413º do Código Civil – e o facto de a isso acrescer a traditio implicar um grau de estabilidade e solidez da posse do promitente-comprador e uma sua expectativa fortemente tutelada juridicamente a justificar a imposição do cumprimento.

Mas, no que concerne ao contrato sinalizado sem eficácia real, mas em que houve traditio, o CIRE é omisso.

Importa, então, saber se, pura e simplesmente, estamos perante uma lacuna que demanda a aplicação do regime do incumprimento do Código Civil, mormente, do art. 442º do Código Civil – a integrar segundo os critérios do art.10º do Código Civil.

Como se sabe no regime do Código Civil, o incumprimento do contrato-promessa de compra e venda e a sanção do mecanismo do sinal está ligada ao incumprimento ou do promitente-comprador – caso em que deve restituir o sinal em dobro – ou ao promitente -comprador, caso em que, sendo-lhe imputável o incumprimento perde a favor do promitente vendedor o sinal passado.

Com o devido respeito, não cremos que se trate de lacuna a que se deva aplicar, analogicamente, o regime do Código Civil.

O administrador da insolvência, a quem é dada pela lei a faculdade de cumprir ou não o contrato em curso, aquando da declaração de insolvência, não é parte no contrato estabelecido entre o promitente-comprador e o promitente-vendedor e também não representa qualquer deles, mas apenas os interesses dos credores do insolvente.

Por outro lado, o cumprir ou não o contrato radica num poder potestativo conferido pela lei insolvencial, não se podendo considerar que não cumprindo age com culpa e, sequer, que age com culpa presumida, art. 799º, nº1, do Código Civil, optando por não cumprir.

Considerar que quem não cumpre é o promitente-devedor que caiu na situação de insolvência pode ser temerário como regra geral, basta pensar nos casos em que a insolvência foi fortuita; por outro lado, estabelecer um nexo remoto de incumprimento baseado na culpa do insolvente para a transpor para o administrador, parece-nos não ter qualquer apoio na lei.

O objecto do CIRE é não tanto a recuperação do insolvente, mas a protecção dos credores[2], daí que a opção do administrador da insolvência não esteja de olhos postos na situação do insolvente, mas no interesse dos credores sendo essa a bússola que lhe apontará  caminho a trilhar no que respeita à opção relativamente aos contratos em curso de execução à data da insolvência.

O Professor Oliveira Ascensão, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 65, Setembro de 2005, em estudo denominado “Insolvência: Efeitos sobre os Negócios em Curso”, e Revista Themis, da Faculdade de Direito da UNL, Edição Especial, 2005, págs. 125, considera que a opção dada ao administrador de executar ou não o “contrato em curso”, nos casos em que isso lhe é consentido, não implica revogação, há que falar em “reconfiguração da relação”.

Afirmando:

 “Qual o significado destas intervenções legais? Não há que falar em revogação, porque não há causa de extinção. Impõem-se antes modificações à estrutura ou conteúdo da relação. Vamos chamar a este fenómeno a reconfiguração da relação. A lei impõe às relações existentes um novo desenho em caso de recusa de cumprimento pelo administrador.

No propósito de conciliar quanto possível as finalidades da insolvência com a situação da contraparte, a lei reformula as posições em presença, fazendo surgir novos poderes e deveres.

Não a orienta neste momento a preocupação de uma indemnização da contraparte, porque não assenta na ideia de ressarcimento de prejuízos.

A lei penetra nos próprios termos da relação, para a reconfigurar da maneira que considere mais conveniente…o esquema básico da reconfiguração, fora da hipótese das “prestações indivisíveis” do art. 103, é justamente o constante do art. 102º, que estabelece o “princípio geral”.

 Contém-se essencialmente no nº3.

 Consiste no seguinte:

1. Nenhuma das partes tem direito à restituição do que houver prestado. O cumprimento pregresso fica consolidado (art. 102/3 a). Ressalva-se o direito à separação da coisa, o que é prudente, embora seja doutrina geral.

2. Constitui dívida à massa a contraprestação daquilo que o insolvente tiver prestado, se ainda não tiver sido realizada pela outra parte (art. 102/3 b).

3. O crédito da contraparte à prestação do insolvente, na medida em que estiver incumprida, é um crédito sobre a insolvência. Será deduzido porém do valor da prestação correspondente que ainda não tenha sido realizada em benefício da massa (art. 102/3 c).

4. A compensação possível dos montantes em dívida abrange ainda o direito à indemnização dos prejuízos causados à outra parte pelo incumprimento (art. 102/3 d).”

 Por outro lado, no sentido que a lei insolvencial não quis adoptar como lei especial o regime da lei geral que é o Código Civil, está o art. 119º, nº2, que estabelece a nulidade das convenções que excluam ou limitem a aplicação das normas contidas naqueles preceitos (refere-se aos arts. 102º a 118º).

Não se tratando de incumprimento do contrato a recusa do administrador em o executar, mas, como se disse em consonância com tese de Oliveira Ascensão, de “reconfiguração da relação”, tendo em vista a especificidade do processo insolvencial, não sendo aplicável o conceito civilista de “incumprimento imputável a uma das partes” – o que pressupõe um juízo de censura em que se traduz o conceito de culpa – (neste caso ficcionando que a parte que incumpre seria o administrador da insolvência na veste de promitente-vendedor ou em representação dele), não se aplica o regime do art. 442º, nº2, do Código Civil[3] e, como tal, não tem a recorrente direito ao dobro do sinal, em face da opção tomada pelo administrador da insolvência.

Ademais, por força do regime imperativo do art. 119º do CIRE, excluída está, também, a aplicação do citado normativo do Código Civil.

A indemnização não é assim a da restituição do sinal em dobro, mas como afirma “Menezes Leitão”, in “Direito da Insolvência” – Janeiro 2009 – pág. 173 – “uma indemnização fortemente restringida”.

“ A recusa de cumprimento por parte do administrador da insolvência não prejudica o direito à indemnização pelos prejuízos causados à outra parte pelo incumprimento, ainda que esta indemnização seja fortemente restringida (art. 102°, n°3, d)).

 Assim, para além de esta indemnização ter a natureza de crédito sobre a insolvência (art.102°, n°3, d) (iii)), o seu montante é limitado ao valor da contraprestação correspondente à prestação já efectuada pelo devedor, na medida em que não tenha sido realizada pela outra parte (art. 102º, nº3, (i) e n° 3 b)), sendo ainda abatida do quantitativo a que a outra parte tenha direito (art. 102°, n°3 d) (ii)), ou seja o valor da prestação) do devedor, na parte incumprida, deduzido do valor da contraprestação de que a outra parte ficou exonerada (art. 102°, n° 3 c)).”

Assim, concluímos que a recorrente não tem direito à restituição do sinal em dobro, por ser inaplicável o art. 442º, nº2, do Código Civil.

Mas terá direito de retenção, agora nos termos do art. 755º, nº1, f) do Código Civil?

O art. 754º do Código Civil estabelece:

            “O devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados”.

            O art.755º,nº1, do Código Civil consagra casos especiais de direito de retenção, reconhecendo-o na al. f), ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º.

            Temos, assim, que o direito de retenção como direito real de garantia, é invocável pelo promitente-comprador que obteve a traditio, visando o crédito pelo dobro do sinal prestado – art. 442º, nº2, do Código Civil – em caso de incumprimento definitivo do contrato pelo promitente-vendedor – cfr. Calvão da Silva, “Sinal e Contrato-Promessa”, 11ª, 2006, 176.

            Importa, antes de avançarmos, indagar, ainda que sumariamente, acerca do estatuto legal do promitente-comprador que obteve a traditio.

Desde logo, há que considerar que a entrega antecipada do imóvel na vigência do contrato-promessa, não é um efeito do contrato, mas resulta de uma convenção de natureza obrigacional entre o promitente-vendedor – [dono da coisa] e o promitente-comprador.

            Assim, e em regra, o promitente-comprador que obteve a traditio apenas frui um direito de gozo que exerce em nome do promitente-vendedor e por tolerância deste – é, nesta perspectiva, um detentor precário – art. 1253º do Código Civil – já que não age com animus possidendi, mas apenas com corpus possessório (relação material) – art. 1251º do Código Civil[4] [5] .

            Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. III, 2ª ed., pág. 6, e Antunes Varela, na RLJ, Ano 124, pág. 348, sustentam:

 “O contrato-promessa, só por si, não é susceptível de transferir a posse ao promitente-comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário.

São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse.

Suponha-se, por exemplo, que havendo sido paga já a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo, (a fim de v.g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício de um direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade.

Tais actos não são realizados em nome do promitente-vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real.

O promitente-comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse”.

O direito retenção é um direito de garantia que “consiste na faculdade que tem o detentor de uma coisa de a não entregar a quem lha pode exigir, enquanto este não cumprir uma obrigação a que está adstrito para com aquele”Código Civil Anotado”, de Pires de Lima e Antunes Varela, vol. I, pág.722.

Como antes dissemos, o promitente-comprador de coisa imóvel que obteve a traditio, não goza, no direito insolvencial, dos mesmos direitos reconhecidos pelo Código Civil em caso de ser imputável ao promitente-vendedor o incumprimento definitivo do contrato-promessa.

Assim, não sendo aplicável na insolvência o art. 442º, nº2, do Código Civil, desde logo não dispõe o promitente-comprador do direito de retenção, nos termos do art. 755º, nº1, f) do Código Civil.

Sufragando o entendimento de L. Miguel Pestana de Vasconcelos, em recente Estudo publicado nos “Cadernos de Direito Privado”, nº33 – Janeiro/Março de 2011 – “Direito de Retenção, contrato-promessa e insolvência” – e, pese embora, não acolhermos na íntegra a sua lição, entendemos que se o promitente-comprador é um consumidor e o objecto da promessa é uma habitação, nesse caso, mesmo declarada a insolvência do promitente vendedor, o promitente-comprador in bonis (não insolvente) tem direito de retenção.

Assim escreve – pág. 20:

 “ […] O direito de retenção só tutela o promitente-adquirente quando este for um consumidor (…).

  O art. 755.°, n.°1, alínea f), é uma norma material de protecção do consumidor e deve ser interpretada restritivamente para o beneficiar somente a ele.

 Quando a contraparte do promitente-vendedor não o seja, a ratio da protecção excepcional que a lei concede ao promitente-comprador não se verifica”.

 E mais adiante – págs.25/26:

“É, pois, a teleologia da lei, centrada na tutela do consumidor (e das próprias valorações constitucionais, uma vez que a tutela do consumidor tem aí guarida, art. 60.°, n.° 1, da CRP (…) que nos permite detectar a existência da lacuna e conduz, em seguida, ao seu preenchimento com a atribuição dessa garantia ao promitente-adquirente, nos termos do art. 755.°, n.°1, alínea f) (sinal e tradição), face à recusa de cumprimento pelo administrador.

Recorremos aqui a uma extensão, por maioria de razão, da opção valorativa claramente expressa na lei: permite detectar e preencher, de seguida, a lacuna.

Por outras palavras: a ratio da lei é a tutela, na promessa sinalizada com tradição da coisa, da posição do promitente-adquirente (na nossa perspectiva, só quando ele seja um consumidor), ou seja, do seu crédito à restituição do sinal em dobro ou (verificados os seus pressupostos) à indemnização pelo aumento do valor da coisa, através de uma garantia, pelas razões apontadas particularmente robusta.

 Essa carência de protecção, essa necessidade da tutela do promitente-adquirente/consumidor que a norma visa conceder, não existe só no caso de incumprimento imputável ao promitente-alienante, mas verifica-se igualmente, ou melhor, verifica-se principalmente, na insolvência, face ao caso de recusa (lícita) de cumprimento pelo administrador (a quem a lei atribui o poder de decidir o destino do contrato).

Dessa forma, podemos afirmar que aí procedem, por maioria de razão, “as razões justificativas de regulamentação do caso previsto na lei” (art. 10. °, n. ° 2), conclusão que é amparada também pela análise do regime insolvencial, acima realizada, de insolvência do promitente-adquirente”.

No caso de onde promana o recurso, o promitente-comprador, sendo uma sociedade por quotas, não é um consumidor – art. 2º, nº1, da Lei n.º24/96 de 31 de Julho, alterada pelo DL 67/2003, de 8 de Abril, que define o concito – “Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.”

Neste entendimento considera-se que à recorrente não assiste o direito de retenção.

Uma vez que, pelas razões expostas, a decisão recorrida será confirmada, não há que conhecer da ampliação do recurso, requerida pela recorrida CGA, no que respeita às questões de inconstitucionalidade que suscitou – art. 684º-A do Código de Processo Civil.

Conclusão – [art. 713º, nº7, do Código de Processo Civil]

- A recusa do administrador da insolvência em executar um contrato promessa de compra de venda em curso, em que era promitente-vendedor o ora insolvente, não exprime incumprimento de tal contrato mas “reconfiguração da relação”, tendo em vista a especificidade do processo insolvencial, não sendo aplicável o conceito do art. 442º, nº2, do Código Civil – “incumprimento imputável a uma das partes” – que pressupõe um juízo de censura em que se traduz o conceito de culpa – (neste caso ficcionando que a parte que incumpre seria o administrador da insolvência na veste do promitente ora insolvente, ou em representação dele), pelo que não tem o promitente-comprador direito ao dobro do sinal, até por força do regime imperativo do art. 119º do CIRE e, por isso, também não goza do direito de retenção, nos termos do art. 755º, nº1, f) do Código Civil.

- Em caso de recusa pelo administrador da insolvência em cumprir o contrato-promessa de compra e venda, só no caso do promitente-comprador tradiciário ser um consumidor é que goza do direito de retenção e tem direito a receber o dobro do sinal prestado; não sendo consumidor não lhe assiste tal direito, sendo um credor comum da insolvência.

Decisão:

Nestes termos nega-se a revista.

Custas pela recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 14 de Junho de 2011

Fonseca Ramos (Relator)

Salazar Casanova

Fernandes do Vale

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[1] Por comodidade mantemos a numeração das conclusões das contra-alegações.
[2] “Com o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa (CIRE), […] o fim de recuperação é subalternizado e a garantia patrimonial dos credores elevada a finalidade única, que orienta todo o regime. As palavras do preâmbulo são elucidativas: o objectivo do novo regime é a “satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores”; “é aos credores que cumpre decidir quanto à melhor efectivação da garantia comum dos seus créditos”; “é sempre das estimativas dos credores que deve depender, em última análise, a decisão de recuperar a empresa”, “é sempre a vontade dos credores que comanda todo o processo”.
Esta visão não constitui mero retrocesso às concepções ao CPEREF: levando mais longe a confiança nos mecanismos reguladores do mercado, limita drasticamente os poderes do juiz, conferindo a soberania aos credores. É, neste ponto, paradigmático o estatuto do administrador da insolvência: de livre escolha da assembleia de credores, esta pode substituir o que o juiz tiver designado (arts. 52º CIRE, 53º CIRE e 56º-2 CIRE); tal como a comissão de credores (art. 70º CIRE), o administrador é responsável perante os credores, e também perante o devedor (art. 59 CIRE); dos seus actos, tal como dos da comissão de credores, não cabe recurso para o juiz, que só tem o poder de destituição por justa causa (art. 56-1 CIRE).” - Revista Themis, da Faculdade de Direito da UNL, Edição Especial, 2005 – Estudo do Professor Lebre de Freitas – “Pressupostos Objectivos E Subjectivos da Insolvência” – págs. 12 e 13.
[3] Este normativo era aplicável na vigência do CPEREF, seu art. 164º-A, nº1.
[4] O art. 1251º do Código Civil define posse como – “O poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de doutro direito real”.
[5] A posse, face à concepção adoptada na definição que do conceito dá o art. 1251º do Código Civil, tem de se revestir de dois elementos: o “corpus”, ou seja a relação material com a coisa e o “animus”, ou seja, o elemento psicológico, a intenção de actuar como se o agente fosse titular do direito real correspondente, seja ele o direito de propriedade ou outro.