Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | NUNO GONÇALVES | ||
Descritores: | TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES QUALIFICAÇÃO JURÍDICA TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE REINCIDÊNCIA PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA DUPLA VALORAÇÃO MEDIDA DA PENA ÂMBITO DO RECURSO | ||
Apenso: | | ||
Data do Acordão: | 04/14/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
Sumário : | I - No tráfico, as condutas gravemente ilícitas elegeram-se em razão da perigosidade abstrata para o bem ou bens jurídicos protegidos com a incriminação. II - O direito penal da UE estabeleceu a necessidade de uma moldura penal agravada quando “a infração envolva drogas que causam maiores danos à saúde”. Nestas situações a conduta deve ser sancionável “com pena máxima de prisão com uma duração de, no mínimo, entre cinco e dez anos” – art. 4.º, n.º 2, al. b), da Decisão-Quadro 2004/757/JAI. III - Interpretação normativa que coloque no mesmo patamar todos os estupefacientes, desrespeita não só o regime interno como o direito europeu e convencional universal nesta matéria. IV - O traço marcante do privilegiamento do tráfico de estupefacientes advém da consideravelmente diminuída da ilicitude da conduta típica. V - O legislador fornece, exemplificativamente, alguns indicadores de que podem apontar para a diminuição considerável da ilicitude - os meios utilizados; a modalidade da ação; as circunstâncias da ação; a qualidade das plantas, substâncias ou preparações; e a quantidade dos estupefacientes -, conferindo à jurisprudência a tarefa de acrescentar outros indicadores. VI - De entre as circunstâncias que obstam à “desqualificação” do tráfico contam-se as circunstâncias que agravam a punição previstas no art. 24.º, do DL n.º 15/93. VII - Assim, a verificação em cada caso de uma circunstância agravante obsta a que possa ter-se por consideravelmente diminuída a ilicitude da mesma atividade. VIII - As vendas de heroína efetuadas pelo arguido a menos de 50 metros do estabelecimento de ensino frequentado por crianças dos 6 aos 12 anos de idade, visíveis no receio do local onde efetuou as transações, exclui que possa ter-se por consideravelmente diminuída a ilicitude do tráfico assim exercido. IX - Na confeção da pena concreta o juiz não pode considerar circunstâncias que fazem parte do tipo de crime –art. 71.º, n.º 2, do CP. Nisto se traduzindo a proibição da dupla valoração das mesmas circunstâncias. | ||
Decisão Texto Integral: | O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção, em conferência, acorda: I. RELATÓRIO:
1. a condenação: No Juízo Central Cível e Criminal ...... - Juiz ..., no processo em epigrafe, mediante acusação do Ministério Publico, imputando-lhe a prática, em como reincidente, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. p. artºs 21º e 24º, al.ª h) do DL n.º 15/93, foi julgado o arguido: - AA, de 26 anos e os demais sinais dos autos, e, por acórdão de 24/04/2020, condenado – no que aqui releva -, pela prática, como reincidente nos termos dos arts. 75° e 76°, n° l, do Cód. Penal, de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25.º, aI. ª a), do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência à Tabela I-A anexa ao mesmo diploma legal, na pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão. O Ministério Público impugnou o acórdão do Tribunal coletivo, recorrendo perante a 2ª instância. Peticionou a alteração da qualificação jurídica dos factos para o crime de tráfico “base” e a consequencial elevação da medida da pena. O Tribunal da Relação ……, por acórdão de 19/11/2020, concedendo provimento ao recurso, revogou a decisão recorrida na parte respeitante à qualificação jurídica dos factos provados condenado o arguido, como reincidente, pela prática, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. art°. 21° nº 1 do DL nº 15/93 de 22/1, na pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão. 2. o recurso: Inconformado com o agravamento da condenação, o arguido recorre, agora perante o Supremo Tribunal de Justiça. Remata a alegação com as seguintes conclusões (em síntese): 1 - Perante os factos dados por provados decidiu o Tribunal da 1ª Instância, e bem, que o crime praticado pelo arguido foi o previsto e punido pelo artigo 25º, al a) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, isto é, tráfico de menor gravidade. 2 - Decidiu o Tribunal a quo, no douto Acórdão recorrido, perante a mesma factualidade assente, que o arguido deve ser condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo artigo 21º, nº 1, do D. L. nº 15/93, de 22/1. 3 - Tem razão o Tribunal da 1ª Instância na subsunção que faz dos factos ao direito, decisão suportada quer pela doutrina, quer pela jurisprudência actual e sedimentada do Supremo Tribunal de Justiça, ali transcrita, ao invés do Tribunal a quo, uma vez que na análise que faz, levou em consideração factos que não integram do tipo legal do crime, e são externos ao objecto dos autos, no que ao tipo de crime respeita. 4 - É sobre a conduta criminal submetida a julgamento e de acordo com os factos provados, que cumpre apreciar a ilicitude aquando da subsunção dos factos ao direito, o mesmo será dizer, à qualificação jurídica dos factos. 5 - Outros factos – desde que alegados e provados nos presentes autos, o que não é o caso – anteriores ou posteriores àqueles que estão em causa nos autos, não serviriam para a qualificação jurídica, mas sim para a determinação da medida da pena e da reincidência, tal como decidiu o Tribunal a quo, sob pena de existir uma dupla valoração dos mesmos factos: no preenchimento do tipo legal de crime e na moldura penal, quanto à reincidência. 6 - O período de traficância é curto, as transações apontadas e confirmadas são de pequeno número, as quantidades do estupefaciente apreendido são de pequena monta e a quantia apreendida de pouco valor (€ 55,00), sendo, por isso, o lucro diminuto. 7 - Não andou bem o Tribunal a quo, ao decidir revogar o Acórdão da 1ª Instância, e condenar o recorrente pelo crime de tráfico de estupefacientes p.p. pelo artigo 21º, nº 1 do D. L. 15/93, de 22/1, na pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão. 8 - Ao assim decidir incorreu em erro de julgamento e violou o disposto nos artigos 21º, nº 1 e 25º, al. a) do D.L. 15/93, de 22/1. 9 - Nesta conformidade, a repristinação da decisão da qualificação jurídica efectuada pela 1ª Instância, implicara, também, a repristinação da decisão quanto à medida da pena. 10 - Deve ser revogado o douto Acórdão recorrido, por sofrer dos vícios apontados, e julgar-se o recurso procedente, repristinando-se integralmente a decisão da 1ª Instância. 3. resposta do Ministério Público: A Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal da Relação responde, pugnando pela improcedência do recurso. Argumenta que a facticidade provada não traduz considerável diminuição da ilicitude e que a reincidência não foi duplamente valorada. 4. parecer do Ministério Público: A Digna Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal, aderindo à resposta do Ministério Público no Tribunal recorrido pronuncia-se, doutamente, pela improcedência do recurso argumentando (em síntese) que a “avaliação global” da atividade do arguido “não poderá justificar uma diminuição da ilicitude da [sua] conduta”, atendendo “à frequência e à persistência no prosseguimento” do tráfico “à proximidade que tinha com os consumidores, ao tipo de estupefacientes comercializados, e à sua danosidade para a saúde (já que se tratava de uma droga dura), à quantidade do estupefaciente comercializado que não poderá ser considerada diminuta, ao período de tempo em que desenvolveu esta actividade, e ao facto de não lhe ser conhecida qualquer outro meio de subsistência”, “tendo colocado em perigo, ainda que num grau médio, os bens jurídicos protegidos pela sua incriminação”. 5. contraditório: Observado o disposto no art.º 417º n.º 2 do CPP, o arguido nada disse. «» Dispensados os vistos, o processo foi à conferência. Cumpre decidir. II - OBJETO DO RECURSO: São as seguintes as questões para julgar: - qualificação jurídica do tráfico; - violação do princípio da proibição da dupla valoração. III – FUNDAMENTAÇÃO:
1. os factos: Vêm provada a seguinte matéria de facto: 1. Desde pelo menos o verão de 2019 e até 26 de novembro do mesmo ano, o arguido decidiu entregar substâncias estupefacientes, nomeadamente heroína, a todos os indivíduos que o contactassem para o efeito, obtendo como contrapartida um montante pecuniário; Parte de tais encontros ocorriam, mormente, no Largo .........., em .........., ......., local esse que dista a menos de 50 metros da escola EB1/J1 de ....... - .........; Assim, o arguido adquiria produto estupefaciente a fornecedor cuja identidade não foi apurada, e após ser contactado pelos consumidores, para o número …………72, fazia-lho chegar em troca do pagamento de dinheiro ou outra contrapartida de natureza patrimonial; No período compreendido entre o verão de 2019 e 20.11.2019, na zona ..........., em ......., .......... ou então junto ao estabelecimento comercial "........" que se localiza ali próximo, mas na rua principal, o arguido vendeu heroína a BB, com periodicidade quase diária, pelo preço unitário de €20,00; Durante cerca de 2 meses, entre meados de setembro de 2019 e meados de novembro do mesmo ano, na zona ..............., em .........., o arguido vendeu a CC, pelo menos 2 a 3 vezes por semana, e de cada vez, meio grama de heroína, pelo preço unitário de €20,00; No período compreendido entre finais de setembro de 2019 e 25 de novembro do mesmo ano, na zona ..............., em .........., o arguido vendeu, com cadência diária, 2 pacotes de heroína, a DD, recebendo como contrapartida a quantia de €20,00 por cada uma das vendas; No dia 26,11,2019, pelas 8h30, no Largo ........., em ......., ........, o arguido trazia consigo heroína dividida em 10 panfletos com o peso líquido de 4,709 gramas, 1 telemóvel Alcatel com o IMEI ………56 e a quantia de €55,00 (cinquenta e cinco euros); Nas mesmas circunstâncias temporais, o arguido mantinha no interior da sua residência sita na rua ........, n°. ..., em .........., mais exatamente no guarda-fatos do seu quarto, 10 panfletos de heroína com o peso líquido de 4,988 gramas e 1 faca de cozinha; À data dos factos, o arguido encontrava-se desempregado, não lhe sendo conhecida qualquer atividade remunerada lícita; O telemóvel aprendido era usado pelo arguido para combinar com os consumidores as entregas do estupefaciente; A quantia monetária apreendida foi obtida pelo arguido como contrapartida da venda a terceiros de substâncias estupefacientes; O arguido destinava o produto estupefaciente que lhe foi apreendido a ser vendido, a um número indeterminado de consumidores, obtendo uma contrapartida monetária ou outra de natureza patrimonial, e assim, concomitantemente, o respetivo lucro; O arguido efetuava parte das vendas em local próximo de um estabelecimento de ensino frequentado por crianças entre os 6 e os 12 anos de idade, do que tinha perfeito conhecimento pois estas, de tal local, são visíveis quando se encontram no recreio; O arguido dedicou-se à venda de tais produtos, através da respetiva contrapartida monetária ou outra de natureza patrimonial e desenvolveu esta atividade, não obstante conhecer as características estupefacientes das substâncias que transacionava, assim como as consequências nefastas e aditivas que as mesmas provocavam nas pessoas que as consumiam; O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal; 2. Por sentença proferida no âmbito do processo n°.1231/13........ do Juízo Local Criminal ........ - Juiz ..., transitada em julgado a 9.5.2014, o arguido foi condenado pela prática no período compreendido entre o início de janeiro de 2013 até ao dia 12 de setembro de 2013, de um crime tráfico de menor gravidade, p. e p. pelos art°s. 21°, nº 1 e 25°, als.a) e b) do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 1 ano e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e subordinada a regime de prova; A pena suspensa veio a ser revogada a 30 de janeiro de 2017, tendo o arguido cumprido pena de prisão efetiva com início a 28 de abril de 2017 e termo a 27 de fevereiro de 2019; Por acórdão proferido no âmbito do processo nº 157/15 ......... do Juízo Central Criminal de ......... - Juiz ..., confirmado por acórdão do Tribunal da Relação ...…., transitado em julgado a 27.10.2016, o arguido foi condenado pela prática, no período compreendido entre inícios de 2015 e 2.11.2015, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade p. e p. pelos art°s 21°, nº.1 e 25°, al. a), do Decreto-Lei nº 15/93 de 22 de janeiro, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão efetiva; Para efeitos de liquidação da pena de prisão efetiva proferida no âmbito do processo n° 157/15…..., o início da pena ocorreu a 5.12.2015 e o seu termo a 29.2.2020; O arguido encontrou-se ininterruptamente privado da liberdade desde 5.12.2015 até 3.4.2019, altura em que o Tribunal de Execução de Penas lhe concedeu a liberdade condicional; Resulta do exposto que o arguido prosseguiu com a sua atividade criminógena, praticando crime da mesma natureza daqueles que anteriormente acabaram por determinar a sua condenação em prisão efetiva; Dos factos expostos, constata-se que as condenações anteriores não serviram de suficiente advertência contra o crime; Resulta do relatório social e do CRC do arguido: 3. a). AA, com 26 anos de idade, é o mais velho de uma fratria de dois elementos, nascido no seio de um agregado familiar de precária condição socioeconómica e cultural. A infância decorreu no seio deste agregado, constituído pelos pais e pelo irmão. O pai encontra-se desempregado da área ....... e a mãe é empregada........, igualmente, desempregada. O arguido terá tido o seu processo de crescimento e desenvolvimento envolto numa dinâmica familiar desestruturada em razão do consumo excessivo de bebidas alcoólicas por parte do progenitor, hábito aditivo que desencadeou um ambiente conflituoso e violento, que viria a culminar na separação dos pais quando aquele tinha cerca de 17 anos de idade. O pai já cumpriu pena de prisão pela prática de dois crimes de condução em estado de embriaguez. Era precária a situação económica vivenciada, recorrendo, muitas vezes, o agregado familiar a apoio social, nomeadamente, do banco alimentar contra a fome. AA integrou o sistema de ensino em idade própria, no entanto, manifestou, precocemente, dificuldades ao nível da aquisição de conhecimentos e consequente absentismo, o que acabou por comprometer o seu percurso escolar, uma vez que apenas ficou habilitado com o 5° ano de escolaridade. Abandonou o sistema de ensino aos 16 anos de idade, integrando o mercado de trabalho. À data dos factos (26.11.2019), o arguido integrava, o núcleo familiar de origem, constituído pelo progenitor, EE (com 51 anos de idade, desempregado da área ......., habilitado com o 6° ano de escolaridade), pelo irmão, FF (de 24 anos de idade, desempregado, com problemática de toxicodependência, habilitado com o 5° ano de escolaridade) e pela companheira do irmão, GG (com 19 anos de idade, igualmente, desempregada). A dinâmica familiar é tida como minimamente estável, dado o progenitor ter deixado de consumir bebidas alcoólicas. A habitação, cedida pelo Estado, dispõe de boas condições de habitabilidade. O arguido nunca efetivou um percurso laboral regular, tendo desempenhado tarefas indiferenciadas na área ............ (com o progenitor que trabalhava por conta própria), na recolha de sucata, e em época de verão, costuma trabalhar na montagem de palcos para eventos festivos. Em 11.11.2019, através da AQE, iniciou atividade profissional na Junta de Freguesia……., na execução ........ e manutenção de espaços, no âmbito do Programa FIOS (Formar, Inserir e Ocupar Socialmente), que visa a participação de beneficiários do rendimento social de inserção, que se encontrem desempregados, em programas de ocupação que favoreçam a inserção no mercado de trabalho ou satisfaçam necessidades sociais, comunitárias ou ambientais, bem como o desenvolvimento de atividades no âmbito das instituições de solidariedade social. No entanto, em 27.11.2019 foi preso preventivamente, no âmbito dos presentes autos, tendo cessado o referido programa em 25.11.2019. Segundo o Presidente da Junta de Freguesia…...., AA encontrava-se a realizar um bom percurso profissional. A satisfação das necessidades básicas do agregado familiar, até o arguido ter sido preso preventivamente, era assegurada através do subsídio de desemprego recebido pelo progenitor e de apoios sociais recebidos pelo arguido e cunhada, nomeadamente, pelo Rendimento Social de Inserção (RSI). Não obstante a separação dos progenitores, AA vinha a beneficiar do suporte de ambos, essencialmente, por parte da mãe, no que diz respeito à cobertura das necessidades básicas por intermédio do RSI. Ocupava os tempos livres em casa a ver televisão e em jogos de índole informático e com o seu grupo de pares. Apurou-se que este grupo, alguns dos quais seus familiares (primos), da sua faixa etária, são toxicodependentes. O arguido terá iniciado com cerca de 19 anos de idade o consumo de canabinoides, em contexto de frequência de espaços de diversão noturna, chegando a experienciar o consumo de heroína. Não assume qualquer dependência a este nível, mas sim ao nível do consumo abusivo de bebidas alcoólicas, razão pela qual já esteve com acompanhamento clínico por parte da Associação Regional ……. (AR…) no âmbito de dependência alcoólica. Em contexto prisional estará a realizar, somente, a toma de ansiolítico. No âmbito de acompanhamento por parte desta Equipa, em que foi condenado em pena de prisão, suspensa na sua execução com regime de prova, foi sujeito a realização de testes não só ao álcool, como também, a produtos estupefacientes, tendo os últimos testes de alcoolemia sido efetuados em 28.10.2019 e cujo resultado foi de 0,00g/1 de Taxa de Álcool no Sangue e a produtos estupefacientes em 29.09.2019, encontrando-se os mesmos negativos. O arguido teve o primeiro contacto com o sistema formal de justiça em 2014, já tendo sido condenado em duas penas de multa substituídas por trabalho a favor da comunidade e a uma pena de prisão de seis meses, substituída por trabalho a favor da comunidade, todas pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tendo todas decorrido dentro da normalidade. Posteriormente, veio a ser condenado a 1 ano e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova, tendo a mesma sido revogada, por ter sofrido nova condenação pela prática do mesmo tipo de crime (tráfico de estupefacientes de menor gravidade). Cumpriu, igualmente, 2 anos e 6 meses de pena de prisão efetiva. Já foi sujeito, a medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica. Encontrava-se em liberdade condicional no âmbito do Processo 1918/15......, quando foi preso preventivamente no âmbito dos presentes autos. Face aos factos que lhe são imputados, denotou-se uma ausência de consciência crítica. Revelou-se recetivo a uma eventual reação penal, encarando a possível perda da liberdade com alguma tranquilidade. AA tende a revelar dificuldades de descentração e não revela interiorização do desvalor da sua conduta, manifestando tendência para atribuir a responsabilidade dos seus comportamentos a fatores externos, sem antecipar as consequências dos seus atos. Pese embora tente analisar o desvalor da sua conduta criminal, identifique alguns fatores de risco e verbalize desejo de mudança, realiza-o de uma forma pouco consistente, indiciando um discurso manipulativo. Assim, AA, com 26 anos de idade, é um jovem nascido no seio de um agregado familiar desestruturado e de precária condição socioeconómica e cultural, marcado pelo consumo excessivo de bebidas alcoólicas por parte do progenitor, hábito aditivo que desencadeou um ambiente conflituoso e violento. Trata-se de um jovem com algum grau de desajustamento social, revelando-se incapaz de manter um percurso de vida autónomo, estruturado e socialmente integrado agravado pelo facto de encontrar-se inserido num contexto familiar que não se revela eficaz ao nível da supervisão e contenção de determinados comportamentos de risco, nomeadamente a ligação ao consumo de produtos estupefacientes e álcool, a baixa escolaridade, o desemprego e consequente precariedade económica; b). o arguido foi condenado: · por decisão de 31.3.2014, por factos integradores do crime de tráfico de menor gravidade, na pena de prisão suspensa na sua execução; · por decisão de 7.4.2014, por factos integradores do crime de condução de veículo em estado de embriagues, na pena de multa; · por decisão de 11.4.2014, por factos integradores do crime de condução de veículo em estado de embriagues, na pena de multa; · por decisão de 30.6.2014, por factos integradores do crime de condução de veículo em estado de embriagues, na pena de prisão substituída por trabalho a favor da comunidade; · por decisão de 12.5.2016, por factos integradores do crime de tráfico de menor gravidade, na pena de prisão; e · por decisão de 31.1.2017, por factos integradores do crime de violação de imposições, proibições ou interdições, na pena de multa; Factos não provados: Que o arguido não se coiba de transacionar estupefaciente à vista dos alunos da escola próxima do local onde fazia as entregas.
2. o direito: Tendo a questão da admissão do recurso foi colocada nos autos, deve assinalar-se, ainda que sumariamente, que o aresto da Relação é recorrível perante o STJ, ao abrigo do disposto nos arts. 432º n.º 1 al.ª b) e 400º n.º 1 al.ª f) do CPP, porque não se trata de acórdão meramente confirmatório. Não só alterou a qualificação jurídica para crime mais gravemente punido como – decisivamente - a medida da penal judicial, foi fixada em 5 anos e 4 meses de prisão. a) da qualificação jurídica do tráfico:
i. argumentação do recorrente: Insurge-se contra a alteração da qualificação jurídica para o crime de tráfico p. e p. pelo art. 21º do DL n.º 15/93 de 22 de janeiro, operada pelo acórdão recorrido. Reclama a reversão à incriminação decidia na 1ª instância. Alega que em traficou por curto período de tempo, efetuando pequeno número de transações confirmadas, sendo de pequena monta as quantidades do estupefaciente que lhe foi apreendido, de pouco valor (€. 55,00) o numerário apreendido e o lucro obtido diminuto.
ii. na decisão recorrida: O Tribunal recorrido, na procedência do recurso do Ministério Público, subsumiu os factos provados, cometido pelos arguidos, ao crime de tráfico “base”. Motivou a agravação expendendo (em síntese) “(…) está em causa (…) - heroína - de forte potencial aditivo, e grave perigosidade para a saúde dos consumidores, e (…) para a saúde pública, o bem jurídico tutelado, o que à partida tende a deixar a ilicitude da acção acima dos patamares mínimos. (…) o arguido vinha procedendo, pelo menos desde o Verão e até 26 de Novembro de 2019, diariamente, à venda de heroína a número indeterminado de indivíduos consumidores que o contactavam para tal, telefónica ou directamente - e não apenas os três relativamente aos quais se apurou ter feito, pelo menos 2 a 3 vezes por semana, e de cada vez, venda de meio grama. Detinha consigo, quando interceptado, e guardava na sua casa, no seu conjunto, cerca de 10 gramas de heroína, dividida em panfletos que destinava integramente à venda (não é consumidor), venda a que procedia como actividade única, pois não se dedica a qualquer outra”. (…) as vendas aqui em causa se situam num quadro de actividade única de obtenção de meios de vida, não podem encarar-se os factos cometidos pelo arguido numa perspectiva redutora, de pequenas vendas de menor ilicitude. A venda diária e regular, ainda que de doses individuais, de heroína (droga dura) a consumidores, assumida como actividade constante a que o arguido se dedica (…) ainda que distante das grandes transacções, não é, exactamente pela constância da introdução do estupefaciente no tecido social, conduta de menor ilicitude. Não pode assim reputar-se a conduta em causa nos autos como de ilicitude consideravelmente diminuída, como exige o preceito, não podendo enquadrar-se no tipo privilegiado (…)”.
iii. o privilegiamento:
b) da dupla valoração de circunstâncias:
i. argumentação do recorrente: Argumenta que a sua atividade pretérita foi considerada na qualificação dos factos e ao mesmo tempo para o punir como reincidente.
ii. no acórdão recorrido: O Tribunal da Relação, motivou a alteração da qualificação jurídica dos factos, acrescentando ao supra se transcrito (sumariamente), o seguinte: “como se infere das suas condenações anteriores, há muito a ela se vinha dedicando - desde o ano de 2013 - sofrendo condenações, nomeadamente em penas de prisão que foi cumprindo, sendo que quando é colocado em liberdade volta a vender, só interrompendo essa actividade quando privado de liberdade. (…) A venda diária e regular, ainda que de doses individuais, de heroína (droga dura) a consumidores, assumida como actividade constante a que o arguido se dedica sempre que está em liberdade, ainda que distante das grandes transacções, não é, exactamente pela constância da introdução do estupefaciente no tecido social, conduta de menor ilicitude.
iii. proibição de dupla valoração: O arguido foi condenado como reincidente. Condenado, anteriormente, por duas vezes, pela prática do crime de tráfico de menor gravidade cumpriu penas de prisão. Concedida liberdade condicional em 3.04.2019, volvidos menos de cinco meses estava outra vez a traficar. Concluiu-se na decisão condenatória “que as condenações anteriores não serviram de suficiente advertência contra o crime” (no caso, contra o mesmo tipo de crime doloso). Resulta do exposto que pelo tráfico pretérito – que exerceu entre o início de janeiro e setembro de 2013; e entre os inícios de 2015 e 2.11.2015 -, foi o arguido anteriormente condenado e que o cumprimento de pena de prisão então aplicada (pressupostos formais), fundamentou a prova do pressuposto substantivo da reincidência (no caso, homótropa). Reincidência que é uma circunstância modificativa agravante da punição – elevando a moldura mínima - em razão da culpa agravada do agente pela rápida (nos 5 anos seguintes à libertação) sucumbência na reiteração criminosa. Por determinação expressa do legislador penal, na confeção da pena concreta o juiz não pode considerar circunstâncias que fazem parte do tipo de crime –art. 71º n.º 2 do Cód. Penal. “Não apenas os elementos do tipo-de-ilícito em sentido estrito, mas todos os elementos que tenham sido relevantes para a determinação legal da pena”[11]. Sumariamente, nisto se traduzindo a proibição da dupla valoração das mesmas circunstâncias. Neste conspecto, o trafico desenvolvido pelo arguido entre 2013 e 2 de novembro de 2015, não pode legitimar a alteração da qualificação jurídica e, simultaneamente (duplamente valorada), fundamentar a sua punição como reincidente. Se neste segmento a argumentação do recorrente se apresenta consistente, todavia, como supra se expôs, a confirmação da qualificação jurídica decidida no acórdão recorrido, resultou corrigida, excluindo-se dos motivos justificadores da subsunção da matéria de facto provado ao tipo de ilícito aplicado, a atividade de tráfico pela qual o arguido foi condenado entre o início de janeiro de 2013 e 2 de novembro de 2015. Mesmo o motivo atinente à atividade “profissional”, acima considerada, circunscreveu-se aos cerca de 4 meses nos quais o arguido abraçou o tráfico como única atividade da qual obtinha proventos para prover às suas despesas. Por conseguinte, ainda que lhe assistisse razão em tal argumento, contudo, retificado que resultou, não tem qualquer efeito prático sobre o resultado final do respetivo recurso. No acórdão recorrido considerou-se, também a qualidade do estupefaciente, a pluralidade de compradores a quem o arguido vendeu e e atividade ainda que desde o início de 2013. Aqui confirma-se a alteração da qualificação jurídica em razão da qualidade do estupefaciente traficado, da atividade como modo de vida, mas com restrição do período considerado nos factos provados e, sobretudo, em razão de se ter provado que traficou a menos de 50 metros de estabelecimento de ensino frequentado por crianças dos 6 aos 12 anos, de local de onde se viam no recreio. Pelo que, embora por razões não totalmente coincidentes com as enunciadas no acórdão recorrido. Improcede o recurso do arguido.
c) da medida da pena: O recorrente não obteve procedência na desqualificação do crime de tráfico. Não questiona a dosimetria da pena judicial para a hipótese de não proceder a reclamada reversão da qualificação jurídica para o crime de tráfico de menor gravidade. Pelo que não haveria que conhecer de questão que não suscita. De qualquer modo, em razão da punição como reincidente, o mínimo da moldura penal do crime de tráfico por que vem condenado eleva-se para 5 anos e 4 meses de prisão – art.º 77º do Cód. Penal. Como o arguido está condenado em pena igual ao limiar mínimo da moldura penal do crime de tráfico p. e p. pelo art.º 21º n.º 1, não é possível rebaixá-la. Não admite, pois, intervenção corretiva.
IV. DECISÃO: Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça -3ª secção criminal-, decide: a) julgar improcedente o recurso do arguido, confirmando-se o acórdão recorrido; * Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UCs – art. 513º n.º 1 do CPP, art.º 8º n.º 9 e tabela III anexa ao Regulamento das CustasProcessuais. Supremo Tribunal de Justiça, 14 de abril de 2021. Nuno Gonçalves (Juiz Conselheiro relator) Atesto o voto de conformidade da C.ª Juíza Conselheira Maria Teresa Féria de Almeida – art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março na redação dada pelo DL n.º 20/2020 de 1/05 aplicável ex vi do art.º 4 do CPP)[12] . Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira adjunta) ________ [1] Artigo 3º n.º 4 al.ª a) “As Partes tornam a prática de qualquer das infrações estabelecidas de acordo com o n.º 1 deste artigo passível de sanções proporcionais à sua gravidade, tais como pena de prisão ou outras penas privativas de liberdade, multa e perda de bens”. |