Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B656
Nº Convencional: JSTJ00000184
Relator: QUIRINO SOARES
Descritores: PRESUNÇÕES JUDICIAIS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ200203190006567
Data do Acordão: 03/19/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 3429/00
Data: 06/05/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 349 ARTIGO 351 ARTIGO 1029 N3.
CPC67 ARTIGO 721 ARTIGO 722 N2.
Sumário : I - Ao Supremo Tribunal de Justiça é vedado recorrer a presunções judiciais pois que o tribunal ao afirmar um facto desconhecido por meio de ilações - com base em juizos correntes de probabilidade, em regras da experiência, em princípios da lógica - está a fazer um julgamento da matéria de facto.
II - Mas pode censurar o seu uso sempre que feito em condições irregulares, quer quanto aos pressupostos quer quanto ao concreto raciocínio efectuado.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
1. A, Lda., intentou, contra B e mulher, C, uma acção para declaração de que os réus não são arrendatários de uma loja sita no rés do chão do prédio sito no lugar e freguesia de Mira, município do mesmo nome, e que confronta, do norte, com Lino Cardoso, sul com estrada, nascente com Manuel Damasceno e poente com Avenida do Mar.
As instâncias deram ganho de causa à autora, com fundamento na seguinte factualidade:
· por escritura pública de 19/07/95, constante de fls. 10 a 14, a autora comprou a D e mulher, E, e a F e marido, G, a casa em ruinas, de cave e rés do chão, com área coberta de cento a trinta e nove metros quadrados e logradouro, com cento e setenta e um metros quadrados, sita no lugar e freguesia de Praia de Mira, no concelho de Mira, a confrontar do norte com Lino Cardoso, do sul com estrada, do nascente com Manuel Damasceno e do poente com a Avenida do Mar;
· sob a cota G-3, mostra-se inscrita a compra aludida a favor da autora do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 00893/170495;
· os réus, durante algum tempo, exploraram o estabelecimento instalado no aludido prédio, em nome da sociedade ..., Ldª;
· os réus ocuparam a área de 27 m2 do rés-do-chão do prédio, sem qualquer escrito e faziam funcionar ali um talho;
· os réus passaram a fazer o depósito do montante de mil escudos, conforme documentos de fls. 44 a 57 (declarações de constituição de depósito de renda mensais, desde Fevereiro de 1982 até Outubro de 1992, sob expressa invocação do disposto nos artºs 991º e seguintes do Código de Processo Civil, e à ordem do Tribunal Judicial de Cantanhede; bimensal, relativamente a Novembro e Dezembro de 1992, e anualmente, quanto a 1994, 1995 e 1996, com igual menção, mas indicando, estas três últimas, como beneficiários dos depósitos, os herdeiros de H;
· D e mulher, E, e F e marido, G, nunca receberam qualquer renda dos réus;
· depois da morte do H, os réus dirigiram-se a casa onde vivia a viúva, I, a fim de proceder ao pagamento da renda e esta recusou, fazendo-o até hoje;
· os réus pagaram os fornecimentos de água e electricidade a partir de Junho de 1994 e Fevereiro de 1994, respectivamente;
· há mais de 20 anos, os réus exploram o estabelecimento instalado no rés-do-chão do prédio aludido;
· o estabelecimento sito no local aludido só está aberto durante os meses de Junho a Setembro;
· quando os réus ocuparam a loja, esta encontrava-se sem qualquer revestimento nas paredes e no chão;
· foram os réus que, a expensas suas, revestiram as paredes com azulejo, o chão com tijoleira, puseram janelas e portas novas no local;
· com aquelas obras, os réus gastaram a quantia de 320000 escudos;
· no final do ano de 1996, as grandes chuvadas que caíram provocaram deslizamentos de terras no local da obra da A., desfalcando de algum apoio o talho dos réus, que não tinha quaisquer fundações, e que, por isso, começou até a oscilar;
· os sócios gerentes da autora contactaram os réus, dando-lhes conhecimento da situação e da conveniência de, dali fazerem retirar os respectivos pertences;
· em finais de 1996, a autora voltou a alertar os réus para o perigo de ruína do seu talho;
· em princípios de 1996, os réus, na companhia de ambos os sócios gerentes da autora, deslocaram-se ao local da obra. tendo aí podido verificar o estado de quase ruína em que se encontrava o talho;
· a autora, após isso, retirou do estabelecimento as máquinas pertencentes aos réus.
2. Na presente revista, que fundamentam na violação dos artºs351º e 1029º, n.º3 (antiga redacção), CC (1) Código Civil, e artº659º, n.º3, CPC (2) Código de Processo Civil, os autores pedem que o Supremo Tribunal de Justiça faça um exercício de ilação que as instâncias entenderam não efectuar.
A ilação seria a de que os réus e o falecido H, anterior dono do prédio, fizeram um acordo verbal por meio do qual o segundo cedeu aos primeiros, mediante a retribuição mensal de 1000 escudos, o gozo de uma loja de 27 m2, sita no rés do chão.
E os factos base seriam os seguintes, todos constantes do elenco dos provados:
- os depósitos na Caixa Geral de Depósitos, cujos conhecimentos foram juntos ao processo;
- o testemunho de I, viúva de H, na parte em que refere que "este havia alugado o local onde estava instalado o talho dos réus";
- terem-se os réus dirigido à casa da viúva, depois da morte de H, para pagar a renda, que aquela recusou;
- terem os réus ocupado a loja sem oposição de ninguém.
Segundo os recorrentes, as instâncias poderiam e deveriam, por simples presunção judicial (art. 351º, citado), ter partido destes elementos factuais e documentais para firmar o aludido acordo, já que, à data daquele, vigorava a versão do art. 1029º, CC, decorrente do DL 67/75, de 19/2, nos termos da qual, com o acrescento de um n. 3, ficou estabelecido que "a falta de escritura pública (nos contratos de arrendamento para o comércio, indústria ou o exercício de profissão liberal) é sempre imputável ao locador e a respectiva nulidade só é invocável pelo locatário, que poderá fazer a prova do contrato por qualquer meio".
Têm, com efeito, razão os recorrentes na afirmação de que o alegado acordo entre eles e o falecido H, perspectivado como contrato de arrendamento para o comércio, do ano de 1977, poderia, por eles, ser provado "por qualquer meio", visto que realizado no domínio de vigência da aludida disposição legal, que seria a aplicável, por força do artº12º, n.ºs 1 e 2, primeira parte, do CC.
Acontece que os recorrentes pedem ao Supremo Tribunal de Justiça uma tarefa impossível.
Como tribunal de revista, o Supremo Tribunal de Justiça só julga de direito (cfr. art. 26º, LOFTJ (3) Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei 3/99, de 13/1, e 721º e 722º, CPC) ressalvadas as excepções indicadas no n. 2, do último dos citados artºs, que, ao caso, não interessam.
Uma vez que o contrato podia ser provado por qualquer meio, nada obstava a que lá se chegasse por meio de presunção judicial (cfr. art. 349º e 351º, CC).
A presunção judicial é um meio de prova assente no raciocínio do juiz, e que ele vai buscar às regras da experiência, aos juízos correntes de probabilidade, aos princípios da lógica.
Ora, ao firmar um facto desconhecido por meio de ilações daquele tipo, o tribunal não faz outra coisa senão julgamento da matéria de facto.
O uso de presunções judiciais poderá ser objecto de censura pelo tribunal de revista, sempre que feito em condições irregulares, quer quanto aos pressupostos, quer quanto ao concreto raciocínio efectuado.
Só isso, que é bem diferente de o tribunal de revista produzir, ele próprio, as suas ilações em matéria de facto.
3. Por todo o exposto, negam a revista, com custas pelos recorrentes.

Lisboa, 19 de Março de 2002.
Quirino Soares,
Neves Ribeiro,
Araújo Barros.