Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06P3131
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: CARMONA DA MOTA
Descritores: CRIME CONTINUADO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
BENS EMINENTEMENTE PESSOAIS
MENOR
VIOLAÇÃO
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
MEDIDA DA PENA
FINS DAS PENAS
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
CULPA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
CÚMULO JURÍDICO
PENA ÚNICA
Nº do Documento: SJ200610190031315
Data do Acordão: 10/19/2006
Votação: UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Sumário : I - Não basta, para que se afirme a ocorrência de um só crime continuado, «a realização plúrima de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico». Mister será ainda que essa realização seja executada não só «por forma essencialmente homogénea» como «no quadro de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa» (art. 30.º, n.º 2, do CP).
II - Não é essencialmente homogénea a forma como o arguido realizou, ainda que sobre a mesma pessoa, o tipo de crime de abuso sexual de criança agravado e o tipo de crime de violação agravada: enquanto que no 1.º caso (27-02-01), o arguido, entrando no quarto da filha, então com 11 anos de idade, lhe exibiu o pénis erecto, com ele lhe tocando depois na vulva, acabando por ejacular «em cima dela», já no 2.º caso (21-03-04) o arguido, ao transportar a filha (então com 15 anos de idade) no seu ciclomotor, desviou-o para um descampado, onde «socorrendo-se do seu ascendente e da sua maior força muscular, lhe introduziu (até à ejaculação) o pénis erecto na vagina».
III - Mas, mesmo que aqui se não visse, na forma como o arguido realizou um e outro tipo de crime, senão a heterogeneidade própria de cada um deles, ainda assim faltaria - para que se pudesse afirmar a ocorrência de um só crime continuado - que a realização dos dois tipos de crime decorresse de «uma mesma situação exterior» (sendo que a única semelhança entre uma e outra terá sido a de o arguido se encontrar a sós com a filha) e, mais ainda, que essa «situação exterior» diminuísse consideravelmente a culpa do agente (o que nunca seria o caso, já que a 2.ª «situação exterior» não se lhe deparou fortuitamente, antes foi dolosamente procurada pelo arguido, que, para tanto, se desviou do caminho que programara com a filha ao aceitar levá-la a casa de uma amiga e trazê-la de volta a sua casa, onde a filha - a viver em casa da mãe desde os acontecimentos de 3 anos antes - viera passar o dia do seu aniversário).
IV - É sabido que, de um modo geral, «a medida da pena há-de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva», vindo a ser «definitiva e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização».
V - No caso (em que a moldura penal abstracta do crime de abuso sexual de criança agravado é a de 1,33 a 10,66 anos), o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade - ou seja, a medida de pena que a comunidade entenderia necessária à tutela das suas expectativas na validade e no reforço da norma jurídica afectada pela conduta do arguido situar-se ia nos 3,5 anos de prisão (ante o facto de este, na noite do dia 27-02-01, quando a filha, então com 11 anos de idade, estava na casa da avó, ter entrado no seu quarto e, estando ela sentada na cama em camisa de noite, lhe ter exibido, masturbando-se, o pénis erecto, com que, depois lhe «tocou» na vulva, acabando por ejacular «em cima dela»).
VI - Mas «abaixo dessa medida (óptima) da pena de prevenção, outras haverá - até ao “limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas” - que a comunidade ainda entenderá suficientes para proteger as suas expectativas na validade da norma. O «limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral» coincidirá, pois, em concreto, com «o absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral sob a forma de defesa da ordem jurídica» (e não, necessariamente, com «o limiar mínimo da moldura penal abstracta»). E, no caso, esse limite mínimo (da moldura de prevenção) poderá encontrar-se por volta dos 2,5 anos de prisão (uma vez que sobre o crime passaram entretanto quase seis anos).
VII - «Os limites de pena assim definida (pela necessidade de protecção de bens jurídicos) não poderão ser desrespeitados em nome da realização da finalidade de prevenção especial, que só pode intervir numa posição subordinada à prevenção geral»,mas concorrendo ela, dentro dos limites da moldura de prevenção, para a concretização da pena, o comportamento anterior do arguido (sem condenações), a sua idade (32 anos de idade à data e 38 agora) e o seu comportamento posterior (em que, três anos depois, recidivou, sendo certo, porém, que, na cadeia, tem tido «um comportamento adequando às normas, não registando qualquer sanção disciplinar») poderão invocar-se para aferir o quantum exacto da pena - impelindo-a para meados [3 anos] da moldura de prevenção, tendo em conta, ainda, que «tem o apoio da família, que o ajuda e o ama, visitando-o regularmente no EP e prestando-lhe apoio incondicional» e que «projecta, quando restituído à liberdade, recomeçar a trabalhar».
VIII - Com vista à concretização da pena correspondente ao crime de violação agravada, será de 8 anos de prisão o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade e de 6 anos de prisão o “limite (mínimo) do (estritamente) necessário para assegurar a protecção dessas expectativas”. Nesta moldura de prevenção, funcionarão, fixando a pena, as exigências de prevenção especial, que - tendo em conta que a «existência» do arguido, com uma «organização cognitiva enquadrada em padrões médios» e apresentando «uma vida social aparentemente integrada» («apesar da manifestação de condutas percepcionadas pela comunidade mais próxima como menos maduras e consistentes, particularmente em aspectos do foro afectivo»), tem visto «comprometido o seu processo de autonomia» (conduzindo a uma «auto-percepção negativa» e a «um certo isolamento sócio-afectivo»), ao ser vivenciada de forma marcadamente simplista, emotiva e superficial no contacto com a matriz social envolvente, quer seja na esfera familiar, interpessoal e profissional» - prescreverão uma pena intermédia de 7 anos de prisão.
IX - «Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa pena única» (art. 77.º, n.º 1, do CP), considerando-se, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (n.º 2).
X - Em sede de pena conjunta/unitária, «tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique» (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, § 429). E, no caso, o arguido cometeu, sobre sua filha menor, 2 crimes contra a sua autodeterminação sexual (o 1.º, em 2001, tinha ela 11 anos de idade, e o outro no preciso dia em que ela, para comemorar o seu 15.º aniversário, visitava o pai).
XI - Por outro lado, «na avaliação da personalidade - unitária - do agente, relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (…) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade; [sendo certo que] só no primeiro caso [incluindo, como aqui, o da pluriocasionalidade radicada na personalidade] será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta» (a. e ob. cit., § 521).
XII - Daí que se fixe a pena conjunta em 8 anos de prisão. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Arguido/recorrente: AA


1. OS FACTOS

O arguido e BB são pais da menor CC (-21Mar89). Aqueles, que são casados, estão separados de facto há mais de dez anos. O poder paternal relativo à menor foi regulado, por sentença datada de 20 de Dezembro de 1993, que a confiou ao cuidado e à guarda da mãe, com direito a visitas ao pai de 15 em 15 dias. Assim, a menor passava alguns fins-de-semana na casa do pai e da avó, situada na Rua de..., nº ..., em Ermesinde. No dia 21 de Março de 2004, quando fez 15 anos de idade, a CC foi passar o seu dia de aniversário à casa do pai e da avó. Nessa casa viviam também as primas da CC, de nome DD, EE e FF, que tinham, respectivamente, 13, 10 e 8 anos de idade. Pelas 19,30 horas desse dia, a CC pediu ao pai para a levar à casa da amiga GG, que vivia ali perto, a fim de lhe levar um pedaço de bolo. O arguido pegou na sua motorizada e levou a filha à casa dessa amiga, onde estiveram ambos cerca de meia hora. Regressaram depois em direcção à casa da avó da menor, já de noite, onde a CC ia buscar as prendas que lhe tinham dado, para depois apanhar o comboio para o Porto. Todavia, o arguido decidiu manter relações sexuais com a menor sua filha. Na execução desse propósito, o arguido não efectuou o trajecto habitual de regresso a casa e procurou um local ermo para as consumar. Assim, seguiu por uma rua que não tinha qualquer iluminação e, a certa altura, fez um desvio e entrou numa zona de terra e relva, com bastantes árvores, que se situava nas traseiras da empresa “Empresa-A”, em S. Pedro de Fins, na Maia. Aí, imobilizou a motorizada e mandou a CC descer da mesma. Esta imaginou logo que o arguido, seu pai, queria ter relações sexuais consigo, pelo que tentou fugir e só o não conseguiu por ele a ter agarrado por um braço. O arguido deitou a filha ao chão e aí a manteve, pressionando-a designadamente com um dos braços. Com a outra mão, o arguido correu o fecho das calças da menor e conseguiu desnudá-la da cintura para baixo. O arguido deitou-se em cima dela, puxou a sua camisola para cima, correu o fecho das calças e retirou o pénis para fora. A CC chorava, tentava manter as pernas fechadas e convenceu-se que qualquer resistência seria inútil naquelas circunstâncias. O arguido afastou com um esticão a perna direita dela e tentou penetrá-la, inicialmente sem sucesso. Pouco depois, socorrendo-se do seu ascendente e da sua maior força muscular, introduziu o seu pénis erecto dentro da vagina da menor e ejaculou na vagina e coxas. Na tentativa de não deixar vestígios, o arguido foi à sua motorizada e dali trouxe um pano, com o qual limpou a zona genital da menor. Regressaram depois à casa da avó da menor e, pouco depois, na companhia das primas e do pai, foram a pé até à estação de comboios de Ermesinde, onde a menor apanhou o comboio para o Porto. Não foi aquela a primeira vez que o arguido abusou sexualmente da filha. Na verdade, na noite do dia 27 de Fevereiro de 2001, quando a CC, então com 11 anos de idade, estava na casa da avó, o arguido entrou no seu quarto e fechou a porta. CC estava sentada na cama, em camisa de noite, e o arguido obrigou-a a deitar-se na cama. O arguido exibiu o seu pénis erecto e começou a masturbar-se. Tocou, depois, com o seu pénis na vagina [vulva] da menor, mas não a penetrou. Pouco tempo depois, o arguido ejaculou em cima dela. No dia seguinte, de regresso à sua casa, a menor contou o sucedido à sua mãe. Foi ela depois observada e examinada no Hospital de Santo António e no Instituto de Medicina Legal do Porto e acompanhada pela Comissão de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo de Vila Nova de Gaia. CC foi ainda acompanhada por psicólogo que, em determinada altura, entendeu que ela não devia continuar a ter suspensas as visitas ao pai. Assim, cerca de dois anos depois, a CC passou a visitar o pai sempre que o desejava. Os abusos sexuais de que foi vítima provocaram na menor um período de forte instabilidade emocional e afectiva, sob a forma de sinais de angústia e ansiedade associados à situação, com graves distúrbios comportamentais, designadamente perturbação do sono, comportamentos fóbicos associados à figura do pai e tristeza espontânea. O impacto das situações abusivas foi reforçado e potenciado pelo facto do abusador ser o seu pai, que passou de uma figura protectora e securizante para alguém ameaçador da sua integridade física e psicológica. O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, no intuito de satisfazer a sua lascívia e de manter relações sexuais com a sua filha, contra a sua vontade e mediante o uso da força. Agiu sempre no intuito de satisfazer os seus apetites sexuais e de despertar a excitação sexual da menor, violando em grau elevado os sentimentos gerais da moralidade sexual e a livre determinação sexual da menor e, dessa forma, prejudicou o livre desenvolvimento da personalidade desta. O arguido sabia que as suas condutas não eram permitidas e que eram punidas pela lei. O percurso de desenvolvimento do arguido decorreu no seio do seu agregado familiar de origem, do qual faziam parte os pais e cinco irmãos. A família vivia numa zona rural limítrofe da cidade do Porto, em condições de habitabilidade bastante precárias e com dificuldades económicas. Ao nível escolar, o arguido efectuou um percurso sem registo significativo de dificuldades, apesar de ter abandonado os estudos após terminar o 5º ano de escolaridade, por opção. A sua primeira actividade profissional, exercida aos 12 anos de idade, foi como ajudante de pedreiro, na qual se manteve até aos 14 anos de idade. Entretanto, experienciou outras realidades, desde aprendiz de torneiro mecânico, passando por servente de trolha a funcionário fabril. Desde os 22 anos de idade, tem vindo a trabalhar na construção civil, sem qualquer forma de estabilidade ou vínculo legal e registando longos períodos de inactividade. Aos 19 anos contraiu matrimónio com BB, tendo vivido juntos cerca de 4 anos. O casal manteve residência em casa dos pais do arguido, num quarto independente, anexo à habitação que se encontra inserida num espaço designado comummente de “ilha”. Da relação matrimonial nasceu uma filha, a aqui ofendida. Após a separação, a ofendida menor foi residir com a mãe e a avó materna, em Vila Nova de Gaia. A partir de 1996, o arguido deixou de contribuir com os alimentos para a sua filha fixados pelo Tribunal de Família e Menores. Até à reclusão, o arguido manteve sempre integração no agregado de origem, ocupando o mesmo espaço que outrora tinha partilhado com a mulher. Ao nível afectivo, veio a estabelecer, há cerca de 2 anos, uma união de facto com a actual companheira, HH, de 23 anos de idade, da qual tem um filho de 10 meses, entregue a uma ama. A sua companheira encontra-se desempregada. À data da prática dos últimos factos destes autos, o arguido não desenvolvia qualquer actividade laboral. Face às disfuncionalidades existentes no agregado, agravadas pela inactividade de todos os elementos adultos e hábitos etílicos da mãe e irmão, esta família foi alvo de intervenção pelo I.S.S.S. – Departamento da Acção Social da Maia e beneficiou da atribuição de uma casa camarária. O arguido tem um comportamento adequado às normas do Estabelecimento Prisional, não registando qualquer sanção disciplinar. Tem o apoio da família, que o ajuda e o ama, visitando-o regularmente no EP e prestando-lhe apoio incondicional, apoio que se mostram dispostos a manter após a sua libertação. O arguido projecta, quando restituído à liberdade, recomeçar a trabalhar. Apesar de dispor de uma organização cognitiva enquadrada em padrões médios, a existência do arguido tem sido vivenciada de forma marcadamente simplista, emotiva e superficial no contacto com a matriz social envolvente, quer seja na esfera familiar, interpessoal e profissional, o que, de certo modo, tem vindo a comprometer o seu processo de autonomia. Embora o arguido apresente uma auto-percepção negativa e tenda a um certo isolamento sócio-afectivo, apresenta uma vida social aparentemente integrada, apesar da manifestação de condutas percepcionadas pela comunidade mais próxima como menos maduras e consistentes, particularmente em aspectos do foro afectivo. O arguido não tem antecedentes criminais.


2. A condenação

Com base nestes factos, o tribunal colectivo do 2.º Juízo da Maia, em 14Mar06, condenou AA (-25Out68), como autor material de um crime de abuso sexual de criança agravado, na pena de 4 anos de prisão; como autor material de um crime de violação agravado, na pena de 8 anos de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 10 anos de prisão:

O arguido encontra-se acusado pela prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de violação e outro de abuso sexual agravados, p. e p. pelos artigos 164º, nº 1, e 172º, nº 1, com referência ao art. 177º, nº1, alínea a), todos do C. Penal. É do seguinte teor a disposição legal do art. 172º do C. Penal: “1 - Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.” O bem jurídico aqui protegido é pois a liberdade e autodeterminação sexual. E protegem-se pessoas que - presumivelmente - ainda não têm o discernimento necessário para, no que concerne ao sexo, se exprimirem com liberdade. Como observou o Prof. Figueiredo Dias na discussão do crime em causa, a especificidade deste tipo legal reside como que numa obrigação de castidade e virgindade, por estarem em causa menores. Trata-se assim de um crime de perigo abstracto, na medida em que a sua verificação se basta com a possibilidade de um perigo concreto para o desenvolvimento livre, físico ou psíquico, de um menor. Tal como se lê em “ Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I: “É tipicamente indiferente que a vítima seja já ou não sexualmente iniciada, que possua ou não capacidade para entender o acto sexual que nela, com ela ou perante ela se pratica ou se leva a praticar, que lhe caiba uma intervenção activa (mesma a iniciativa!) ou puramente passiva no processo.” (fls. 543). O conceito de “Acto sexual de relevo” deverá ser entendido “como o acto que, tendo relação com o sexo (relação objectiva), se reveste de certa gravidade e em que, além disso, há da parte do seu autor a intenção de satisfazer apetites sexuais.” Por outras palavras, “acto sexual de relevo” será “todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais dos intervenientes) que ofenda, em grau elevado, o sentimento de timidez e da vergonha comum à generalidade das pessoas.” Quanto ao elemento subjectivo deste tipo legal, exige-se a existência de dolo (em qualquer das suas formas) relativamente à totalidade dos elementos objectivos. Por outro lado, é do seguinte teor a disposição legal do art. 164º, nº 1, do C. Penal: “Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois dele, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.” Também aqui o bem jurídico aqui protegido é a liberdade e autodeterminação sexual. As alterações ao C. Penal resultantes da Lei nº 65/98, de 02/09 vieram alargar a área de tutela típica do crime de violação, equiparando à cópula o coito anal e o coito oral. Ainda por força desta alteração legislativa, vítima do crime passou a poder ser tanto um homem, como uma mulher. O conteúdo da acção típica é pois – desde logo e entre o mais – a cópula, aqui entendida como a penetração da vagina pelo pénis. Há que trazer aqui à colação o conceito médico-legal de cópula entendida como o percurso do membro viril dentro da vagina, com ou sem “emissio seminis” – Cfr. neste sentido STJ 15/07/87 e 28/10/87, B.M.J. 369 e 370, ps. 357 e 329, respectivamente, na esteira de Eduardo Correia, citado em ambos os acórdãos. Cumpre ainda referir que “Pode acontecer na verdade que a vítima tenha resistido aos meios de coacção, mas cesse a sua resistência no momento da cópula ou durante ela; ou que tenha assentido nas manobras prévias de coacção ou mesmo na prática de certos actos sexuais preparatórios da cópula ou do coito, mas não consinta nestes. Naquele como neste caso deve considerar-se que o assentimento (parcial) da vítima não exclui a tipicidade da violação.” (1) Quanto ao elemento subjectivo deste tipo legal, exige-se a existência de dolo (em qualquer das suas formas) relativamente à totalidade dos elementos objectivos. Finalmente, deve ainda referir-se que, por força do disposto no art. 177º, nº 1, a), do C. Penal, as penas previstas em ambos estes normativos são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se – entre o mais – a vítima foi descendente do agente. No caso “sub judice”, face aos factos dados como provados sob os Itens 1), 4), 23), 24), 25), 26), 27), 28), 29), 30), 31), 33), 34), 35), 36) e 37) em conjunto com as considerações jurídicas acima expostas, mostram-se preenchidos, na íntegra, os elementos constitutivos do crime de abuso sexual de crianças, p. e p. nos termos do disposto no art. 172º, nº 2, do C. Penal. E isto por que a actividade levada a cabo pelo arguido na pessoa da sua filha, menor de 11 anos, configura um “acto sexual de relevo”. Também por que tal actividade constituiu um perigo concreto e efectivo para o desenvolvimento livre, físico ou psíquico, da menor. E, por outro lado, na medida em que o arguido agiu de modo doloso, livre e consciente, com o propósito de satisfazer os seus apetites sexuais. Tendo em conta a qualidade de filha da ofendida em relação ao arguido – mostra-se igualmente preenchida a agravante prevista na alínea a), do nº 1, do art. 177º do C. Penal. E, face aos factos dados como provados sob os itens 1), 5), 6), 7), 8), 9), 10), 11), 12), 13), 14), 15), 16), 17), 18), 19), 20), 21), 22), 33), 34), 35), 36) e 37) em conjunto com as considerações jurídicas acima expostas, mostram-se igualmente preenchidos, na íntegra, os elementos constitutivos do crime de violação, p. e p. nos termos do disposto no art. 164º, nº 1, do C. Penal. Isto por que o arguido manteve com a ofendida relação sexual de cópula completa, contra a vontade desta e através do uso de violência. E, por outro lado, na medida em que o arguido agiu de modo doloso, livre e consciente, com o propósito de satisfazer os seus apetites sexuais. Mais uma vez, tendo em conta a qualidade de filha da ofendida em relação ao arguido – mostra-se preenchida a agravante prevista na alínea a), do nº 1, do art. 177º do C. Penal. Ou seja, conclui-se que o arguido cometeu os crimes pelos quais vinha acusado.
Nos termos do disposto no art. 71º nº 1 do C. Penal a determinação da medida da pena, dentro dos limites da lei, far-se-á em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes. Em abstracto, corresponde ao crime de violação cometido pelo arguido uma pena de prisão de 3 a 10 anos e ao crime de abuso sexual de crianças cometido por este uma pena de prisão de 1 a 8 anos – qualquer um deles agravado um terço nos seus limites mínimo e máximo. Como factores de graduação da pena concreta a aplicar ao arguido pela prática do crime de abuso sexual de crianças há – desde logo – que atender à necessidade de prevenção geral deste tipo de condutas, as quais, pela sua natureza, se revelam gravemente perturbadoras da ordem social e dos direitos fundamentais dos menores. Há, depois, que considerar um elevado grau de ilicitude dos factos, face ao modo como ocorreram os factos e à concreta idade da menor nessa ocasião. O que existe na situação em presença é pois uma clara violação por parte do arguido do direito fundamental à liberdade e autodeterminação sexual da ofendida e do seu direito a um crescimento e desenvolvimento equilibrado, no plano psicológico, afectivo e sexual. Ainda em sede de ilicitude há que atender à gravidade das consequências da actuação do arguido, designadamente aos danos psicológicos causados na pessoa da ofendida. A este respeito, cumpre anotar que a qualidade de filha da ofendida já foi atendida para efeitos da agravação pela disposição legal do art. 177º, nº 1, a), do C. Penal. No que respeita à intensidade do dolo, o arguido actuou por forma a representar os factos que preenchem o tipo de crime em presença, aqui se incluindo o conhecimento da idade concreta da menor. Ou seja, actuou com dolo directo. No que concerne à motivação deste para a efectivação do crime, é de considerar que actuou com intenção de satisfazer a sua lascívia sexual. Depois, em sede de conduta posterior ao facto, há que atender a que este não demonstrou qualquer arrependimento dos actos praticados. E que, pelo contrário, cerca de quatro anos depois, praticou actos da mesma natureza na pessoa novamente da sua filha (nos termos dados como provados). Em sede de circunstâncias de carácter geral, beneficia-o a sua modesta condição social, económica e cultural e a ausência de antecedentes criminais. Como factores de graduação da pena concreta a aplicar ao arguido pela prática do crime de violação, há que atender genericamente às mesmas considerações acima feitas. Há que considerar um relevante grau de ilicitude dos factos, tendo em conta o modo concreto escolhido pelo arguido para a prática dos factos ilícitos e a premeditação na sua actuação. Ainda em sede de ilicitude há que ponderar que – felizmente – a menor não sofreu lesões físicas relevantes. No entanto, deve atender-se aos danos psicológicos sofridos por esta, nos termos apurados. No que respeita à intensidade do dolo, o arguido actuou por forma a representar os factos que preenchem o tipo de crime em presença. Ou seja, actuou com dolo directo. No que concerne à motivação deste para a efectivação do crime, é de considerar que actuou - mais uma vez - com intenção de satisfazer a sua lascívia sexual. Igualmente deve ponderar-se que o arguido não demonstrou qualquer arrependimento dos actos praticados. E, em sede de circunstâncias de carácter geral, beneficia-o também aqui a sua modesta condição social, económica e cultural e a ausência de antecedentes criminais. Ponderadas todas estas circunstâncias acha-se adequado punir o arguido, como autor material de um crime de abuso sexual de criança agravado, de forma consumada, numa pena de 4 anos de prisão. E, ponderadas as mesmas circunstâncias, acha-se adequado punir o arguido, como autor material de um crime de violação agravado, de forma consumada, numa pena de 8 anos de prisão. Nos termos do disposto no art. 77º do C. Penal, há que proceder ao cúmulo jurídico destas penas de prisão aplicadas ao arguido. Na determinação concreta da pena unitária devem ser considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido. Assim sendo, tendo em conta o conjunto dos factos praticados pelo arguido e os elementos da sua personalidade evidenciados com a prática destes, opera-se o cúmulo jurídico das penas acima referidas, alcançando uma pena única de 10 anos de prisão.


3. O RECURSO PARA A RELAÇÃO

3.1. Insatisfeito, o arguido recorreu em 28Mar06 à Relação, pedindo, além do mais, a redução das penas parcelares e da pena única:

O acórdão recorrido não fez um exame crítico das provas que permitiram formar a sua “convicção”, violando o disposto no nº 2, do art. 374, do CPP., o que leva à nulidade do acórdão, nos termos do art. 379, nº 1, al. a), do CPP. A convicção do julgador deve ser objectiva e motivada de forma lógica e racional, o que, salvo o devido respeito, não acontece no caso sub judice. Não se fundamenta convenientemente porque não se acredita no depoimento das testemunhas arroladas pela defesa, que são unânimes e peremptórias em afirmar que o arguido em 27 de Fevereiro de 2001, não pode ter cometido os factos ilícitos, porque, na hora indicada pela ofendida, estava na sua companhia, não se valora devidamente os exames médicos juntos aos autos, não se atenta no facto de no relatório de fls. 465, se afirmar o arguido como psicopata. Dá-se como não provados factos alegados em contestação do arguido, sem qualquer fundamentação, pois sobre os mesmos foi produzida prova testemunhal, pelo que peca o acórdão por omissão de pronúncia. O arguido, devido à falta de fundamentação, foi seriamente afectado no seu direito de defesa, tendo sido violado o art. 32, nºs 1 e 5, da C.R.P., já que o tribunal fez errada interpretação da norma constante do art. 97, nº 4, do CPP., interpretação essa violadora dos princípios consignados nos art.s 32, nºs 1 e 5, e 205, da C.R.P., o que aqui se invoca também para dar cumprimento ao art. 72, da Lei do Tribunal Constitucional. A prova produzida em audiência de discussão e julgamento é manifestamente insuficiente para dar como provados os factos 24; 25; 26; 27; 28 e 29, por um lado, porque existem muitas contradições, discrepâncias do depoimento da ofendida, no primeiro interrogatório judicial, referem-se esses factos como ocorridos no Carnaval de 2000, durante o processo fala-se em “actos exibicionistas”, “actos de masturbação”, e agora dá-se como provado “acto sexual de relevo” e no Carnaval de 2001, faz-se referência à existência do proc. nº 86/01, do MP de V. N. Gaia, mas, apesar de requerida a junção pela defesa, não foi possível localizá-lo. A fls. 174 consta referente à ofendida “comportamento irresponsável, delinquente para a idade, fuga à escola”, confirmado pelo psicólogo Dr. II (depoimento gravado na cassete nº 4, Lado A, nº 0640 a 1379), fala-se a fls. 174 (in fine). “O pensamento mais uma vez organiza-se em torno de elementos exteriores de beleza com incursão à fantasia”, mesmo assim, o tribunal entende o depoimento como credível, e dá-se como provados os factos 24; 25; 26; 27; 28 e 29. No entanto, a ofendida não disse nada do que consta nos factos 26; 27 e 28. Disse a ofendida (cassete nº 1, Lado A, nº 1482 a 2437): - “Depois, entrou no quarto, fechou a porta”; - “Foi as cuecas, ainda não tinha soutien, tinha 11 anos”; - “Deitou-se em cima de mim”; - “Ele estava excitado, tinha o pénis erecto, pénis duro?” (Juiz) - “Nessa altura não sabia o que era isso, por isso, não me lembro muito bem”; - “Não sei”; - “Não se estava a masturbar, não estava a mexer no pénis?” (Juiz) - “Não me lembro”; - “Ele, nele próprio fez alguma coisa com as mãos?” (Juiz) - “Não”; - “E em ti mexeu-te com as mãos?” (Juiz) - “Não”. Ora, se no quarto só estava a ofendida e o arguido, o arguido negou os factos, a ofendida disse o que supra se transcreveu, não pode dar-se como provado os factos nºs 26; 27 e 28, devendo tais factos serem dados como não provados. Quanto a estes factos, provou-se o facto nº 30, isto é, a menor foi examinada e nenhum vestígio ou indício foi encontrado de tal ilícito, deve pois o arguido ser absolvido do crime de abuso sexual de crianças, pois toda a prova produzida foi no sentido do arguido não ser o autor desses factos. Quanto aos factos ocorridos em Março de 2004, não se concorda com os factos dados como provados desde o nº 8 a 37. O tribunal “a quo” considerou como fundamental, credível e isento o depoimento da ofendida, e há factos provados que ela “não disse aquilo, ou disse o oposto”. A CC diz: (cassete nº 1, Lado A, nº 1482 a 2437): - “Relações sexuais pela primeira vez?” (Juiz) - “Tinha 14 anos” (Maio de 2003); - “No dia em que fizeste 15 anos foste a casa do teu pai? Quem te convidou?” (Juiz) - “Eu tinha dito à minha prima (…)”; - “(…) se calhar fui de manhã”; - “Pai o que bebeu?” (Juiz) - “Sim”; - “Às 7h30m, eu queria ir a casa de uma amiga, levar um pedaço de bolo”; - “Eu estive a falar com a minha amiga, se calhar bebeu cerveja”; - “Nós estávamos ainda na mota e eu achei estranho, mas não disse nada”; - “Só, quando ele parou, mas também não disse nada”; - “Não tinha luz, mas via-se bem, eram pr’aí 8 horas”; - “Ele deu-me um cigarro, fumava desde os 14 anos”; - “ (…) depois pegou em mim e pôs-me nas costas dobrada, nos ombros dele, virada para trás, porque tinha lama, e só dava para uma pessoa passar”; - “Depois ele tinha um pano (…) e pôs no chão (…)”; - “Pano para limpar a mota”; - “(…), disse para eu me deitar”; - “Tirou-te as calças?” (Juiz) - “Tirou”; - “Tirou-te mais alguma coisa?” (Juiz - “Não”; - “Não, só desapertou as calças”; - “Depois eu estava a fazer força para fechar as pernas e ele a fazer força para eu abrir as pernas”; - “Ele conseguiu introduzir o pénis na vagina? Ou não?” (Juiz) - “Acho, não tenho a certeza”; - “Não sentistes o pénis dentro da vagina?” (Juiz) - “Eu parecia”, a certeza não tenho”; - “Ele logo a seguir “veio-se””; - “Quanto tempo demorou?” (Juiz) - “Vinte e tal minutos”; - “Então não tens a certeza absoluta?” (Juiz) - “Não”; - “Não tens a certeza absoluta se ele conseguiu introduzir o pénis, mas tens ideia que sim, é só isso que me sabes dizer?” (Juiz) - “É”; - “Depois ficastes com dores na vagina?” (Juiz) - “Não”; - “Vagina, não fiquei”; - “Quando fizestes sexo com o teu namorado e ele introduziu o pénis na vagina, doía, alguma vez te doeu?” (Juiz) - “Sim, fiquei dorida”; - “Quando foi isto com o teu pai sentiste essas dores, ficaste dorida?” (Juiz) - “Não”; - “Depois não te lavaste?” (M.P.) - “Não, eu não tinha a certeza se contava, se contasse tinha de ter provas”. - “Nunca bebe álcool?” (Juiz) - “Nunca”; (cassete nº 3, Lado A, do 001 a 0839) - “Fls. 172 – Recolhida em coma alcoólico na via pública” (Defesa/Juiz) - “É verdade, eu sei foi numa festa”. Assim, e de acordo com estas declarações prestadas pela ofendida, não pode ser dado como provados os factos nºs 14; 15; 16; 17; 18; 19; 20 e 21, mormente os factos 19 e 20, pois não foi produzida qualquer prova destes factos, devem os mesmos ser dados como não provados. O tribunal “a quo” refere que deu como provada a “penetração peniana” pelas declarações da perita médica, diz esta (cassete nº 4, Lado A, contador nº 001 a 1327): - “A vítima diz que não consegue dizer-nos ao certo se houve penetração ou não?” (Juiz) - “A minha dúvida é se tiver havido ejaculação não para dentro da vagina, mas para a zona dos grandes lábios, ou por aí, sem ter havido penetração, se nesse caso não há mistura de células, nesse caso não há?” (Juiz) - “A minha dúvida é a seguinte, eu compreendo, relativamente a isso eu tenho dúvidas se a quantidade de células da mulher fosse em quantidade tão abundante que permitisse que sem dúvidas elas aparecessem na mistura” Assim, e dado a perita médica ter manifestado “dúvidas” e a ofendida não confirmar a penetração, deve tal facto ser dado como não provado, até porque, foi realizado exame de perícia de sexologia forense, fls. 92, 93 e 94, colhidos exsudados vaginais, e foi negativo, ou seja, não foram encontrados espermatozóides, no interior da vagina (exame realizado quando ainda não tinham passado 24 horas, e a ofendida não se tinha lavado). Assim, deve ser dado como não provado a “penetração peniana” não existindo cópula, convolando-se o crime, para crime de coacção sexual. De alterar-se a matéria de facto provada, devendo o recorrente ser absolvido dos factos de 27 de Fevereiro de 2001 (Carnaval), alterando-se os factos referentes a Março de 2004, dado existir “dúvidas”, quanto à penetração (in dubio pro reo), absolvendo-se o recorrente do crime de violação, e condenando-se pelo crime de coacção sexual (art.s 163 e 177, nº 1, al. a), do CP), em pena não superior a 4 anos de prisão.
A decisão recorrida padece dos vícios do art. 410, nº 2, do CPP, existindo uma clara insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e ainda erro notório na apreciação da prova, e tais vícios resultam do texto da decisão recorrida, conjugada com as regras da experiência comum. A decisão recorrida violou o princípio “in dubio pro reo” e a presunção de inocência do arguido, pois o princípio da livre apreciação da prova (art. 127 do CPP), encontra no “in dubio pro reo”, o seu limite normativo, existindo dúvida sobre os elementos típicos, ela deve ser resolvida a favor do arguido – art.s 32, nº 1 e nº 2 e 205, da CRP. Salvo o devido respeito, impugna-se a qualificação jurídico – penal dos factos, quando o recorrente é punido por concurso real de crimes. Preceitua o nº 2, do art. 30, do CP que “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executado por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”. No caso dos autos, é a mesma ofendida, os crimes protegem o mesmo bem jurídico, com unidade de propósito criminoso, logo deve ser tratado como unidade sob a forma de crime continuado (abuso sexual de crianças e violação). Nos termos do art. 79, do CP, deve punir-se tais factos com a pena mais grave que integra a continuação “in casu” o crime de violação.
Por mera cautela, e sem prescindir, impõe-se reduzir as penas concretas aplicadas pois as mesmas pecam por excessivas e ultrapassam a culpa do agente na prática dos factos. O recorrente foi condenado pelo crime de abuso sexual de crianças agravado, na pena de 4 anos de prisão, pelo crime de violação agravado, na pena de 8 anos de prisão (art.s 172, nº 1; 164, nº 1 e 177, nº 1, al. a), ambos do CP). Em cúmulo jurídico, das penas parcelares, foi o recorrente condenado na pena única de 10 anos de prisão. A medida da pena deve ser fixada em função da culpa e exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente (art.s 40; 71 e 72, todos do CP). De acordo com o art. 40, nº 1, do CP, a aplicação das penas visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Assim, deve ponderar-se, o relatório psiquiátrico – forense (fls. 465 e ss.), onde consta que o arguido é psicopata (logo, menos capaz de avaliar a ilicitude dos seus actos e de se determinar de acordo com essa avaliação), as suas condições pessoais plasmadas no Relatório Social, o estar, antes de detido, inserido familiar, profissional e socialmente, ter um filho de tenra idade, e uma companheira desempregada, o seu comportamento adequado no EP, ter o apoio incondicional da família, que se estende a quando o mesmo for restituído à liberdade, a confissão dos factos (na parte em que se lembrava) e o seu arrependimento, o tempo já decorrido, o não existir relacionamento diário entre o arguido e a ofendida, a sua capacidade “apelativa”, o facto do arguido ter no dia dos factos, ingerido bebidas alcoólicas, as fracas possibilidades económicas e culturais do arguido, o não ter existido ofensas corporais, ter a ofendida ultrapassado estes factos e estar psicologicamente recuperada, a idade da ofendida, e do arguido (nasceu em 25/10/1968, e é primário). Assim, tudo ponderado, entende-se adequada pena não superior a 2 anos de prisão pela prática do crime de abuso sexual de crianças agravado (art.s 172, nº 1, e 177, nº 1, al. a), ambos do CP), e pena não superior a 5 anos e 6 meses de prisão pela prática do crime de violação agravado, p. p. art.s 164, nº 1, e 177, nº 1, al. a), ambos do CP. Em cúmulo jurídico, nos termos do disposto no art. 77, do CP, tendo em conta o conjunto dos factos e a personalidade do arguido, deve fixar-se pena única não superior a 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, sendo esta pena única adequada à culpa e às exigências de prevenção, quer geral, quer especial, sendo ainda suficiente para se atingir os fins insertos nas normas incriminadoras, contribuindo para a ressocialização.

3.2. Mas a Relação do Porto, em 12Jul06, negou provimento ao recurso:

a) Da nulidade do acórdão por falta de fundamentação da matéria de facto e exame crítico da prova e por omissão de pronúncia quanto aos factos alegados na contestação. Nos termos do disposto no art. 374º n.º 2 CPP “ Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”. Relativamente à redacção anterior do referido preceito legal, a revisão do CPP levada a cabo pela Lei 59/98 de 25 de Agosto, aditou a exigência do exame crítico das provas. Na verdade o Tribunal Constitucional já havia julgado inconstitucional a norma do n.º 2 do art. 374.º CPP/87, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se bastava com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, por entender ser violado o dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no n.º 1 do art. 205.º da CRP, bem como quando conjugada com a norma das alíneas b) e c) do n.º 2 do art. 410.º do mesmo Código, por violação do direito ao recurso consagrado no n.º 1 do art. 32.º CRP (Acórdão nº 680/98, P. 456/95, 2ª Secção, de 2 de Dezembro de 1998, DR II Série, nº 54, 99.03.05, pág. 3315.). Significa isto que, para além da indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este tenha ainda que expressar o respectivo exame crítico das mesmas, isto é o processo lógico e racional que foi seguido na apreciação das provas. O objectivo dessa fundamentação é, no dizer de Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2.ª ed., p. 294, a de permitir “a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando, por isso como meio de autodisciplina”. Como escreve Marques Ferreira, in Jornadas de Direito Processo Penal, pág. 229, “Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência”. Também a propósito da fundamentação das sentenças refere Eduardo Correia "só assim racionalizada, motivada, a decisão judicial realiza aquela altíssima função de procurar, ao menos, “convencer” as partes e a sociedade da sua justiça, função que em matéria penal a própria designação do condenado por “convencido” sugere" - Parecer da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra sobre o artigo 653º do Projecto, em 1ª Revisão Ministerial, de alteração do Código de Processo Civil, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. XXXVII (1961), p. 184. Ora, no caso concreto em análise o recurso carece totalmente de fundamento legal ao invocar nulidade do acórdão por falta de fundamentação e exame crítico das provas e omissão de pronúncia (art. 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a) e c), do CPP). O tribunal recorrido de fls. 744 a 752 fundamentou exaustivamente a matéria de facto, tanto os factos dados como provados como os não provados, procedendo ao exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção, obedecendo desta forma às exigências do art. 374.º, n.º 23, do CPP. Aliás, no acórdão recorrido a fls. 752 houve o cuidado designadamente de explicar a particularidade que se teve na apreciação da prova, sendo que se trata se crimes de natureza sexual em que o depoimento da vítima se tornou decisivo para a condenação do arguido. E a convicção do tribunal está devidamente alicerçada já que “o depoimento da ofendida menor foi prestado de forma absolutamente credível e corroborado, em aspectos periféricos, pelos demais meios de prova”. Também não carece de fundamentação o acórdão recorrido por ter dado como não provados factos alegados na contestação sem qualquer fundamentação. Em primeiro lugar diremos que a contestação de fls. 602 e 603 quanto aos factos imputados ao arguido nada diz. Ou melhor diz tudo, negando tudo. Quanto ao comportamento e personalidade do arguido, dos factos da contestação relevantes para a decisão e constantes das al. f) e g), dos factos dados como não provados, o tribunal fundamentou-os a fls. 751 ao referir não ter dado credibilidade às testemunhas de defesa, indicando as razões desta convicção. Não sofre pois o acórdão recorrido da nulidade arguida.
b) Da impugnação da matéria de facto. O recurso interposto pretende incidir também sobre a impugnação da matéria de facto, como ressalta da motivação e respectivas conclusões. O recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto, o que fez nos termos do art. 412.º, n.º 3, do CPP, especificando concretamente os pontos de facto de per si que considera incorrectamente julgados, indicando relativamente a cada um deles as provas que, em seu entender, impõem decisão diversa da que consta da sentença. Por outro lado, tendo havido gravação da prova, o recorrente faz as especificações por referência aos suportes técnicos, nos termos do art. 412, n.º 4, do CPP. Ora, no entender do recorrente os pontos da matéria de facto incorrectamente julgados são os seguintes: Os pontos sob os n.ºs 24, 25, 26, 27, 28 e 29, dos factos dados como provados, relativamente ao crime de abuso sexual de crianças agravado, devem ser dados como não provados. Por sua vez, os pontos sob os n.ºs 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 23, 33, 34, 35, 36 e 37, relativamente ao crime de violação agravado, devem ser dados como não provados. Há pois que reapreciar a matéria de facto impugnada. Como já atrás fizemos referência, o recorrente ao impugnar a decisão sobre a matéria de facto, deve concretamente nos termos do art. 412.º, n.º 3, do CPP, especificar os pontos de facto de per si que considera incorrectamente julgados, indicando relativamente a cada um deles as provas que, em seu entender, impõem decisão diversa da que consta do acórdão. Assim, as considerações feitas na motivação de recurso quanto às diligências em sede de inquérito serão irrelevantes para impugnação da matéria de facto, ao abrigo do art. 412.º, do CPP. Quando a fls. 174 v. dos autos se refere no relatório feito pela psicóloga da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, mencionado pelo arguido, sobre a ofendida CC “Comportamento irresponsável e delinquente para a idade: fuga à escola; sem noção temporal”, apenas se pretende caracterizar a personalidade da criança e de forma alguma contraria ou poderá contrariar os factos 24 a 29, dados como provados. Na descrição da ocorrência do dia 27/2/2001, não se faz referência à hora. O tribunal apenas considerou provado que os factos ocorreram durante a noite quando dá como provado o seguinte: “24. Na verdade, na noite do dia 27 de Fevereiro de 2001, quando a CC, então com 11 anos de idade, estava na casa da avó, o arguido entrou no seu quarto e fechou a porta”. Atenta a distância dos factos e tendo em conta que a ofendida tinha apenas 11 anos de idade, não lhe será exigível depoimento concreto e preciso quanto ao pormenor da hora, mas será normal reter na memória, uma criança daquela idade, um facto que a perturbou. O depoimento das testemunhas JJ, KK e LL, apenas poderiam contrariar a ocorrência dos factos naquela noite, se tivessem feito depoimento no sentido de que o arguido naquela noite não esteve na companhia da ofendida, o que manifestamente não é o caso. Do depoimento da testemunha MM, constante da cassete n.º 5, lado A, do n.º 1160 a 1770 e transcrito de fls. 302 a 320, também não podemos dizer que o mesmo impõe decisão diversa da recorrida quanto à matéria de facto que o arguido pretende ver modificada. Esta testemunha de defesa e mãe do arguido para além de não ter merecido a credibilidade do tribunal, como se refere a fls. 751 do acórdão, do seu depoimento não podemos inferir que o arguido não tenha entrado no quarto da filha, na noite de 27/2/2001. Em contrapartida o depoimento da ofendida CC , cujo depoimento consta da cassete n.º 1, lado A, do n.º 1482 a 2437 e cuja transcrição se encontra de fls. 90 a 161, é bem claro para sustentar a versão que consta do acórdão nos pontos 24 a 29 da matéria de facto dada como provada, quando refere que se encontrava a jogar o “Super ..”, no quarto do pai quando este entrou e fechou a porta (fls. 98). O depoimento da ofendida mereceu credibilidade do tribunal, tendo a mesma referido concretamente que “Depois ele desligou a consola…” - (fls. 99); “Eu tinha onze anos, ainda não tinha mamas” - (fls. 100); “Deitou-me e depois ele tirou-me as cuecas. Depois desapertou o fecho…”; “ Deitou-se em cima de mim…”; Depois ele deitou o líquido…” - fls. 101. Não há pois fundamento para alterar a matéria de facto constante dos pontos 24 a 29 dos factos dados como provados no acórdão. Quanto aos factos dados como provados sob os n.ºs 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 23, 33, 34, 35, 36 e 37, relativamente ao crime de violação agravado é manifesto que não há erro de julgamento. Se não vejamos. Diz o arguido na sua motivação de recurso que os factos dados como provados sob os n.ºs 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21, não podem ser dados como provados, considerando que apenas estavam presentes a ofendida e o arguido e não correspondem ao que disse aquela. Em primeiro lugar diremos que o arguido negou prática dos factos e a versão por si trazida aos autos não mereceu qualquer credibilidade por parte do tribunal colectivo, quer o seu depoimento quer o das testemunhas de defesa. Por sua vez a ofendida deu a versão dos mesmos de uma forma circunstanciada, como aliás se pode constatar do seu depoimento e conforme consta designadamente da transcrição de fls. 124 a 137 e cujo depoimento mereceu credibilidade do tribunal. Refere a ofendida que o pai a levou de mota a casa da amiga, embora pretendesse ir sozinha. Depois conta com pormenor que o pai lhe deu um cigarro e que a deitou à força no chão onde colocara um pano (fls. 129). Relata ainda a forma como o arguido forçou a menor no sentido de manter com ela relações cópula completa, pois diz concretamente: “…estava a tentar força para…porque ele estava a tentar abrir-me as pernas…”; “Ele é que me tirou as calças” (fls. 130). Depois ao ser-lhe perguntado pela senhora juíza se lhe tirou as cuecas, a mesma ofendida respondeu afirmativamente. E quanto à roupa para cima da cintura, embora a não tivesse tirado, subiu-lha para cima. Depois conta ainda que o pai, com o pénis erecto, ao tentar introduzi-lo na vagina da ofendida, esta fazia força para não entrar, o que fazia com que a aleijasse (fls. 136). A ofendida não tem a certeza se houve penetração, dada a resistência oferecida e o facto de o arguido a aleijar ao tentar introduzir-lhe o pénis na vagina, mas tem a certeza que o mesmo ejaculou e que o esperma “foi para a parte da vagina. E ele com um pano limpou”. O que aliás é depois confirmado pela ofendida. Assim, quando a senhora juíza pretende desfazer tal dúvida, formulou-lhe a seguinte pergunta: “Mas então não ficou esperma dentro da vagina. Ou não sabes dizer? A menor responde: “Não sei”. E depois a senhora juíza insiste: “Então não tens a certeza absoluta se ele conseguiu introduzir o pénis. Mas tens a ideia que sim. É só isso que me sabes dizer? Não sabes dizer mais do que isso, é isso?” A menor limita-se a responder: “É”. Ora, face à prova oferecida nos autos e por obediência ao princípio in dubio pro reo, não poderíamos concluir e dar como provado que o arguido chegou a introduzir o pénis na vagina da menor CC. Mas a ofendida limita-se a dizer que não tem a certeza de ter havido penetração, embora admita que tenha havido e por isso haveria razões para alterar os pontos 18, 19 e 20 dos factos dados como provados. Contudo o depoimento da ofendida é complementado pelo exame de fls. 104 a 106 levado a cabo pelo Instituto de Medicina Legal, no qual se refere designadamente o seguinte: “As características genéticas do DNA extraído da mancha das cuecas, relativo ao STRs autossómicos, podem corresponder a uma mistura de células de CC e AA”. E depois complementado ainda pelos esclarecimentos prestados por aquela mesma perita cujo depoimento se encontra nos autos de transcrição de fls. 205 a 223 e que conclui que tem a firme convicção de que terá ocorrido penetração e ejaculação dentro da vagina, que fundamenta no facto de existir “...uma mistura de células na qual poderá estar presente o perfil genético da vítima e o perfil genético do suspeito. Portanto, isso sugere que efectivamente teria que haver…teria que ter havido ejaculação e penetração para que esses resultados …”. Adianta ainda no seu depoimento que “uma vez que há mistura …portanto, naturalmente essa mistura terá resultado de uma ejaculação”. Ora, atenta a credibilidade do depoimento da ofendida e circunstâncias em que os factos ocorreram, sendo ainda certo que o próprio arguido admitiu ter estado com a ofendida, existe pois prova segura nos autos para se dar como provado que houve penetração vaginal. Por isso, não merece reparo a forma como foram dados como provados os factos sob os n.º 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17 e mormente os factos sob os n.ºs 18, 19, 20 e 21. Quanto ao facto sob o n.º 23, tem-se por necessariamente por assente uma vez que se deram como provados os factos relacionados com o crime de abuso sexual de crianças, ocorrido em 27/2/2001. Os factos sob os n.ºs 33 e 34, respeitantes às sequelas que advieram resultam sobejamente dos documentos e relatórios perícias juntos aos autos e referidos na motivação. Por fim, os factos sob os n.ºs 35, 36 e 37, são o corolário lógico que resultam das regras da experiência comum, sendo certo que o relatório de psiquiatria forense junto aos autos demonstra o estado de sanidade mental do arguido, para que tenha actuado naquelas circunstâncias. Por tudo quanto deixamos exposto, não merece reparo a matéria de facto impugnada pelo arguido.
c) Dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP. O arguido alega ainda como fundamento do recurso sofrer o acórdão recorrido de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova. Não tendo sido atendida a impugnação da matéria de facto, nos termos do art. 412.º, n.º 3, do CPP, a modificabilidade da mesma apenas deve resultar com o fundamento em existência dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, como decorre do corpo do art. 431.º, do mesmo diploma legal. Porém, a motivação e respectivas conclusões nesta parte sofrem de deficiências que comprometem irremediavelmente o sucesso da pretensão do recorrente. Tais vícios devem resultar do texto da decisão e não da apreciação que o tribunal a quo fez da prova. De forma diversa o arguido, alega em síntese que o tribunal deu credibilidade injustificadamente à prova oferecida pela acusação, mormente à versão da ofendida, em prejuízo da versão do arguido e das testemunhas de defesa. Entende que não tendo sido feita prova dos factos, o tribunal deveria absolver o arguido, violando assim a sentença recorrida o princípio “in dubio pro reo”. Esta forma de questionar a sentença nada tem a ver com os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova. Se não vejamos. O recorrente na motivação de recurso insiste na credibilidade que o tribunal colectivo deu à prova oferecida nos autos e que em seu entender foi apenas valorada a versão da ofendida. Pelo menos, em seu entender, havendo duas versões contraditórias nos autos, tal situação devia beneficiar o arguido, tendo em conta o princípio in dubio pro reo. (...)
d) Do enquadramento jurídico-penal dos factos e medida concreta das penas aplicadas ao arguido. O tribunal recorrido condenou o arguido como autor material de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos art. 172.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. a), ambos do CP, por factos ocorridos em 27/02/2001. Condenou ainda o arguido pela prática de um crime de violação agravado, p. e p. pelos art. 164.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. a), ambos do CP, por factos ocorridos em 21/03/2004. A factualidade respeitante ao dia 27/02/2001 e correspondente aos pontos sob os n.ºs 24, 25, 26, 27, 28, 35, 36 e 37, integra, sem margens a discussão, os elementos constitutivos do crime de abuso sexual de crianças. Nos termos do art. 172.º, do Cód. Penal, pratica este tipo de ilícito: “1 - Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa…”. A ofendida tinha à data da prática dos factos apenas 11 anos de idade e o arguido ao exibir perante a mesma o pénis erecto, tocando-lhe com ele na vagina e ejaculando sobre ela, praticou acto sexual de relevo. Por outro lado, o crime é agravado, nos termos do art. 177.º, n.º 1, al. a), do CP, dado que o arguido é pai da ofendida. Por isso, bem andou a tribunal colectivo quanto à condenação do arguido por este tipo legal de crime, p. e p. pelos art. 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a), do CP. A factualidade respeitante ao dia 21/03/2004 e correspondente aos pontos sob os n.ºs 24, 25, 26, 27, 28, 35, 36 e 37, integra, sem margens a discussão, os elementos constitutivos do crime de abuso sexual de crianças. A factualidade respeitante ao dia 27/02/2001 e correspondente aos pontos sob os n.ºs 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 35, 36 e 37, integra, é subsumível, também sem margens para discussão, ao crime de violação, constante do art. do art. 164.º, n.º 1, do CP. Pratica este tipo legal de crime: “Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois dele, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral…”. Mostram-se pois preenchidos, todos os elementos constitutivos do crime de violação, p. e p. nos termos do disposto no art. 164º, nº 1, do CP, uma vez que o arguido manteve com a ofendida relação sexual de cópula completa, contra a vontade desta e através do uso de violência. Por outro lado, agiu de modo doloso, livre e consciente, com o propósito de satisfazer os seus apetites sexuais. Este crime é igualmente agravado, por força do art. 177.º, n.º 1, al. a), do CP. Ema ambos os crimes acima mencionados, o bem jurídico protegido é a liberdade e autodeterminação sexual. Porém, não há qualquer fundamento para se concluir pelo crime continuado, como pretende o arguido na sua motivação de recurso. Ora, de acordo com o disposto no art. 30.º, n.º 2, do CP, “Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executado, por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”. Tal possibilidade de crime continuado está afastada à partida. Se não vejamos. Ainda que estejamos perante dois crimes que protegem o mesmo bem jurídico, estamos perante duas acções típicas distintas e executadas não de forma homogénea e sem resultarem de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do arguido. Está afastada a hipótese do crime continuado, pois a primeira situação reporta-se a 27/2/2001, quando a menor apenas tinha 11 anos de idade e por isso, embora se encontrasse no seu quarto, o arguido se ficou pela ejaculação sobre a CC. A segunda situação reporta-se a 21/3/2004, no dia em a filha fez 15 anos de idade. Aqui o arguido, induziu a menor a acompanhá-la a casa de uma amiga que transportou de motorizada e no regresso desviou-a para um lugar ermo, já com o intuito de manter relações sexuais de cópula completa, como aliás veio acontecer. A menor não vivia com o pai e os factos ocorreram nas visitas que lhe fez. São pois crimes autónomos e como tal assim devem ser punidos. O arguido pelo crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos art. 172.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. a), ambos do CP, foi condenado na pena de 4 anos de prisão, numa moldura penal abstracta que vai de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses de prisão. Pelo crime de violação agravado, p. e p. pelos art. 164.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. a), ambos do CP, foi condenado na pena de 8 anos de prisão, numa moldura penal abstracta que vai de 4 anos a 13 anos e 4 meses de prisão. Nos termos do disposto no art. 77.º, do CP, em cúmulo jurídico das penas de prisão aplicadas, foi o arguido condenado na pena única de 10 anos de prisão. O arguido a manter-se a incriminação sustenta que deve ser aplicada a pena de 2 anos de prisão pela prática do crime de abuso sexual de crianças agravado e pena não superior a 5 anos e 6 meses de prisão pela prática do crime de violação agravado. Em cúmulo jurídico sustenta que deve ser aplicada a pena unitária não superior a 6 anos e 6 meses de prisão. Mas justificar-se-á a diminuição das penas? Apreciemos pois a conduta do arguido. A aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do agente; em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (art. 40.º, n.º 1 e 2 do CP). A defesa da ordem jurídico penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração) é a finalidade primeira que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização. Ou seja, devendo ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, as penas são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime e em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal. - Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 55 e seguintes e STJ 29.4.98 CJ, T. II, pág. 194. Nos termos do disposto no art. 71.º, n.º 1, do CP a determinação da medida da pena, dentro dos limites da lei, far-se-á em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes. Como circunstâncias de carácter geral, em benefício do arguido, outras não há para além daquelas que foram consideradas pelo tribunal a quo, isto é, a sua modesta condição social, económica e cultural e o facto de não ter antecedentes criminais. Contra o arguido depõem várias circunstâncias, sendo de considerar: - O elevado grau de ilicitude e o modo de execução dos factos, sobretudo no crime de violação, tendo acompanhado a filha a casa da amiga já com o intuito de manter relações sexuais com ela, tendo começado por seduzi-la, oferecendo-lhe cigarros e passando depois a usar a força física, após notar que a menor lhe oferecia resistência; - A gravidade das consequências para a ofendida ao nível psicológico; - A intensidade do dolo, sendo que actuou com dolo directo; - A conduta posterior aos factos, sendo que negou a prática dos factos, não revelando qualquer arrependimento e a persistência em perseguir sexualmente a filha, pois praticou o crime de abuso sexual de crianças em 27/02/2001 e o crime de violação em 21/03/2004; - O facto da violação ocorrer no próprio dia do aniversário da filha que o visitara nesse dia com quem comemorou, para além de outros familiares os 15 anos de idade. Ponderadas aquelas circunstâncias em que o arguido actuou e devidamente ponderadas e justificadas no acórdão recorrido, não há razões para alterar que as penas parcelares que a pena unitária.


4. O Recurso para o Supremo

4.1. Ainda inconformado, o arguido, notificado em 13Jul06, recorreu ao Supremo no dia 21 (2), pedindo – no contexto da unidade criminosa - a redução das penas:

Deve ser alterada a qualificação jurídica dos factos, pois os factos definitivamente provados, não preenchem os pressupostos típicos do crime de abuso sexual de crianças agravado, e do crime de violação agravado, mas sim um crime continuado. Considerando o preceituado no nº 2, do art. 30, do CP, trata-se da mesma ofendida, de crimes que protegem o mesmo bem jurídico, duas acções típicas distintas, mas executadas de forma homogénea e que resultam de uma mesma situação exterior que diminui consideravelmente a culpa do recorrente. No crime continuado, está ínsita a realidade do sucumbir no repetir, são pressupostos: a) a realização plúrima do mesmo tipo de crime, ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico; b) homogeneidade na forma de execução; c) lesão do mesmo bem jurídico; d) unidade do dolo (unidade do injusto pessoal da acção), isto é, as diversas resoluções devem conservar-se dentro de uma linha psicológica continuada; e) persistência de uma situação exterior que facilite a execução e que diminua consideravelmente a culpa do agente. No caso dos autos, existe uma pluralidade autónoma de infracções, que deve considerar-se crime continuado, pois a culpa encontra-se consideravelmente diminuída pela concorrência de factores exógenos que facilitaram as repetidas sucumbências. No “caso concreto” a circunstância de se ter criado através da primeira actividade criminosa uma certa relação de acordo entre os seus sujeitos, o verificar-se a mesma oportunidade que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa. O art. 30, nº 2, do CP, vai buscar o seu fundamento à diminuição da culpa do agente, em virtude da facilidade criada por determinadas circunstâncias para a prática de novos factos da mesma natureza – “in casu” a facilidade ocorrida no abuso sexual perpetrado em 27/2/2001, a circunstância de não ter sido descoberto tal abuso, e ainda o facto de tal abuso ter ficado impune, são circunstâncias exteriores que, a nosso ver, levam à recaída do recorrente e ao cometimento dos factos, no dia 21/3/2004, levando à diminuição da culpa do agente, em virtude da facilidade criada por determinadas circunstâncias para a prática de novos factos da mesma natureza. Nos termos do art. 79, do CP, deve assim o arguido ser condenado com a pena mais grave que integra a continuação criminosa, isto é, com a pena correspondente ao crime de violação, não devendo o crime continuado, “ipso facto”, ter tratamento mais severo do que o realizado através de uma só acção naturalística.
Por mera cautela, impõe-se reduzir as penas concretas aplicadas pois as mesmas pecam por excessivas e ultrapassam a culpa do agente evidenciada na prática dos factos. A medida da pena deve ser fixada em função da culpa e exigências de prevenção (art. 71, nº 1, do CP). A aplicação das penas visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Assim, a pena deve ter uma finalidade ressocializadora, devendo ponderar-se a personalidade do agente, as condições da sua vida, a conduta anterior e posterior ao facto punível e as circunstâncias em que o crime foi praticado. Em especial deve ponderar-se o relatório psiquiátrico-forense a fls. 465 e ss., as suas condições pessoais plasmadas no Relatório Social, a sua inserção profissional e familiar, o ser primário, a sua fraca condição económico – financeira, o ter o arguido bom comportamento anterior e posterior aos factos puníveis, com bom comportamento no E. P., o estar arrependido, a sua companheira estar desempregada, ter um filho de 10 meses de idade que necessita dos cuidados e carinho do pai, no E. P. tem o apoio da família e amigos dispostos a ajudá-lo a reinserir-se socialmente com êxito, o facto do mesmo projectar quando restituído à liberdade, voltar a trabalhar, abstendo-se de cometer factos ilícitos, o facto do arguido nesse dia (aniversário da ofendida) ter ingerido bebidas alcoólicas, que diminuíram a sua liberdade de autodeterminação, serem estes actos isolados, e determinados espacio-temporalmente, ter o arguido, à data, 37 anos de idade, ter sido criado, sem condições de habitabilidade, e a ofendida, actualmente com 17 anos de idade, estar psicologicamente recuperada. Assim, tudo ponderado, entende-se que uma pena não superior a 3 anos de prisão, pela prática do crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos art.s 172, nº 1, e 177, nº 1, al. a), ambos do CP, e uma pena não superior a 6 anos de prisão, pela prática do crime de violação agravado, p. e p. pelos art.s 164, nº 1 e 177, nº 1, al. a), ambos do CP, tais penas parcelares são mais adequadas à culpa e às exigências de prevenção, quer geral, quer especial, sendo ainda suficientes para se atingir os fins insertos nas normas incriminadoras, contribuindo para a ressocialização. Em cúmulo jurídico, considerando a globalidade dos factos e a personalidade do recorrente, considera-se mais justa e adequada pena única não superior a 7 anos de prisão.

4.2. O MP (de turno), na sua resposta de 08Ago06, pronunciou-se pelo improvimento do recurso:

Em síntese, o arguido defende que se tratou de um único crime, cometido na forma continuada, e que as penas são excessivas. Porém, atenta a matéria de facto provada, bem andou a Relação do Porto quando decidiu que, embora tratando-se de dois crimes que visam a protecção do mesmo bem jurídico, cometidos contra a mesma ofendida, a filha menor do arguido, estava excluída a hipótese de se tratar de um crime continuado. Na verdade, tratou-se de duas acções distintas (uma ocorreu em 27-02-2001 e a outra em 21-03-2004); executadas de forma não homogénea (a primeira, quando a menor tinha 11 anos e se encontrava no quarto do arguido, ejaculando ele sobre a menor; a segunda, no dia do 15° aniversário da menor, aproveitando-se o arguido do facto de ter transportado a menor de motorizada a casa de uma amiga, para efectuar um desvio de percurso para um lugar ermo, onde manteve relações sexuais de cópula completa com a menor, contra a vontade desta); e sem que se verificasse qualquer situação exterior que diminuísse a culpa do arguido (é insustentável a argumentação do arguido de que o facto de primeiro abuso sexual não ter tido, de imediato, punição criminal possa ser considerado como atenuador da sua culpa). Acresce que, a matéria de facto provada revela um elevado grau de ilicitude e um dolo directo e intenso, o que, aliado às graves consequências advinda para a ofendida, a nível psicológico, da prática dos crimes, e ao comportamento do arguido posterior aos factos - negando-os e não demonstrando arrependimento nos leva a concluir que as penas cominadas (tanto as parcelares, como a pena única) são adequadas para satisfazer as necessidades de prevenção, geral e especial, e, também, são adequadas à culpa.

4.3. Nas suas alegações escritas de 29Set06, o recorrente «considerou mais justa e adequada pena única não superior a sete anos de prisão»:

Deve ser alterada a qualificação jurídica dos factos, pois os factos definitivamente provados, não preenchem os pressupostos típicos do crime de abuso sexual de crianças agravado, e do crime de violação agravado, mas sim um crime continuado. Considerando o preceituado no n.° 2 do art. 30 do CP, trata-se da mesma ofendida, de crimes que protegem o mesmo bem jurídico, duas acções típicas distintas, mas executadas de forma homogénea e que resultam de uma mesma situação exterior que diminui consideravelmente a culpa do recorrente. No crime continuado está ínsita a realidade do sucumbir no repetir, são pressupostos: a) a realização plúrima do mesmo tipo de crime, ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico; b) homogeneidade na forma de execução; c) lesão do mesmo bem jurídico; d) unidade do dolo (unidade do injusto pessoal da acção), isto é, as diversas resoluções devem conservar-se dentro de uma linha psicológica continuada; e) persistência de uma situação exterior que facilite a execução e que diminua consideravelmente a culpa do agente. No caso dos autos, existe uma pluralidade autónoma de infracções, que deve considerar-se crime continuado, pois a culpa encontra-se consideravelmente diminuída pela concorrência de factores exógenos que facilitaram as repetidas sucumbências. No "caso concreto" a circunstância de se ter criado através da primeira actividade criminosa uma certa relação de acordo entre os seus sujeitos, o verificar-se a mesma oportunidade que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa. O art. 30, n.° 2, do CP vai buscar o seu fundamento à diminuição da culpa do agente, em virtude da facilidade criada por determinadas circunstâncias para a prática de novos factos da mesma natureza - in casu" a facilidade ocorrida no abuso sexual perpetrado em 27/2/2001, a circunstância de não ter sido descoberto tal abuso, e ainda o facto de tal abuso ter ficado impune, são circunstâncias exteriores que, a nosso ver, levam à recaída do recorrente e ao cometimento dos factos, no dia 21/3/2004, levando à diminuição da culpa do agente, em virtude da facilidade criada por determinadas circunstâncias para a prática de novos factos da mesma natureza. Nos termos do art. 79.º do CP, deve assim o arguido ser condenado com a pena mais grave que integra a continuação criminosa, isto é, com a pena correspondente ao crime de violação, não devendo o crime continuado, "ipso facto", ter tratamento mais severo do que o realizado através de uma só acção naturalística.
Caso assim se não entenda, então impõe-se reduzir as penas concretas aplicadas pois as mesmas pecam por excessivas e ultrapassam a culpa do agente evidenciada na prática dos factos. A medida da pena deve ser fixada em função da culpa e exigências de prevenção (art. 71, n.° 1, do CP). A aplicação das penas visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Assim, a pena deve ter uma finalidade ressocializadora, devendo ponderar-se a personalidade do agente, as condições da sua vida, a conduta anterior e posterior ao facto punível e as circunstâncias em que o crime foi praticado. Em especial deve ponderar-se o relatório psiquiátrico-forense a fls. 465 e ss., as suas condições pessoais plasmadas no Relatório Social, a sua inserção profissional e familiar, o ser primário, a sua fraca condição económico - financeira o ter o arguido bom comportamento anterior e posterior aos factos puníveis, com bom comportamento no E. P., o estar arrependido, a sua companheira estar desempregada, ter um filho de 10 meses de idade que necessita dos cuidados e carinho do pai, no E. P. tem o apoio da família e amigos dispostos a ajudá-lo a reinserir-se socialmente com êxito, o facto do mesmo projectar quando restituído à liberdade, voltar a trabalhar, abstendo-se de cometer factos ilícitos, o facto do arguido nesse dia (aniversário da ofendida) ter ingerido bebidas alcoólicas, que diminuíram a sua liberdade de autodeterminação, serem estes actos isolados, e determinados espacio-temporalmente, ter o arguido, à data, 37 anos de idade, ter sido criado, sem condições de habitabilidade, e a ofendida, actualmente com 17 anos de idade, estar psicologicamente recuperada. Assim, tudo ponderado, entende-se que uma pena não superior a 3 anos de prisão, pela prática do crime de abuso sexual de crianças agravado e uma pena não superior a 6 anos de prisão, pela prática do crime de violação agravado. Em cúmulo jurídico, considerando a globalidade dos factos e a personalidade do recorrente, considera-se mais justa e adequada pena única não superior a 7 anos de prisão.

4.4. Na sua resposta escrita de 11Out06, o MP «tem por justificada uma redução da pena única para os 8 anos de prisão»:

É excessiva e mesmo abusiva a alegação de que se criou "através da primeira actividade criminosa uma certa relação de acordo entre os seus sujeitos" por ser contrariada de forma óbvia pela matéria de facto assente, já que a ofendida não só tentou fugir como só pela força e violência utilizada pelo arguido foi vencida na sua determinação de se opor aos intentos do mesmo arguido. Depois, também os factos não dão conta de nenhuma "oportunidade" que tivesse arrastado o arguido para a prática da segunda prática criminosa. Com efeito, é o próprio arguido a criar essa circunstância ao não efectuar "o trajecto habitual de regresso a casa" e procurar um lugar ermo para consumar os seus intentos. Ou seja, o que os autos patenteiam é a inexistência de qualquer relação que, de fora, e de maneira considerável, tivesse facilitado a repetição da actividade criminosa do arguido, de forma a que lhe fosse cada vez menos exigível que se comportasse de maneira diferente. Finalmente, a exigida proximidade temporal não se verifica atenta a distância de mais de três anos entre as duas condutas. Por isso, perante tal argumentação justifica-se, em jeito conclusivo, duas breves referências a dois acórdãos proferidos neste Supremo Tribunal que afastaram a verificação do crime continuado em situações não muito diferentes (3). Parece assim que, no caso, a matéria de facto provada afasta de forma clara a verificação dos pressupostos da unidade jurídica que constitui o crime continuado. Na verdade, o ora recorrente não se limitou a aproveitar uma situação exterior que se lhe apresentasse, mas, pelo contrário, renovou uma intenção, pensada e realizada de forma completamente diferente, até nos procedimentos concretos adoptados, tudo a revelar, não uma diminuição de culpa, mas o acentuar da respectiva censurabilidade. A tomada de posição anterior afasta naturalmente a questão de saber se o arguido deve ser condenado com a pena mais grave que integra a continuação criminosa, resposta que não poderia deixar de ser positiva face ao disposto no art. 79.º do Código Penal, se outra fosse a posição assumida nessa matéria. Mas o recorrente questiona também a medida da penas aplicadas, defendendo que as suas condições pessoais - é primário, estar inserido profissional e familiarmente, ter fraca condição económica e recebe apoio efectivo da sua família, bom comportamento anterior e posterior aos factos, etc. - justificavam a aplicação de pena mais reduzidas e, em concreto, de 3, 6 e 7 anos de prisão, sendo a última em cúmulo jurídico. A gravidade da conduta do arguido é inquestionável, revelando um total indiferença e insensibilidade pelos valores ético-penais, assim como é intenso o grau de ilicitude a acentuar as exigências de prevenção geral, por colocar em crise valores fundamentais. Não será de mais relembrar que os bens jurídicos protegidos pelos ilícitos em causa são sentidos como um valor particularmente valioso pela comunidade, cuja necessidade de protecção é particularmente sentida tendo em conta também a frequência com que comportamentos do tipo vêm ocorrendo. E no mesmo sentido se vem orientando a jurisprudência deste tribunal ao fazer ressaltar a gravidade do ilícito e as imperiosas necessidades de prevenção geral geradas pelas situações de abuso sexual de crianças. Por isso se dizia em recente acórdão desta mesma secção que: "Em regra, nesse tipo de criminalidade a defesa do ordenamento jurídico e os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais que urge satisfazer, não se bastarão com uma pena situada no limiar inferior da moldura penal abstracta". Porém, reconhecendo embora a validade dos pressupostos invocados pelas instâncias, entende-se no entanto que as penas aplicadas pecam por algum excesso. Com efeito, ponderando todas as circunstâncias provadas, relevando favoravelmente a falta de antecedentes criminais do arguido, a sua juventude e condições familiares e profissionais, e tendo em atenção as necessidades de reinserção social que com acuidade ainda se fazem sentir, temos por justificada uma redução da pena única para os 8 anos de prisão (correspondente às penas parcelares de 3 e 7 anos de prisão), pena essa que tem uma duração suficiente para evidenciar a gravidade da ilicitude e para também satisfazer as já referidas necessidades de prevenção geral, e não perde a sua dimensão mais humanizada respeitadora da desejada reinserção social do arguido.


5. CRIME CONTINUADO?

5.1. Não basta, para que se afirme a ocorrência de um só crime continuado, «a realização plúrima de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico». Mister será ainda que essa realização seja executada não só «por forma essencialmente homogénea» como «no quadro de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa» (art. 30.2 do CP).

5.2. Ora, aqui, não foi essencialmente homogénea a forma como o arguido realizou, ainda que sobre a mesma pessoa, o tipo de crime de abuso sexual de criança agravado e o tipo de crime de violação agravada: enquanto, no primeiro caso (27Fev01), o arguido, entrando no quarto da filha, então com 11 anos de idade, lhe exibiu o pénis erecto, com ele lhe tocando depois na vulva, acabando por ejacular «em cima dela», já no segundo caso (21Mar04) o arguido, ao transportar a filha (então com 15 anos de idade) no seu ciclomotor, desviou-o para um descampado, onde, «socorrendo-se do seu ascendente e da sua maior força muscular, lhe introduziu (até à ejaculação) o pénis erecto na vagina».

5.3. Mas, mesmo que aqui não se veja, na forma como o arguido realizou um e outro tipo de crime, senão a heterogeneidade própria de cada um deles, ainda assim faltaria – para que se pudesse afirmar a ocorrência de um só crime continuado – que a realização dos dois tipos de crime decorresse de «uma mesma situação exterior» (sendo que a única semelhança entre uma e outra terá sido a de o arguido se encontrar a sós com a filha, uma vez em casa da avó desta e outra num descampado, para onde ele próprio a encaminhara) e, mais ainda, que essa «situação exterior» diminuísse consideravelmente a culpa do agente (o que nunca seria o caso, já que a segunda «situação exterior» não se lhe deparou fortuitamente, antes foi dolosamente procurada pelo arguido, que, para tanto, se desviou do caminho que programara com a filha ao aceitar levá-la a casa de uma amiga e trazê-la de volta a sua casa, onde a filha – a viver em casa da mãe desde os acontecimentos de três anos antes – viera passar o dia do seu aniversário) (4) .

5.4. Acresce que – para além do grande hiato de tempo que mediou entre uma conduta e outra (5) – a menor, quando da primeira ocorrência, «foi observada e examinada no Hospital de Santo António e no Instituto de Medicina Legal do Porto e passou a ser acompanhada pela Comissão de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo de Vila Nova de Gaia», que lhe suspendeu as visitas ao pai. Anos depois é que o psicólogo que a seguia entendeu chegado o momento de tais visitas não deverem «continuar suspensas», como forma de a menor – já mais segura se si – reganhar, ante o pai, a confiança entretanto perdida. Ora, tendo este abusado uma vez mais da confiança da filha (6), após três anos de acompanhamento psicológico que a haviam ajudado a voltar a confiar nos outros (e, sobretudo, no pai), não se poderá afirmar que este segundo abuso – aliás, objectivamente ainda mais grave que o primeiro – tenha ocorrido «no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior» e, muito menos, «de uma situação exterior consideravelmente atenuante da culpa do agente» (7) .


6. AS PENAS PARCELARES

6.1. É sabido que, de um modo geral, «a medida da pena há-de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva», vindo a ser «definitiva e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização» (8) .

6.2. No caso (em que a moldura penal abstracta do crime de abuso sexual de criança agravado é a de prisão de 1,33 a 10,66 anos), o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade – ou seja, a medida de pena que a comunidade entenderia necessária à tutela das suas expectativas na validade e no reforço da norma jurídica afectada pela conduta do arguido – situar-se-ia nos 3,5 anos de prisão (ante o facto de este, na noite do dia 27Fev01, quando a filha, então com 11 anos de idade, estava na casa da avó, ter entrado no seu quarto e, estando ela sentada na cama em camisa de noite, lhe ter exibido, masturbando-se, o pénis erecto, com que, depois lhe «tocou» na vulva, acabado por ejacular «em cima dela.»)

6.3. Mas «abaixo dessa medida (óptima) da pena de prevenção, outras haverá – até ao “limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas” - que a comunidade ainda entenderá suficientes para proteger as suas expectativas na validade da norma». O «limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral» coincidirá, pois, em concreto, com «o absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral sob a forma de defesa da ordem jurídica» (e não, necessariamente, com «o limiar mínimo da moldura penal abstracta»). E, no caso, esse limite mínimo (da moldura de prevenção) poderá encontrar-se por volta dos 2,5 anos de prisão (uma vez que sobre o crime passaram entretanto quase seis anos).

6.4. «Os limites de pena definida pela necessidade de protecção de bens jurídicos não poderão ser desrespeitados em nome da realização da finalidade de prevenção especial, que só poderá intervir numa posição subordinada à prevenção geral», mas, concorrendo ela, dentro dos limites da moldura de prevenção, para a concretização da pena, o comportamento anterior do arguido (sem condenações), a sua idade (32 anos de idade à data e 38 agora) e o seu comportamento posterior (em que, três anos depois, recidivou, sendo certo, porém, que, na cadeia, tem tido «um comportamento adequado às normas, não registando qualquer sanção disciplinar») poderão invocar-se para aferir o quantum exacto da pena – impelindo-a para meados [3 anos] – da moldura de prevenção (9) , tendo em conta, ainda, que «tem o apoio da família, que o ajuda e o ama, visitando-o regularmente no EP e prestando-lhe apoio incondicional» e que «projecta, quando restituído à liberdade, recomeçar a trabalhar».

6.5. Percorrendo caminhos idênticos, com vista a concretização da pena correspondente ao seu outro crime, de 21Mar04, de «violação agravada» (punível com pena de prisão de 4 a 13,33 anos de prisão), será de 8 anos de prisão o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade e de 6 anos de prisão o “limite (mínimo) do (estritamente) necessário para assegurar a protecção dessas expectativas”. Nesta moldura de prevenção, funcionarão, fixando a pena, as exigências de prevenção especial, que - tendo em conta que a «existência» do arguido, com uma «organização cognitiva enquadrada em padrões médios» e apresentando «uma vida social aparentemente integrada» («apesar da manifestação de condutas percepcionadas pela comunidade mais próxima como menos maduras e consistentes, particularmente em aspectos do foro afectivo»), tem visto «comprometido o seu processo de autonomia» (conduzindo a uma «auto-percepção negativa» e a «um certo isolamento sócio-afectivo»), ao «ser vivenciada de forma marcadamente simplista, emotiva e superficial no contacto com a matriz social envolvente, quer seja na esfera familiar, interpessoal e profissional» - prescreverão uma pena intermédia (de 7 anos de prisão).


7. A PENA CONJUNTA

7.1. Em atenção, finalmente, à personalidade do arguido e aos factos no seu conjunto, haverá agora que unificar as penas parcelares, pois que «quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa pena única» (art. 77.º, n.º 1, do CP), considerando-se, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (n.º 2).

7.2. Em sede de pena conjunta, «tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique» (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, § 429). E, no caso, o arguido, cometeu, sobre sua filha menor, dois crimes contra a sua autodeterminação sexual (o primeiro, em 2001, tinha ela 11 anos de idade, e o outro no preciso dia em que ela, para comemorar o seu 15.º aniversário, visitava o pai).

7.3. Por outro lado, na «avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (...) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade; [sendo certo que] só no primeiro caso [incluindo, como aqui, o da pluriocasionalidade radicada na personalidade] será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta» (a. e ob. cit., § 521).

7.4. Daí que, tudo ponderado, se delibere, por maioria, fixar a respectiva pena conjunta(10) – entre 7 e 10 anos de prisão - em 8 (oito) anos de prisão.


8. DECISÃO

Tudo visto, o Supremo Tribunal de Justiça, reunido em conferência para apreciar o recurso, de 21Jul06, do cidadão AA, julga-o parcialmente procedente e, em conformidade,

a) Reduz a 3 (três) anos de prisão a pena individual correspondente ao seu crime, de 27Fev01, de abuso sexual de criança agravado;
b) Reduz a 7 (sete) anos de prisão a pena correspondente ao seu crime, de 21Mar04, de violação agravada;
c) Fixa em 8 (oito) anos de prisão a respectiva pena conjunta; e
d) Condena o recorrente nas custas do recurso, com 4 (quatro) UC de taxa de justiça e 1 (uma) UC de procuradoria.


Lisboa, 19 de Outubro de 2006
Carmona da Mota (relator com declaração de voto em anexo)
Pereira Madeira
Santos Carvalho
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Declaração de voto


1. Pugnei, relativamente ao crime de violação agravada, por uma pena parcelar não superior a 6 (seis anos de prisão) e, para o concurso de crimes, por uma pena conjunta não superior a 7 (sete) anos de prisão, tal como o arguido, no seu recurso, sugeriu.

2. Na «avaliação» da sua personalidade, teria, desde logo, considerado – especialmente - a sua «perturbação anti-social da personalidade» (11) : «A perturbação anti-social da personalidade é considerada uma variação do desenvolvimento psicológico (e não uma doença mental, como alteração qualitativa do psiquismo) e que produz comportamentos de inadaptabilidade, estando associados com desordens da vida: litígio, desemprego, comportamento violento; as perturbações da personalidade envolvem a desarmonia dos afectos, do controlo dos impulsos, das atitudes e condutas; manifestam-se preferencialmente no relacionamento interpessoal e podem comprometer o desempenho social e ocupacional; uma das características mais marcantes de uma personalidade anti-social é apresentar sentimentos deficitários de empatia e de consideração pelos demais, incapacidade de sentir culpa ou remorso pelos actos danosos infligidos a outras pessoas (...)».

3. Até porque as “personalidades psicopáticas” – para além de «fazerem sofrer a sociedade» - também «sufren por su anormalidad» (Schneider, Las Personalidades Psicopaticas, Barcelona, 1961, pág. 27).

4. Aliás, «o instinto sexual não é “absolutamente incontrolável”, mas é muito limitadamente controlável. A nossa margem de manobra na acção é pequena, muito mais pequena que em qualquer outro domínio. E a nossa margem de manobra nos pensamentos e desejos é quase nenhuma. É natural que um sistema de valores (como o cristianismo) proponha determinadas escolhas éticas, nomeadamente no comportamento sexual. Cada um as aceita ou não e ninguém tem nada com isso. Mas imaginar que o comportamento humano (nomeadamente o sexual) está inteiramente submetido à nossa racionalidade é uma falsidade grotesca. (...) Vem no Santo Agostinho» (Pedro Mexia, http://estadocivil.blogspot.com)

5. Por outro lado, também teria conferido um especial «relevo» à «análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)» (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, § 521), sendo certo que o arguido, contando agora 38 anos de idade, não tem antecedentes criminais, está preventivamente preso desde 20Abr05 (há, pois, quase um ano e meio) e vem mantendo na cadeia «um comportamento adequado às normas, não registando qualquer sanção disciplinar».

6. Convocaria ainda, para tanto, o chamado «dever de compaixão», que «pressupõe que o tribunal tenha em consideração todas as razões do contexto social e da história da pessoa, que podem explicar ou eventualmente atenuar a sua responsabilidade. O dever de compaixão, no fundo, é uma ideia de justiça que considera na sua plenitude a pessoa que está a ser julgada, não apenas pelo que fez mas também pelo que é. (...) É possível interpretar o direito penal de acordo com a Constituição e o princípio da dignidade da pessoa humana, princípio que inclui a ideia de que o Estado de Direito é um Estado de justiça e a ideia de que a responsabilidade jurídica é a responsabilidade pessoal, não a responsabilidade objectiva ou da pessoa média mas da pessoa concreta. (...) Temos que suspeitar que, na realidade, não somos tão livres quanto isso. (...). O mal é «o» injustificável. E poucas coisas são injustificáveis. O mal pelo mal, o mal radical é muito raro e, de alguma maneira, todo o mal e o sofrimento produzido têm, como contrapartida, um contexto. (...) Toda a culpa tem a sua desculpa, há um universo de desculpa, de contexto. (...) Nos nossos juízes há uma rigidez no sentido de a culpa não ser devidamente pesada, ponderada. Utilizam-se muito as ficções da pessoa média, o que uma pessoa normal faz, os padrões da normalidade, E eu estou contra isso: deve-se moderar a utilização dos padrões e dar plena relevância à identidade da pessoa. Cada pessoa é um mundo» (12) )

7. Enfim, e «numa época [como esta] em que a obsessão com a pedofilia atingiu as raias do absurdo» (13), é preciso recordar que «o direito penal não é moral e a pena não é uma descida às profundezas dos infernos» (14) . E ter sempre presente que «o penalista fica na mão com uma pessoa, o criminoso» e, por seu intermédio, com «toda a condição humana, a pessoa em todos os seus condicionalismos» (15).
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(1) Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I-473.
(2) Com o benefício de apoio judiciário (fls. 553), na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
(3) «Assim, no ACSTJ de 05.05.05 - Rec. n° 1001/05/53 em que se escreveu: "I - A doutrina indica algumas das situações exteriores que, diminuindo consideravelmente a culpa do agente, poderão estar na base de uma continuação criminosa: - ter-se criado, através da primeira actividade criminosa, um certo acordo entre os sujeitos; - voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime, que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa: - perduração do meio apto para realizar o delito que se criou ou adquiriu para executar a primeira conduta criminosa; a circunstância de o agente, depois de executar a resolução criminosa, verificar haver possibilidades de alargar o âmbito da sua actividade. II - No caso, resulta ter sido o próprio arguido a criar e a dominar o condicionalismo favorável à concretização do seu propósito criminoso quanto ao cometimento dos crimes em questão, não tendo surgido, assim, por acaso, tais circunstâncias exógenas ou exteriores em ordem à facilitação ao seu objectivo em vista, de modo a conduzirem-no para a reiteração das descritas condutas, antes estas apresentaram-se conscientemente procuradas por ele próprio para concretizar a sua intenção o que, obviamente, exclui uma continuada solicitação exterior que o tenha arrastado para o crime, e traduz uma inequívoca persistência delituosa com manifesta intensidade dolosa". E, por sua vez, no ACSTJ de 22.02.06 - Rec. nº 4399/05/33: "Mas, para além das circunstâncias espaciais e temporais se não verificarem - não existe proximidade temporal entre todas as infracções, as mesmas ocorreram em locais diferentes e a própria actuação nem sequer é homogénea - as circunstâncias invocadas pelo recorrente (proximidade física e de relacionamento, por via do parentesco), ao invés de diminuírem consideravelmente a culpa, acentuam a censurabilidade da conduta, face ainda às limitações do quadro físico e mental da ofendida, que o arguido bem conhecia, tudo de molde a afastar a prática de um crime continuado".
(4) «O crime continuado apresenta-se como um fracasso psíquico, sempre homogéneo, do agente perante a mesma situação de facto, suposto, porém, que o agente não revele uma personalidade que se deixe facilmente sucumbir perante situações externas favoráveis e que, por essa fragilidade, facilmente não supere o grau de inibição relativamente a comportamentos que preenchem um tipo legal de crime» (STJ 17-03-2004, recurso 140/04-3, conselheiros Henriques Gaspar, Políbio Flor, Soreto de Barros e Armindo Monteiro)
(5) Ora, um dos «pressupostos do crime continuado», será justamente - além da «plúrima violação do mesmo tipo legal de crime ou de vários tipos legais de crime que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico», da sua «execução por forma essencialmente homogénea», da «a persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminua consideravelmente a culpa do agente e de que «cada uma das acções seja executada através de uma resolução e não com referência a um desígnio inicialmente formado de, através de actos sucessivos, ofender o mesmo bem jurídico» - a «proximidade temporal das respectivas condutas» (STJ 16-05-2002, recurso 1096/02-5, conselheiros Dinis Alves, Carmona da Mota, Pereira Madeira e Simas Santos).
(6) Assim, passando, definitivamente, «de uma figura protectora e securizante [como, apesar de tudo, seria suposto] para alguém ameaçador da sua integridade física e psicológica».
(7) «O fundamento da diminuição da culpa correspondente ao crime continuado deve encontrar-se no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto, pelo que pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito» (STJ 29-10-2003, recurso 2012/03-3, conselheiros Políbio Flor, Soreto de Barros, Armindo Monteiro e Flores Ribeiro)
(8) Anabela Miranda Rodrigues, O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena, RDCC 12-2, Abr/Jun02.
(9) «Nestas circunstâncias, compreende-se que à medida das necessidades assim determinadas corresponda um quantum exacto de pena: o desvalor do facto é agora valorado à luz das necessidades individuais e concretas de socialização, que, sendo inexistentes, desencadearão, sucessivamente, o funcionamento das necessidades de intimidação e de segurança individuais»
(10) «Parece correcto considerar o nosso sistema como de pena conjunta. Com uma precisão: a “nossa” pena conjunta não parece pertencer ao grupo das que tratam somente de encontrar o melhor modo de cumprir simultaneamente todas as sanções em que o condenado incorreu (...) A consideração conjunta dos factos e da personalidade não serve apenas esse desígnio. Julga-se que melhor se descreve com uma pena voltada para ajustar a sanção – dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares – à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes. O método da exasperação (...) não se mostra (...) ajustado à pena conjunta portuguesa. A moldura do concurso parece dever considerar-se uma verdadeira moldura, isto é, não apenas um limite definitivo ao agravamento da maior pena concreta, mas um convite a seguir o normal caminho de determinação de uma pena “definitiva”, se bem que acrescentando-lhe um critério peculiar. Contar com os comuns factores de concretização da sanção, sabendo que agora se avalia uma “unidade relacional de ilícito”, portadora de um significado global próprio, a censurar de uma vez só a um agente» (Cristina Líbano Monteiro, RPCC 16-1)
(11) Cfr. exame psiquiátrico de 14Jul05, a fls. 480 e ss..
(12) Fernanda Palma, Pública, 07Mai06.
(13) Maria Filomena Mónica, Público/Mil Folhas, 24Jun06.
(14) Figueiredo Dias, 10Mai06, Museu de Serralves, apud Público de 11Mai06.
(15) Ibidem.