Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
810/1997. L1. S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ÁLVARO RODRIGUES
Descritores: EXPROPRIAÇÕES
INTERESSADO
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 06/28/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO DAS EXPROPRIAÇÕES - EXPROPRIAÇÕES POR UTILIDADE PÚBLICA
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - RECURSOS
Doutrina: - J. Osvaldo Gomes, Expropriações por Utilidade Pública, Texto Editora, 1997, pág. 319 e ss..
- P. Elias da Costa, Guia das Expropriações por Utilidade Pública, 2003, pág. 54.
Legislação Nacional: CÓDIGO DAS EXPROPRIAÇÕES (CE/91): - ARTIGOS 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 56.º, 58.º, 59.º, 63.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 722.º, N.º1, 734.º AL. A), 754.º, N.º2.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
-DE 08.7.2004, PROCESSO N.º 0433389, EM WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I- Para cabal entendimento do conceito jurídico de interesse, convém ter presente a sua matriz etimológica, que é a expressão latina inter est, ou seja, o que está entre duas realidades, isto é, a pessoa que experimenta determinada necessidade e o bem apto a satisfazer essa mesma necessidade (quod inter est, interesse).

II- No caso das indemnizações por expropriação por utilidade pública, a lei de 1991, tal, aliás, como a de 1999, não considera interessada, para esse efeito, toda e qualquer pessoa que experimenta uma carência perante o bem expropriado, dada a enorme amplitude que, se assim fosse, tal termo comportaria, com as inevitáveis consequências económicas para a entidade expropriante.

III- Pelo contrário, teve a lei (CE/91) a preocupação de gizar o conceito de interessado para tais efeitos, estipulando expressis verbis no nº 1 do artº 9º que «para os fins deste Código, consideram-se interessados, além do expropriado, os titulares de qualquer direito real ou ónus sobre o bem a expropriar e os arrendatários de prédios rústicos e urbanos».

IV- Sobre este conceito, Elias da Costa escreveu que «devem ser considerados como interessados os titulares de direitos reais limitados, distinguindo-se entre eles os direitos reais de gozo, os direitos reais de garantia e os direitos reais de aquisição» ( P. Elias da Costa, Guia das Expropriações por Utilidade Pública, 2003, pg 54).

V- Exige a lei, portanto, neste nº 1 do artº 9º, que haja título que confira direitos reais de gozo, de garantia ou de aquisição, não bastando invocar uma simples situação de tolerância por parte do dono do bem expropriado, para que o beneficiário da tolerância possa invocar a qualidade de interessado.

VI- O arrendatário de prédios rústicos e urbanos também é considerado interessado, sendo, porém, o arrendatário habitacional de um prédio urbano considerado como interessado, apenas quando prescinda de realojamento equivalente, adequado às suas necessidades e às daqueles que com ele vivam em economia comum à data da DUP, como comanda o nº 2 do referido preceito legal.

VII- Não basta, destarte, que se alegue como se utilizava o terreno ou parcela expropriada, para que se considere cumprido o ónus de alegação dos factos integrantes da sua qualidade de interessado para efeitos do nº 1 do citado artº 9º do CE/91.

VIII- Cumpre, para tanto, alegar e provar a titularidade de um direito real de gozo, de garantia ou de aquisição ou alegar e provar expressa e inequivocamente a sua situação de arrendatário.

Decisão Texto Integral:

Acordam no SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

RELATÓRIO

Em 02.10.1997 Lusoponte – Concessionária Para a Travessia do Tejo, S.A., remeteu ao Tribunal Cível de Lisboa o processo de expropriação litigiosa relativo à parcela 0.18A do troço “Nó com a CRIL (km 0 + 499,002).

A Lusoponte alegou ser concessionária da obra pública “Nova Travessia Rodoviária sobre o Tejo em Lisboa” e ter sido investida na qualidade de entidade expropriante de todos os imóveis necessários à referida obra pública. São expropriados da aludida parcela, na qualidade de proprietários, conforme inscrição G-1 que consta da certidão do registo predial do prédio, AA e BB.

É interessada na expropriação da aludida parcela CC, Lda, com sede na Av. ........., n.º ........, Sacavém, concelho de Loures. A aludida parcela 0.18A, expropriada, tem a área de 2 715 m2, a desanexar do prédio denominado Q.........., com a área total de 7996 m2, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Loures sob a ficha n.º0000000000, inscrito na matriz rústica sob parte do artigo 92 da Secção C. Foi emitida (em 31.12.1995) declaração de utilidade pública da expropriação da aludida parcela, foi efectuada vistoria «ad perpetuam rei memoriam», a expropriante tomou posse administrativa da parcela, foi proferido acórdão arbitral de atribuição de indemnização, foram celebrados acordos entre a expropriante, os expropriados e a interessada, que titularam os adiantamentos que a expropriante efectuou àqueles por conta da indemnização, procedeu-se ao depósito da quantia correspondente ao montante da indemnização atribuída aos expropriados no acórdão arbitral, com a dedução da quantia adiantada extrajudicialmente pela expropriante aos expropriados.

A expropriante concluiu, requerendo que fosse ordenada a adjudicação da propriedade da referida parcela 0.18A, que se destina a integrar o domínio público do Estado e se ordenasse a notificação da decisão arbitral aos expropriados, à interessada e à expropriante.

Em 08.10.1997 foi proferido despacho que adjudicou a propriedade da aludida parcela de forma a integrar o domínio público do Estado, nos termos do n.º 2 da Base IX das Bases de Concessão à expropriante e ordenou a requerida notificação da decisão arbitral.

Tanto a expropriante, como os expropriados e a interessada interpuseram recurso da decisão arbitral.

Na pendência dos aludidos recursos em 21.11.2003 foi, a requerimento dos expropriados (ou melhor, dos seus herdeiros, como tal habilitados no processo), proferido despacho pelo Sr. Secretário de Estado das Obras Públicas, autorizando a reversão da parcela expropriada.

Em 12.10.2009 o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa proferiu sentença de adjudicação aos Autores (os referidos herdeiros dos expropriados) da titularidade da parcela supra referida.

A aludida sentença transitou em julgado em 22.01.2010.

Em 31.5.2010 foi proferido despacho que julgou extinta a instância, por impossibilidade superveniente da lide, respeitante aos recursos da decisão arbitral interpostos pela expropriante e pelos expropriados, prosseguindo o processo tão só para apreciação do recurso interposto pela interessada CC, Lda, na medida em que tal foi requerido por esta.

Em 18.11.2010 foi proferido despacho em que se deu como concluídas as diligências de prova e se determinou que a expropriante e a interessada CC, Lda fossem notificadas para, no prazo de 20 dias, apresentarem as suas alegações, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 63.º do Código das Expropriações (de 1991).

Em 13.12.2010 a expropriante veio arguir a nulidade de tal despacho, na medida em que não havia sido apresentado pelos peritos laudo contendo a necessária avaliação pericial.

À cautela, em 16.12.2010 a expropriante juntou aos autos alegações elaboradas ao abrigo do art.º 63.º do CE de 1991, nas quais pugnou pela improcedência do recurso da decisão arbitral interposto pela interessada CC, Lda.

Em 24.01.2011 também a interessada CC, Lda arguiu nos autos a nulidade consistente na falta de laudo pericial.

Em 15.02.2011 foi proferido despacho que indeferiu a arguição de nulidade deduzida pela expropriante e bem assim a arguição de nulidade deduzida pela interessada CC, Lda.

Na mesma data, 15.02.2011, foi proferida sentença que negou provimento ao recurso interposto pela interessada CC, Lda, da decisão arbitral.

A interessada agravou do aludido despacho e apelou da sentença.

A agravante terminou pedindo que o despacho recorrido fosse substituído por outro que admitisse a nulidade arguida pela agravante e, consequentemente, julgasse sem efeito o despacho que dera como concluídas as diligências de prova e ordenasse a notificação dos Srs. peritos para procederem à junção aos autos do relatório de avaliação, seguindo-se os ulteriores termos até final.

A expropriante contra-alegou quanto ao agravo, pugnando pela sua improcedência.

O Tribunal a quo sustentou o despacho recorrido.

A Relação de Lisboa negou provimento ao Agravo e julgou a Apelação improcedente confirmando, em consequência, as decisões recorridas.

Novamente inconformada, CC, Lda veio interpor recurso de Revista para este Supremo Tribunal de Justiça, rematando as suas alegações, com as seguintes:

         CONCLUSÕES

1.         A recorrente não se conforma com a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que não a qualificou como interessada e não a integrou no conceito constante do art. 9º do Código das Expropriações.

2.         A decisão de que aqui se recorre está inquinada de um vício na sua formação.

3.         A recorrente alegou os factos que suportavam a sua qualidade de interessada.

4.         O tribunal de 1ª instância violou o direito da recorrente à produção de prova.

5.         O Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão de que aqui se recorre considerou, erradamente, que a recorrente não tinha feito prova dos factos que suportavam a qualidade de interessada.

6.         É aqui que está o cerne da questão.

7.         Ao não ter sido permitido, em sede de 1ª instância à recorrente a produção de prova, foi violado o direito da mesma a poder provar os factos por ela alegados.

8.         Factos esses que, a serem dados como provados, permitiriam integrar a recorrente no conceito de interessada previsto no já mencionado art. 9º do Código das Expropriações.

9.         E, em consequência, a omissão da avaliação pericial e a falta de junção do laudo, constitui uma nulidade e influi na decisão da causa ao contrário do julgado pelo tribunal de 1ª instância e pelo tribunal a quo.

10.       Entre outros, o tribunal a quo violou o art. 513º do CPC e o art. 59° do Código das Expropriações de 1991.

   Pede, assim, que seja julgado procedente o presente recurso e, em consequência, seja revogado o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e, em sua substituição, seja proferida decisão que permita à recorrente produzir prova, designadamente testemunhal, sobre os    factos    alegados    que    suportam     a qualidade   de   interessada   e   ser  julgada procedente a nulidade da falta de junção aos autos   do   laudo   pericial,   com   as   legais consequências.

Foram apresentadas contra-alegações, defendendo a Recorrida Expropriante a manutenção do decidido.

         Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, pois nada obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, sendo que este é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, nos termos, essencialmente, do artº 684º, nº 3 do CPC, como, de resto, constitui doutrina e jurisprudência firme deste Tribunal.

FUNDAMENTOS

         Das instâncias, vem dada como provada a seguinte factualidade:

1 - Por despacho de 18.09.1995 do Sr. Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, publicado no Diário da República nº 230, II Série, de 04.10.1995 foi declarada a utilidade pública e atribuído o carácter urgente à expropriação da parcela de terreno designada por 0.0000 na planta parcelar junta a fls. 8, com área total de 2.715m2, do prédio inscrito na matriz urbana da freguesia de Sacavém sob o artº 92 Secção ... Parte e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Loures sob o nº 0000, sendo o prédio do qual é desanexado denominado Q.........., que confronta a norte com “A.............., S.A”, a Sul com a via pública, a Nascente com o Lote 00000 e a Poente com Escola .........., por ser indispensável à obra denominada “Nova Travessia Rodoviária sobre o Tejo em Lisboa – nó com a CRIL (km0+000 a km 0+499,002).

2 - Em 19.12.1995, tomou a Expropriante posse administrativa da mesma parcela, conforme auto de fls. 36 dos presentes autos (I volume).

3 - Em 04.06.1996 foi subscrito pela Lusoponte-Concessionária para a Travessia do Tejo, S.A” e DD na qualidade de sócio gerente da “CC, Ldª” o “Protocolo de Acordo”, constante a fls. 52 a 58 dos autos (I volume), onde consta, para além do mais, Com vista a facilitar a reinstalação das actividades desenvolvidas nas parcelas (…) e 0.18A, (…) a Lusoponte adianta no presente acto (…) a CC, Ldª a quantia de Esc: 10.000.000$00, às quais é dada no presente acto a competente quitação. (…).

2. Na eventualidade de as decisões judiciais mencionadas no número antecedente, fixarem quantitativos indemnizatórios inferiores aos adiantamentos ora efectuados, o segundo outorgante por si e na qualidade de sócio gerente da firma CC, Ldª, compromete-se a devolver os quantitativos excedentes, acrescidos de juros de mora calculados à taxa legal em vigor. (…)”.

3 - Por despacho proferido em 08.10.1997, constante a fls. 66, foi adjudicada a propriedade da parcela 0.18A ao Estado Português.

4 - A parcela 0.18A encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial de Loures a favor de AA e BB.

         Em aditamento aos factos que já vinham fixados da 1ª Instância, a Relação considerou o seguinte:

Para além do que já consta supra no Relatório, interessa para o caso o seguinte circunstancialismo de facto:

1. Em 10.3.2003 os peritos nomeados no âmbito dos recursos da decisão arbitral juntaram aos autos as respostas aos quesitos, que constituem fls 907 a 911 do processo.

2. Nas respostas aos quesitos não consta qualquer avaliação respeitante à parcela expropriada nem qualquer parecer acerca das indemnizações devidas pela expropriação.

3. A expropriante e a interessada CC, Lda foram notificadas das respostas periciais aos quesitos em 07.6.2010.

4. A expropriante e a interessada CC, Lda foram notificadas no dia 22.11.2010, por via electrónica, do despacho que deu como concluídas as diligências de prova e determinou que a expropriante e a interessada CC, Lda fossem notificadas para, no prazo de 20 dias, apresentassem as suas alegações, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 63.º do Código das Expropriações (de 1991).

Da questão da admissibilidade do presente recurso

Nas suas contra-alegações, a Recorrida levantou a questão da inadmissibilidade do presente recurso de Revista, tendo em vista, essencialmente, as razões condensadas nas conclusões 1ª a 11ª da referida peça processual, que aqui e agora importa transcrever:

1. Não há fundamento legal que sustente, nos termos dos artigos 721.° e 722.° do CPC, o presente recurso de revista.

2. Com efeito, não está em causa no presente recurso uma violação da lei substantiva — o fundamento específico do recurso de revista — , mas alegadas violações da lei de processo, sendo que as mesmas não se subsumem a nenhuma das situações em que o artigo 722.° do CPC admite a revista com fundamento em violação de lei processual.

3. São, essencialmente, duas as questões levantadas: o facto de alegadamente não ter sido permitida à recorrente a produção de prova e a alegada nulidade por omissão da avaliação pericial.

4. Quanto à primeira questão, conclui-se que a recorrente falhou na demonstração e prova da sua qualidade de interessada, não porque não lhe tivessem sido dadas oportunidades, mas porque simplesmente os factos trazidos ao processo e apreciados quer pelo Tribunal de 1.ª instância quer pelo Tribunal da Relação de Lisboa conduziram, face à inexistência de título susceptível de conduzir a tal qualificação, à decisão da sua não qualificação como interessada.

5. Na verdade, no requerimento de interposição de recurso da decisão arbitral a recorrente juntou prova documental, a qual foi apreciada pelo Tribunal, e indicou o seu perito, não tendo arrolado prova testemunhal, sendo certo que à luz do artigo 56.° do CE 91, deve o recorrente logo no requerimento de interposição do recurso da decisão arbitral expor as razões da sua discordância, "oferecendo todos os documentos, requerendo as demais provas e designando o seu perito."

6. O Acórdão recorrido contém, por isso a correcta interpretação e aplicação das normas dos artigos 56.° e 58.° do CE/91, que determinam, expressamente, que com o recurso da decisão arbitral e resposta deverão ser oferecidos todos os documentos e requeridas as demais provas.

7. Com efeito, no momento processual em que ocorre a interposição do recurso da decisão arbitral, e conhecidos que são já os contornos e o objecto do litígio — a determinação da indemnização — impõe-se às partes o dever de, desde logo, juntarem todos os documentos e requerer as demais provas de que queiram socorrer-se em abono das suas teses de defesa dos valores indemnizatórios que entendem adequados.

8. Conclui-se, assim, que o Tribunal a quo apreciou todas as provas oferecidas que poderiam conduzir à qualificação da recorrente como interessada na presente expropriação e, face à inexistência de título susceptível de conduzir a tal qualificação, decidiu não lhe atribuir qualquer indemnização, sendo que o facto de "utilizar" a parcela na sua actividade económica se revela manifestamente insuficiente para esse efeito.

9.   Na verdade, e conforme resulta do "Protocolo de Acordo" celebrado, em 4 de Julho de 1996, entre a expropriante e o Senhor DD, em nome individual e na qualidade de sócio gerente da sociedade CC, esta última desenvolvia a sua "actividade" em diversas outras parcelas expropriadas — a saber, parcelas 0.05, 0.11 e 0.18 — , salientando-se, então, que nos processos de expropriação em questão relativos à parcela 0.05 e 0.11 não foi reconhecida, pelo Tribunal, a qualidade de interessados a DD nem à sociedade CC, não existindo, ainda, decisão no processo da parcela 0.18.

10. Assim, no processo relativo à parcela 0.11 decidiu o Tribunal, quanto à CC, "Contudo não logrou esta sociedade demonstrar a que título ê que ocupava tal parcela, designadamente a sua qualidade de arrendatária comercial. Dos autos não consta qualquer contrato de arrendamento ainda que celebrado por anterior proprietário, nem qualquer recibo comprovativo da renda, assinada pelo anterior proprietário ou pelo falecido AA, Para esta conclusão é irrelevante que a expropriante a tenha ou não considerado como interessada e lhe tenha pago qualquer quantia por conta da indemnização a receber. Para tal efeito aquela contentou-se com a aparência do direito incumbindo sempre ao tribunal, na ausência de acordo, a declaração da qualidade de interessado."

11.       Outra não poderia ter sido a conclusão a retirar nos presentes autos, pelo que não se trata de coarctar, nas palavras da recorrente, o direito da mesma a poder provar os factos por si alegados mas da falência da demonstração e prova de uma qualidade  – a de interessada — que não reveste.

Cumpre, antes do mais, decidir da questão de admissibilidade do recurso levantada pela Recorrida Lusoponte.

Não tem razão a Recorrida!

Na verdade, embora o fundamento específico do recurso de Revista seja a violação da lei substantiva, a verdade é que, no caso presente, vem alegada violação de disposições do Código das Expropriações, especialmente do artº 9º do referido diploma legal, tal como do artº 59º do mesmo Código, a par de violação de normas de índole adjectiva, o que encontra acolhimento  no nº 1 do artº. 722º do CPC.

         Doutra banda, é importante ter presente que a decisão recorrida pôs ela própria fim ao processo, ao julgar improcedente a Apelação e esta se havia debruçado sobre a sentença da 1ª Instância que decidiu que a ora Recorrente CC, Lda, não demonstrou ter a qualidade de interessada, nos termos  definidos no artº 9º do Código das Expropriações de 1991 ( doravante designado por CE/91), pelo que não tem direito a ser indemnizada em consequência da expropriação verificada, julgando improcedente o recurso interposto pela mesma, o que equivale a dizer que também esta sentença pôs fim ao processo relativamente a esta interveniente processual.

Sendo assim, não está o presente recurso abrangido pela limitação relativa à alegação de violação de normas de índole processual, ou seja, não está vedado tal recurso pelo disposto no nº 2 do artº 754º do mesmo compêndio legal adjectivo, isto porque tal preceito não é aplicável na situação prevista na alínea a) do artº 734º do mesmo diploma legal ( decisão que ponha termo ao processo), que é exactamente a situação sub judicio.

Face ao exposto, é admissível o presente recurso de Revista.

 Do objecto do recurso

Relativamente ao objecto do recurso, a única questão decidenda que aqui importa equacionar e resolver é a de saber se a ora Recorrente deve ser considerada interessada, de acordo com o conceito constante do artº. 9º do Código das Expropriações de 1991.

Atentemos, antes do mais, no conceito geral do termo interesse cuja matriz é a expressão latina inter est, ou seja, o que está entre duas realidades, a pessoa que experimenta determinada necessidade e o bem apto a satisfazer a mesma necessidade (quod inter est, interesse).

No caso das indemnizações por expropriação por utilidade pública, a lei de 1991, tal como a de 1999, não considera interessada, para esse efeito, toda e qualquer pessoa que experimenta uma carência perante o bem expropriado, dada a enorme amplitude que, se assim fosse, tal termo comportaria, com as inevitáveis consequências económicas para a entidade expropriante.

Pelo contrário, teve a lei (CE/91) a preocupação de gizar o conceito de interessado para tais efeitos, estipulando expressis verbis no nº 1 do  artº 9º que «para os fins deste Código, consideram-se interessados, além do expropriado, os titulares de qualquer direito real ou ónus sobre o bem a expropriar e os arrendatários de prédios rústicos e urbanos».

Sobre este conceito, Pedro Elias da Costa escreve que «devem ser considerados como interessados os titulares de direitos reais limitados, distinguindo-se entre eles os direitos reais de gozo, os direitos reais de garantia e os direitos reais de aquisição» ( P. Elias da Costa, Guia das Expropriações por Utilidade Pública, 2003, pg 54).

Exige a lei, portanto, neste nº 1 do artº 9º, que haja título que confira direitos reais de gozo, garantia ou de aquisição, não bastando invocar uma simples situação de tolerância por parte do dono do bem expropriado, para que o beneficiário da tolerância possa invocar a qualidade de interessado.

O arrendatário de prédios rústicos e urbanos também é considerado interessado, sendo, porém, o arrendatário habitacional de um prédio urbano considerado como interessado, apenas quando prescinda de realojamento equivalente, adequado às suas necessidades e às daqueles que com ele vivam em economia comum à data da DUP, como comanda o nº 2 do referido preceito legal.

No caso vertente, diz a Recorrente que no seu requerimento de interposição de recurso da decisão arbitral, a mesma alegou que desde 1991 vinha utilizando a parcela expropriada para seu estabelecimento comercial e como sede, na sequência de acordo nesse sentido com o proprietário.

Que aí dispunha de diverso material que comercializava  e que efectuada a expropriação da parcela, o mencionado acordo caducou ope legis, o que lhe causou prejuízos que quantificou, para efeitos indemnizatórios, em € 470.000.

Alega que a fls 14 do acórdão recorrido, a Relação afirmou que «de tudo o exposto resulta que a apelante continua a não indicar em que termos se fazia a alegada utilização da parcela expropriada. Não articulou nem demonstrou que essa utilização assentava numa posição juridicamente consolidada».

Porém, segundo alega, ao contrário do afirmado pela Relação, no recurso que interpôs da decisão arbitral, a Recorrente fez constar do seu articulado o modo como procedia à utilização da parcela expropriada, conforme se pode verificar dos artºs 2º a 12º da petição de recurso.

Contudo, não pôde demonstrar a factualidade aí vertida, porquanto o tribunal da 1ª Instância coarctou-lhe essa possibilidade, pois em 18-11-2010 proferiu despacho, no qual deu por concluídas as diligências de prova e determinou a apresentação de alegações nos termos do artº 63º do CE de 1991.

Não tem razão a Recorrente, ressalvado o respeito que é devido.

Com efeito, não basta que alegue como utilizava o terreno ou parcela expropriada, para que se considere cumprido o ónus de alegação dos factos integrantes da sua qualidade de interessada para efeitos do nº 1 do citado artº 9º do CE/91.

Cabia à Recorrente alegar e provar a sua titularidade de um direito real de gozo, de garantia ou de aquisição ou alegar e provar expressa e inequivocamente a sua situação de arrendatária.

Como bem afirma a Recorrida Lusoponte, os artºs 56º e 58º do CE/91, que é o que se aplica ao caso sub-judicio como tem sido consensualmente aceite entre as partes e entendido pelos Tribunais de Instância, são expressos em determinar que com o recurso da decisão arbitral ( artigo 56º) e resposta ( artº 58ª) deverão ser oferecidos todos os documentos e requeridas as demais provas.

         O que a Recorrente alegou é que utilizava a parcela 0.18A desde 1991 para seu estabelecimento comercial, na sequência de acordo nesse sentido com o proprietário.

É por demais evidente que tal matéria é insuficiente para que se integre na previsão normativa do falado artº 9º do CE/91.

Não basta que tenha havido uma utilização embora com o acordo do dono do parcela, para que se possa recortar a figura de qualquer direito real ou uma situação locatícia.

Sendo assim, inteira razão assiste à decisão recorrida no seu discurso fundamentador, designadamente no seguinte trecho que, pese embora a sua amplitude, importa aqui transcrever:

«De tudo o exposto resulta que a apelante continua a não indicar em que termos se fazia a alegada utilização da parcela expropriada. Não articulou nem demonstrou que essa utilização assentava numa posição juridicamente consolidada. Conforme se ponderou no acórdão da Relação do Porto, de 08.7.2004, “não pode ser reconhecido o direito a ser indemnizada em processo de expropriação por utilidade pública uma sociedade que apenas alega ter a sua sede no prédio em que se insere a parcela expropriada, sem invocar qualquer título para o efeito.” (www, dgsi-itij, processo 0433389) A apelante não invocou (nem provou) a constituição de uma relação jurídica de arrendamento, nem qualquer outra, para além da mera aceitação pelo proprietário do terreno de que essa utilização se fizesse, o que não ultrapassa a precariedade própria de uma situação de mera tolerância, ou de um “comodato precário, legitimador de desocupação a todo o tempo, a pedido do respectivo dono” (referido acórdão da Relação do Porto, de 08.7.2004) – bem aquém de um direito fundamentador da atribuição de indemnização no âmbito de uma expropriação. É que, contrariamente ao pretendido pela apelante, a obrigação indemnizatória da entidade expropriante não se alarga a todas as situações de facto que se traduzam na fruição de benefícios associados à coisa expropriada. A obrigação indemnizatória pressupõe que a essas situações de facto corresponda o reconhecimento de direitos na ordem jurídica, seja em termos absolutos, próprios de direito real, seja em termos de direito obrigacional, na modalidade, tida em consideração pelo legislador dada a sua especial relevância económica, do arrendamento.

É verdade que na fase administrativa do processo a expropriante e a Santos Ferreira & Silva, Ldª celebraram o “Protocolo de Acordo” supra referido no n.º 3 da matéria de facto. Mas, conforme se ponderou na sentença recorrida, “não é a expropriante quem define quem são os interessados para efeitos de expropriação e de atribuição da justa indemnização.” Quem o faz é a lei, ou melhor, não tendo havido fixação amigável de indemnização (como não houve no caso sub judice), o apuramento definitivo das indemnizações devidas será efectuado pelo tribunal, à luz das disposições legais, seja no que concerne à titularidade do direito à indemnização, seja no que concerne à quantificação da indemnização. Acresce que o aludido acordo assumiu foros de provisoriedade, conforme resulta do seu teor, destinando-se a facilitar a célere libertação da parcela a favor da expropriante. No processo expropriativo a entidade expropriante deve lidar com todos aqueles que se apresentam com a aparência de interessados, sem que tal a vincule definitivamente ao reconhecimento dessa qualidade.

Alegou ainda a apelante que em 12.01.2001 foi proferida decisão judicial que reconheceu, com força de caso julgado, a sua qualidade de interessada.

Também aqui a apelante carece de razão.

A aludida decisão apenas decidiu, definitivamente (sem prejuízo da possibilidade legal, que aliás veio a ser accionada, de reversão – art.º 5.º do CE), adjudicar ao Estado a propriedade da parcela expropriada. Não se debruçou, nem tal lhe competia, acerca dos direitos substantivos da CC, Ldª. É certo que na sequência da decisão de adjudicação se determinou que se procedesse à notificação do despacho e ainda da decisão arbitral à expropriante, aos expropriados “e à interessada”. Mas é evidente que tal apenas pressupõe o reconhecimento da legitimidade processual da Santos Ferreira & Silva para discutir nos autos as suas pretensões, sem que daí resulte juízo definitivo acerca da bondade das mesmas.

Quanto à alegada indevida omissão da produção de prova testemunhal, já foi apreciada supra, tendo-se concluído pela sua improcedência».

         Nem se diga, como faz a Recorrente, que a avaliação pericial e o respectivo laudo seria essencial para a prova da titularidade de Recorrente relativa a qualquer direito real ou a uma situação locatícia.

A prova pericial nos processos expropriativos destina-se a facultar os dados  necessários à fixação da justa indemnização, por isso e para isso se requerendo os conhecimentos especializados dos peritos.

A titularidade de direitos, em matéria de imóveis, demonstra-se essencialmente  pela prova documental (certidões registrais ou instrumentos contratuais) sendo certo que, como bem enfatizaram as Instâncias e, aliás, resulta cristalinamente da lei, cabia à ora Recorrente o ónus de oferecer todos os documentos e requerer as demais provas logo no seu requerimento de interposição do recurso da decisão arbitral, como expressamente dispõe o artº 56º do Código das Expropriações de 1991 do seguinte teor:

«No requerimento da interposição do recurso da decisão arbitral, o recorrente exporá logo as razões da discordância, oferecendo todos os documentos, requerendo as demais provas e designando o seu perito».

Ora, segundo reza a decisão recorrida, a ora Recorrente CC, Lda. «alegou que desde 1991 vinha utilizando a parcela expropriada para seu estabelecimento comercial, na sequência de acordo nesse sentido com o seu proprietário (art.º 3.º). Aí dispunha de diverso equipamento que a recorrente comercializava (artigos 6.º a 8.º). Efectuada a expropriação da parcela, o mencionado acordo caducou ope legis (art.º 4.º), o que causou à recorrente prejuízos que a recorrente quantificou, para o efeito de atribuição de indemnização, em não menos de Esc. 94 400 000$00 (€ 470 865,20).

Em resposta ao recurso do acórdão arbitral interposto pela CC, Ldª a expropriante pugnou pela sua improcedência apontando, nomeadamente, o facto de a recorrente se limitar “a referir a existência de um “acordo” com base no qual vinha “utilizando parte da referida parcela”, concluindo, a expropriante, que “a realidade é que a presença do interessado na parcela dos autos não tinha na sua base um qualquer título jurídico, tratando-se, assim, de uma ocupação precária”, “a qual não pode, para efeitos do cálculo da justa indemnização, merecer a mesma ponderação que um contrato de arrendamento”.

Na sentença ora alvo da apelação, consignou-se, quanto à fundamentação de facto, “que o Tribunal não deu como provado que a “CC, Ldª” seja arrendatária da fracção expropriada, porquanto não foi apresentado qualquer título bastante que comprovasse tal direito ou qualquer factualidade que, a provar-se, fosse subsumível ao disposto no artº 1029º, nº 3 do Cód. Civil, vigente à data. Acresce que inexiste qualquer contrato de arrendamento reduzido a escritura pública (regime de forma do contrato de arrendamento exigido pelo Dec. Lei nº 321-B/90, de 15.10., aplicável à data alegada pela recorrente (1991), por força do disposto no artº 12º, nº 2, do Cód. Civil), sendo certo que ainda que existisse documento particular, tal seria nulo por força do disposto no artº 220º, do Cód. Civil.

E, na fundamentação de direito, ponderou-se, na sentença recorrida, que CC, Ldª, “não é expropriado, porquanto esta qualidade está reservada a quem é proprietário (cfr. artº 1038º, do Cód. Civil), e a mesma não consta no registo como proprietária ou co-proprietária da identificada parcela. Acresce que o referido prédio não está omisso na matriz, nem a recorrente é havida publica e notoriamente como titular do direito, razão pela qual tal não poderá ser aplicável o disposto no nº 3 do artº 9º do CE91. Por outro lado, não poderá entender-se a recorrente como arrendatária, como parece ser a sua pretensão, porquanto um contrato de arrendamento para o exercício do comércio ou indústria, celebrado em 1991, tinha obrigatoriamente que ser celebrado por escritura pública (cfr. artº 7º, nº 2, al. B) do RAU, aprovado pelo Dec. Lei nº 321-B/90, de 15.10., aplicável ao caso dos autos por o regime da forma do contrato de arrendamento ser regulado pela lei vigente ao tempo da sua celebração (cfr. artº 12º, do Cód. Civil).

Não tendo sido celebrado sob a forma de escritura pública o alegado contrato de arrendamento é nulo, por força do disposto no artº 220º, do Cód. Civil, sendo a nulidade invocável a todo o tempo e podendo o tribunal declará-la oficiosamente (cfr. artº 286º, Cód. Civil). A nulidade tem efeito retroactivo (cfr. artº 289º, nº 1, Cód. Civil) tudo se passando como se acto não existisse e não produzisse efeitos».

Note-se, ademais, que no procedimento expropriativo campeia o princípio da legitimidade aparente, pelo que, como escreve José Osvaldo Gomes, «não é exigível uma averiguação exaustiva dos titulares do imóveis expropriados, sob pena de se tornar impossível a concretização em certos casos  das expropriações.

Nestes casos, a falta ou inexacta identificação dos interesses só assumirá relevância e determinará a invalidade do acto declarativo em casos muito limitados, maxime se houver dolo ou culpa grave da entidade expropriante e/ou beneficiário da expropriação» (J. Osvaldo Gomes, Expropriações por Utilidade Pública, Texto Editora, 1997, pg. 319 e ss).

Por sua vez, o nº 3 do artº 9º do CE/91 assim dispunha:

3 - Serão tidos por interessados os que no registo predial, na matriz ou em títulos bastantes de prova que exibam figurem como titulares dos direitos a que se referem os números anteriores ou, sempre que se trate de prédios omissos ou haja manifesta desactualização dos registos e das inscrições, aqueles que pública e notoriamente forem tidas como tais.

Não logrou a ora Recorrente CC, Lda., pelos meios próprios e no momento processual adequado, fazer prova da titularidade dos direitos que eventualmente lhe confeririam a qualidade de interessada para efeitos do falado artº 9º do CE/91 e, nem sequer alegou factualidade integrante de titularidade, limitando-se a invocar a utilização consentida pelo respectivo dono, daquela parcela que acabou por ser expropriada, pelo que não se lhe pode reconhecer, como doutamente decidiram as Instâncias, o status de interessada para efeitos indemnizatórios no presente processo expropriativo.

Claudicam, em face do quanto exposto se deixa, todas as conclusões da alegação da Recorrente, o que linear e irrefragavelmente conduz à improcedência do presente recurso.

         DECISÃO 

Face a tudo quanto exposto fica, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em se negar a Revista.

Custas pela Recorrente, por força da sua sucumbência.

Processado e revisto pelo Relator.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 28 de Junho de 2012

Álvaro Rodrigues (Relator)

Fernando Bento

João Trindade