Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2968/16.6T8PNF.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL
DIREITO DE REGRESSO
FALTA DE HABILITAÇÃO LEGAL
CULPA IN VIGILANDO DO MENOR
Data do Acordão: 10/03/2019
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACOS ILÍCITOS / RESPONSABILIDADE DAS PESSOAS OBRIGADAS À VIGILÂNCIA DE OUTREM.
Doutrina:
- Mafalda Barbosa, Direito de regresso no caso de seguro automóvel obrigatório, Cadernos de Direito Privado, n.º 50.º, p. 45 ; Comentário ao Ac. do STJ de 12-05-2016, processo n.º 108/09, in Ab Instantia, n.º 6;
- Manuela Chichorro, O Contrato de Seguro de Responsabilidade Civil Automóvel, p. 213;
- Pessoa Jorge, Responsabilidade Civil dos Obrigados à Vigilância de Pessoa Naturalmente Incapaz, p. 100;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Ciivl, anotação ao artigo 491.º.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 491.º.
REGIME DO SISTEMA DE SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL, APROVADO PELO DL N.º 291/2007, DE 21 DE AGOSTO: - ARTIGO 27.º, N.º 1, ALÍNEA D).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 23-11-1999, PROCESSO N.º 99A844;
- DE 03-07-2003, PROCESSO N.º 03B1419;
- DE 06-05-2008, PROCESSO N.º 08A1042;
- DE 11-09-2012, PROCESSO N.º 8937/09;
- DE 21-01-2014, PROCESSOS N.º 21/09;
- DE 30-10-2014, PROCESSO N.º 496/03;
- DE 24-11-2014, PROCESSOS N.º 476/2000;
- DE 28-04-2016, PROCESSOS N.º 1885/13, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. Falta habilitação legal ao condutor que, embora sendo titular de uma licença para conduzir a classe de motociclos A1 (até 125 cm3 e com potência não superior a 11 kw), conduzia um motociclo de classe superior (com 124 cm3, mas com a potência de 21,3 kw).

II. Nos termos do art. 27º, nº 1, al. d), do DL nº 291/07, de 21-8, o exercício do direito de regresso contra o condutor que deu causa ao acidente, em caso de falta de habilitação legal para conduzir, não depende da prova de um nexo de causalidade entre a falta de habilitação legal e o acidente.

III. O direito de regresso previsto no art. 27º, nº 1, al. d), do DL nº 291/07, pode ser exercido não apenas contra o condutor sem habilitação legal, como ainda contra os que incumpriram o dever de vigilância que, nos termos do art. 491º do CC, respondem com aquele em regime de solidariedade.

IV. A responsabilidade in vigilando dos progenitores relativamente a filho menor conexa com acidente de viação, nos termos do art. 491º do CC, não dispensa a apreciação das diversas circunstâncias, designadamente da maior ou menor maturidade do filho ou da sua capacidade natural para atos do quotidiano.

V. Mas estando previsto na lei que apenas a partir da maioridade é possível obter a licença para conduzir determinados veículos, a condução de tais veículos por quem detenha menos de 18 anos e, por isso, sem estar legalmente habilitado a fazê-lo, permite presumir uma situação de incapacidade natural, tendo em conta os maiores riscos que estão associados a tal condução.

VI. Em tais circunstâncias, recai sobre os progenitores o ónus de demonstração de que cumpriram o seu dever de vigilância ou de que os danos se teriam produzido ainda que o tivessem cumprido, nos termos do art. 491º do CC.

VII. Num acidente causado pelo filho de 16 anos de idade que, apesar de estar legalmente habilitado a tripular veículos automóveis da categoria A-1, circulava com um motociclo da categoria A-2, praticamente com o dobro da potência para que estava habilitado, o facto de a condução do veículo ter ocorrido sem conhecimento dos progenitores é insuficiente para afastar a sua responsabilidade perante a Seguradora que exige o direito de regresso, tanto mais que se apurou, por outro lado, que o menor já conduzira o veículo em ocasiões anteriores.

Decisão Texto Integral:
I - AA - Comp. de Seguros, S.A., intentou a presente ação com processo comum de declaração contra BB e CC, casados entre si, e contra o seu filho DD, pedindo a condenação solidária no pagamento da quantia de € 34.074,87 e juros de mora vencidos até 4-11-16, no montante de € 348,74, e vincendos.

Alegou que no dia 20-7-15, pelas 16,15 h, na localidade e freguesia de …, …, ocorreu um acidente, no qual interveio o veículo ligeiro de mercadorias, com a matrícula ...-...-TS, pertencente a EE, Ldª, e conduzido por FF, e o motociclo Honda, com a matrícula ...-...-GO, pertencente aos RR. BB e CC, conduzido pelo filho de ambos, o 3º R. menor, DD, imputando o mesmo acidente à culpa efetiva e exclusiva deste.

Em consequência do acidente, a A. suportou a reparação dos danos sofridos pelo veículo ...-...-TS, no montante de € 1.879,00, e pagou ao menor transportado no veículo GO, GG, a quantia de € 30.000,00, para o ressarcir de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu na sequência do acidente; suportou ainda o pagamento da quantia de € 2.225,25 a título de tratamentos e reembolso de despesas ao pai do menor GG.

A responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação do motociclo ...-...-GO encontrava-se transferida para a A.

O R. DD conduzia o motociclo GO com autorização dos seus pais, sendo que apenas estava habilitado para a condução de motociclos com potência não superior a 11kw e aquele detinha 21,3kw.

Os RR. contestaram, alegando que, atendendo às circunstâncias do local e do acidente, o condutor do GO não foi culpado pela ocorrência do acidente.

Desde 30-4-15 que o DD encontra-se habilitado com a carta de condução da categoria A1, que permite a condução de motociclos de cilindrada não superior a 125 cm3 e potência até 11kw. Ora, o veículo GO tinha uma cilindrada inferior a 125kw, em concreto, é de 124 cm3, concluindo pela improcedência da ação.

Procedeu-se a julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolveu os RR. do pedido.

A A. apelou e a Relação julgou a ação procedente e condenou os RR. no pedido.

Os RR. interpuseram recurso de revista em que suscitaram as seguintes questões essenciais:

- Nulidade por falta de fundamentação da condenação dos 1º e 2º RR. ao abrigo do alegado dever de vigilância sobre o 3º R., seu filho;

- Se a habilitação legal para conduzir que o R. DD detinha impede o exercício do direito de regresso, como se decidiu no Ac. do STJ de 30-10-14, relativamente a um caso de caducidade da licença de condução;

- Ponderação casuística das circunstâncias ligadas à condução sem a habilitação legal, como se decidiu no Ac. do STJ de 28-4-16, abdicando de uma interpretação literal do preceituado no art. 27º, nº 1, al. d), do DL nº 291/07;

- Verificação casuística do nexo de causalidade entre a falta de habilitação legal e o acidente, excluindo a responsabilidade do R. DD pelo acidente que não ocorreu pelo diferencial de potência, nem pela falta de experiência na condução;

- Falta de prova de que os progenitores do 3º R. sabiam que o mesmo já havia andado mais vezes com o veículo;

- Falta de prova de factos que revelem a existência de culpa in vigilando dos 1º e 2º RR., sendo que os factos apurados afastam a presunção de culpa dos mesmos RR.

Houve contra-alegações.

Cumpre decidir.


II – Factos provados:

1. No dia 20-7-15, cerca das 16h 15m, na localidade e freguesia de …, …, no entroncamento, em ângulo reto, da R. da Ribeira na R. da Presa, ocorreu um embate entre o motociclo de marca Honda, com a matrícula ...-...-GO, pertencente aos RR. BB e mulher e tripulado pelo filho de ambos, o R. DD, e o veículo ligeiro de mercadorias de marca Citröen, modelo Berlingo com a matrícula ...-...-TS, pertencente a EE, Ldª, e conduzido por FF.

2. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 1., o motociclo GO circulava na R. da Presa no sentido D… …/P… e, a determinado momento, surgiu na via onde seguia o motociclo GO, o veículo TS conduzido por FF que naquele momento acedia à R. da Presa, apresentando-se pela direita, atento o sentido de marcha do motociclo GO.

3. O veículo TS procedia da R. da Ribeira em direção à R. da Presa, na qual pretendia ingressar e voltar a sua esquerda, no sentido de D… I… e o motociclo GO circulava na R. da Presa, em direção a L…, pela metade direita da rua.

4. Assim que o veículo TS entrou na R. da Presa o seu condutor parou e imobilizou o veículo na perpendicular em relação ao eixo da via, ocupando parte da hemi-faixa de rodagem afeta ao sentido de marcha do sentido D… I…/P… .

5. Quando se encontrava com o veículo parado na R. da Presa, o condutor do veículo TS efetuou um gesto com a mão, dando indicação ao condutor do motociclo GO para seguir em frente.

6. A R. da Presa descreve ali uma reta de boa visibilidade, em bom estado de conservação.

7. Na R. da Ribeira não havia qualquer sinalização a retirar a prioridade ao condutor do veículo TS.

8. O condutor do veículo TS parou ao chegar ao dito entroncamento, a fim de se inteirar do trânsito a circular nesta rua, depois do que avançou lentamente, e quando atravessava a hemi-faixa de rodagem da R. da Presa em que acabava de ingressar foi embatido, a meio da sua lateral esquerda, pela dianteira do motociclo GO.

9. O condutor do motociclo GO avistou o veículo TS parado e nem tentou contorná-lo pela sua dianteira, pela outra meia faixa de rodagem e nem sequer travou.

10. O condutor do motociclo GO circulava a uma velocidade não inferior a 60km/h.

11. O R. DD havia conduzido poucas vezes o motociclo que tripulava.

12. O sinistro ocorreu num entroncamento de uma estrada municipal, que estabelece a ligação entre a cidade de ... e as freguesias de ..., …, …, … .

13. A R. da Ribeira surge num local escondido, desnivelado em relação à estrada principal, da qual é difícil a perceção da sua existência, uma vez que surge num ângulo reto, por detrás de um muro e a uma cota de terreno inferior ao nível da cota da estrada principal.

14. A R. da Ribeira tem pavimento em pedra (paralelos), com algum asfalto no imediato local de acesso à R. da Presa, delimitado por muros em pedra, com uma largura aproximada de 3 metros, sendo o entroncamento em causa com uma das estradas mais movimentadas do concelho de … que estabelece a ligação de … com as freguesias de …, …, … e … .

15. Na berma da estrada principal foi colocada e existe uma linha longitudinal contínua, que continua no local de entroncamento das vias em causa e, em frente ao caminho, existe um espelho por forma a permitir àqueles que, provindos do caminho, pretendam aceder à estrada principal, assegurando o acesso à mesma, desde que nenhum veículo aí circule, por forma a evitar acidentes.

16. O proprietário do motociclo GO, o R. BB, transferiu para a A. a responsabilidade civil por danos emergentes da sua circulação, por meio de contrato de seguro titulado pela apólice 75…8, válido e eficaz à data do sinistro.

17. No assento de trás do motociclo GO era transportado, como passageiro gratuito, GG, de 16 anos de idade, …, amigo do R. DD, o qual, na queda e projeção, sofreu fratura do rádio à direita, secção do extensor do terceiro dedo da mão esquerda e fratura da clavícula esquerda.

18. No local do acidente foi assistido pelos bombeiros que o imobilizaram em plano duro e com colar cervical e foi transportado para o CH… (Centro Hospitalar … e …, mais conhecido por Hospital …), onde foi radiografado, recebeu tratamento, ficou internado no Serviço de Ortopedia e foi sujeito a fixação percutânea com dois fios de Kuntchner e sutura do tendão extensor e imobilização dos dois membros superiores.

19. Teve alta hospitalar em 22-7-15 e foi seguido em consulta externa da ortopedia, tendo retirado o material de osteossíntese cerca de 30 dias depois. Realizou cerca de 40 sessões de Medicina Física e de Reabilitação (MFR) e fisioterapia na Clínica … e teve alta clínica, curado, em 3-12-15.

20. Os pais do menor GG, por intermédio do seu advogado, e a A. acabaram por fixar a indemnização ao menor na quantia de € 30.000,00, sendo € 11.000,00 pelo dano biológico, € 11.000,00 pelo dano moral e repercussão na vida, € 6.000,00 por despesas com tratamentos e € 2.000,00 pelo auxílio de 3ª pessoa, indemnização que a A. pagou.

21. A A. pagou ainda € 1.592,84 de tratamentos hospitalares e € 407,41+€ 225,00 de reembolsos ao pai do GG, HH.

22. A reparação dos danos causados no veículo TS importou na quantia de € 1.879,00 que a A. pagou.

23. O R. DD é filho dos RR. BB e CC, com quem vivia na mesma morada, aos seus cuidados e sob a sua guarda, proteção e vigilância.

24. À data do sinistro o R. DD tinha 16 anos de idade e era solteiro e … .

25. O R. DD estava habilitado, desde 30-4-15, a tripular veículos a motor da categoria A1, ou seja veículos de duas rodas (motociclos) de cilindrada não superior a 125cm3 e potência não superior a 11 kw.

26. O motociclo GO era da marca HONDA, modelo NSR-125R, com motor de propulsão a gasolina, com 124 cm3 de cilindrada e potência de 21,3 kw.

27. O motociclo GO é do R. BB, que o tinha comprado duas ou três semanas antes da ocorrência do sinistro para sua utilização própria.

28. O R. DD tinha e tem um outro veículo a si destinado e que o utilizava - o ciclomotor da marca Macal, modelo Minareli, de matrícula ...-JZ-..., com 50 cm3 de cilindrada - sem qualquer necessidade de utilização do motociclo GO.

29. À data do sinistro, o R. BB encontrava-se no estrangeiro, em …, …, onde permaneceu pelo período de uma semana e a R. CC não viu o filho a sair de casa com aquele motociclo, pois estava fora de casa quando tal aconteceu.

30. Os RR. BB e esposa não sabiam que o motociclo GO estava a ser utilizado naquele dia.

31. Por carta de 2-8-16, a A. solicitou aos RR. o reembolso das quantias pagas, mas eles recusaram.


Entre os factos considerados não provados contam-se os seguintes:

- (O R. DD) tripulava o GO com autorização e permissão de seus pais, que lho emprestaram para ir dar um passeio com o amigo GG, do qual regressavam, permissão e empréstimo que já acontecera mais vezes.

- Quer os progenitores, quer o DD, sempre transmitiram à A., nomeadamente ao “perito” que os contactou aquando da averiguação do sinistro, que não autorizaram o filho a utilizar o GO.

- Sucedeu que a pessoa que se intitulou como perito solicitou ao menor que redigisse uma declaração cujo teor foi exclusivamente ditado por aquele, sob pretexto daquela declaração se tornar necessária “para o processo ficar concluído mais depressa”.

- Foi então pelo perito ditado o texto da declaração, que constitui o documento junto a fls. 22 sem que, contudo, a alusão ao “empréstimo e autorização” corresponda à verdade. Não obstante, por insistência do perito, acederam a assinar aquela declaração, que foi pedida, repete-se, sob pretexto de se tornar necessária para o processo ser resolvido mais depressa.

- O condutor do GO circulava a uma velocidade não inferior a 70km/h.



III - Decidindo:

1. Questões a apreciar:         

- Importa apreciar a responsabilidade pela ocorrência do acidente, sendo que os RR. recorrentes defendem que o 3º R. nenhuma culpa teve, considerando as circunstâncias em que o mesmo ocorreu.

- Em segundo lugar, e no pressuposto da existência de responsabilidade do 3º R. pelo acidente de viação, apurar se o reembolso da quantia despendida pela A. Seguradora com o ressarcimento dos danos causados a terceiros pode ser reclamado deste R., enquanto condutor de um veículo para o qual não detinha suficiente habilitação.

- Finalmente importa apurar se essa obrigação recai também sobre os 1º e 2º RR., na sua qualidade de progenitores, a título de responsabilidade civil decorrente da violação do dever de vigilância do seu filho, nos termos do art. 491º do CC.


2. Quanto à responsabilidade pela ocorrência do embate entre os veículos:

O embate entre o veículo ligeiro de mercadorias e o motociclo tripulado pelo 3º R. ocorreu numa ocasião em que este seguia por uma estrada principal, numa zona em que, à sua direita, entroncava um caminho público de onde provinha um veículo ligeiro de mercadorias. Não existindo qualquer sinal que modificasse as regras da prioridade, o facto de este veículo ligeiro provir de um caminho secundário não lhe retirava a prioridade de passagem, ainda que naturalmente obrigasse o respetivo condutor a cuidados redobrados, tendo em vista evitar o embate com outros veículos que, como o motociclo conduzido pelo 3º R., circulavam pela estrada principal com mais movimento de veículos.

Está provado, no essencial, que “a R. da Ribeira (de onde provinha o veículo ligeiro de mercadorias), surge num local escondido, desnivelado em relação à estrada principal, da qual é difícil a perceção da sua existência, uma vez que surge num ângulo reto, por detrás de um muro e a uma cota de terreno inferior ao nível da cota da estrada principal”. Por outro lado, “a R. da Ribeira tem pavimento em pedra (paralelos), com algum asfalto no imediato local de acesso à R. da Presa, delimitado por muros em pedra, com uma largura aproximada de 3 metros, sendo o entroncamento em causa com uma das estradas mais movimentadas do concelho de … que estabelece a ligação de … com as freguesias de …, …, … e …”. E “na berma da estrada principal foi colocada e existe uma linha longitudinal contínua, que continua no local de entroncamento das vias em causa e, em frente ao caminho, existe um espelho por forma a permitir àqueles que, provindos do caminho, pretendam aceder à estrada principal, assegurando o acesso à mesma, desde que nenhum veículo aí circule, por forma a evitar acidentes”.

Apesar de não existir qualquer sinal de perda de prioridade, estas circunstâncias naturalmente impeliam o condutor do veículo ligeiro a entrar com moderação na estrada principal por onde circulava o motociclo tripulado pelo 3º R., cuidado que esse condutor adotou. Todavia, o embate não ocorreu por via de alguma manobra menos diligente do mesmo, mas simplesmente porque o 3º R., tripulando o motociclo, não atentou na presença daquele veículo ligeiro de mercadorias, por forma a ceder-lhe a passagem ou, porventura, a passar pela sua dianteira enquanto o mesmo estava imobilizado.

Com efeito, o condutor do veículo ligeiro “parou ao chegar ao dito entroncamento, a fim de se inteirar do trânsito a circular nesta rua, depois do que avançou lentamente, e quando atravessava a hemi-faixa de rodagem da R. da Presa em que acabava de ingressar foi embatido, a meio da sua lateral esquerda, pela dianteira do motociclo GO”. Ademais, “assim que o veículo TS entrou na R. da Presa, o seu condutor parou e imobilizou o veículo na perpendicular em relação ao eixo da via, ocupando parte da hemi-faixa de rodagem afeta ao sentido de marcha do sentido D… I…/P…”. Além disso, nessa posição, “o condutor do veículo TS efetuou um gesto com a mão, dando indicação ao condutor do motociclo GO para seguir em frente”, sendo que a “R. da Presa descreve ali uma reta de boa visibilidade, em bom estado de conservação”. Verificava-se, ademais, que “o condutor do motociclo GO avistou o veículo TS parado e nem tentou contorná-lo pela sua dianteira, pela outra meia faixa de rodagem e nem sequer travou”. Por fim, ainda está provado que “o condutor do motociclo GO circulava a uma velocidade não inferior a 60km/h, sendo que o R. DD havia conduzido poucas vezes o motociclo que tripulava”.

Por conseguinte, apreciando globalmente das circunstâncias em que ocorreu o acidente, em face do disposto nos arts. 483º, 486º e 503º, nº 3, do CC, é possível concluir que a responsabilidade pelo mesmo é de imputar integralmente ao 3º R. que, além de outros aspetos, circulava a uma velocidade superior à permitida dentro de localidades, ou seja, a mais de 50 kms/h, e não atentou na presença do obstáculo interposto pelo veículo ligeiro, nem efetuou a manobra que era apropriada: ceder a prioridade ou, como lhe foi indicado pelo condutor do veículo ligeiro, passar pela sua dianteira sem embater neste.


3. Quanto ao direito de regresso relativamente ao 3º R.:

3.1. O 1º R., proprietário do motociclo GO, transferira para a A. Seguradora a responsabilidade civil por danos emergentes da sua circulação. Foi nesta qualidade que esta ressarciu os terceiros lesados dos danos que decorreram do acidente: o proprietário do veículo ligeiro, dos danos patrimoniais (€ 1.879,00); o passageiro transportado no motociclo, pelos danos corporais, cuja indemnização foi fixada na quantia de € 30.000,00 (€ 11.000,00 pelo dano biológico, € 11.000,00 pelo dano moral e repercussão na vida, € 6.000,00 por despesas com tratamentos e € 2.000,00 pelo auxílio de 3ª pessoa, indemnização que a A. pagou), a que acresceu ainda a quantia de € 1.592,84 de tratamentos hospitalares e € 407,41+€ 225,00 de reembolsos ao pai do GG, HH.

Nos termos do art. 27º, nº 1, al. d), do DL nº 291/07, de 21-8, uma vez satisfeita a indemnização, a seguradora tem direito de regresso contra o condutor que não estiver legalmente habilitado.

No caso, os RR. recorrentes impugnaram o pressuposto objetivo do direito de regresso, mas a matéria de facto apurada não se revelou favorável, uma vez que o 3º R. DD, embora estivesse “habilitado, desde 30-4-15, a tripular veículos a motor da categoria A1, ou seja veículos de duas rodas (motociclos) de cilindrada não superior a 125cm3 e potência não superior a 11 kw”, não detinha licença para conduzir o motociclo que conduzia, o qual, embora com uma cilindrada de 124 cm3, tinha uma “potência de 21,3 kw”, quase duplicando aquela para a qual o referido R. tinha habilitação legal.

Este facto não deixa qualquer dúvida quanto à falta de habilitação legal do 3º R. para tripular o motociclo do seu pai que interveio no acidente, enquadrando-se na previsão do art. 27º, nº 1, al. d).


3.2. Porém, a sentença de 1ª instância considerou que, apesar disso, não havia direito de regresso, por falta de demonstração do nexo de causalidade entre a falta de habilitação legal e o concreto acidente. Já a Relação inverteu tal solução, considerando que tal não obstava ao reconhecimento do direito de reembolso a favor da A.

Assim é de facto.

O preceito referido não exige qualquer nexo de causalidade entre a falta de habilitação e o acidente, como, aliás, este mesmo coletivo já o assumiu no Ac. do STJ de 28-4-16, 1885/13 (www.dgsi.pt), de cujo sumário consta, além do mais, o seguinte:

A Seguradora que, ao abrigo de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, satisfaz a indemnização decorrente de acidente de viação pode exercer o direito de regresso contra o condutor do veículo abarcado pelo contrato de seguro que não esteja legalmente habilitado.

O exercício do direito de regresso não depende da prova do nexo de causalidade entre a falta de habilitação para a condução e o acidente em que interveio o condutor”.

Também neste caso são aplicáveis as considerações que então foram feitas acerca do regime do direito de regresso em face da falta de habilitação legal:

“Assim, relativamente aos casos em de condução sem habilitação legal – a única situação que verdadeiramente importa apreciar no caso concreto – tanto a lei anterior, como a atual fazem depender o direito de regresso apenas da demonstração de dois elementos objetivos: imputação subjetiva do acidente ao condutor que tenha levado a asseguradora a responder perante o lesado e demonstração de que o mesmo não detinha habilitação legal para conduzir. Não se exige, pois, a demonstração do nexo de causalidade entre o ilícito e o acidente ou seja, não é necessário à Seguradora demonstrar que foi a falta de habilitação legal para conduzir que foi determinante para a ocorrência do acidente.

É este o sentido dominante na jurisprudência deste Supremo, como o revela o Ac. do STJ, de 25-10-12 (www.dgsi.pt) que, além de recusar para a condução sem habilitação legal a interpretação anteriormente fixada pelo AcUJ nº 6/02 para a condução com alcoolemia, concluiu que “a Seguradora, para fazer valer o direito de regresso em caso de falta de habilitação legal do condutor, não tem de provar o nexo de causalidade adequada entre a falta de carta e o acidente”. Tese igualmente assumida nos Acs. do STJ, de 21-01-14, 21/09, de 24-10-06 e de 3-7-03, 03B1419 (todos em www.dgsi.pt).

Para além do apoio objetivo no texto legal, esta interpretação encontra justificação racional no facto de a falta de habilitação influir na capacidade do condutor para cumprir as regras estradais, potenciando os riscos associados à condução de veículos. Subjaz ainda ao mesmo regime a necessidade de assegurar e manter um controlo periódico sobre a aptidão de cada condutor para conduzir um veículo a motor cuja circulação representa riscos para terceiros (cf. M. Manuela Chichorro, em O Contrato de Seguro de Responsabilidade Civil Automóvel, p. 213).

Enfim, o direito de regresso reconhecido às Seguradoras representa “um mecanismo de salvaguarda do sentido da responsabilização do lesante, evitando a absoluta socialização do risco” e constitui um instrumento que preserva o equilíbrio contratual que é quebrado com a condução do veículo segurado por alguém sem a necessária habilitação (cf. Mafalda Barbosa, “Direito de regresso no caso de seguro automóvel obrigatório”, nos Cadernos de Direito Privado, nº 50º, pág. 45).

3. O anteriormente afirmado não significa necessariamente que o preceito em análise apenas consinta uma interpretação mecanicista que leve a desconsiderar quaisquer outras circunstâncias que tenham rodeado o acidente. Ao invés, em determinado contexto, pode justificar-se um esforço suplementar que conduza a um resultado diverso do anteriormente referido.

Aos Tribunais, quotidianamente confrontados com uma multiplicidade de situações, não têm escapado outras vias para a resolução de concretos litígios.

É com esse sentido que deve ser interpretada a salvaguarda que foi deixada na fundamentação do AcUJ nº 11/15 (sobre exercício do direito de regresso em casos de abandono do sinistrado), apelando, se necessário, aos princípios da adequação e da proporcionalidade em face de “infrações muito pouco relevantes no plano ético-jurídico, cometidas em circunstâncias que justificariam um reduzido ou francamente atenuado juízo de censura”.

Com tal reserva procura-se evitar os excessos potenciados por uma postura lógico-formal de pendor positivista, permitindo que em determinadas circunstâncias se estabeleça a ponderação entre a gravidade da falta cometida pelo condutor responsável pelo acidente e a amplitude das consequências patrimoniais decorrentes do exercício do direito de regresso.

Semelhante cautela foi veiculada através de uma interpretação restritiva do preceito pelo Ac. do STJ, de 30-10-14, 496/03, em www.dgsi.pt, que culminou com a exclusão do direito de regresso, malgrado a falta de habilitação legal para a condução, num caso em que o condutor havia deixado caducar a licença que detinha há mais de 50 anos e que foi renovada 5 dias após o acidente, depois e ter sido medicamente atestada a sua aptidão mental e física para a condução.

Relativamente a esta e outras situações M. Manuela Chichorro acaba por defender até que o preceito que reconhece à Seguradora o direito de regresso apenas é de aplicar a casos de falta de habilitação para a condução e já não àqueles em que a habilitação legal “já não está ou não é válida” (ob. cit., pág. 213)”.


3.3. Como se defendeu em tal aresto, não estará afastada, em absoluto, a possibilidade de, em determinadas situações, se adotar um critério interpretativo que, fugindo a uma lógica meramente formal, pondere todas as circunstâncias que envolvem a condução do veículo designadamente confrontando a solução emergete do direito positivo com o princípio da proporcionalidade.

Assim foi considerado no Ac. deste STJ de 30-4-14, proferido num caso em que o condutor deixara caducar a licença que efetivamente detivera, concluindo-se m tal aresto que:

“…

III - Importa, contudo, distinguir, em consonância com o disposto no art. 130º, nº 5, do Cód. da Est., entre os casos de ausência originária de habilitação para conduzir – em que se presume ad unum a inexperiência e a falta de destreza do condutor – e os casos de caducidade do título habilitador por decurso do prazo de validade – em que se presume ad acutelam que o decorrer da idade pode produzir uma menor capacidade para o exercício da condução.

IV - Nos casos de caducidade do título habilitador da condução por decurso do respetivo prazo, impende sobre a seguradora o ónus de alegar e demonstrar o nexo de causalidade adequada entre esse facto e o acidente, sob pena de se alcançarem resultados intoleráveis”.

Porém, tal circunstancialismo excecional não encontra eco no caso concreto, já que o condutor era um jovem de 16 anos que, embora já fosse detentor de uma licença que lhe permitia conduzir veículos automóveis da classe A1, tripulava um motociclo cuja potência motriz quase duplicava aquela para o qual estava legalmente habilitado, não sendo possível extrair dos factos apurados qualquer presunção que o beneficie nem utilizar qualquer argumento capaz de atenuar a rigidez formal que decorre do já mencionado art. 27º, nº 1, al. d), do DL nº 291/07.

Com efeito, para além da objetiva falta de licença para a condução do concreto motociclo que interveio no acidente, confirmam-se os motivos que levaram o legislador a distinguir as licenças para conduzir em função das classes de veículos automóveis, graduando o acesso em função da idade e da correspondente maturidade do sujeito, no pressuposto evidente de que a falta de habilitação é suscetível de influir na capacidade do condutor para cumprir as regras estradais e dominar o veículo, potenciando o maior risco na condução de veículos.

Na verdade, o R. DD tinha apenas 16 anos de idade, sendo que a licença para conduzir o motociclo que tripulava apenas podia ser concedida a quem tivesse mais de 18 anos de idade. O regime da habilitação legal do condutor possuidor de licença da categoria A1 apenas permite conduzir veículos de potência não superior a 11 kw (art. 3º do Regulamento de habilitação legal para conduzir, DL nº 138/12, de 5-7, alterado pelo DL nº 37/14, de 3-9).

Ainda que a cilindrada do motociclo tripulado fosse inferior em 1 cm3 àquela para a qual o 3º R. tinha licença de condução, a potência do mesmo era praticamente o dobro daquela para que estava habilitado, sendo precisamente o elemento ligado à potência do motor que justifica a distinção entre licenças e o escalonamento em função da idade dos condutores, atentos os maiores riscos associados a motociclos com potência mais elevada. Daí a necessidade de, depois de atingir os 18 anos, o condutor ser submetido a avaliação médica e psicológica (arts. 27º, 29º e 33º do Regulamento).

Acresce ainda que, para além da sua comprovada falta de habilitação para a condução do motociclo que tripulava, foi o mesmo R. o causador do acidente, e as circunstâncias em que o acidente ocorreu nem sequer permitem excluir que, entre as suas causas, se inscreve precisamente a falta de habilitação legal, naturalmente ligada à menor experiência e ao menor grau de maturidade.

Tratou-se de um acidente de viação cuja dinâmica revela a responsabilidade exclusiva do 3º R., sem qualquer circunstância que imponha ou aconselhe alguma ponderação casuística que influa no exercício do direito de regresso acionado pela Seguradora do veículo interveniente.

O preceito onde a Seguradora fundou o direito de regresso visa penalizar os que, não estando legalmente habilitados, incluindo os que tenham habilitação legalmente insuficiente, conduzem veículos automóveis, respondendo a final pelos danos, desde que o acidente lhes seja imputável, sem necessidade de demonstração de um efetivo nexo de causalidade entre o acidente e a falta (ou insuficiência) de habilitação legal para conduzir.

Quando tal não seja observado pelo condutor responsável pelo acidente cujos danos a Seguradora ressarciu, o direito de regresso que a esta é reconhecido representa um mecanismo de salvaguarda do sentido da responsabilização do agente causador dos danos, evitando a absoluta socialização do risco atinente ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, constituindo também um instrumento de salvaguarda do equilíbrio do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel que é quebrado com a condução do veículo segurado por quem não tem a devida habilitação.

Por conseguinte, confirma-se a procedência da ação para o exercício do direito de regresso relativamente ao R. DD.


4. Quanto ao direito de regresso sobre os 1º e 2º RR.:

4.1. O art. 27º do DL nº 291/07 que regula o exercício do direito de regresso por parte da Seguradora não alude expressis verbis à corresponsabilidade dos sujeitos obrigados ao dever de vigilância, in casu, os progenitores do filho menor que, sem a devida habilitação legal, conduzia o motociclo e deu causa ao acidente, não obsta à condenação dos 1º e 2º RR. nos termos sobreditos.

Assim é porque o objetivo essencial de tal preceito não foi o de regular de forma exaustiva todas as relações que podem interferir no direito de regresso em casos de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, mas apenas o de enunciar, isso sim, de forma taxativa, as situações de facto de que pode emergir tal direito.

Mas detetada alguma dessas situações objetivas, nada obsta a que a imputação a outros sujeitos da responsabilidade solidária seja encontrada a partir da aplicação de regras diversas que emergem do instituto da responsabilidade civil, como ocorre nos casos em que a responsabilidade civil originária é imputada também a quem estava obrigado ao cumprimento do dever de vigilância de quem ainda não detinha a plena capacidade natural para o exercício da condução.

Foi por essa mesma razão que, ao abrigo da lei anterior (DL nº 522/85, 31-12), este mesmo Supremo Tribunal de Justiça decidiu no Ac. de 23-11-99, 99A844 (www.dgsi.pt), que a responsabilidade perante a Seguradora que suportou a indemnização de terceiros por danos causados por acidente de viação se comunicava ao autor encartado que no caso foi considerado coautor material da condução sem a habilitação legal.

É verdade que, na sua essência, o direito de regresso corresponde a um direito autónomo que se constitui na esfera jurídica do seu titular nos casos previstos na lei, distinguindo-se designadamente dos casos a que é aplicável a figura da sub-rogação legal. No entanto, em situações como a referida, o seu conteúdo acaba por ser decalcado dos direitos do lesado que a Seguradora satisfez ao abrigo do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil, sendo que o direito originário do lesado poderia ser exercido tanto sobre o autor material da condução, como sobre os progenitores que incumpriram o dever de vigilância.

Por isso, deve entender-se que a responsabilidade solidária pode ser exigida pela Seguradora que suportou a indemnização daqueles que incumpriram o dever de vigilância relativamente a quem conduzia sem a devida habilitação legal, possibilidade que se contém extensivamente na norma do art. 27º, nº 1, al. c), do DL nº 291/07.

É esta, aliás, a forma de tutelar os interesses que se detetam nestes casos em que a corresponsabilidade solidária dos obrigados ao dever de vigilância visa potenciar o exercício efetivo da responsabilidade patrimonial que naturalmente surge diminuída em casos, como o presente, em que o autor material da condução sem habilitação legal era ainda menor.


4.2. Os factos relevantes para o efeito são essencialmente os seguintes:

- O R. DD, que na data do acidente tinha, 16 anos de idade, é filho dos RR. BB e CC, com quem vivia na mesma morada, aos seus cuidados e sob a sua guarda, proteção e vigilância;

- O R. BB tinha comprado o motociclo duas ou três semanas antes da ocorrência do sinistro para sua utilização própria e o R. DD tinha e tem um outro veículo a si destinado e que o utilizava - o ciclomotor da marca Macal, modelo Minareli, de matrícula ...-JZ-..., com 50 cm3 de cilindrada - sem qualquer necessidade de utilização do motociclo GO;

- À data do sinistro, o R. BB encontrava-se no estrangeiro, em …, …, onde permaneceu pelo período de uma semana e a R. CC não viu o filho a sair de casa com aquele motociclo, pois estava fora de casa quando tal aconteceu;

- Os RR. BB e esposa não sabiam que o motociclo GO estava a ser utilizado naquele dia;

- O R. DD havia conduzido poucas vezes o motociclo que tripulava.


4.3. A sustentação para a responsabilização dos 1º e 2º RR., progenitores do 3º R., decorre da aplicação ao caso do art. 491º do CC que abarca as pessoas que, por lei ou negócio jurídico, forem obrigadas a vigiar outras, em virtude da incapacidade natural destas. Em tais circunstâncias, os obrigados ao dever de vigilância são chamados a responder solidariamente pelos danos, a não ser que demonstrem o cumprimento do dever de vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivessem cumprido, relevando, neste caso, a causa virtual.

Nos termos do art. 1877º do CC, até à sua maioridade ou emancipação, os filhos estão sujeitos às responsabilidades parentais que envolvem, além do mais, o dever de zelar pela sua segurança e saúde ou o dever de obediência, de acordo com a sua maturidade, sem embargo de ser reconhecida aos filhos a autonomia da organização da própria vida (art. 1878º do CC).

Noutra perspetiva, o art. 127º do CC regula casos em que a incapacidade decorrente da menoridade não releva, sendo que, nos termos do art. 68º do Cód. do Trabalho, é autorizada a celebração de contratos de trabalho por quem tiver mais de 16 anos e mesmo, em condições particulares, por quem tiver idade inferior, mas já tiver concluído a escolaridade obrigatória.

Tal significa, pois, que, em tese, pode haver casos em que a responsabilidade civil seja assacada apenas ao menor sem que os seus progenitores sejam chamado a corresponsabilizar-se, por se verificar que, afinal, os danos ocorreram numa esfera de atuação em que se verificava, apesar daquela menoridade, a capacidade natural, assinalando os referidos preceitos a necessidade de ponderar, para efeitos do art. 491º do CC, as especiais circunstâncias relacionadas com as pessoas sobre as quais deve ser exercida a vigilância.

Como é natural, tal dever e a correspondente responsabilidade são atenuadas à medida que os filhos vão ganhando maior autonomia, fruto do incremento da maturidade normalmente associada ao aumento da idade.

Assim o explicam Pires de Lima e Antunes Varela, na anot. ao art. 491º do CC, onde referem que:

“É completamente diferente, por ex., a posição do pai ou do tutor que deixa um menor de 17 anos andar em liberdade, e que causa um dano a terceiro, da posição do mesmo em relação a um menor de 5 ou 6 anos, a quem se dá a mesma liberdade”.

E citando Vaz Serra, refere que “as conceções dominantes e os costumes influem na maneira de exercer a vigilância, de modo a não poder considerar-se culpado quem, de acordo com elas ou com eles, deixe certa liberdade às pessoas cuja vigilância lhe cabe”.

Mafalda Barbosa, em comentário ao Ac. do STJ de 12-5-16, 108/09 (Ab Instantia, nº 6), refere também que:

“Uma questão particularmente interessante é a de saber como deve ser entendida a expressão naturalmente incapaz contida na norma. Na verdade, coloca-se o problema de saber se o incapaz a que se refere o artigo 491º CC é o incapaz de exercício de direitos. Cremos que, estando em causa a prática de atos materiais, o jurista não terá de ficar atido a uma categoria técnico-jurídica que tem o seu âmbito de aplicação bem delimitado.

Por outro lado, importa não esquecer que há menores que são imputáveis em termos delituais e que as conceções dominantes podem determinar que o dever de vigilância, por exemplo, dos pais em relação a filhos menores que atinjam uma determinada idade (v.g. 16 anos) se atenue ou esvazie.

Pense-se na hipótese do filho menor que vai estudar para fora da cidade onde os pais vivem ou de determinadas infrações cometidas em domínios onde os pais já não podem controlar a atuação dos filhos, que progressivamente se autonomizam.

A resposta à questão passará, portanto, por saber em que medida existe o dever de vigilância e qual o seu âmbito, redundando, portanto, numa indagação imputacional”.


4.4. Nos tribunais a questão também tem sido objeto de debate, variando os resultados em função das especiais circunstâncias presentes em cada caso.

Assim, decidiu-se no Ac. do STJ 24-11-14, 476/2000 (www.dgsi.pt), que:

I - Do art. 491º do CC retira-se que a responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância de outras não é objetiva, ou por facto de outrem, mas por facto próprio, devendo esse dever de vigilância ser apreciado em face das circunstâncias de cada caso.

II - O dever de vigilância de um menor não exige uma atuação constante dos pais, pois tal levaria a uma limitação da liberdade de movimentos prejudicial à educação dos filhos, contentando-se com os cuidados que, segundo um juízo de normalidade, garantam a segurança destes.”

No Ac. do STJ 11-9-12, 8937/09 (www.dgsi.pt), sintetizou-se com interesse para o caso que:

“V - O dever de vigilância deve ser entendido em relação com as circunstâncias de cada caso e tendo em conta as conceções dominantes e os costumes, não se podendo ser demasiado severo a tal respeito, tanto mais que as pessoas com dever de vigilância têm, em regra, outras ocupações; assim, não poderá considerar-se culpado a tal título quem, de acordo com tais conceções ou costumes, deixe certa liberdade às pessoas cuja vigilância lhe cabe”.

Mais lasso, no que respeita à vinculação dos pais a um estrito dever de vigilância foi o Ac. do STJ 6-5-08, 08A1042 (www.dgsi.pt), no qual se decidiu que

I) O dever de vigilância, no caso de filhos menores, incumbe aos pais, desde que não inibidos do poder parental, competindo-lhes o dever educar; a sua responsabilidade radica em ato próprio – a omissão culposa daquele poder-dever, cuja exigência e padrões são indissociáveis de concretas razões culturais e idiossincráticas.

II) O dever de vigilância, cuja violação implica responsabilidade presumida, culpa in vigilando, não deve ser entendido como uma obrigação quase policial dos obrigados (sejam pais ou tutores), em relação aos vigilandos porque, doutro modo, o não deixar, sobretudo, no que ao poder paternal respeita, alguma margem de liberdade e crescimento do menor, seria contraproducente para a aquisição de regras de comportamento e vivências compatíveis com uma sã formação do carácter e contenderia com a desejável inserção social.

III) Tal dever radica na omissão de comportamentos próprios, que são a jusante, causa de atuações desviantes ou censuráveis dos vigilandos, por isso se trata de culpa presumida e não de responsabilidade independentemente de culpa dos obrigados à vigilância.

IV) Tendo um menor de 15 anos de idade, sido também causador de um acidente de viação [onde pereceu] que originou danos – importa ponderar que, segundo as regras de experiência de vida, não seria razoável um padrão de vigilância dos pais, tão exigente ao ponto de implicar a sua presença física junto do filho, não sendo de considerar que tal dever foi omitido, por no dia do acidente o menor ter conduzido um motociclo, provando-se que os pais, não tiveram conhecimento desse facto.

V) Não é suficiente para afirmar a culpa presumida dos pais, o ter-se provado que sabiam que o filho tinha tal veículo, para cuja condução não estava legalmente habilitado.

Neste ponto, como se diz no Ac. de 6-5-98 (que também é citado no Ac. do Lopes do Rego de 29-10-09, 523/2002), o dever de vigilância, cuja violação implica responsabilidade presumida, culpa in vigilando, não deve ser entendido como uma obrigação quase policial dos obrigados (sejam pais ou tutores), em relação aos vigilandos porque, doutro modo, o não deixar, sobretudo, no que ao poder paternal respeita, alguma margem de liberdade e crescimento do menor, seria contraproducente para a aquisição de regras de comportamento e vivências compatíveis com uma sã formação do carácter e contenderia com a desejável inserção social. E citando Rodière acentua que “o pai não pode ser obrigado a exercer em todo o tempo sobre seu filho uma vigilância direta e à vista, que as suas obrigações profissionais não poderiam permitir sempre, nem a idade ou o ofício do filho autorizar sempre”, pelo que “não é… permitido nem afirmar a priori que o pai aceita de maneira irrecusável certos riscos […]. “O que os tribunais devem procurar em cada caso é o que teria feito, nas mesmas circunstâncias, um bom pai de família, consciente dos seus deveres, e comparar-lhe a conduta do interessado ”.


4.5. No caso concreto, o fator objetivo correspondente à menoridade não pode deixar de ser ponderado, tratando-se de alguém que apenas atingiria a maioridade dentro de dois anos, não sendo ainda presumivelmente detentor da plena capacidade de exercício designadamente para efeitos de condução de veículos automóveis da categoria daquele que tripulava na ocasião do acidente, pois é isso que explica o facto de a lei apenas legitimar a obtenção da correspondente licença de condução a quem tiver mais de 18 anos de idade.

A essa presunção de incapacidade natural se refere Henrique de Sousa Antunes, citando Pessoa Jorge, em Responsabilidade Civil dos Obrigados à Vigilância de Pessoa Naturalmente Incapaz, p. 100, quando alude à “possibilidade de exclusão da responsabilidade civil descrita no art. 491º do CC pelo afastamento da presunção de incapacidade natural do menor no momento da prática do facto”, posto que afirme, na p. 101, nota 277, divergindo, em parte, de Vaz Serra, numa situação semelhante à dos autos, que “a norma legal que impõe a licença de condução para o exercício desta atividade se deve entender como uma norma imperativa, presumindo, inilidivelmente, a incapacidade natural para a condução de qualquer agente sem licença para conduzir”.

Ora, no caso concreto, pese embora o facto de o R. Bruno já ser detentor de habilitação legal para conduzir uma classe de veículos, a presunção dessa incapacidade natural encontra eco no facto de, apesar da menoridade e da falta de habilitação legal, conduzir um veículo da classe A-2 de potência motriz manifestamente superior, a exigir uma mais exigente preparação que, partindo do pressuposto objetivo da maioridade, implicava, ademais, a sujeição a um exame técnico um exame de natureza psicológica.


4.6. Neste contexto, impendia sobre os 1º e 2º RR., na qualidade de progenitores daquele 3º R., a demonstração do cumprimento dos deveres de vigilância, o que não se considera verificado.

Com efeito, estamos perante um menor de 16 anos, estudante, que até já era detentor de uma licença para conduzir motociclos da classe A1 (que havia obtido no dia 30-4-2015, ou seja, cerca de 3 meses antes do acidente, como resulta do documento de fls. 194 emitido pela entidade competente), mas que nem tinha idade, nem habilitação para tripular motociclos de maior potência motriz, da categoria A2 a que correspondia o motociclo do seu pai (habilitação que apenas veio a obter em 17-5-2017, como decorre do mesmo documento).

A A. Seguradora alegou, mas não se provou que o R. DD tripulasse o motociclo com autorização e permissão de seus pais, que alegadamente lho haviam emprestado para ir dar um passeio com o amigo GG, do qual regressavam, permissão e empréstimo que já acontecera mais vezes.

Em contrapartida, provou-se que, na altura em que o acidente ocorreu, o pai do R. DD se encontrava ausente no estrangeiro, onde permaneceu pelo período de uma semana e a sua mãe, por seu lado, não viu o filho a sair de casa com aquele motociclo, pois estava fora de casa quando tal aconteceu.

Mas ocorre ainda que do enunciado fáctico apurado resulta ainda que “o R. DD havia conduzido poucas vezes o motociclo que tripulava”, facto que emergiu de uma alegação da Seguradora no art. 13º da petição, segundo a qual “o DD tinha pouca experiência de condução do motociclo que tripulava”.

Submetido a julgamento tal facto, refere-se na sentença que “a A. alegou que o R. tinha pouca experiência de condução do GO, sendo que esta afirmação é conclusiva e, por isso, o tribunal deu como provado que “o R. DD havia conduzido poucas vezes o motociclo que tripulava”.

Do que não se duvida, malgrado a natureza desgarrada daquela alegação, é que o R. DD, para além de estar a conduzir o motociclo para o qual não estava legalmente habilitado, já o havia conduzido “poucas vezes” anteriormente, sendo certo que tal motociclo havia sido adquirido pelo seu pai duas ou três semanas antes da data em que ocorreu o acidente.

Este facto deixa a descoberto o incumprimento de um dever de cuidado que os progenitores deveriam ter acautelado, sendo certo que era sobre eles que impendia o ónus de demonstração desse cumprimento.

Recaindo sobre os 1º e 2º RR. o ónus de prova do cumprimento dos deveres de vigilância ajustados à idade e à maturidade do R. DD, poderemos concluir que essa missão se mostrou algo relaxada, pois só assim se compreende que, embora sem o conhecimento dos seus pais no dia em que ocorreu o acidente, estes não demonstraram designadamente que a atuação do seu filho saiu totalmente do seu controlo, apesar de terem desenvolvido os esforços e as cautelas adequadas para o impedir de usar, aparentemente com a liberdade que a matéria de facto revela, um motociclo com uma potência muito superior àquela para que estava habilitado.

Para o efeito, revela-se insuficiente a prova de que não sabiam que o motociclo GO estava a ser utilizado naquele dia, facto que não oculta que, afinal, não terá sido apenas nesse dia que o motociclo foi posto em andamento pelo R. DD, tendo já ocorrido em momentos anteriores, apesar do maior risco que o referido motociclo comportava, associado quer à inexperiência na sua condução, quer sobretudo à falta de licença para o efeito.


4.8. Por conseguinte, é de confirmar a decisão recorrida, na parte em que imputou aos 1º e 2º RR. a violação do dever de vigilância determinante da presunção de culpa dos mesmos e os condenou em regime de solidariedade com o 3º R. no reembolso dos montantes que a Seguradora suportou em consequência do acidente de viação.


IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente, confirmando-se, com a fundamentação aduzida, o acórdão recorrido.

Custas da revista a cargo dos RR.

Notifique.


Lisboa, 3-10-19


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo (com declaração de voto junta)

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Declaração de voto

No que respeita à decisão de condenação dos 1º e 2º RR., progenitores do 3º R., votei o acórdão por entender que – não obstante subsistirem dúvidas acerca da natureza e amplitude do “direito de regresso” previsto no art. 27º, nº1, alínea d), do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, assim como acerca da conjugação entre este direito e o regime do art. 491º do Código Civil –, atendendo às finalidades de ambas as normas, será de admitir a sua aplicação extensiva aos progenitores de condutor menor não habilitado, com fundamento em incumprimento do dever de vigilância a que se encontram adstritos.

Maria da Graça Trigo