Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
22332/09.2T2SNT-ZV.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
RECURSO DE REVISTA
CIRE
CONTRADIÇÃO DE ACÓRDÃOS
Data do Acordão: 11/14/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR - INSOLVÊNCIA.
Legislação Nacional:
CIRE: - ARTIGOS 14.º, N.º1, 40.º, N.º1, ALS. B) E F), 42.º, N.º2, 128.º, N.ºS 1 E 2, 130.º, 131.º, 132.º, 140.º, N.º1, 146.º, 148.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 29-4-2008, PROCESSO N.º 400/08;
-DE 15-10-2009, PROCESSO N.º 2317/06.1TBVFR-B.S1;
-DE 19-11-2009, PROCESSO N.º 3950/07.OTJCBR-B.C1.S1;
-DE 7-7-2010, PROCESSO N.º 2/07.6TBSJM-R.P1.S1;
-DE 7-12-2010, PROCESSO N.º 1548/06.9TBEPS-D.G1.S1;
-DE 20-12-2011, PROCESSO N.º 3365/09.5TBVFR-L.P1.S1;
-DE 29-3-2012, PROCESSO N.º 7266/07.3TBLRA-E.C1.S1;
-DE 29-5-2012, PROCESSO N.º 4265/09.4TBLRA-J.C1.S1;
-DE 15-11-2012, PROCESSO N.º 481/05.6TYVNG-A.P1.S1;
-DE 16-4-2013, PROCESSO N.º 3410/10.1T2SNT-E.L1.S1.
Sumário :


Na reclamação superveniente de créditos sobre a massa insolvente, tramitada por apenso ao processo principal em que foi declarada a situação de insolvência, a admissibilidade do recurso de revista está sujeita também ao regime prescrito pelo art. 14º, nº 1, do CIRE.

A.G.

Decisão Texto Integral:

1. O recorrente interpôs contra a Massa Insolvente a presente acção para declaração da rescisão de contrato de trabalho desportivo com justa causa e reconhecimento de um crédito.

A acção foi julgada procedente na 1ª instância e improcedente na Relação, com fundamento na caducidade do direito de acção.

Do acórdão da Relação interpôs recurso de revista.

Mas em face do disposto no art. 14º, nº 1, do CIRE, tendo em conta a falta de invocação de contradição jurisprudencial, foi o recorrente notificado para se pronunciar sobre a projectada rejeição do recurso de revista.

Veio pronunciar-se no sentido negativo, alegando que aquele normativo não abarca os recursos interpostos no âmbito de acções que correm por apenso, como ocorre com a reclamação superveniente de créditos sobre a massa insolvente.

2. Não pode ser acolhida a tese que o recorrente invoca e que pretende distinguir, dentro do art. 14º, nº 1, do CIRE, os recursos de revista no processo de insolvência e nos embargos à insolvência e os recursos de revista em acções cujo objecto é a reclamação de créditos supervenientes e que são tramitadas por apenso ao processo de insolvência, para concluir pela inaplicabilidade daquela restrição quanto ao terceiro grau de jurisdição.

Invoca o recorrente dois acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça: o Ac. do STJ, de 7-12-10, proferido na revista 1548/06.9TBEPS-D.G1.S1, no âmbito de reclamação e verificação de créditos em insolvência, que efectivamente estabelece tal distinção, e o Acórdão de 16-4-13, na revista 3410/10.1T2SNT-E.L1.S1, interposto no âmbito de uma acção que correu por apenso a um processo de insolvência e em que se discutiam os efeitos da actuação do anterior administrador de insolvência que contratara a realização de uma perícia cujos honorários foram peticionados.

É minoritária a tese segundo a qual o art. 14º, nº 1, do CIRE apenas é aplicável aos recursos interpostos no processo de insolvência stricto sensu e nos embargos à sentença de declaração de insolvência, excluindo todos as demais decisões proferidas em quaisquer processos ou fases processuais que são tramitadas por apenso, sendo directamente contrariada por outros acórdãos, designadamente pelos Acs. deste STJ, de 15-10-09, na Revista 2317/06.1TBVFR-B.S1, e de 19-11-09, na revista 3950/07.OTJCBR-B.C1.S1 (segundo os quais aquele regime se aplica a todos os incidentes que corram por apenso ou nos próprios autos), de 29-3-12, na revista 7266/07.3TBLRA-E.C1.S1 (relativa a uma acção de resolução em benefício da massa insolvente) ou de 29-5-12, na revista 4265/09.4TBLRA-J.C1.S1 (numa acção de separação de bens da massa insolvente).

O elemento de interpretação que de algum modo pode ser arrolado no sentido propugnado pelo recorrente é o literal, cujo relevo absoluto é, porém, diminuto e que, além disso, em termos relativos, é ultrapassado, com larga margem, pelos elementos de ordem sistemática e racional.

3. Quanto ao elemento literal:

3.1. Segundo o referido art. 14º, nº 1, do CIRE, a restrição e o condicionamento ao recurso de revista aplicar-se-ia aos recursos interpostos “no processo de insolvência e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência”.

Daqui derivaria, na perspectiva do recorrente, a exclusão dos recursos interpostos no âmbito de todas as acções ou fases processuais ou mesmo incidentes do processo de insolvência tramitados por apenso. Ao referenciar especialmente os recursos interpostos nos embargos à insolvência, o legislador estaria a pretender excluir todos os demais recursos que não se inscrevessem especificamente no encadeamento de actos integrados no processo principal.

Assim sendo, a distinção, com efeitos tão relevantes na admissibilidade ou não de interposição de recurso de revista, sem a invocação de contradição jurisprudencial, resultaria de um aspecto meramente formal e organizacional que levou o legislador a retirar dos autos principais, em que se discute a declaração do estado de insolvência, os actos processuais relacionados com questões que, apesar de tudo, se inscrevem ainda no mesmo processo de liquidação e execução universal. Deste modo, seriam razões de pura organização burocrática dos actos processuais que ainda interessam ao processo de insolvência a determinar, relativamente às questões que correm por apenso, as condições de acesso ao terceiro grau de jurisdição.

Trata-se de uma solução que, como se disse, foi defendida no citado Ac. deste STJ, de 7-12-10, em cujo sumário se refere que “o art. 14º, nº 1, do CIRE, consagra um regime excepcional de recuso para o STJ que apenas se aplica no processo de insolvência e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, mas não em quaisquer outros dos seus apensos, como é o caso da sentença de graduação de créditos, proferida no apenso da reclamação de créditos. Assim sendo, é admissível interpor recurso de revista da sentença de graduação de créditos, no apenso de reclamação de créditos, à luz do art. 678º, nº 1, do (anterior) CPC, não havendo necessidade de invocar oposição sobre a mesma questão fundamental de direito com outros acórdãos proferidos pelas Relações ou pelo STJ”.

Já no Ac. do STJ de 16-4-13, na revista 3410/10.1T2SNT-E.L1.S1, que foi mencionado pelo recorrente, em que igualmente foi afirmada a inaplicabilidade do art. 14º, nº 1, do CIRE, tratava-se de uma “acção apensa que não tem por objecto a insolvência em si, nem integra, formal e estruturalmente, o próprio processo de insolvência ou qualquer dos seus incidentes …”.

A solução defendida no primeiro aresto é exposta também por Carvalho Fernandes e João Labareda, em anot. ao art. 14º do CIRE.

3.2. Não cremos que a norma em análise permita um tal resultado.

Admite-se que seja excessiva a especificação, no aludido preceito, dos recursos interpostos nos “embargos opostos à sentença de declaração de insolvência”.

Este meio de oposição à insolvência vem regulado nos arts. 40º a 43º do CIRE e naturalmente que não se questionaria a aplicabilidade aos recursos interpostos no âmbito da oposição do regime genericamente previsto para o “processo de insolvência”, na medida em que aqueles embargos se inscrevem, como parece evidente, no processo de insolvência, constituindo um mecanismo através do qual o devedor, em certos casos (art. 42º, nº 2), ou outros interessados a quem a lei confere legitimidade podem opor-se à sentença de declaração de insolvência.

Apesar disso, alguma utilidade pode decorrer daquela especificação sem que da mesma se extraiam a não aplicação daquele regime específico de recursos aos demais apensos ou mesmo incidentes da insolvência. É que, para além dos casos em que ao devedor, directamente afectado pela declaração de insolvência, é admitida a interposição de embargos, estes podem ser deduzidos por outros sujeitos a quem a lei reconhece a titularidade de um interesse relevante que permite impugnar a sentença de declaração com alegação de matéria de facto destinada a inverter o sentido da sentença declaratória da insolvência. Assim acontece com o cônjuge, os ascendentes ou descendentes e os afins em 1º grau da linha recta de pessoa singular considerada insolvente (art. 40º, nº 1, al. b)) ou com os sócios, associados ou membros do devedor (al. f)).

A par da legitimidade reconhecida a tais interessados para a impugnação da  sentença declaratória da insolvência, através de recurso imediato, essa legitimidade estende-se à interposição de embargos, cujo objecto não é inteiramente coincidente e que envolve essencialmente a matéria de facto que foi apreciada na sentença, justificando-se para esta eventualidade a especificação dos graus de recurso que são admissíveis da sentença que aprecie tais embargos, num regime paralelo relativamente àquele que está previsto para a sentença declaratória de insolvência.

3.3. A reclamação, verificação e graduação de créditos constitui uma fase típica do processo de insolvência. Visando este a liquidação do activo e do passivo do devedor insolvente, aquela reclamação constitui o mecanismo que visa garantir o princípio imanente a uma execução de natureza universal que implica o tratamento paritário de todos os credores, com respeito pelas especificidades que decorrem da existência de garantias atendíveis.

É por isso e para isso que cumpre aos credores deduzir as reclamações dentro do prazo que for fixado na sentença, nos termos do art. 128º, nº 1. Reclamações que, nos moldes actuais, são apresentadas perante o administrador de insolvência (art. 128º, nº 2) que as integrará em listagens de créditos reconhecidos e não reconhecidos autuadas por apenso (art. 132º) e submetidas ao contraditório, com admissão de eventuais impugnações pelos demais interessados (arts. 130º e 131º).

Culminando com a prolação de sentença de homologação (art. 130º, nº 3) ou de verificação e graduação de créditos (art. 140º, nº 1), não nos suscita dúvidas a sujeição de tal sentença ao regime de impugnação especificamente criado para o processo de insolvência, por razões de celeridade e que está contido no art. 14º.

O mesmo se diga relativamente a acções que, sendo interpostas ao abrigo do art. 146º, visem a verificação ulterior de créditos ou outros direitos e que também correm por apenso ao processo de insolvência propriamente dito (art. 148º).

3.4. Resulta, pois, evidente a fragilidade do elemento literal para determinar, relativamente a estas últimas acções, um resultado diverso daquele que inequivocamente está previsto para os recursos no “processo de insolvência” e que não pode deixar de se aplicar também aos recursos interpostos da sentença de homologação das listas de créditos elaboradas pelo administrador da insolvência ou de verificação e graduação de créditos pelo juiz.

Afinal, referindo-se a lei aos recursos “no processo de insolvência”, deixa subentendida uma amplitude bem maior do que a que existiria se acaso se referisse apenas aos recursos interpostos da “sentença de declaração de insolvência”, deste modo demonstrando uma intenção de restringir o âmbito de aplicação.

Os elementos sistemático e teleológico confirmam esta asserção.

4. Elemento sistemático:

Como se disse, a reclamação de créditos, com vista à sua verificação e graduação, constitui uma fase essencial do processo de insolvência, visando permitir que todos os credores possam reclamar os respectivos créditos a fim de serem pagos pelas forças da massa insolvente. O mesmo objectivo prossegue a reclamação ulterior de créditos, ainda que sujeita ao condicionalismo especial previsto no art. 146º.

Constituindo uma fase típica do processo de insolvência, natural é que o regime de recursos seja comum.

5. Elemento racional ou teleológico:

5.1. É este o argumento mais forte no sentido de impedir que se extraia do art. 14º, nº 1, do CIRE, o resultado pretendido pelo recorrente.

É consabida a finalidade prosseguida pelo legislador quando restringe o direito ao recurso. Tendo em conta a escassez dos meios humanos e materiais alocados à organização judiciária, a sua gestão eficaz e a necessidade de atendibilidade de outros interesses permite que o legislador ordinário condicione a interposição de recursos, respeitado que seja o princípio da proporcionalidade.

Além disso, uma vez que as principais críticas dirigidas ao sistema judiciário português surgem centradas na morosidade da resposta judiciária, um dos elementos que interfere nesse factor é o da pluralidade de graus de jurisdição.

Ao prescrever no aludido art. 14º, nº 1, a restrição específica ao terceiro grau de jurisdição, o legislador transpôs aquilo que, já na ocasião em que foi aprovado o CIRE, estava previsto para os agravos e que, além disso, também já estava previsto em diplomas avulsos que regulam designadamente as expropriações e os registos civil, predial, comercial e de firmas ou os direitos de propriedade industrial.

5.2. Não é, pois, de estranhar que, relativamente a uma matéria tão sensível como a da declaração de insolvência e liquidação do activo e do passivo do devedor, o legislador tenha intervindo no sentido de limitar o 3º grau de jurisdição, abreviando a resolução das diversas questões que podem suscitar-se relativamente à questão fundamental – declaração de insolvência – e às questões que da mesma ficam dependentes.

Se relativamente à resolução das questões de natureza civil a resposta dos tribunais é afectada pela morosidade, este aspecto prejudicial para a tutela de direitos de raiz privatística é ainda mais evidente quando está em causa a aferição da solvabilidade de empresas ou de devedores singulares. Designadamente no que às empresas concerne, uma rápida resposta judiciária é imprescindível para o saneamento do tecido empresarial e para a tutela dos interessados que gravitam na esfera de influência daquelas, abarcando tanto os fornecedores como os trabalhadores ou a generalidade dos credores.

Assim se compreende a restrição ao terceiro grau de jurisdição quando se trata de apreciar a situação de insolvência (mediante a impugnação da sentença por recurso ou intermediada pelos embargos), o que igualmente se estende à verificação do universo de credores e liquidação da universalidade de bens que integram a massa insolvente.

No Ac. de STJ, de 15-10-09, na Revista 2317/06.1TBVFR-B.S1, e de 19-11-09, na revista 3950/07.OTJCBR-B.C1.S1, foi esta a solução admitida relativamente a todos os incidentes, quer os que correm por apenso, quer os tramitados nos próprios autos).

Especificou-se no Ac. de 15-11-12, na revista 481/05.6TYVNG-A.P1.S1 a sua aplicação ao incidente de qualificação da insolvência, remetendo-nos o Ac. de 20-12-11, na revista excepcional 3365/09.5TBVFR-L.P1.S1 para a generalidade dos incidentes, com a consideração de que se encontram intrinsecamente ligados à causa principal, e no Ac. de 29-4-08, no agravo 400/08, e no Ac. de 7-7-10, no processo 2/07.6TBSJM-R.P1.S1 aos “incidentes processados ou não por apenso”.

Afinal, como acentua o Ac. do STJ, de 19-11-09, na Revista 2317/06.1TBVFR-B.S1, “não se descortina razão válida para o legislador limitar a um grau de recurso a decisão de insolvência e permitir dois graus de recurso em questões incidentais ao mesmo processo, em que estão em causa aspectos menos relevantes do que o decretamento de uma insolvência”.

Essa mesma solução foi aplicada pelo Ac. de 29-3-12, na revista 7266/07.3TBLRA-E.C1.S1, no âmbito de uma acção de resolução em benefício da massa insolvente, tendo-se decidido que o acórdão de revista depende da demonstração da existência de oposição de julgados.

No Ac. de 29-5-12, na revista excepcional 4265/09.4TBLRA-J.C1.S1, teve como alvo uma acção de separação de bens da massa insolvente, referindo-se no sumário que “no «processo de insolvência» incluem-se os incidentes de trânsito, sendo incidental a lide destinada a obter a separação/restituição dos bens da massa, pois o seu desfecho reflecte-se, directa e imediatamente, na insolvência, por afectar o acervo de bens e direitos constitutivos da massa …”.

6. Por todos estes argumentos se impõe a rejeição do recurso de revista, uma vez que o recorrente não alegou nem demonstrou na acção para verificação ulterior de créditos a existência da necessária contradição jurisprudencial relativamente à questão que foi apreciada no acórdão recorrido.

7. Por conseguinte, ao abrigo do art. 14º, nº 1, do CIRE, acorda-se em rejeitar o recurso de revista.

Custas a cargo do recorrente.

Notifique.

Lisboa, 14-11-13

Abrantes Geraldes

Bettencourt de Faria

Pereira da Silva