Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
520/20.0T8PVZ-A.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ACORDÃO DA RELAÇÃO
CONHECIMENTO DO MÉRITO
INVENTÁRIO
RECLAMAÇÃO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
PRESSUPOSTOS
VALOR DA CAUSA
SUCUMBÊNCIA
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 03/14/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REJEITADO O RECURSO
Sumário :
I - O acórdão da Relação, que confirmou a decisão da 1ª instância proferida num incidente de reclamação contra a relação de bens em processo de inventário, conheceu do “mérito da causa”, ficando englobada na regra geral do art. 671º, nº1, do CPCivil;

II – Como tal, a admissibilidade do recurso de revista depende de se verificarem os pressupostos gerais de recorribilidade fixados no nº1 do art. 629º, relacionados com o valor da causa e da sucumbência, e da não ocorrência de situação de dupla conforme, que nos termos do nº3 do art. 671º é impeditiva da revista em termos gerais.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


Nos presentes autos de inventário facultativo por óbito de AA, notificados os interessados da Relação de Bens apresentada pela cabeça de casal BB, veio a interessada CC,

(1) Impugnar o direito de crédito relacionado na verba 1, alegando a sua inexistência por ter sido pago há já muitos anos nos termos que constam da ata n.º 18 de encerramento da sociedade e acrescenta o facto de o reconhecimento de dívida junta pela cabeça de casal corresponder ao valor da compra de mercadorias respeitantes ao negócio da inventariada pela referida sociedade, onde a reclamante e a interessada DD intervieram enquanto sócias gerentes;

(2) Reclamar da Relação de Bens

(2.1) Quanto aos dinheiros - Porquanto é referido na verba 2 de dinheiros que o saldo da conta bancária relacionada deveria ser 27.907,47€, quando a reclamante procedeu ao levantamento da quantia de 13.653,32€, e porque como contitular da conta (refere-se à conta ...........00), beneficia da presunção de solidariedade do dinheiro existente, sendo que o mesmo não podia pertencer à inventariada, face à sua parca reforma;

(2.2) Quanto às joias: Por só as reconhecer se identificadas por meio de fotografias cuja junção requer e requer seja a sua avaliação;

(2.3) Quanto ao valor dos móveis (verbas 13, 14, 15 e 17): Por se encontrarem em razoável estado de conservação têm o valor que indica e (também) acusa a falta de relacionamento de um serviço de chá e café;

(2.4) Quanto à verba dos bens avulsos: Acusa a falta de relacionamento dos bens móveis que identifica pelos valores que indica e que levam ao aumento do valor da verba na sua totalidade para 2.350,00€.

(3) Reclamar do relacionamento como passivo - A dívida da herança à cabeça de casal relativa a IMI’s de 2013 a 2019 e de 2020, considerando que a reclamante reembolsou a cabeça de casal do valor do IMI desde 2013 até 2020 na quantia global de 1.221,55€, relativamente ao imóvel onde habita, conforme documentos comprovativos de transferências bancárias, requerendo que seja relacionado como como dívida da herança à reclamante dos valores pagos a esse título.

(4) Acusar a falta de relacionação de créditos da herança

(4.1) Os valores correspondentes aos pagamentos efetuados pela cabeça de casal com dinheiros da conta bancária da herança pela cabeça de casal de despesas de água, luz e telefone da casa onde habita, que foi casa da inventariada e que totalizam 516,72€.

(4.2) O valor total de 3.541,47€ relativo a empréstimos efetuados pela inventariada à filha EE e marido FF para a compra de viatura e ajuda na compra de um apartamento (nos valores respetivos e discriminados de 997,60€ e 2.543,87€).

A Cabeça de casal respondeu à reclamação declarando, em síntese, que

a) o direito de crédito relacionado é dívida pessoal das interessadas e não da sociedade; que a dívida não está prescrita por ser venda de mãe a filhas e o prazo de 20 anos contar-se desde a data em que o plano de pagamento prestacional acordado deixou de ser cumprido em 2008; que a ata junta é um formalismo que tem de ser cumprido quando é dissolvida uma sociedade; b) o dinheiro da conta bancária não é propriedade da reclamante na proporção de metade por nunca ter sido aprovisionada por esta; (...) j) desconhece qualquer empréstimo da inventariada à filha EE e marido e nunca a inventariada referiu qualquer dívida dessa filha ou do marido, contrariamente ao que fez quanto às filhas CC e DD, não devendo ser, por isso aditado qualquer crédito da herança, a esse título.

Foram notificados os demais interessados e, depois de várias diligências probatórias, teve lugar, a 9.01.2023, a audiência de julgamento, na qual as partes acordaram parcialmente em relação ao objeto da reclamação.

Foi proferida sentença na qual se considerou, atento aquele acordo dos interessados, que restava como questões a resolver “(i) se o direito de crédito relacionado na verba 1 da Relação de bens não existe, está pago, está prescrito ou não é devido pela interessada DD e Reclamante CC, mas pela sociedade L..., Ldajá encerrada; (ii) se está corretamente indicado o valor total dos saldos bancários relacionados na verba 2 dos “dinheiros” (...) e designadamente nesse valor se inclui o valor de €13.653,31 que a Reclamante levantou ou se este valor pertence à Reclamante atendendo ao regime de solidariedade das referidas contas bancárias; (iii) se devem ser relacionados como créditos da herança os empréstimos efetuados pela inventariada à filha EE e marido FF para a compra de uma viatura e para ajuda na compra de um apartamento nos valores respetivos de 997,60€ e 2.543,87€”. E decidiu-se nos termos do seguinte dispositivo:

Pelo exposto, julgo a reclamação parcialmente procedente, porque parcialmente provada, e, em consequência decido:

1. Determinar que seja eliminada a verba 1 do título “Direitos de Crédito” respeitante ao direito de crédito de €17.819,06.

2. Determinar que seja mantido o relacionamento dos saldos bancários das contas referidas na verba 2 sob o título fazendo-se constar que o saldo da conta de depósitos à ordem n.º PT ....................60 é de €2.596,91, e que a conta bancária de instrumentos financeiros com o n.º ................02, tinha à data do óbito da inventariada 3.345,54457101 unidades de participação Cx SEL GLB moderado, 645 ações da EDP Energias Portugal, 214 ações BCP, de cujo resgate e venda respetivamente resultou o saldo de €26.720,09.

3. Não determinar que seja relacionado pelo cabeça de casal como direito de crédito a dívida à herança do valor total de €3.541,47 relativo a empréstimos efetuados pela inventariada à filha EE e marido FF para a compra de uma viatura e para ajuda na compra de um apartamento”.

Da sentença, a reclamante CC interpôs recurso de apelação, mas sem sucesso pois que o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 13.11.2023, confirmou integralmente a decisão da 1ª instância.

Ainda inconformada, interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do disposto no art. 629º, nº2, alínea c) do CPC, visando a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por decisão que determine que:

- Seja relacionado pela cabeça de casal que o saldo da conta de depósitos à ordem a partilhar seja de 13.360,04€, porquanto apenas esse pertencia à inventariada,

- Seja relacionado pela cabeça de casal como direito de crédito a dívida à herança do valor total de € 3.541,47 relativo a empréstimos efetuados pela inventariada à filha EE e marido FF para a compra de uma viatura e para ajuda na compra de um apartamento.

Conclui a sua alegação do seguinte modo:

1ª.O entendimento vertido no Acórdão recorrido, assenta num formalismo afastado por Acórdão de Uniformização de Jurisprudência.

2ª. Sequer analisando as questões apontadas e apesar de evidentemente compreender a matéria de facto com a qual a recorrente não concordava, decidiu o Tribunal a quo sequer apreciar os fundamentos invocados.

3ª. O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência supra identificado, de forma muito objetiva refere que exigências, tais como as do Acórdão aqui sob recurso, deverão ser adequadas, proporcionais e razoáveis, de modo que não seja sacrificado um direito das partes em função de um rigorismo formal, desconsiderando aspetos substanciais das alegações, numa prevalência da formalidade sobre a substância.

4ª. Por outro lado, ainda que com o mesmo resultado – o da improcedência do peticionado – o Acórdão aqui em recurso decide-se pela improcedência do pedido, mas fá-lo seguindo fundamentos diversos, negando o efeito cominatório da notificação prevista no artigo 1105º nº 1 do Cod. Proc. Civil. A sentença havia simplesmente decidido com a alegada falta de prova.

5ª. Entende-se assim, pelas conclusões supra expostas, justificados os fundamentos que admitam o presente recurso de Revista.

E na sequência dessa admissão sempre se dirá que,

6ª. Dispõe o artigo 466º do Cod. Proc. Civil que as partes podem requerer, até ao início das alegações orais em primeira instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto.

7ª. Não pode a cabeça de casal indicar como meio de prova as declarações de parte de demais interessados. É um desvirtuamento das regras processuais e um procedimento completamente contrário ao estabelecido na Lei, obstando a que se valorem as declarações prestadas pelas partes que não requererem o seu depoimento.

Mas ainda que assim não se entenda, sempre se dirá que

8ª. A prova dos factos favoráveis ao depoente e cuja prova lhe incumbe não se pode basear apenas na simples declaração dos mesmos, é necessária a corroboração de algum outro elemento de prova, com os demais dados e circunstâncias, sob pena de se desvirtuarem as regras elementares sobre o ónus probatório e das ações serem decididas apenas com as declarações das próprias partes.

9ª. Numa conta bancária em que existem dois titulares, as chamadas contas solidárias, são estas tituladoras de depósitos bancários efetuados em nome de duas ou mais pessoas, ficando qualquer delas com a faculdade de, isoladamente e sem necessidade de intervenção do seu co-titular, fazer levantamentos e outros movimentos quer sejam de crédito ou de débito.

10ª. A estes depósitos são aplicáveis os princípios da solidariedade ativa estatuídos nos artigos 513º e 516º do Código Civil, que estabelecem, em síntese, a presunção de comparticipação em partes iguais no crédito - ou seja, presume-se, enquanto se não fizer prova em contrário, que cada um dos depositantes é titular de metade da conta.

11ª. As decisões judiciais não podem assentar em meras especulações, precisam assentar em factos e provas concretas. Não havendo esses factos e prova concreta que ilida a presunção de solidariedade da conta bancária – e declarações de parte, de admissão duvidosa e prestados por quem tem interesse na causa não ilidem tal presunção - não pode a totalidade do saldo bancário ser relacionado nos bens a partilhar.

Por outro lado,

12ª. Uma dívida de um dos herdeiros à herança, ou seja, um crédito da herança sobre um dos interessados, cujo relacionamento é indicado em sede de impugnação de relação de bens, para que não seja incluído no acervo hereditário, deverá ser impugnada por aquele a quem diz respeito.

13ª. Tendo o interessado/herdeiro sido notificado para se pronunciar sobre a inclusão de uma divida sua à herança e se nada disser, tal silêncio deve ter a cominação de aceitação e daí resultar a relacionação dessa dívida no acervo hereditário. Havendo a impugnação da relação de bens na qual são alegados factos novos – como in casu, com o relacionamento de um crédito da herança sobre um interessado - esses novos factos devem ser impugnados em articulado de resposta. A falta de resposta por aquele a quem respeite, relativamente aos fundamentos da “contestação” ou a algum facto novo que tenha sido alegado, produz o efeito estabelecido no artigo 574º do Cod. Proc. Civil (por aplicação do disposto no artigo 587º nº 1 do mesmo Código).

15ª. Ou seja, remetendo-se o interessado ao silêncio e não se pronunciando sobre o crédito invocado, deverá o mesmo ser considerado provado e, como tal, relacionado no acervo hereditário a partilhar.

16ª. Ao decidir como decidiu, a sentença violou o disposto nos artigos 513º, 516º do Código Civil e artigos 466º, 574º e 1104º e 1105º do Cod. Proc. Civil.

Respondeu a interessada CC, pugnando pela não admissão do recurso por não ser admissível revista do acórdão da Relação que confirme a decisão proferida na 1.ª instância, nos termos art. 671.º, n.º 3, do C.P.C..

Fundamentação.

Vem provada a seguinte matéria de facto:

1. AA faleceu em ... de ... de 2012.

2. Por documento intitulado “reconhecimento de dívida” datado de 29.10.1995, as interessadas DD e CC, sócias gerentes da sociedade comercial por quotas “L..., Lda” declararam ser devedoras à inventariada AA, empresária em nome individual, da quantia de 6.000.000$000 (seis milhões de escudos) a pagar segundo o plano de pagamento que se refere como anexo e sem lugar a cobrança de juros.

3. Ali se explicando que a constituição da referida dívida tem como fundamento a compra de mercadorias à inventariada, na qualidade de fornecedora, titulada essa compra pelas faturas 1644 a 1656 de 1.08.1997 tendo sido abatida às referidas faturas a quantia de 4.090.742$60.

4. Por deliberação de 31.12.2009 as identificadas sócias da sociedade comercial por quotas “L..., Lda” deliberaram não continuar com a atividade desta sociedade por falta de interesse e ter vindo a apresentar prejuízos, aprovaram as contas reportadas à referida data assim como a dissolução e liquidação da sociedade por inexistência de ativo e passivo designadamente por se encontrar liquidado todo o passivo e inexistir bens patrimoniais.

5. A conta bancária à ordem com o n.º PT ....................60 sediada na Caixa Geral de Depósitos, agência da ..., é titulada por AA (inventariada) e CC (interessada/reclamante) e à data do óbito da inventariada tinha o saldo

6. A conta bancária de instrumentos financeiros com o n.º ................02, sediada na Caixa Geral de Depósitos, agência da ..., é titulada por AA (inventariada) e CC (interessada/reclamante) e à data do óbito da inventariada tinha 3.345,54457101 unidades de participação Cx SEL GLB moderado, 645 ações da EDP Energias Portugal, 214 ações BCP.

7. As referidas 3.345,54457101 unidades de participação Cx SEL GLB moderado foram resgatadas em 18.07.2012, dois dias depois do óbito da inventariada e a ordem de venda das 645 ações da EDP Energias Portugal e 214 ações BCP teve lugar a 29.08.2012, 14 dias depois desse óbito e consequentemente foi lançado a crédito na conta identificada em 2) nestas datas, os valores de 20.050,52€, 1.264,20€ e 5.405,37€.

8. As identificadas ações do BCP remanescem das compras de ações do BCP pela inventariada em 1.01.2001 e 23.04.2008 e da subscrição de aumentos de capital/ incorporação de reservas em 2008, 2010 e 2011; as identificadas ações da EDP são as remanescentes de compras efetuadas pela inventariada a 1.01.2001 e as unidades de participação Cx SEL GLB são as remanescentes após diversos resgates parciais das compradas pela inventariada a 15.05.2002 e 24.09.2007.

9. O dinheiro dos saldos das contas em 5) a 7) é proveniente de dinheiros da herança da mãe da inventariada, de poupanças da inventariada advenientes de negócios que deteve, de juros resultantes de investimentos em ações e produtos financeiros diversos.

10. Em 10.10.2013 a interessada/reclamante CC procedeu à transferência de 13.653,32€ para conta por si titulada correspondentes a metade dos valores creditados referidos em 7).

11. A identificada conta bancária de instrumentos financeiros encontra-se encerrada desde 27.02.2016.

E foi julgado não provado:

a) A inventariada emprestou à filha EE e marido FF valores os valores de 997,60 e 2.543,87 Euros para a compra de uma viatura e para ajuda na compra de um apartamento;

b) A herança de AA tem um direito de crédito sob as interessadas DD e CC de 17.819,06€ correspondente ao remanescente em dívida titulada pela declaração de reconhecimento de dívida dado como provado em 1).

Fundamentação de direito.

O presente recurso vem interposto do acórdão da Relação que confirmou a decisão da 1ª instância proferida em incidente de reclamação contra a relação de bens, tendo decidido:

i) deve ser relacionado o saldo da conta de depósitos à ordem n.º PT ....................60 no valor de €26.720,09 (e não apenas €13.360,04, como pretende a Recorrente);

ii) não dever ser relacionado como dívida à herança o valor de €3.541,47 por supostos empréstimos efetuados pela inventariada à filha EE e marido FF.

Esta decisão, que tem influência na partilha, não é uma decisão interlocutória que recai unicamente sobre a relação processual, mas sim uma decisão que incide sobre matéria substantiva, tendo natureza material, pelo que não estamos perante uma situação cuja recorribilidade esteja excluída pelo disposto no art. 671º, nº2, do Código de Processo Civil. (cf. acórdão do STJ de 29.04.2021, P. 705/14).

Sendo uma decisão que, embora de natureza interlocutória, incide sobre o mérito do inventário fica englobada na regra geral do art. 671º, nº1. (cfr. “O Novo Regime do Processo de Inventário e outras Alterações na Legislação Processual Civil” p. 140, Miguel Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres).

E assim, a admissibilidade da revista exige que se verifiquem os pressupostos gerais de recorribilidade fixados no nº1 do art. 629º do CPC, relacionados com o valor da causa, e da sucumbência, devendo ainda superar o obstáculo da dupla conforme (no nº3 do art. 671º), ou seja, quando a Relação confirme, sem voto de vencido e com fundamentação substancialmente idêntica, a decisão da 1ª instância.

No caso vertente, foi atribuída à causa o valor de €5.000,00, substancialmente inferior à alçada da Relação, pelo que fica arredada a possibilidade da revista em termos gerais.

Acresce que se verifica uma situação de dupla conforme, ao contrário do que sustenta a Reclamante que refere terem as instâncias decidido a questão relativa ao crédito da herança sobre a interessada EE e marido FF, com fundamentação absolutamente diferente.

O STT tem reiteradamente decidido que não basta para afastar o obstáculo da dupla conforme, impeditiva do recurso de revista, nos termos do nº3 do art. 671º, que a sentença e o acórdão recorrido tenham fundamentação diferente; exige-se que essa diferença seja essencial (cfr. acórdão do STJ de 19.12.2023, P. 2808/19).

Abrantes Geraldes, in Recurso (…), 5ª edição, pag. 363, dá como exemplo de “fundamentação essencialmente diferente”, a situação “em que a confirmação da decisão da 1ª instância se processa a partir de um quadro normativo substancialmente diverso, como sucede nos casos em que a uma determinada qualificação contratual sucede uma outra distinta que implica um diverso enquadramento jurídico.

No caso sub judice, a 1ª instância considerou não provado o crédito porque “nenhuma prova foi produzida pela Reclamante pelo que se o mesmo por não provado”.

Decisão confirmada pela Relação nestes termos: “tendo havido resposta da cabeça de casal, sendo o facto (empréstimo ao interessado pela inventariada) controvertido e tendo sido dado como não provado, a decisão não podia ser diversa da tomada em 1.ª instância.”

Donde se conclui que a Relação não decidiu esta questão com fundamentação diferente, pelo que ocorre uma situação de dupla conforme que sempre obstaria à admissibilidade da revista, se não se verificasse o obstáculo do valor da causa, inferior à alçada da Relação (art. 629º/1 do CPC).

Talvez tenha sido esta a razão que levou a Recorrente a interpor o recurso de revista ao abrigo do art. 629º, nº2, alínea c), por o acórdão recorrido ter decidido contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça.

Nos termos da citada disposição, “independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso das decisões proferidas, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça.”

A “jurisprudência uniformizada” do STJ que alegadamente o acórdão recorrido violou é a que resulta da uniformização decretada pelo AUJ nº 12/2023, publicado no DR nº 230/2023, 1ª série de 28.11.2023, com o seguinte segmento uniformizador:

“Nos termos da alínea c) do nº1, do art. 640º, do Código de Processo Civil, o recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a alternativa pretendida desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.”

Recordemos as conclusões do recurso de apelação:

I - Uma dívida de um dos herdeiros à herança, ou seja, um crédito da herança sobre um dos interessados, cujo relacionamento é indicado em sede de impugnação de relação de bens, para que não seja incluído no acervo hereditário, deverá ser impugnada por aquele a quem diz respeito.

II - Tendo o interessado/herdeiro sido notificado para se pronunciar sobre a inclusão de uma dívida sua à herança e se nada disser, tal silêncio deve ter a cominação de aceitação e daí resultar a relacionação dessa dívida no acervo hereditário.

III - Havendo a impugnação da relação de bens na qual são alegados factos novos – como in casu, com o relacionamento de um crédito da herança sobre um interessado - esses novos factos devem ser impugnados em articulado de resposta. A falta de resposta por aquele a quem respeite, relativamente aos fundamentos da “contestação” ou a algum facto novo que tenha sido alegado, produz o efeito estabelecido no artigo 574 do CPC (por aplicação do disposto no artigo 587 n.º 1 do mesmo Código).

IV - Ou seja, remetendo-se o interessado ao silêncio e não se pronunciando sobre o crédito invocado, deverá o mesmo ser considerado provado e, como tal, relacionado no acervo hereditário a partilhar. Por outro lado,

V - Dispõe o artigo 466 do CPC que as partes podem requerer, até ao início das alegações orais em primeira instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto.

VI - Não pode a cabeça de casal indicar como meio de prova as declarações de parte de demais interessados. É um desvirtuamento das regras processuais e um procedimento completamente contrário ao estabelecido na Lei, obstando a que se valorem as declarações prestadas pelas partes que não requererem o seu depoimento.

Mas ainda que assim não se entenda, sempre se dirá que

VII - A prova dos factos favoráveis ao depoente e cuja prova lhe incumbe não se pode basear apenas na simples declaração dos mesmos, é necessária a corroboração de algum outro elemento de prova, com os demais dados e circunstâncias, sob pena de se desvirtuarem as regras elementares sobre o ónus probatório e das ações serem decididas apenas com as declarações das próprias partes.

VIII - Numa conta bancária em que existem dois titulares, as chamadas contas solidárias, são estas tituladoras de depósitos bancários efetuados em nome de duas ou mais pessoas, ficando qualquer delas com a faculdade de, isoladamente e sem necessidade de intervenção do seu cotitular, fazer levantamentos e outros movimentos quer sejam de crédito ou de débito.

IX - A estes depósitos são aplicáveis os princípios da solidariedade ativa estatuídos nos artigos 513 e 516 do Código Civil, que estabelecem, em síntese, a presunção de comparticipação em partes iguais no crédito - ou seja, presume-se, enquanto se não fizer prova em contrário, que cada um dos depositantes é titular de metade da conta.

X - As decisões judiciais não podem assentar em meras especulações, precisam assentar em factos e provas concretas. Não havendo esses factos e prova concreta que ilida a presunção de solidariedade da conta bancária – e declarações de parte, de admissão duvidosa e prestados por quem tem interesse na causa não ilidem tal presunção - não pode a totalidade do saldo bancário ser relacionado nos bens a partilhar.

XI - A sentença violou o disposto nos artigos 513, 516 do Código Civil e 466, 574 e 1104 e 1105 do CPC.

Perante isto, ponderou o acórdão recorrido:

Percorrendo as conclusões apresentadas pela apelante, torna-se evidente que não se identifica ou concretiza qualquer facto (dos factos dados como provados ou não provados na decisão recorrida) que se pretenda ver alterado, nem se sustenta que alguma factualidade haja de ser aditada. Por respeito ao princípio da igualdade processual de todos os litigantes (recorrentes) a factualidade pretensamente a alterar – a ser o caso – não pode resultar da escolha pelo tribunal de recurso, por muito que esta possa parecer evidente.

Por outro lado, e como é entendimento consensual, o recurso da decisão relativa à matéria de facto não admite despacho/convite de correção ou aperfeiçoamento. Finalmente – e, como se verá, atendendo às questões estritamente jurídicas suscitadas no recurso – não estamos perante situação em que “A Relação pode ainda reapreciar motu proprio a matéria de facto quando se verifique a situação enunciada no art. 66.º/2/c) – reforçamos, independentemente da impugnação do recorrente e, eventualmente, do recorrido”1.

Em conclusão, a matéria de facto a atender é a dada como provada e não provada na sentença recorrida – supra transcrita – uma vez que a apelante não identificou no objeto do recurso (conclusões) qualquer alteração ou aditamento à mesma.”

Como resulta do excerto transcrito, a Relação rejeitou o recurso sobre a decisão proferida sobre a matéria de facto pela razão simples de a Recorrente não ter cumprido o ónus de “especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados”, como impõe o art. 640º, nº1, alínea a) do CPC ao recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto.

Nada há a apontar ao acórdão recorrido nesta parte, que se limitou a cumprir a lei, na esteira da jurisprudência constante do STJ segundo a qual o incumprimento dos requisitos das alíneas a), b) e c) do artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso nessa parte (cfr. entre outros, os acórdãos do STJ de 21.03.2019, P. 3683/16, de 17.12.219, P. 363/07, de 10.01.2023, P. 3160/16, e de 16.01.2024, P. 818/18).

A alegação de ter o acórdão recorrido contrariado jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça é totalmente infundada, não se verificando o fundamento de recorribilidade invocado.

Afastada a admissibilidade do recurso com fundamento no art. 629º, nº2, alínea c), e sendo o valor da causa inferior à alçada da Relação, o recurso de revista é inadmissível por não verificado o pressuposto geral de recorribilidade relacionado com o valor da causa (art. 629º, nº1 do CPC).

Decisão.

Pelo exposto, acorda-se em não admitir o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação proferido nos autos.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 14.03.2024

Ferreira Lopes (relator)

António Barateiro Martins

Sousa Lameira